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Identificação de características criativas em atletas brasileiras

Identificación de características creativas en deportistas brasileñas

Identification of creative features in Brazilian athletes

 

Pontifícia Universidade Católica de Campinas

(Brasil)

Ms. Maria Célia Bruno Mundim

Profa. Dra. Solange Muglia Wechsler

celiamundim@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          A criatividade está presente no meio esportivo, no entanto são poucos os atletas considerados criativos. Este estudo qualitativo teve como objetivo identificar as características criativas em duas atletas brasileiras – uma olímpica e outra tricampeã sul-americana – por meio de uma entrevista. A entrevista continha questões relacionadas à carreira, interações pessoais e hábitos de trabalho. Por meio da análise de conteúdo verificou-se os aspectos da pessoa criativa em ambas atletas. Conclui-se que as atletas possuem perfil criativo.

          Unitermos: Criatividade. Atleta. Desporto.

 

Abstract

          Creativity is present in sports, however there are few athletes considered creative. This qualitative study aimed to identify creative characteristics in two Brazilian athletes - an Olympic and other South American three-time champion - through an interview. The interview contained questions related to career, personal interactions and work habits. Through content analysis, there were aspects of the creative person in both athletes. We conclude that the athletes have creative profile.

          Keywords: Creativity. Athlete. Sport.

 

Apoio: CAPES (bolsa de doutorado para primeira autora)

CNPq (bolsa de produtividade em pesquisa em nível 1B para a segunda autora)

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 19, Nº 196, Septiembre de 2014. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A criatividade é considerada um importante aspecto mental necessário para o atleta desenvolver uma performance de sucesso de acordo com psicólogos do esporte (Bar-Eli, Lowengart, Master-Barak, Oreg, Goldenberg, Epstein, & Fosbury, 2006). Ela manifesta-se por meio de algo inesperado, inovador ou fora dos padrões usuais de ação do esportista em determinada modalidade (Samulski, Noce & Costa, 2001), ou seja, está relacionada ao caráter motor inusitado do atleta (Lopes Tejeda, 2005).

    Por criatividade entende-se um fenômeno com várias facetas e proveniente de diferentes fatores – cognitivo, emocional, irracional, social e interpessoal (Wechsler, 2008a). Desse modo, a criatividade pode ser entendida como resultante da relação entre os processos cognitivos, as características de personalidade e os elementos ambientais (aspectos educacionais, culturais e sociais) conforme a autora. Sendo que o conhecimento do contexto ambiental é essencial para o indivíduo contribuir criativamente para a realidade no qual está inserido (Casarin, 2011).

    Na literatura não há registro de estudos sobre as características cognitivas e afetivas do atleta considerado criativo. De acordo com Martínez e Díaz (2008) o desportista criativo é julgado como tal por meio de seus comportamentos motores tais como comportamentos motores fluídos (numerosas respostas), comportamentos motores flexíveis (diferentes respostas), comportamentos motores originais (respostas novas) comportamentos motores elaborados (expressada em detalhes), comportamentos motores expressivos (comunicativos) e comportamentos motores imaginativos (intuitivos). Ruiz e Graupera (2005), por sua vez, tem estudado os estilos de tomada de decisão dos atletas, caracterizando-os como criativos quando compreendem rapidamente a situação geral do problema e tomam decisões em segundos.

    Apesar do contexto acima, há uma grande quantidade de pesquisas acerca das pessoas criativas. Wechsler (2008b), por exemplo, as descreve com as seguintes características: flexibilidade, fluência, originalidade, idéias elaboradas, sensibilidade interna e externa, fantasia, alta motivação, sentido de humor, impulsividade, espontaneidade, auto-confiança, inconformismo, preferência por situações de risco, independência de julgamento, persistência, linguagem metafórica, abertura a novas experiências, capacidade de liderança, honestidade, otimismo, atitude visionária, curiosidade, dinamismo, sentido de destino criativo/ missão criativa, sensibilidade ambiental, tolerância às frustrações. Runco (2014) e Sternberg (1999) também destacam a persistência, a auto-confiança, a intuição, a impulsividade, a motivação intrínseca e extrínseca, a ausência de preconceitos, a atração pela complexidade e pela desordem, além do desenvolvimento de valores inerentes ao indivíduo criativo.

    O desenvolvimento da criatividade está relacionado à fatores culturais e aos fatores do próprio indivíduo. Dentre os aspectos da cultura encontram-se a aceitação ou exclusão da pessoa que é contrária a norma, ao apreço ou negação da intuição, a manutenção ou mudança dos costumes, a expectativa de papéis esperados aos homens e às mulheres (Alencar, 1995; Alencar e Fleith, 2003). Quanto aos fatores da própria pessoa estão a flexibilidade ou rigidez de pensamento, a busca por soluções rápidas e imediatas, a facilidade ou a falta de habilidade de perceber problemas sob um novo ângulo, a dificuldade em suspender críticas, o receio de fracasso, a evitação de obstáculos, a falta de imaginação, o medo do desconhecido, a falta de percepção dos próprios recursos (Wechsler, 2008b), assim como a motivação, os estilos de pensar, o conhecimento, as habilidades intelectuais e a personalidade (Amabile,1998; Sternberg, O’Hara & Lubart, 1997; Zhou, Hirst & Shipton, 2012).

    Embora a realização criativa dependa dos fatores já citados, Piirto (2011) destaca a necessidade de se desenvolver a criatividade, pois ela é uma das habilidades mais solicitadas aos indivíduos no século XXI. A criatividade é condição essencial para que exista inovação, pois permite que conhecimentos em áreas específicas sejam utilizados de forma incomum, rompendo paradigmas e trazendo impacto econômico e social para um determinado setor ou campo de ação (Wechsler, 2011).

    Com base no exposto, o intuito deste estudo foi o de identificar as características criativas em duas atletas brasileiras.

Método

    O protocolo de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa com Seres Humanos da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, em Campinas, Brasil, parecer número 613.193. Todas as mulheres que participaram do estudo assinaram o termo de Consentimento Livre Esclarecido, documento que contém as informações sobre os objetivos, métodos utilizados, possíveis riscos e benefícios da pesquisa.

    A amostra foi composta por duas atletas – uma da modalidade individual do atletismo e outra do vôlei. Uma das atletas é medalhista de ouro nos Jogos Pan-Americanos, recordista sul-americana e com participação em três Olimpíadas. Quanto à outra é tricampeã sul-americana na categoria juvenil, campeã sul-americana na categoria adulta e penta-campeã brasileira na categoria adulta.

    Para identificar as características criativas foi feita entrevista com as mesmas utilizando um roteiro elaborado pelas psicólogas estudiosas do tema, Solange Muglia Wechsler (da Pontifícia Universidade Católica de Camipas, Brasil), Maria de Fátima Morais (da Universidade do Minho, Portugal) e Manuela Romo (da Universidad Autónoma de Madrid, Espanha). O roteiro foi baseado no livro de Csikszentmihalyi (1997) e Hadamard (1947) e é composto por onze questões semi-dirigidas e quatro abertas relacionadas à carreira, interações pessoais e hábitos de trabalho.

    Para a análise dos dados, empregou-se a análise de conteúdo segundo Bardin (2011).

Resultados e discussão

    Na Tabela 1 é apresentada a análise de conteúdo realizada com base na entrevista da atleta olímpica. Enquanto na Tabela 2 são expostos os resultados da análise de conteúdo da jogadora de vôlei.

Tabela 1. Características criativas e respostas da atleta olímpica

Características criativas

Respostas da atleta olímpica

Ausência de preconceito

“Olha! Eu acho que no meio esportivo você encontra de tudo um pouco! Eu nunca discriminei! Sempre aceitei, é, cada um! E a gente convive com muitas pessoas de muitos países...”

Independência de julgamento

Eu, na verdade, nunca me preocupei com isso! (com a opinião dos outros). Até porque assim, as meninas que tinham lá na fazenda falavam assim: “Ai! Você vai praticar esse esporte!? Fica masculinizado o corpo!” Eu não tava nem um pouco preocupada! Eu queria ganhar mais medalhas e se o corpo ia ficar masculinizado, eu não tinha essa preocupação! Nunca!”

Atração pela complexidade e

Uso de analogia

“Eu me especializei em prova de obstáculo, né! Transpor obstáculos! E isso a gente traz também pra vida da gente! Então me atrai muito as coisas complicadas!”

Busca pelo desafio/

Desejo de correr riscos

“Na verdade sempre gostei de desafios! Sempre gostei! ...na verdade essa questão de eu ser hoje consultora esportiva... Isso não estava nos meus planos. Eu achava que ia ser igual a todo mundo. Você é atleta, depois você vira treinador! Eu nunca gostei muito dessa coisa de ser treinadora. Então foi que eu comecei fazer curso pra ser consultora esportiva.”

Liderança

“Eu sou presidente de uma associação cultural e esportiva... E agora na função que eu exerço de presidente da associação, que tem que tá lidando com projetos, essas coisas... Eu que vou conversar, que vou mediar... ‘Olha quê que precisa! Tá emperrado e eu que vou negociar. Tomo a frente!’”

“Eu sempre tive assim o espírito de liderança desde criança, né! Eu já liderava o grupo de crianças da minha idade! “Olha! Só vai brincar se for pra pular pauzinho ou apostar corrida!” Isso! Era assim! As meninas, elas não gostavam, mas não tinha outra saída!”

Intuição

“Eu sigo muito a minha intuição e acho que ela é bastante aguçada, né! Eu consigo visualizar muita coisa antes de acontecer, problemas e soluções... Sem dúvida! Tenho essa característica que é muito positiva pra mim, eu acho!”

“É como eu disse numa pergunta anterior que eu tenho o sexto sentido muito aguçado! Aí as pessoas falam assim: “Você é uma caça talento!” É eu olhar e depois de alguns treinos eu falo assim: “Não! Essa aqui! Esse menino, essa menina tem talento pra isso!” E olha que nunca errei não! Muito difícil!”

Abertura ao novo (Openess)

“Eu estou há XX anos dentro do esporte! Eu aprendi muito no mundo inteiro! Todas as andanças minha pelo mundo afora – Japão, Rússia, Estados Unidos, Europa toda! Eu adquiri muita experiência!”

Missão criativa

“Eu tenho uma coisa comigo! Eu tenho que passar pra frente isso (experiência adquirida no esporte)! Eu não posso levar isso comigo! Tenho que deixar um legado! Então sempre que eu vou fazer um projeto é assim, eu quero fazer, iniciar com as crianças! Eu quero passar pra elas toda experiência que eu adquiri ao longo desses anos pra que elas tenham uma oportunidade! A que eu tive! Eu posso não conseguir levar todas, mas eu vou tentar levar o maior número delas pro caminho do esporte!”

Cultivo de valores

“Então eu tento mostrar pra eles (jovens) que assim, o esporte, o atletismo lógico pode mudar sua vida! Eu, através do atletismo... Ele abriu muitas portas pra mim! Pude estudar em escolas particulares e tive oportunidade de fazer curso em qualquer país no estrangeiro. Você fica conhecida, então beneficia a família, beneficia a sociedade em torno!”

Persistência

“Pra falar a verdade, de toda minha carreira esportiva, o maior obstáculo que eu encontrei na verdade foi o meu ex-marido! ...quando eu consegui o índice pra ir pra Olimpíadas, meu ex-marido me perguntou: “Você não vai pra Olimpíadas!? Você vai ter que escolher ou eu ou as Olimpíadas!” Aí foi duro pra mim! Foi um período que eu enfrentei a maior barreira da minha vida, porque, não porque eu tinha dúvida se eu queria ficar com o marido ou com a Olimpíada. Eu queria com certeza a Olimpíada, mas ele criou muito caso, porque tinha uma filha! Ele atrapalhou bastante a minha vida! Ele fez de tudo pra que eu perdesse o gosto pela coisa, mas não conseguiu! Foi o contrário! Tanto é que eu tive que me separar pra ir pra Olimpíada e ponto, ponto final! Não tive mais problemas!”

 

Tabela 2. Características criativas e respostas da jogadora de vôlei

Características criativas

Respostas da jogadora de vôlei

Independência de julgamento

“Então, eu não era assim, aquela menina preocupada com a beleza, com muita feminilidade, apesar de que todo mundo falava “Há! Você veste assim....””

Autoconfiança

“As minhas idéias são... Tenho a sensação de que quando elas forem colocadas na prática, vai dar tudo certo!”

Liderança

“...sempre fui capitã das equipes. Quase de todas que eu participei! Então eu sempre tinha aquela preocupação de dar o exemplo!”

“...se eu começar a ver que não tá indo, a pessoa tá confusa, tá deixando o trabalho, eu vou assumir a liderança.”

Intuição

Dependendo do momento e da situação uso a intuição.”

Abertura ao novo (Openess)

“...paralelo ao jogo (atleta de vôlei) eu estava focada na minha profissão - professora de educação física. Pra isso tava estudando! Eu sempre trabalhei como professora em clubes, com treinamento. Então a evolução que tive foi em relação a novos métodos, a novas formas de treinamento, a tudo que vem de modernidade e que você pode utilizar na quadra...”

Missão criativa

Tenho vontade de querer que as pessoas vivam e saiam fora daquele “quadradinho”, porque na vida tudo é possível!”

“Aí sim uso a minha experiência, o meu know-how e a vontade que as pessoas tenham um pouquinho da felicidade que eu tive (no esporte)!”

Cultivo de valores

Olha! Quando eu tenho oportunidade eu tento conduzir pra que os meus técnicos tenham uma linha de conduta em relação a respeito, a comportamento em relação ao que é o atleta...”

    A partir da entrevista foram verificados os seguintes aspectos criativos na atleta olímpica: liderança, persistência, ausência de preconceito, independência de julgamento, uso de analogia, atração pela complexidade, busca pelo desafio, intuição, abertura ao novo, sentido de destino criativo/ missão criativa e cultivo de valores. Já na jogadora de vôlei, tricampeã sul-americana percebeu-se a independência de julgamento, autoconfiança, liderança, intuição, abertura ao novo, sentido de destino criativo/ missão criativa e cultivo de valores.

    As características criativas comuns entre ambas atletas foram a liderança, a intuição, a independência de julgamento, o sentido de destino criativo/ missão criativa e o cultivo de valores. Estes resultados condizem com as características das pessoas criativas descritas na literatura por Wechsler (2008b), Runco (2014) e Sternberg (1999). Assim sendo, conclui-se que as atletas possuem perfil criativo.

    Embora tenha sido realizada apenas com duas esportistas por se tratar de uma pesquisa qualitativa e daí a sua limitação, faz-se necessário encorajar a realização de estudos similares numa quantidade maior de atletas femininos e masculinos em diferentes esportes.

    Existe um vasto campo a ser explorado no que refere à criatividade relacionada ao esporte. A criatividade do atleta de alta performance em esportes coletivos e individuais, a criatividade nos processos grupais de times, o estilo de criar de técnicos esportivos, o clima criativo em times são alguns dos temas a serem estudados no Brasil e em outros países.

Referências

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  • Amabile, T. (1998). How to kill creativity. Harvard Business Review, 1, 77-87.

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  • Bar-Eli, M., Lowengart, O. D. E. D., Master-Barak, M., Oreg, S., Goldenberg, J., Epstein, S., & Fosbury, R. D. (2006). Developing peak performers in sport: optimization versus creativity. In D. Hackfort & G. Tenenbaum (Eds.) Essential processes for attaining peak performance (pp. 158-177). UK: Meyer & Meyer Verlag.

  • Casarin, R. V. (2011). Criatividade: uma dimensão imperativa para um futebol de qualidade, 157, 1-2.

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  • Sternberg, R. J., O’Hara, L. A. & Lubart, T. I. (1997). Creativity as investment. California Management Review, 40 (1), 8-21.

  • Sternberg, R. J. (Ed.). (1999). Handbook of creativity. New York: Cambridge University Press.

  • Wechsler, S. M. (2008a). Estilos de pensar e criar: impacto nas áreas educacional e profissional. Psicodebate, 7, 207-218.

  • Wechsler, S. M. (2008b). Criatividade: Descobrindo e Encorajando. Campinas: PSY.

  • Wechsler, S. M. (2011). Criatividade e inovação no contexto brasileiro. Conferência no I Congresso Internacional de Criatividade e Inovação. Recuperado http://www.criabrasilis.org.br/arquivos/pdfs/122_anais_trabalhos_completos.pdf

  • Zhou, Q., Hirst, G. & Shipton, H. (2012). Promoting Creativity at Work: The Role of Problem-Solving Demand. Applied Psychology: an International Review, 61 (1), 56-80.

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