Possibilidades educacionais da capoeira na Educação Física escolar Posibilidades educativas de la capoeira en la Educación Física escolar |
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*Professor de Educação Física da rede municipal de Ilhabela – SP **Professor Dr. Depto. Educação Física da Universidade Estadual Paulista – Rio Claro – SP ***Professor de Educação Física da rede municipal de Itapevi Professor de esportes da rede municipal de Osasco – SP ****Licenciada em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista – Rio Claro – SP (Brasil) |
Luiz Fabiano Seabra Ferreira* Luiz Augusto Normanha Lima** Odailton Pollon Lopes*** Irlla Karla dos Santos Diniz**** |
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Resumo A capoeira pode ser considerada uma autêntica manifestação cultural brasileira. Ela possui diversos conteúdos e significados. Dessa forma, pode e deve ser considerada como elemento curricular no ensino formal. Foram entrevistados professores da rede pública e privada de ensino escolar, buscando compreender os significados e possibilidades educacionais da capoeira. Neste estudo foi empregada a análise estrutural do fenômeno situado (fenomenologia). Como elemento cultural, a capoeira apresenta uma diversidade de possibilidades educacionais, a roda, o jogo, o ritual, a dança, a musicalidade, entre outros. No entanto, ela ainda é marginalizada no âmbito escolar, representando desafios para aqueles professores que desejam abordar esse conteúdo nas aulas de educação física. Unitermos: Capoeira. Educação Física Escolar. Fenomenologia.
Abstract Capoeira can be considered an authentic Brazilian cultural manifestation. It has several meanings and contents. Thus, it can and should be considered as an element in formal education curriculum. We interviewed teachers from public and private school education with intent to comprehend the meanings and educational possibilities of the capoeira. In this study was employed structural analysis of the situated phenomenon (phenomenology). As a cultural element, capoeira presents a variety of educational opportunities, the wheel, play, ritual, dance, musicality, among others. However, it is still marginalized in schools, representing challenges for those teachers who wish to insert this content in physical education classes. Keywords : Capoeira. Scholar Physical Education. Fenomenology.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 196, Septiembre de 2014. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
Não temos a pretensão de exaurir todas as possibilidades de abordar possíveis inter-relações entre educação e capoeira, mas sim desvelar significados atribuídos pelos professores de ensino fundamental e médio que utilizam a capoeira em suas aulas de educação física na escola. Inicialmente faremos uma exposição sobre os conteúdos encontrados na bibliografia consultada, posteriormente realizaremos uma fenomenologia, desvelando os significados atribuídos pelos professores de educação física escolar.
Para Merleau Ponty (1971, p.5) a fenomenologia é o estudo das essências, uma filosofia que busca compreender o homem e o mundo a partir da sua facticidade. “É o ensaio de uma descrição direta da nossa experiência tal como ela é [...]”.
Pré reflexão - Educação e capoeira: quais inter-relações possíveis?
Quanto à origem etimológica da palavra, uma das teorias é de que a expressão capoeira vinda da língua tupy prevê: caá-puêra (caá = mato; puêra = que já foi). O termo também foi objeto de estudo de Rego (1968), que trás entre outros significados, cesto de carregar galinhas, ave e lenha.
A capoeira possui diversas significações se apresentando como uma manifestação cultural, entendida como dança, luta e jogo. Destacamos a agilidade da esquiva e a esperteza da fuga, e enquanto forma de expressão corporal, possui linguagens onde cada gesto apresenta significações carregadas de imagens, sentimentos e emoções. De acordo com (Adorno, 1999) ela é brincadeira de movimentos perigosos executados com graça, malícia e muitos rituais. A maioria dos estudos sobre a origem da capoeira defende a idéia do seu surgimento em território nacional, reconhecendo-a a partir de uma identidade afro-brasileira.
Constitui-se como uma das primeiras formas de manifestação libertária profundamente enraizada na cultura brasileira, apresentando-se originalmente como uma forma de resistência frente à dominação exercida pelos senhores de engenho em relação aos negros escravizados.
A princípio uma prática restrita aos negros e sua cultura. A capoeira começa a se popularizar a partir de 1870, quando não estava mais restrita apenas a esta etnia. A partir dos anos de 1930 a capoeira adquire um novo status devido à estruturação e formalização de sua prática. O responsável por essa transformação foi o baiano Manuel dos Reis Machado, mas conhecido como mestre Bimba. Apoiado pelo presidente Getulio Vargas, mestre Bimba funda a primeira escola de capoeira na Bahia, dando início a uma valorização e inserção social mais ampla da capoeira que até então se encontrava marginalizada por ser considerada uma prática eminentemente de negros.
Como elemento cultural, a capoeira vem sofrendo diversas influências, resultando em transformações de conteúdo e forma. Nesse contexto, podemos encontrar múltiplos significados para as suas práticas. Remontando às suas origens a capoeira esteve relacionada aos negros escravos no ambiente da senzala, entre outros. Ressaltamos que atualmente ela possui características diferentes do que originalmente foi no passado. Outra transformação significativa diz respeito à mercantilização desta prática como bem cultural passível de consumo. Nesse contexto, podemos observar diversas “escolas” de capoeira nas quais muitas vezes sua prática foi transformada em algo estilizado para agradar e atrair novos praticantes/consumidores, deixando de lado aspectos mais profundos desta cultura popular.
No Brasil, a partir da década de 1970 a capoeira tem ocupado um espaço muito maior no contexto educacional, desde o ensino fundamental até as universidades. Nesse complexo movimento de transformações vem despertando interesses que anteriormente inexistiam por parte da comunidade educacional institucionalizada.
Devido aos seus conteúdos, ressaltamos a capoeira como possibilidade de educar, pois é possível contextualizá-la no interior do ambiente escolar como prática pedagógica. No âmbito educacional formal uma concepção de capoeira que merece destaque é a defendida na obra Metodologia do Ensino de Educação Física. De acordo com essa obra a capoeira está embutida em um conceito amplo, o de “cultura corporal de movimento”. Esta tem como base a história das atividades humanas, buscando desenvolver uma reflexão pedagógica a partir da compreensão da existência humana e suas inter-relações com o mundo. As atividades da cultura corporal, em específico a capoeira, desenvolveram-se a partir das atividades produtivas inerentes a existência humana, envolvendo múltiplos aspectos em suas manifestações (Coletivo de Autores, 1992).
Como elemento da cultura corporal do movimento, destacamos a complexidade de elementos constituintes, desde os movimentos em si, tal como questões de gênero, historicidade, entre outros. Por meio da prática e reflexões de seus múltiplos significados, movimentos e historicidade a capoeira pode contribuir para uma educação pautada na diversidade sociocultural.
De acordo com Araújo e Santos (s.d., p. 3) “a capoeira é produto da atividade humana, cujas categorias, princípios e leis emergem da interação do lógico e do histórico, do meio social, econômico, político [...]”.
Como constituinte curricular da disciplina educação física escolar, a capoeira engloba diversas práticas pedagógicas, tais como: jogo, luta, dança, brincadeira, constituindo um leque de opções educacionais com múltiplas inter-relações com outras disciplinas do currículo escolar (história, artes/música, geografia), sendo possível proporcionar o desenvolvimento das potencialidades físicas, cognitivas, motoras, afetivas, comunicativas e psíquicas dos alunos, indo além da mecânica dos movimentos, mas construindo múltiplas inter-relações envolvendo os alunos em sua totalidade, considerando suas particularidades, bem como, o contexto sociocultural em que estão inseridos. Nesse contexto, possibilitam o desenvolvimento de competências, favorecendo a sociabilização dos alunos. Isso tudo amparado por uma legislação federal – Brasil, Lei Federal Nº 10.639 de janeiro de 2003 - que aponta a necessidade e obrigatoriedade da inserção no currículo escolar de conteúdos referentes à história e cultura Afro-Brasileira.
De acordo com Paim e Pereira (2004), as práticas da capoeira possibilitam o desenvolvimento de conteúdos conceituais e procedimentais, como autonomia, cooperação e participação social, fatores decisivos para a formação de cidadãos autônomos.
A capoeira pode ser compreendida como inter e trans-disciplinar, pois seus conteúdos extrapolam o enquadramento de uma única disciplina. Citamos como exemplo a história da capoeira como um componente essencial dessa manifestação popular brasileira. Segundo Iório e Darido (2005, p.15), “...a história da capoeira passa a ser o elemento primordial da prática educativa da capoeira...”. Dessa forma, apresenta-se como um marco inicial na aprendizagem deste importante elemento da cultura corporal de movimento, proporcionando a contextualização histórica e geográfica.
Enquanto expressão artística cultural possibilita o desenvolvimento e aprendizado do ritmo e musicalidade, podendo envolver a apreciação e contemplação de obras áudio/visuais retratando diversos conteúdos e vertentes da capoeira, bem como as experiências decorrentes da participação das rodas de capoeira. A musicalidade trás consigo a particularidade de proporcionar diversas formas de expressão e comunicação, transpassando os limites da roda e refletindo na vida dos praticantes. Ela é essencial e indispensável na roda de capoeira. Seu papel educativo se torna relevante a partir do momento que influencia na integração dos aspectos afetivos, cognitivos, estéticos e sensíveis. Por meio do desenvolvimento do ritmo o praticante constrói compreensões acerca das inter-relações espaços-temporais.
O desenvolvimento motor é incentivado e potencializado com a prática da capoeira, pois os movimentos executados pelos praticantes trabalham o corpo na sua totalidade, auxiliando o crescimento e desenvolvendo as capacidades físicas, possibilitando a estruturação de esquemas corporais, de coordenação motora, lateralidade, força e flexibilidade.
No que diz respeito ao desenvolvimento sócio-afetivo, é possível uma ampliação do controle emocional, favorecendo a integração e possibilitando trocas afetivas mais profundas entre os alunos, diminuindo a timidez e a insegurança.
Natividade (2006) relata diversos resultados positivos a partir da inserção da capoeira nas aulas de educação física escolar. O autor descreve que para cada ciclo deve ser realizada uma abordagem específica sobre a capoeira, visando adaptar seus conteúdos de acordo com as necessidades de cada grupo. Como exemplo cita seu trabalho na primeira fase do ensino fundamental, descrevendo que ao final do terceiro bimestre observou melhora na agilidade, resistência, equilíbrio, coordenação. Também observou que as relações afetivas entre os alunos foram beneficiadas, pois no início do ano letivo muitos deles não participavam das atividades por timidez e insegurança.
Silva e Rabêllo (s.d.) dizem que:
No jogo artístico somos conduzidos a conhecer nossas experiências vividas, que não podem ser expressas pela linearidade da linguagem. A roda de capoeira nos leva a experiências que são essencialmente sensíveis, possibilitando um conhecimento mais apurado do ser humano em toda sua complexidade (SILVA E RABÊLLO, s.d.).
No jogo de capoeira há que se observar o momento adequado para a realização dos movimentos, numa constante troca com o outro, construindo uma cadência e reciprocidade entre os participantes. Sodré (2005) expõe que no jogo de capoeira:
mobilizam-se totalmente os corpos dos jogadores, mãos, pés, joelhos, braços, calcanhares, cotovelos, dedos, cabeças combinam-se dinamicamente em esquivas e golpes, de nomes variados: aú, rasteira, meia lua, meia lua de compasso, martelo, rabo de arraia, bênção, chapa de pé, chibata, tesoura e muitos outros. (SODRÉ, 2005, p.153).
Em função da complexidade, o jogo de capoeira promove excitações da percepção sensorial e do controle corporal, contribuindo para o desenvolvimento de aspectos motores e sensitivos, possibilitando interligações entre o pensar, o sentir, e o agir. Portanto, na roda da capoeira os sujeitos participantes estão envolvidos entre si e transcendendo as individualidades, invocando uma dimensão coletiva que envolve o jogo.
A roda de capoeira é essencialmente coletiva, pois, além dos dois participantes que se encontram no centro, existem aqueles que estão na bateria, e os outros que literalmente formam a roda envolvendo os dois participantes no centro. Nesse contexto, ressaltamos que a roda de capoeira apresenta uma complexidade de elementos constituintes. De acordo com Silva e Rabello (s.d.);
O diálogo corporal envolvendo os jogadores numa roda de capoeira simula posturas dialéticas entre dança e luta, resguardadas por um código ético ancestral que cria uma relação simbólica de interdependência entre os jogadores [...] E, ainda, colocam que esta negociação constante entre os jogadores na capoeira nos remete a uma proposta educativa que exigirá do educando mais ponderação, dialogicidade, e respeito ao próximo, pois, no constante ir e vir dos movimentos se estabelece a metáfora da vida cotidiana de um sujeito político que precisa estar atento no “jogo” da sociedade contemporânea (SILVA E RABÊLLO, s.d.).
A pluralidade é outro elemento que merece destaque dentro do contexto da capoeira, representando uma miscigenação cultural, pois todos podem participar, sejam brancos, negros, índios, pobres, mulheres, crianças, entre outros. Isto contribui para a ampliação do respeito e tolerância pelas diferenças, ressaltando que apesar das individualidades as pessoas podem se unir por objetivos em comum, neste caso a roda de capoeira. Para além da roda de capoeira, isso significa a possibilidade de uma sociedade plural e democrática em que todos podem participar conjuntamente na construção da cidadania.
A prática da capoeira envolve um trabalho pedagógico (ensinar) podendo ser considerado como prática social, assim as formas que este ensinar assume no universo da capoeira têm íntima relação com a estruturação social, existindo um relacionamento direto entre o educador, o aluno e a sociedade como um todo. Nesse contexto, faz-se necessário ressaltar a necessidade da ludicidade como elemento primordial, buscando atrair os alunos, permitindo que eles se expressem respeitando as individualidades e limitações de cada educando. Schwartz (2004) afirma que poderia existir uma enorme contribuição se o componente lúdico fosse introduzido no meio escolar, inclusive na conturbada relação entre professores e alunos, otimizando assim o aprendizado.
O fazer dos professores de educação física é essencialmente movimento (significativo), pois o corpo é o referencial para suas práticas. Fenomenologicamente corpo vivido significa aquele que experiencia, vivencia a realidade a partir deste, não se reduzindo a dimensão material, mas compreendendo-o na sua multi-dimensionalidade. Ressaltamos a necessidade de uma perspectiva holística sobre o ser, buscando superar as dicotomias e fragmentações encontradas em diversos paradigmas que orientam a educação física enquanto área de pesquisa e ação.
Buscando superar as metodologias prescritivas no currículo de formação dos educadores físicos, Falcão (2004) faz um alerta chamando atenção para os cuidados ao eleger a capoeira como conteúdo curricular. Isto posto, faz-se necessário a adoção de metodologias reflexivas objetivando ampliar o desenvolvimento cognitivo, intelectual, muito além do físico, corporal. O autor propõe o conhecimento da capoeira como complexo temático, organizado e sistematizado criticamente pelo professor, pois assim os professores em formação teriam a oportunidade de contextualizar a capoeira num amplo contexto sociocultural, superando algumas limitações impostas por propostas metodológicas limitadas e insuficientes do ponto de vista educacional. Nesse contexto, educação é compreendida como uma práxis visando transformação social.
A organização do trabalho pedagógico, centrada na prática, deve superar procedimentos autoritários, fragmentados, verticalizados, cartesianos, e acolher a horizontalidade, a pluralidade, o contexto. Não há mais lugar para as pedagogias de assimilação, prescritivas, através das quais o estudante vai à escola ou universidade, aprender representações, conceitos e conteúdos previamente determinados pelo professor (MOREIRA apud FALCÃO, 2004, p.156).
Situando o fenômeno
O objetivo deste trabalho é identificar possibilidades de educar, bem como ressaltar os significados (fenômeno) e aspectos educacionais relevantes que a capoeira apresenta enquanto um componente curricular nas aulas de educação física escolar. Para isso desvelamos o pensar do professor de educação física escolar, como ele atribui significados e compreende a prática da capoeira nas aulas educação física.
Aqui fenômeno é compreendido dentro de uma perspectiva fenomenológica, existencial, intencional, tal como cada sujeito vivencia suas experiências cotidianas no interior da escola. Para Merleau Ponty (1971, p.14) “o mundo não é o que penso, mas o que vivo, estou aberto ao mundo, comunico-me indubitavelmente com ele, mas não o possuo, ele é inesgotável”. Fenômeno é aquilo que se manifesta na consciência, são os significados que os professores constroem sobre a capoeira nas aulas educação física escolar. Merleau Ponty (op. cit, p.13) diz que:
No silêncio da consciência originária, vê-se aparecer não somente o que querem dizer as palavras, mas ainda o que querem dizer as coisas, o núcleo de significação primária em torno do qual se organizam os atos de denominação e de expressão (MERLEAU PONTY, op. cit, p.13).
Interrogação
Para atingirmos o objetivo proposto nesta pesquisa, foram realizadas entrevistas com dez professores de educação física escolar. Interrogamos esses profissionais acerca de suas experiências/vivências sobre o tema abordado, no caso a capoeira nas aulas de educação física escolar.
Uma pergunta norteadora foi dirigida aos professores: o que é para você ensinar capoeira na escola?
Metodologia
Buscando rigor na coleta e análise dos dados, utilizamos “A Análise Qualitativa do Fenômeno Situado” como um método que “Inicia-se com a tentativa de descobrir um modo verdadeiramente filosófico de estudar a consciência que era redutível à psicologia” (MARTINS e BICUDO, 1989, p.91).
Na pesquisa fenomenológica, o pesquisador não parte de referenciais teóricos, nem de explicações causais, mas sim da experiência vivida dos sujeitos, o mundo vida.
Esta metodologia objetiva a compreensão do fenômeno (mundo-vida), a partir de três momentos importantes na análise dos dados, são eles: descrição, redução e interpretação do fenômeno que se está investigando.
As descrições contidas nesta pesquisa foram feitas através dos discursos dos professores de educação física escolar, obtidos por meio de gravações de áudio.
Nesta pesquisa foram realizadas análises ideográficas, bem como a nomotética dos discursos de dez professores da rede pública e privada de ensino fundamental e médio do estado de São Paulo. No entanto, por ser demasiada extensa a tabela construída a partir dos discursos coletados, optamos por inserir os resultados gerais das análises propostas na metodologia.
Construção dos resultados - desvelando o fazer dos professores e os significados atribuídos à prática da capoeira no âmbito escolar
Os professores de educação física entrevistados relatam que a capoeira faz parte da cultura corporal do movimento, estando intimamente relacionada à identidade nacional, sendo considerada um autêntico elemento da cultura brasileira. Eles ressaltam que a inserção da capoeira na escola está amparada por legislação, tal como a Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) e o Referencial Curricular Nacional (RCN). Dessa forma, deve ser trabalhada como conteúdo disciplinar obrigatório, pois educação e cultura estão interconectados.
Como elemento cultural, a capoeira apresenta uma diversidade de possibilidades educacionais em função de seus conteúdos constituintes, a roda, o jogo, o ritual, a dança, a musicalidade, entre outros. Cada um dos elementos que compõem a capoeira pode e deve ser trabalhado nas aulas de educação física, mesmo sendo de forma superficial, pois a capoeira é considerada um conteúdo curricular, compartilhando espaços com outros conteúdos formais da disciplina educação física, tais como: o futebol, basquetebol, ginástica, o jogo, entre outros, portanto não há obrigatoriedade de se formar um capoeirista, mas sim possibilitar ao aluno uma experiência envolvendo a capoeira no âmbito escolar. Essa vivência pode despertar no aluno o interesse em buscar outras possibilidades para essa prática fora do ambiente escolar.
Sendo compreendida como cultura, a capoeira se encontra enraizada em manifestações populares, e por esse motivo é de fácil aceitação por boa parte dos alunos, pois é algo que eles de certa forma já possuem algum conhecimento, mesmo sendo superficial ou fragmentado. No entanto a capoeira ainda é marginalizada no âmbito escolar e isso representa um desafio para aqueles educadores que desejam abordar esse conteúdo (entre outros) nas aulas de educação física. Há necessidade de ir além dos estereótipos envolvendo essa disciplina, pois os alunos, principalmente os de ensino fundamental ainda associam o futebol e a queimada como práticas elementares nas aulas, menosprezando outras atividades.
Os professores descrevem suas práticas destacando a historicidade e contextualização da capoeira num amplo universo antropológico, sociológico, filosófico e existencial. Criam esforços para estabelecer a interdisciplinaridade, principalmente com a disciplina de história, devido à aproximação e apropriação dos conteúdos entre ambas. Constroem múltiplas inter-relações entre os diversos elementos constituintes da capoeira, pois buscam ampliar o alcance de suas práticas para além da atividade física, bem como, inserem outros elementos da cultura popular, tais como; o jongo, o samba de roda e o maculelê, construindo uma educação que valorize e preconize essas práticas como manifestações autenticamente brasileiras. Nesse contexto, os professores propõe que a educação física escolar aborde conteúdos relacionados à cultura popular brasileira, pois assim possibilitam o desenvolvimento de uma educação humana, ressaltando a pluralidade étnico-cultural, respeitando e contextualizando a regionalidade dessas manifestações. Procuram instigar nos alunos os questionamentos envolvendo esses múltiplos aspectos encontrados na capoeira, num constante diálogo e movimento de construção de conhecimentos.
Metodologicamente organizam aulas possibilitando a experiência prática, bem como a reflexão sobre essas vivências, utilizam textos abordando diversos assuntos que se inter-relacionam. Eles descrevem o aprender capoeira como sendo das partes para o todo, e do todo para as partes, isso quer dizer que os alunos aprendem os movimentos fundamentais (ginga, aú, rabo de arraia, negativa, entre outros), bem como realizam o jogo para exercitarem os movimentos fundamentais no contexto da roda de capoeira.
No jogo os alunos estão envolvidos pela música, pelo ritual da capoeira representando diversos aspectos simbólicos contidos nessa prática, tal como a “chamada” que pode ser uma forma de transformar a dinâmica do jogo instantaneamente.
Situam a capoeira na sua complexidade, envolvendo seus múltiplos aspectos e conteúdos formais, procurando valorizar o todo em detrimento as práticas fragmentadas, no entanto, eles relatam terem muitas dificuldades em se atingir esse objetivo, pois além do tempo insuficiente destinado à prática da capoeira nas aulas de educação física escolar, também descrevem a necessidade de amadurecimento dos alunos, pois as inter-relações entre os diversos constituintes da capoeira só se tornam visíveis com o decorrer das vivências.
Relatam possibilidades educacionais diversas. No entanto, descrevem de forma fragmentada o desenvolvimento corporal (flexibilidade, força, resistência muscular, equilíbrio) por meio da realização dos movimentos, o desenvolvimento mental por meio da necessidade de adaptações funcionais, e o desenvolvimento emocional por meio das inter-relações pessoais entre os participantes, ressaltando a prática como uma experiência sensível, envolvendo a percepção dos alunos.
Descrevem a necessidade sobre a “direção da atenção” para a observação das aulas (prestar atenção no que os colegas estão fazendo, bem como o que o professor está querendo mostrar com os movimentos), mas acima de tudo buscam proporcionar momentos prazerosos e produtivos para os alunos. Essa cobrança diz respeito à necessidade do aluno apreender o contexto no qual os movimentos são realizados, pois a capoeira é descrita como uma luta de ataque e defesa, movimentos que integram os sujeitos num jogo de ir e vir.
Destacam o lúdico como elemento primordial nas aulas, pois assim o aluno aprende brincando ao invés de simplesmente ficar imitando movimentos mecanicamente, mesmo que seja cobrada a “atenção” nos movimentos executados pelo professor. Nesse contexto, as brincadeiras escondem os golpes da capoeira tornando o aprendizado mais espontâneo e sem cobranças por perfeição na execução dos movimentos. Percebendo isso, diversos professores utilizam brincadeiras, jogos, músicas e atividades adaptadas para as aulas com crianças, alternando entre aulas com movimentos específicos da capoeira, golpes, e outras atividades complementares. Segundo os professores este seria um meio de manter a criança participativa nas aulas.
Procuram estabelecer disciplina, asseio e cooperação entre os alunos, visando organização nas aulas, desenvolvendo competências relacionadas à convivência harmônica, valorização do professor, bem como do próprio aluno e do ambiente escolar como um todo.
O professor é um facilitador, auxiliando o aluno a construir conhecimentos, muito mais do que um transmissor de técnicas corporais. Dessa forma, eles relatam a necessidade de reciclagem e aperfeiçoamento do professor com relação às metodologias utilizadas em aula, constituindo experimentações, e uma constante busca por novas possibilidades educacionais por meio da capoeira. É desnecessário que o professor seja um capoeirista “profissional”, mas sim um educador que compreenda e valorize a cultura popular e suas diversas manifestações como elemento educacional.
Considerações finais
Valorizar uma cultura genuinamente nacional possibilita o desenvolvimento de identidades vinculadas com as raízes histórico-culturais, e, acima de tudo, o reconhecimento de uma educação polissêmica e multicultural na escola. Vale frisar a necessidade de uma “estética da sensibilidade” que de acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, 2002, p. 64 seria:
expressão de identidade nacional, a estética da sensibilidade facilitará o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural brasileira e das formas de perceber e expressar a realidade própria dos gêneros, das etnias e das muitas regiões e grupos sociais do país. Assim entendida, a estética da sensibilidade é um substrato indispensável para uma pedagogia que se quer brasileira, portadora da riqueza de cores, sons e sabores deste país, aberta à diversidade dos nossos alunos e professores, mas que não abdica da responsabilidade de constituir cidadania para um mundo que se globaliza, e de dar significado universal aos conteúdos da aprendizagem (PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS, 2002, p. 64).
De acordo com os discursos dos professores, bem como a bibliografia consultada, evidenciamos a multiplicidade de significados envolvendo a capoeira como prática educacional no âmbito escolar, dessa forma, recomendamos aos professores de educação física escolar estudos e cursos (práticas) que permitam a utilização da capoeira como componente curricular.
Para Kunz (1994) muito mais do que um mero reprodutor dos gestos e movimentos, o professor deve se guiar pela efetiva possibilidade de emancipação dos alunos, pois movimento sem consciência é movimento alienante, alienado. Destituído da reflexão o movimento pelo movimento se torna reducionismo. Portanto, o fazer dos professores de educação física se tornarão amplos quando situados, contextualizados no âmbito da cultura do movimento e no mundo-vida de cada sujeito participante desse processo. Acima de tudo respeitando as individualidades, nesse contexto a fenomenologia é um caminho epistemológico necessário para que o movimento seja o resultado daquilo que cada um experiencia na individualidade, sem a necessidade de formatações herméticas vindas do professor para o aluno. “A transformação didático-pedagógica do esporte deve, em parte, levar para esse mundo natural do se-movimentar, ou seja, resgatar o sentido fenomenológico do brinquedo e do jogo” (KUNZ, 2004, p.103).
Referências
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ARAÚJO, Benedito Carlos Libório Caíres; SANTOS, Bartira Telles Pereira. Relações entre capoeira e as teoria críticas da educação: Buscando possibilidades de superação para além do capital. In: XV Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte - II Congresso Internacional de Ciências do Esporte, 2007, Pernambuco. Resumos de comunicações científicas... Pernambuco: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte (CBCE), 2007.
BRASIL. Congresso Nacional. Lei Federal Nº 10.639 de janeiro de 2003: Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências. Brasília, 2003. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 01 de Outubro de 2009.
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COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de educação física. São Paulo: Cortez, 1992.
FALCÃO, José Luiz Cirqueira. Para além das metodologias prescritivas na educação física: a possibilidade da capoeira como complexo temático no currículo de formação profissional. Pensar a Prática 7/2: 155-170, Jul./Dez. 2004.
IÓRIO, Laércio Schwantes; DARIDO, Suraya Cristina. Educação física, capoeira e educação física escolar: Possíveis relações, Revista Mackenzie de Educação Física e Esporte – Ano 4, número 4 , 2005.
KUNZ, Elenor. Transformação Didático-Pedagógica do Esporte. Ijuí: Unijuí, 1994.
MARTINS, Joel. e BICUDO, Maria Aparecida Viggiani. A Pesquisa Qualitativa em Psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Moraes/Editora da Pontifícia Universidade de São Paulo, 1989.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. Rio de janeiro: Freita Bastos, 1971.
NATIVIDADE, Lindinalvo. A Capoeira nas aulas de Educação Física nas escolas municipais de Barra Mansa. Hoje um passo, amanhã uma caminhada. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 10 - N° 94 - Marzo de 2006. http://www.efdeportes.com/efd94/capoeira.htm
PAIM, Maria Cristina Chimelo; PEREIRA, Érico Felden. Fatores motivacionais dos adolescentes para a prática de capoeira na escola. Motriz, Rio Claro, v.10, n.3, p.159-166, set./dez. 2004.
REGO, Waldeloir. Capoeira Angola - Ensaio sócio-etnográfico. Salvador: Editora Itapuã, 1968.
SCHWARTZ, Gisele Maria (Org.). Dinâmica Lúdica: novos olhares. São Paulo: Manole, 2004.
SILVA, Jean Adriano Barros e RABÊLLO, Roberto Sanches. A capoeira no “jogo” da aprendizagem: perspectivas para a formação da pessoa com deficiência visual. Educação Física em Revista, 2008.
SODRE, Muniz. A Verdade Seduzida – Por um Conceito de Cultura no Brasil. Rio de Janeiro, Ed. DP e A. 3ª ed. 2005.
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