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Interpretação da vigorexia à luz da psicanálise

Una interpretación de la vigorexia a la luz del psicoanálisis

 

Bacharel em Educação Física pela Universidade de Caxias do Sul

Especialista em Personal Training pela Universidade Estácio de Sá

Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia

Yonel Ricardo de Souza

yonel.souza@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Nos tempos modernos a vigorexia tem surgido como um transtorno que afeta a saúde mental, ligada à imagem do corpo, onde o sujeito, mesmo musculoso, se exercita compulsoriamente, buscando uma musculatura forte e definida e julga nunca conseguir, levando-o a irremediavelmente à frustração. A ótica sintomática da psiquiatria difere da psicanálise, mesmo porque a etiologia de sintoma é diferente entre estas áreas de conhecimento. Por ser um fenômeno recente, não existe um diagnóstico específico para vigorexia na psicanálise. Portanto, o objetivo deste estudo foi apresentar uma interpretação teórica da vigorexia baseada nos princípios da psicanálise freudo-lacaniana, que foi abordado seguindo os seguintes temas: fundamentos psicanalíticos aplicados à vigorexia, o imperativo do corpo hipertrofiado, conceitos sobre vigorexia e interpretação da vigorexia à luz da psicanálise. Concluiu-se que os sintomas vigoréxicos aparentam ser uma resposta recente ao mal-estar da cultura hodierna, que impõe ao sujeito a necessidade de “se mostrar” e que o funcionamento sintomático tende à neurose obsessiva, embora apresente vários traços relacionados à histeria.

          Unitermos: Vigorexia. Psicanálise. Imagem. Corpo. Sintoma.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 196, Septiembre de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A psiquiatria entende a vigorexia como um transtorno dismórfico corporal, onde os sujeitos acometidos passam a ter uma imagem distorcida de seu corpo, sempre se achando fracos, embora sejam fortes e musculosos, tratando-se como uma adição (Camargo, Costa, Uzunian e Viebig, 2008). Esta abordagem resume o indivíduo unicamente ao orgânico, desprezando todas as circunstâncias, traços estruturais e impositivos do inconsciente.

    O conceito específico de vigorexia não se encontra na literatura da psicanálise e pouco tem se escrito a respeito, pois no mundo contemporâneo, a lógica do desejo do indivíduo tem se deslocado para a modelagem do corpo, e malhar obsessivamente parece não ser problema merecedor de análise. Entretanto Roudinesco (2000) assinala na sociedade hodierna dois tipos de discurso que predominam no narcisismo: busca do bem-estar e cuidados de si, que se dão no domínio da imagem do corpo.

    Sendo assim, o objetivo deste estudo foi apresentar uma interpretação teórica da vigorexia baseada nos princípios da psicanálise freudo-lacaniana. Com fins de inserir gradativamente o leitor na problemática sugerida, este estudo foi dividido em quatro partes, a saber: fundamentos psicanalíticos aplicados à vigorexia, o imperativo do corpo hipertrofiado, conceitos sobre vigorexia e, finalmente, a interpretação da vigorexia à luz da psicanálise.

    O referente estudo torna-se relevante no momento em que apresenta uma forma de esclarecer uma nova modalidade do mal-estar contemporâneo, onde a modalidade de gozo narcísica se manifesta com novos imperativos culturais.

Fundamentos psicanalíticos aplicados à vigorexia

    Primeiramente, há de se ressaltar que o termo vigorexia não é usado na psicanálise. Por isso, faz-se necessário abordar conceitos utilizados na teoria freudo-lacaniana com fins de entender os mecanismos do inconsciente que levam à manifestação da vigorexia.

    O inconsciente é o objeto de estudo da psicanálise, cujas manifestações se dão por desejos originados dos componentes sexuais infantis, que geraram 2 princípios interdependentes: sexualidade e pulsão. A sexualidade humana é movida por uma força constante (Konstante Kraft) denominada pulsão, de excitação interna, que não depende do meio ou da necessidade (Freud, 1915). Esta pulsão só é reconhecida por representantes (Triebreprasentanz) que se dividem em representante ideativo (registro da pulsão) e afeto (expressão qualitativa da pulsão).

    O entendimento freudo-lacaniano de corpo é completamente diferente do mundo físico. O corpo psicanalítico é visto como objeto do psiquismo, que se encontra entre o psicanalista e o divã; é pulsional, sexual e vislumbrado por 3 perspectivas: imaginário, simbólico e real, que, apenas combinadas, lhes permitem formar uma imagem dele, conforme Lacan apresenta em sua tese do Estádio do Espelho (1966).

    O plano imaginário é aquele onde o ego se manifesta. Ele é falso no sentido de ilusão de autonomia da consciência e sua matriz é imaginária, porque ele se dá a partir da cristalização da imagem do corpo (investida pela libido) e inscrita no psiquismo. O plano simbólico é o âmbito da palavra e suas conseqüências. Nesta ótica inclui-se o inconsciente, moldado pela linguagem e pela interdição do incesto (lei que ordena a vida dos homens e os diferencia dos animais), isto é, a cultura. A perspectiva real abrange tudo aquilo que não pode ser simbolizado nem integrado no Ego, segundo Lacan: “... é aquilo que insiste em não se inscrever”.

    Outro conceito importante na psicanálise é o objetivo ou meta (gozo) que é entendido como a redução de uma tensão provocada por um estímulo. Embora a pulsão seja responsável pelo direcionamento dos impulsos do corpo para se atingir a meta, o gozo (morte do desejo) jamais é satisfeito por completo, caracterizando assim o deslizamento constante do desejo em uma rede infinita de significantes. Lacan explica que o motivo da insatisfação se deve à falta estar ligada ao real, embora seja, de fato, estrutural.

    O texto “Os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade”, escrito por Freud (1905), reconhece o surgimento na sexualidade da criança de zonas erógenas, antes do primado da zonal genital, que não sofrem resistências (sobretudo morais) no sentido de realizá-las e que irão refletir na vida sexual dos adultos por toda a existência. Esta fase é caracterizada por Freud como “auto-erotismo”, quando a pulsão ligada a uma zona erógena encontra satisfação sem objeto externo. Garcia-Roza (1997) materializa o auto-erotismo como a ação de repetir uma experiência que lhe deu prazer, como chupar um dedo.

    A fase seguinte ao auto-erotismo é o narcisismo, que difere da anterior pelo entendimento de corpo, que antes eram apenas partes, e agora se torna um todo. Nesta fase, a libido retirada dos objetos é investida no Eu. O narcisismo se divide em primário e secundário. O Eu que surge no narcisismo primário se chama Eu Ideal (Ideal Ich). O que caracteriza a evolução do narcisismo primário para o secundário é a mudança do Eu Ideal para o Ideal do Eu, provocado por um agente externo que impõe exigências e restrições (castração). Desta forma, o Eu torna-se objeto do investimento da libido.

    Nasio (1995) cita que o elemento mais importante na passagem do narcisismo primário para o secundário é o fenômeno do “complexo da castração”, caracterizado pelo reconhecimento da incompletude que desperta o desejo. Nesta fase, quanto mais a libido objetal é investida, mais a libido do Eu se esvazia. Um exemplo prático desta passagem citada por Freud (1914) é o ato de apaixonar-se.

    A psicanálise considera que a ocorrência do processo de negação à castração faz parte da constituição psíquica. Segundo Lacan (1955), para que o homem se realize, ele já deve sentir, de início, negação de uma condição primária que mantém relação imediata, não representada, com o mundo; e esta negação ocorre através da linguagem. Tal rejeição da verdade que o indivíduo se defronta tem origens na relação dele com interpretações distorcidas de sua imagem (objeto), conforme descrito na tese do “Estádio do Espelho” de Lacan, e pode resultar no recalque, desmentido ou foraclusão, conforme as estruturas psíquicas sejam respectivamente, neurose, perversão e psicose.

    Entende-se por recalque como um processo psíquico através do qual o indivíduo rejeita determinadas representações, submergindo-os na negação inconsciente, bloqueando assim os conflitos geradores de angústia. Freud (1915) cita que os conteúdos rejeitados não são destruídos ou esquecidos definitivamente, pois ao se ligarem à pulsão, mantêm sua efetividade psíquica no inconsciente. Para Freud, o recalcado corresponde ao componente central do inconsciente. Lacan (1958) reinterpretou a teoria do recalque de Freud usando as categorias lingüísticas de metáfora e metonímia. À medida que a metáfora envolve a troca de um termo por um outro “que desliza por baixo do balcão", ela seria o correspondente lingüístico do mecanismo de recalque.

    Ocorre o desmentido quando o ser falante não se dispõe a fazer o reconhecimento da realidade captada, se prontificando a desmentir a realidade de sua percepção (Farias, 2010). Diante da angústia da castração, o sujeito adota uma outra saída que não a dívida, de modo a existir nele (perverso) duas vias coexistentes: uma que aceita e outra que nega. Segundo Valas (2001), no desmentido há uma perda da realidade externa, porém a realidade interna é mantida intocada. A percepção se encontra submetida às teorias sexuais infantis a ponto de a criança desprezar o que é evidenciado na realidade. Trata-se de uma defesa que só tem sucesso a médio prazo, pois o que é desmentido não desaparece totalmente da vida psíquica.

    Freud (1940) define foraclusão como uma defesa enérgica que, em termos de operatividade, afasta da consciência tanto a representação quanto o afeto a ela relacionado. A conclusão freudiana é a de que a foraclusão deve ser entendida como uma operação defensiva, sendo que em função da ação de tal operação, aquilo que é recusado ou abolido tem um destino especial e diferente do recalcado. Isso confere ao retorno uma conotação particular, mas como delírio ou confusão alucinatória. Sobre foraclusão, Lacan (1966) afirma que, através dela, o sujeito recusa o acesso ao mundo simbólico de algo que, sem dúvida, já experimentou como ameaça da castração: a ausência, no registro simbólico, de uma não admissão, que se confirmará pela alucinação.

O imperativo do corpo hipertrofiado

    Na história da humanidade, desde o surgimento das formas de conduta moderna (séc. XVII), verifica-se que a primeira grande mudança na ótica do corpo se dá com a revolução industrial, quando o corpo do camponês se transforma numa maquina para funcionamento capitalista. Focault (2000) cita que a esta época, surgem fortes mecanismos sociais que atuam sobre o indivíduo e a sociedade, reforçando um caráter normatizador e criando um ideal de corpo: saudável, vigiado e controlado em seus desejos. Surgem, neste instante, as disciplinas corporais.

    O controle disciplinar traz consigo a necessidade de otimização da relação gesto/movimento e leva a eclosão de “políticas de controle dos corpos” tendo como fundamento que a perda de tempo era um erro moral além de desonestidade econômica (Feitosa Filho, 2008).

    Especificamente na cultura ocidental, Courtine (2005) se refere a origem da cultura do corpo como fruto do estabelecimento do trinômio religião-saúde-comércio ao fim do século XIX. Naquela época, cuidar do corpo significava salvar a alma, que se moldava na Terra pela transformação em si. Desta forma, Cristo era visto como um “atleta espiritual” que chegou a oferecer o corpo para atingir a salvação.

    A ginástica passou a servir como instrumento de educação moral, favorecendo a ordem e a disciplina. Para a sociedade intelectual vigente, movimentar o corpo tem o sinônimo de saúde e, para ter saúde, precisa-se praticar esporte, inserindo assim na cultura ocidental um novo jeito de viver. Distorções no ideário normalmente surgiram, como “quanto mais forte mais saudável”. Fato é que se constatou que o corpo poderia ser condicionado e remodelá-lo. Só não se sabia que estas mudanças também levariam a mudanças psicológicas (Feitosa Filho, 2008).

    Aos poucos, a imagem do homem byroniano foi sendo substituída pelo modelo forte e atlético, retomando-se o modelo clássico, que prezava pela exibição da anatomia muscular e associava porte físico às qualidades morais. Naturalmente, com o aumento da capacidade em intervir no corpo através de exercícios especializados e dietas, surge um natural desejo de aumento da massa muscular, principalmente nos homens.

    Sociologicamente, com a queda da burguesia tradicional na virada para o século XX, e conseqüente diminuição da ordem social, avulta de importância o “sucesso”, seguindo o modelo de Bentham (cálculo racional da felicidade) que associa a eficácia do Eu com o próprio corpo. Assim, o espírito competitivo no esporte começa a se confundir com sucesso no trabalho e se iniciam concursos de beleza física masculina e feminina em busca de um consenso ideal. Novas distorções conceituais surgiram, como o “sentir-se bem” ser sinônimo de “estar em forma”.

    O principal fenômeno que caracterizou a entrada na pós modernidade foi a falência das metanarrativas (Chevitarese, 2001): o consumo passou a ditar a produção, constatou-se a obsolescência das lutas de classes e surgiram em seu lugar as manifestações das minorias (sexuais, cor), que tornaram o homem pós-moderno “órfão de grandes ideais”, inerte em si, individualista e preocupado com a própria imagem. Desta forma, alimentado pela mídia, cinema e propaganda, aparecem os fisioculturistas e são eleitos modelos ideais de corpo: musculoso para o masculino (Arnold Schwarzenegger) e magro para o feminino (Barbie). Sobre este aspecto, cita Soares (2001):

    “A subjetividade humana, que implica em mergulho e reflexão, compreensão e desejos, reduz-se à intimidade narcísica de centímetros de bíceps, cinturas, coxas e nádegas [...] para que ele possa se adequar às normas.”

    A exacerbação da hipertrofia muscular voltada para a aparência ganha espaço, invertendo, inclusive a função muscular: de vetor de movimento para produto dele.

Conceitos sobre vigorexia

    O primeiro estudo que se tem registro sobre esta anomalia psíquica foi o do psiquiatra Harisom G. Pope em 1993, quando descreve transtornos psíquicos em praticantes de musculação que se achavam demasiadamente fracos (mas não eram) e foram classificados à época como anoréxicos nervosos reversos, e mais tarde, identificados também como portadores do Complexo de Adônis. No livro homônimo (2000), o mesmo autor considerou o fenômeno como um transtorno dismórfico corporal (TDC), pois estavam ligados à distorção de imagem e obsessão por aumento e definição da musculatura, já utilizando também o termo vigorexia.

    Falcão (2008) e Pereira (2009) entendem a vigorexia como uma psicopatologia que acomete geralmente indivíduos do sexo masculino, numa faixa etária entre 16 e 35 anos e que faz parte das obsessões pelo corpo perfeito. Indivíduos vigoréxicos apresentam uma auto percepção de imagem corporal distorcida, sempre insatisfeitos com o corpo atual, quaisquer que sejam as condições. Com isso, procuram soluções para reverter esse quadro, canalizando suas energias cada vez mais para a prática de exercícios e uso e abuso de dietas e dos anabolizantes, tudo visando modificar o quadro corporal em que se encontram.

    Segundo Ballone (2004), os vigoréxicos apresentam traços de personalidade característicos: baixa auto-estima, dificuldades de socialização, introversão e a rejeição ou aceitação com sofrimento da própria imagem corporal. Feitosa Filho (2008) soma a estes traços: culpa, por não conseguir atingir o ideal desejado, e progressivo desinvestimento na vida emocional, social e ocupacional.

    Devido ao fato de ser um fenômeno recente, a vigorexia ou dismorfia muscular não tem seus critérios diagnósticos estabelecidos na última edição do Código Internacional de Doenças -10 (CID-10) ou do Diagnostical and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-IV-TR). Por isso a psiquiatria entende que a vigorexia se trata apenas de um subtipo do TDC.

    Vale ressaltar que existem diferenças conceituais de cunho epistemológico entre estas áreas. Para a psiquiatria, a vigorexia está relacionada a uma síndrome, definido por sintomas. A compreensão psicanalítica de sintoma é totalmente diferente, pois se relaciona com aquilo que o sujeito elabora numa experiência particular. Para a psicanálise importa encontrar uma teoria que explique as causas mediante a construção da história do sujeito, com fins de se obter os traços estruturais deste.

Interpretação da vigorexia à luz da psicanálise

    Primeiramente, como foi esboçado anteriormente, para a psicanálise o Eu não é senhor de sua própria casa. Desta forma, não há como o sujeito escapar das manifestações de seu inconsciente. É por isso que a psicanálise age de forma inversa à psiquiatria (e outras psicologias), uma vez que cada caso é tomado um a um, como aquela verdade daquele sujeito, pois “é no dizer que a estrutura do sujeito é localizável” (Dor, 1993). O sintoma (elaborado pelo sujeito na própria análise) não obedece a uma doença orgânica, mas à verdade do inconsciente e, em última instância, a uma forma de gozo.

    Diante disso, especula-se que os sintomas vigoréxicos exprimem formas de gozos próprias da cultura moderna e este é o principal obstáculo no reconhecimento do sintoma pelo vigoréxico, pois eles entendem que não há mal algum em ser vigoréxico, já que é o que a sociedade atual exige como ideal de beleza e perfeição. Freud, em “O mal estar na civilização” (1930), aborda a desarmonia entre objeto pulsional e cultura, que pode levar o homem ao sofrimento, decepções e tarefas impossíveis. Como defesa, o homem se vale de 3 paliativos: distrações poderosas, narcóticos e satisfações substitutivas (objetos de consumo).

    Como conseqüência, a pregnância da imagem do corpo é extremamente forte, tornando o discurso bastante repetitivo, pouco diversificado, preso à busca do sentido (imaginário) e que pouco se estende pelo simbólico. Existe, ainda, uma procura incessante pelo saber (dietas, exercícios), pois o domínio do corpo necessita um saber confiável. Este saber se encontra no nível fálico e como defesa em relação à verdade. Resta ao vigoréxico o investimento narcísico em si mesmo, tomando imaginariamente o corpo como lugar privilegiado.

    Lacan, no discurso do mestre (1964), apresenta o conceito de latusas: produtos consumidos freneticamente com fins de tamponar os efeitos do mal estar. Sauret (2006) quando trata dos efeitos da ciência e tecnologia na contemporaneidade, acrescenta que latusas são objetos produzidos pela ciência para causar desejo. No perfil do vigoréxico, pode-se entender como latusas os anabolizantes e suplementos, pois produzem o encontro bem-sucedido, tamponando a falta concedida pela castração. Esta interpretação é problemática, pois o objeto deixa de atuar como mediador do desejo para se tornar imperativo de gozo.

    Sexualmente, é com a falta que o vigoréxico procura não se deparar. A manutenção de um corpo (órgão) grande e rígido, garante sua identidade fálica, sendo assim desejado e amado pelo Outro (castração). O ato de se exercitar demasiadamente revela que o vigoréxico não pode ser questionado sobre sua identidade fálica, oferecendo-se ao olhar do Outro. Entretanto sempre haverá alguém mais forte do que ele (mais perfeito para o Outro) e este fato vai provocar no vigoréxico uma sensação de incompletude, fazendo com que um resíduo real se imponha e retorne continuamente (Coutinho Jorge, 1988). Esta angústia provocada levará o vigoréxico a “tamponar” a falta pela imagem narcísica ou fantasia buscando o corpo perfeito.

    Corroborando com a psiquiatria, a adição está presente nos vigoréxicos, pois estes apresentam uma relação de dependência e compulsão a exercícios, dietas e substâncias. É comum na adição a presença de um gozo auto-erótico, que, como foi visto, não existe nesta fase a mediação da palavra. Por isso se explica que pessoas com sintomas vigoréxicos tenham dificuldade de procurar análise para passar o sintoma à palavra.

    O trinômio religião-saúde-comércio, citado por Courtine (2003), tem influência na problemática vigoréxica. A similaridade deste estudo, dos discursos de Freud e Lacan sobre trabalho e religião permite ao psicanalista assemelhar o trabalhador, o fiel, o obsessivo e o sujeito com sintomas vigoréxicos sobre o mesmo véu: neurose obsessiva. Lacan cita o trabalhador como um escravo que não reclama, não falta, mas deseja a morte de seu patrão para ocupar o seu lugar. É do neurótico obsessivo ficar preso na ilusão que faz o Outro fazê-lo gozar.

    Em “Atos obsessivos e práticas religiosas” (1907) Freud cita que uma das bases do desenvolvimento a civilização é a renúncia da satisfação de determinadas moções pulsionais. O religioso deve sacrificar à divindade seu prazer pulsional e atos obsessivos. Tal como eles, os vigoréxicos se sentem culpados quando não vão à academia, pois esta contem os rituais que ordenam a sua vida. A academia ao mesmo tempo que é um lugar hierarquizado e disciplinado, é também um lugar erotizado, onde a potência fálica é evidenciada, assim como nos templos religiosos.

    No obsessivo e no vigoréxico o gozo assume um perfil de enfermidade, uma compulsão à repetição. Como já dito, o vigoréxico (e o obsessivo) é movido pelo desejo de gozar no lugar do Outro, sendo assim, a necessidade da conquista se caracteriza por desafios, obstinação e perseverança, e nunca é satisfeito na conquista de um objetivo, levando-o sempre a outro objetivo. A perda de algo faz com que o obsessivo e o vigoréxico se defrontem com a falta e a incidência da castração. Chegar ao corpo perfeito seria alcançar o corpo do Outro que significaria a morte do gozo, algo insuportável para o obsessivo.

    Os sintomas de vigorexia presentes na neurose obsessiva, por si só, não são capazes de fornecer um diagnóstico, pois na histeria existem traços que se aproximam também dos vigoréxicos. Diferente do obsessivo que foi superestimado, o histérico se queixa que nunca foi amado suficientemente pelo Outro, ele é sempre o objeto desqualificado. É do histérico a fantasia imaginária da completude mediante a identificação com elementos fálicos (Arnold Schwazenegger). A dinâmica do desejo do histérico passa pelo “ter”. Esse tipo de identificação não faz outra coisa senão redobrar a economia do desejo histérico, pois fará com que sujeito não reconheça a ausência do falo e partirá para a fantasia de completude (Feitosa Filho, 2008).

    Há na histeria um comportamento de fracassado, fruto da insatisfação de não ter sido amado pelo Outro. O Ideal do Eu histérico sempre será causador de angústia, pois nunca estará satisfeito com sua imagem do real. O corpo somatizante do histérico é percebido com um corpo desqualificado para o amor, fazendo com que o sujeito retire seus investimentos dos objetos externos do mundo (trabalho, ser amado) em favor de um investimento auto-erótico. Por isso é comum nos histéricos o nojo e asco pelo coito e a plenitude sexual na masturbação. Desta maneira a insatisfação torna-se meta do desejo e este (insatisfeito) se fará meta do gozo mediante conversões, as quais ele se apega. No caso dos vigoréxicos, esta conversão se dá de forma global, isto é, todo ele erotizado em detrimento à genitália (suscita o desejo e se furta como objeto).

    Ao mesmo tempo, o histérico é posto à prova em seu narcisismo. Ao querer agradar o Outro, ele sempre buscará ser melhor do que é, fazendo-se objeto de desejo para garantir o olhar e o amor do Outro (mais gozar). Neste momento, o vigoréxico tem fundamento na histeria, quando o músculo é encarado como objeto de desejo para preencher uma falta. Em campeonatos de fisiculturismo, os participantes untam seus corpos com óleo para mascarar a falta ou a imperfeição, que Feitosa Filho (2008) denomina “brilho fálico”.

Considerações finais

    A ótica psiquiátrica a respeito da vigorexia esta presa ao orgânico, o sujeito é silenciado, pois provavelmente herdou um gen e suas questões estão excluídas em qualquer processo. A proposta psicoterapêutica aos vigoréxicos se assemelha ao discurso do Mestre de Lacan, com substâncias ou sessões que propões uma falsa noção de completude e bloqueiam quaisquer possibilidades de implicações dos sintomas. A psicanálise caminha num sentido inverso à psiquiatria, pois ela se vale dos traços estruturais do sujeito para formular um sintoma analítico. Desta forma a psicanálise é capaz de formar uma teoria analítica sobre a etiologia do mal-estar.

    Pelo que foi abordado no estudo, verifica-se que existe na vigorexia uma distorção da imagem do corpo, que se remete à subjetividade do olho e do olhar, olhar esse que representa o objeto e a impossibilidade da completude. Esta é uma problemática do imaginário, que pode surgir nas neuroses, perversões ou psicoses. O fato dos sintomas vigoréxicos trazerem uma idéia de completude imaginária ao Eu que necessitam, faz com que poucos sujeitos se julguem necessitantes de análise, e desta forma, pouco se tem na literatura psicanalítica sobre vigorexia, exceto no conceito de adição.

    Os sintomas vigoréxicos aparentam ser uma resposta recente ao mal-estar da cultura hodierna, que impõe ao sujeito se mostrar, a dar-se a ver, já que o Eu é, antes de tudo, uma projeção da superfície corporal. Estes sintomas se manifestam na ordem do narcisismo, através do inflacionamento do Eu. A aceitação do corpo real é algo complexo, pois trabalha com a aceitação dos limites do desejo. Para assegurar a continuidade do desejo, este corpo é sempre vislumbrado como aquém do resultado esperado (desqualificado), deslocando o gozo para uma busca desenfreada pela perfeição.

    O funcionamento sintomático da vigorexia tende à neurose obsessiva. O ato de malhar exige ritualização, pela repetição, uma primazia pela repetição que gera um gozo. Os sintomas remetem às satisfações substitutas, gerando um compromisso no qual o sujeito se defende da invasão de desejos inconscientes. Os vigoréxicos sonham em recuperar a imagem de perfeição do Eu ideal (que tamponariam a falta). Esta falta é o que impele o vigoréxico a malhar compulsivamente.

    Além de se assemelhar na sintomática à neurose obsessiva, a vigorexia apresenta vários traços relacionados à histeria, onde o objeto de desejo visa garantir o olhar e o amor do Outro. Entretanto convém alertar que o que foi abordado neste estudo baseou-se na teorização do discurso, isto é sem a situação ideal de análise, que poderia individualmente e mais precisamente emitir um diagnóstico diferencial psicanalítico (traços estruturais específicos).

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