Esporte, lazer e atividade física: redefinição dos espaços públicos e o discurso da qualidade de vida Deporte, recreación y actividad física: redefinición de los espacios públicos y el discurso de la calidad de vida |
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*Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Aluno do Programa de Pós-Graduação em Educação para Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul **Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Aluno do Programa de Pós-Graduação em Educação para Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul Mestrando em Educação pela Universidade do Minho, Braga, Portugal ***Graduado em Educação Física pela Universidade Luterana do Brasil. Pós-graduado em Administração e Marketing Esportivo pela Universidade Gama Filho. Mestre em Educação pela Universidade Luterana do Brasil; professor do Programa de Pós-Graduação em Educação para Sustentabilidade da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul; coordenador da linha de pesquisa Estudos Olímpicos em Práticas Corporais e Meio Ambiente |
Josiel da Rosa Moura* Francisco Marco de Mello** Rodrigo Koch*** (Brasil) |
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Resumo Este trabalho tem como objetivo compreender como vem se constituindo o discurso em torno das Academias ao Ar Livre, através do programa Academia da Saúde, promovido pelo Ministério da Saúde. O aporte teórico-metodológico está ancorado na concepção materialista histórica, o qual conta com estudos bibliográficos, análise documental e entrevistas semiestruturadas. Primeiramente introduzimos o problema que objetivamos com este trabalho; no segundo momento apresentamos os balizantes metodológicos; no terceiro apresentamos o programa do Ministério da Saúde, Academias da Saúde; no quarto momento fazemos algumas análises que possam suscitar outras discussões em torno do tema e, por último, tecemos algumas considerações provisórias, entendendo que este trabalho não é conclusivo, mas possibilita pensar os programas e políticas de incentivo a melhoria da qualidade de vida das pessoas para que sejam mais significativos e atinjam todos os trabalhadores e trabalhadoras. Unitermos: Academias ao Ar Livre. Esporte. Lazer. Atividade física. Qualidade de vida.
Abstract This study aims to understand how the discourse has constituted around Outdoor Fitness, through the Academy of Health program, sponsored by the Ministry of Health. The theoretical and methodological contribution is anchored in historical materialist conception, which includes studies bibliographical, documentary analysis and semi-structured interviews. First we introduce the problem that we aim to work, in the second moment we present the methodological landmark; present on the third the program of the Ministry of Health, Fitness Health; the fourth moment do some analysis that may trigger further discussions around the topic, and Finally, weave some tentative considerations, understanding that this work is not conclusive, but provides think the programs and policies to encourage the improvement of people quality of life to be more meaningful and meet all workers. Keywords: Outdoor Fitness. Sport. Leisure. Physical activity. Quality of life.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 19 - Nº 192 - Mayo de 2014. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
Com objetivo de cumprir os compromissos assumidos nas diretrizes e ações previstas na estratégia global de alimentação e atividade física de 2004, o governo brasileiro lançou o programa Brasil Saudável, no qual são propostas inúmeras práticas de atividade física e de reeducação alimentar.
Este trabalho tem como objetivo compreender como vem sendo implementadas as Academias ao Ar Livre (AAL) no Brasil, através do programa Brasil Saudável, e como seus participantes representam esses espaços públicos a partir das políticas públicas promovidas pelo Ministério da Saúde (MS), as quais entendem que esses espaços são promotores de mudança nos modos de vidas, hábitos saudáveis, consequentemente melhoria na qualidade de vida.
As AAL começaram a ser difundidas em 2011, quando o MS lançou o programa Brasil Saudável. Desde então são instaladas em praças e parques dos municípios brasileiros aparelhos de ginástica e musculação. Tal programa tem como objetivo melhorar a saúde das pessoas através da atividade física. Em contrapartida, a redefinição desses espaços pelas políticas públicas se inscreve num “discurso” de causa e efeito, no qual as pessoas que praticam musculação têm melhores hábitos de saúde, bem como reforça as relações fetichizadas da imagem corporal. Como cita Debert (2010), estamos transformando a juventude em um valor, que pode ser conquistado em qualquer etapa da vida através da adoção de formas de consumo e estilos de vida adequados, conforme a sociedade capitalista ocidental determina.
As Academias ao Ar Livre e a Análise Crítica do Discurso
Este estudo conta, principalmente, com referencial teórico-metodológico e político ancorado no materialismo histórico-dialético e dialoga com autores da sociologia pós-moderna e inseridos nos Estudos Culturais.
A Análise Crítica do Discurso (ACD), balizada na dialética materialista, elaborada por Marx e Engels, parte das contradições existentes no mundo real, sendo este definido por múltiplas relações que compõem a unidade existente (MARX E ENGELS, 2009). Nesse sentido a ACD pretende partir do método dialético a partir do concreto sensível para o concreto pensado. O concreto sensível são os objetos captados nas suas relações mais simples. Esta primeira apreensão é sempre fragmentada, desconectada da totalidade, é o objeto visto sem suas relações. A partir da captação desse objeto são realizadas abstrações – é o procedimento mental com o qual o pensamento assimila o concreto, o reproduz mentalmente, para que se torne “concreto pensado”. Nesse sentido o concreto é o ponto de partida e o ponto de chegada.
O concreto é concreto porque é a síntese de numerosas determinações, ou seja, unidade na diversidade [...] A totalidade, tal como aparece na mente como um todo pensado, é um produto do cérebro pensante [...] O sujeito real subsiste, depois como antes, em sua autonomia fora da mente, pelo menos enquanto esta continuar agindo apenas especulativamente, teoricamente. (MARX, 2004, p. 117)
O balizante metodológico da Análise Crítica do Discurso permite compreender o discurso das políticas estruturantes, em especial, o programa que cria Academias ao Ar Livre do Ministério da Saúde, que passam a redefinir os espaços públicos, bem como compreender como seus participantes representam estes espaços e seus benefícios. Assim tomaremos o conceito de “representação” de Mlinowiski, o qual é tomado usualmente,
como uma imagem mental da realidade. Os ingredientes dessa imagem seriam em primeiro lugar, as experiências individuais decorrentes da realidade social em que o ator está imerso. O segundo elemento é particular. (MAGNANI, 1997, p.128).
Para Hall (1997), a representação implica/depende do uso que se faz das linguagens para dizer algo sobre o mundo de forma significativa; ou seja, a produção de significados se faz através da linguagem. O “discurso” do MS aponta uma necessidade na mudança dos hábitos da população através do implemento e utilização das AAL. No entanto, como destaca o autor, o significado não está na pessoa, objeto, ou na própria palavra em si. Somos nós, enquanto grupo social, que estabelecemos o significado, não de forma individual e particular, mas especialmente através do uso que fazemos a partir de sistemas representacionais que, por sua vez, são construídos em complexos processos que envolvem o acionamento e a valorização de discursos que atuam na produção da representação (HALL, 1997).
Portanto, foram analisados documentos oficiais do MS, estudos bibliográficos e entrevistas semiestruturadas. As entrevistas foram realizadas com frequentadores de AAL nos municípios de Cidreira1 e São Francisco de Paula2, as entrevistas foram gravadas em equipamento de áudio (MP3) e posteriormente transcritas. Para a exposição das entrevistas e preservação das identidades, os informantes serão identificados com nomes de jogadores da seleção Brasileira de futebol da década de 1970.
Academias ao Ar Livre
As Academias ao Ar Livre (AAL) foram implementadas pelo MS através da Portaria 719, de 07 de abril de 2011 e instituídas pelo Programa Academia da Saúde, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Surge como estratégia do governo para regulamentar o financiamento e a transferência dos recursos federais para as ações e os serviços de saúde, na forma de blocos de financiamento, com respectivo monitoramento e controle e considerando a necessidade de integração e continuidade das ações de Vigilância em Saúde, Promoção da Saúde e Prevenção de Doenças e Agravos Não-Transmissíveis com a Estratégia de Saúde da Família.
Os polos do Programa Academia da Saúde são construídos em espaços públicos como praças e parques. No anexo da portaria, constam ainda, recomendações para serem construídos em espaços públicos de lazer preexistentes e, quando possível, localizados em esquinas, uma vez que são áreas de livre acesso à população e próximos às Unidades Básicas de Saúde e escolas públicas. Nesses espaços são realizadas as seguintes atividades, definidas na portaria 719/2011 do MS:
promoção de práticas corporais e atividades físicas (ginástica, lutas, capoeira, dança, jogos esportivos e populares, yoga, tai chi chuan, dentre outros);
orientação para a prática de atividade física;
promoção de atividades de segurança alimentar e nutricional e de educação alimentar;
práticas artísticas (teatro, música, pintura e artesanato). (BRASIL, 2011).
Como incentivo à atividade física o Ministério pretende levar a todo o Brasil equipamentos de Academia da Terceira Idade, como barras para flexão de braços vertical; barras para flexão de braços horizontal; barras fixas para apoio a exercício; pranchas para exercícios abdominais e espaldar.
A iniciativa do Governo Federal de implantar o programa Academia da Saúde segue recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), para incentivar a prática de atividade física por trinta (30) minutos, em cinco ou mais dias por semana.
O Programa Academia da Saúde visa a contribuir para a promoção da saúde da população a partir da implantação de espaços públicos construídos com infraestrutura, equipamentos e profissionais qualificados para o desenvolvimento de práticas corporais; orientação de atividade física; promoção de ações de segurança alimentar e nutricional e de educação alimentar, bem como outras temáticas que envolvam a realidade local; além de práticas artísticas e culturais (teatro, música, pintura e artesanato).
As atividades são realizadas por profissionais cadastrados no Ministério da Saúde ou por integrantes da sociedade civil, empresas parceiras que queiram desenvolver projetos ou atividades nas academias de saúde.
Lazer, esporte e atividades físicas nas Academias Ao Ar Livre
O lazer está consolidado como direito social desde 1988, a partir da promulgação da Constituição Federal e neste sentido se insere como uma política garantidora de bem-estar social a todos os cidadãos. Assim,
[...] O Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).
Ao discutir o conceito de lazer, Dumazedier (1983, p.34), destaca que este é tanto um “conjunto de ocupações às quais os indivíduos podem entregar-se livremente, tais como repousar, divertir-se, recrear-se e entreter-se”, ou até mesmo desenvolver sua formação (desinteressada), sua prática social e comunitária, sua capacidade crítica criadora após suas obrigações profissionais. Nesse sentido alcança sua significação no modo de produção capitalista nas práticas livres, em momentos em que os sujeitos não estão vendendo sua força de trabalho e são garantidas pelas políticas públicas como forma de realizar os cidadãos. Esta prática é característica das políticas de Welfare-State, surgidas no pós-guerra.
Porém, no modo de produção capitalista, o qual tem seu maior desenvolvimento a partir da revolução industrial, o elemento fundamental torna-se a mercadoria e seu objetivo é a expansão máxima da extração da mais-valia. No capitalismo o próprio tempo do trabalhador é reduzido a mercadoria, uma vez que, despojado dos meios de produção, sua única forma de existir é pela venda de sua força de trabalho. Desta forma, o homem é reduzido a carcaça do tempo histórico, ele não é mais nada e o tempo é tudo. Estas relações de trabalho também estão profundamente alteradas nas sociedades pós-modernas como destacada o sociólogo Zygmunt Bauman. O autor argumenta que o empregado ideal é aquele sem vínculos, compromissos ou emoções anteriores.
Os membros da sociedade de consumidores são eles próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de ser uma mercadoria de consumo que os torna membros autênticos dessa sociedade. (BAUMAN 2008, p. 76)
Diferentemente, ocorria – e ainda ocorre em comunidades tradicionais (aldeias indígenas, áreas rurais, comunidades de pescadores, quilombolas, etc.) - nas sociedades pré-capitalistas em que as unidades produtivas situavam-se próximas ou até nas residências e áreas de moradia, em que o tempo de produção não era dividido, mas ocorria de forma integral juntamente com as atividades produtivas, ou seja, os tempos de lazer ocorriam simultaneamente. Isto porque o trabalho se caracterizava em sua mais diferente forma concreta e útil 3.
O desenvolvimento do capitalismo em escala global afetou tanto a forma de ser dos trabalhadores como também o tempo de lazer: em primeiro lugar porque institui o aumento do trabalho abstrato, estranhado e fetichizado, o qual só tem sentindo como valor de troca; em segundo porque o tempo de lazer tornou-se mais escasso e, o que é pior, o sinônimo de tempo livre tornou-se expressão de negar-se ao trabalho – um exemplo dessa expressão ocorreu em toda América Latina no período ditatorial que garantia o sistema social vigente. Nesse período os trabalhadores desempregados eram presos por vadiagem.
Gata et al. (2013, p. 4), afirmam que o lazer é um instrumento social que serve para auxiliar na alienação do trabalho, promovendo a integração social e um meio em que os indivíduos se desenvolvam como ser humano livremente. Já Marcelino (2000), divide o lazer em seis formas: artístico, intelectual, físico, manual, turístico e social. A partir dessas definições entendemos que o espaço da AAL encontra sua significação nos espaços de atividade física, nesse sentido tem caráter funcionalista, uma forma de lazer para reforçar os músculos já fatigados para o trabalho e, ainda aumentar o tempo de produtividade da classe trabalhadora, ou ainda de conquistar os espaços de lazer fetichizados como academias os quais muitos trabalhadores não têm condições de pagar.
Durante as entrevistas realizadas com pessoas que frequentam as AAL fica evidenciado seu caráter funcionalista, conforme relatos:
Porque é próximo a minha casa, para melhorar a minha condição física. (RIVELINO, entrevistado).
Frequento a academia, primeiro para cuidar da saúde física, e segundo pela facilidade nesse tipo de academia, com acesso livre, o local também é bom por ser ao ar livre e não abafado. (GERSOM, entrevistado).
Com relação à prática esportiva nas AAL, tem sua significação dentro da concepção hegemônica difundida pelos meios de comunicação (televisão), isto porque a musculação, apesar de ser uma importante atividade, não apresenta relação de causa e efeito relacionada com a saúde e a melhoria na qualidade de vida das pessoas, tal como é trazida no programa das AAL. Por outro lado, imprime sua lógica discursiva de forma velada, pautada no estereótipo corporal. Ou seja, homens e mulheres com padrões de beleza dos outdoors, difundidos nas mídias teriam mais ou uma melhor saúde e qualidade de vida do que pessoas que não possuem essas características físicas. Espera-se que o sujeito exerça uma espécie de “autovigilância sanitária” e um rígido controle sobre uma série de comportamentos classificados como de risco: fumo, álcool, obesidade, stress, atividade sexual, padrões de sono e uso de medicamentos (FRAGA, 2001). Uma falácia, pois é comum muitos homens e mulheres utilizarem tanto esteroides e anabolizantes para ter um maior desempenho no esporte ou um corpo perfeito, ou até mesmo aderir ao caminho mais rápido das cirurgias estéticas.
Gadotti (2001) afirma que o tempo livre do trabalhador(a) é utilizado pelo capital para a “educação permanente” dos/as trabalhadores(as). Após longas jornadas de trabalho, os trabalhadores não tem outra alternativa além de repor suas forças em frente à televisão, numa “não-atividade física e numa passividade mental”. Uma educação visando à submissão, na própria condição de espectador, que nega ao trabalhador o direito de pensar e perguntar. A ausência da formação crítica induz o(a) trabalhador(a) a receber ordens através dos anúncios e do silogismo repetitivo da propaganda. O capital através da educação permanente da televisão ocupa também o tempo livre do trabalhador(a).
Conclui-se que:
O trabalhador, usurpado em seu tempo livre, só tem condições, no tempo que lhe resta, de repor, parcialmente, sua força física. Não tem tempo para lhe se ocupar daquilo que poderia trazer maior humanização, maior desenvolvimento espiritual e moral. (GADOTTI, 2001, p. 142).
O MS destaca algumas pesquisas em sua página oficial onde mais de 16% dos adultos ouvidos eram sedentários, ou seja, pessoas que não faziam nenhuma atividade física no tempo livre. No Portal da Saúde do Ministério da Saúde também é reforçada a criação do programa Academia da Saúde através de pesquisas realizadas pelo próprio governo, no qual são apresentados dados relativos ao excesso de peso da população nas capitais brasileiras. Neste sentido o MS ressalta a importância dos investimentos públicos em cada Estado da federação. A pesquisa também mostrou que, nos períodos de lazer, 25,8% dos brasileiros passam três ou mais horas em frente à TV, cinco vezes ou mais na semana. Além disso, apenas 15% dos adultos são ativos no tempo livre. Por isso, o Ministério da Saúde tem priorizado ações educativas para promoção da saúde e da atividade física.
As pesquisas apresentam discussões que se pautam numa lógica em que as pessoas acima do peso não querem desenvolver atividade física, por simples falta de vontade. Neste sentido, as pesquisas apontam para o discurso liberal, e passam a culpar os sujeitos por estar acima do peso e desenvolver doenças onerando os cofres públicos. Desta forma, a criação das AAL, apesar de estar relacionada com uma política de bem-estar social, tem implícito um discurso neoliberal, no qual mais investimento em equipamentos é igual a menos investimento em postos de saúde e hospitais, bem como na formação de profissionais da saúde.
A prática liberal também esta implícita no que tange a falta de profissionais de educação para orientar os participantes nos exercícios, o que poderia causar problemas tanto de saúde como lesões ao invés de melhorar a saúde das pessoas:
Tem pessoas que iniciam a prática de educação física sem noção, não há acompanhamento, não há profissionais para auxiliar as pessoas, elas quase se matam. (CARLOS ALBERTO, entrevistado)
Por outro lado, se pensarmos as condições de vida da classe trabalhadora, em que o tempo da mercadoria se tornou o balizante da maioria da população, compreenderemos que o trabalhador em seu tempo livre não sabe o que fazer. Isto decorre daquilo que Marx denomina com o auto-estranhamento: “O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como mercadorias” (MARX, 2004, p. 80), e ao produzir e produzir-se como mercadorias, o trabalhador e a trabalhadora produzem mercadorias, neste sentido, a condição da própria vida se apresenta como um ser estranho. “É um pensamento reconfortante – mas também prenhe de sofrimento quando as ‘coisas’ a serem consumidas pelos consumidores são outros seres humanos” (BAUMAN 2007, p. 140). E quanto mais os trabalhadores se desgastam trabalhando, “tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele mesmo, seu mundo exterior, tanto menos o trabalhador pertence a si próprio” (MARX, 2004, p. 81). Portanto, a própria forma de organização das bases materiais influi diretamente nas concepções de lazer do homem moderno, ou melhor, o trabalhador e a trabalhadora no modo de produção capitalista, após longas jornadas de trabalho, só tem condições de realizar como atividade de lazer o entreterimento da televisão, no qual permanecem inertes e receptivos as orientações da mídia hegemônica. Guy Debord defende que o espetáculo unifica e explica uma grande diversidade de fenômenos aparentes. O conceito da ‘Sociedade do Espetáculo’ descreve uma sociedade de mídia e de consumo, organizada em função da produção e consumo de imagens, mercadorias e eventos culturais (KELLNER 2004).
Os relatos dos entrevistados também apontam para a lógica da atividade física como forma de esquecer os desgastes que o trabalho traz para a vida dos trabalhadores:
A academia me ajudou a desopilar a mente e aliviar o estresse relacionado ao meu trabalho, e do desgaste físico da semana. (TOSTÃO, entrevistado).
Com relação ao esporte podemos partir de alguns estudos como o de Stigger (apud FORELL, 2009, p.78) para compreender que a origem do esporte nas comunidades populares, se constitui “dentro da discussão do acesso ao esporte, pois o cotidiano não é o mesmo esporte dos grandes eventos ou pautado na lógica de mercado”. As pessoas vão constituindo e desenvolvendo suas práticas esportivas no dia a dia, através da relação com os demais integrantes da comunidade ou com outras comunidades, em determinados eventos e encontros, com uma representação de esporte constituída. A redefinição das representações de esporte com o programa AAL em determinadas comunidades pode ser compreendida a partir da complementação de Melo (2007):
Mesmo nos dias de hoje, a intensa ação da indústria cultural não é forte o suficiente para destruir definitivamente as diferentes formas de diversão popular, tanto através da eliminação/restrição direta quanto através da distorção de seus sentidos originais. (MELO, 2007, p.16).
Nas AAL o conceito de esporte tem sentido de certa homogeneização, característica do processo de globalização e da estruturação hierarquizada, o qual exige espaço e tempo pré-definidos. A prática esportiva das pessoas, no seu fazer cotidiano, se dá de forma heterogênea, em função da complexidade de estruturação de regras, objetivos e representações. No programa Academias ao Ar Livre, pode-se observar que, embora exista um discurso das políticas que incentivam a prática do esporte nesse espaço, ele pouco ou nada lembra o esporte.
De outra forma, é possível pensar as AAL como espaços que possibilitam o desenvolvimento da Atividade Física, a qual pode ser definida como:
As atividades físicas são todas as formas de movimentação corporal, com gasto energético acima dos níveis de repouso. Inclui exercícios físicos e esportes, deslocamentos, atividades laborais, afazeres domésticos e outras atividades físicas de lazer. (CASPERSEN apud GATA et al., 2013, p. 5)
As atividades nas AAL ainda podem também ser consideradas como práticas corporais, conceito que apresenta e engloba atividades mais amplas. Entendemos as práticas corporais como manifestações da cultura corporal de cada indivíduo e/ou grupo, ainda que estas possam, inclusive, produzir – simultaneamente e paralelamente – hábitos considerados não saudáveis como fumar ou ingerir bebidas alcóolicas. As práticas corporais contrapõem a ideia limitadora de simples atividades físicas (KOCH 2013).
Gata et. al (2013), demonstram através de pesquisa como as práticas de atividades de intensidade moderada proporcionam melhoras nas condições de saúde das pessoas, tais melhoras se justificam na redução do desenvolvimento de doenças degenerativas (hipertensão, diabetes, osteoporose, enfermidades cardiovasculares, enfermidades respiratórias e outras) e de mortalidade. O entendimento da atividade física como qualquer movimentação corporal aponta para a necessidade de realização de qualquer tipo de gasto energético contrário do repouso para melhoria de saúde.
As entrevistas também apontam para melhoria na qualidade de vida, tanto no que diz respeito às questões relacionadas com a saúde como no relacionamento intrafamiliar, conforme destacam os entrevistados:
Para mim não senti, porque eu já tinha continuidade na prática da academia, mas ouvi pessoas falarem que tiveram uma melhora nas questões de saúde. E como morador próximo, observo a grande participação da comunidade. (CARLOS ALBERTO, entrevistado).
Melhorou o meu relacionamento familiar, porque a gente vai com a família, com as crianças. Hoje o meu relacionamento com a minha família é muito melhor. (TOSTÃO, entrevistado).
É neste contexto de proliferação deste tipo de iniciativas públicas que projetos vêm ganhando várias justificativas sociais e vários significados, porém, o que parece estar como pano de fundo é a discussão do esporte ser um instrumento social capaz de dar conta da resolução das mazelas da sociedade.
Também é possível compreender que muitos dos adeptos das academias já frequentavam as praças, tanto para realizar atividades de lazer como também de práticas esportivas. Assim as representações demonstram que essa participação deriva mais da concepção cultural e do tempo disponível do que da própria política.
Antes eu já frequentava a praça para caminhar, para descontrair com a família, tomar um chimarrão, pois é uma área bonita e de lazer. (JAIRZINHO, entrevistado).
Eu frequentava para utilizar a quadra de esporte e eventualmente para sentar na praça e tomar chimarrão, conversar. (RIVELINO, entrevistado).
Nessas entrevistas também é possível perceber como a praça proporcionava outros momentos e espaços de lazer, esporte e descontração para seus frequentadores. Desta forma, a criação das academias pode estar homogeneizando as práticas corporais em seu espaço, redefinindo os espaços públicos de lazer numa lógica funcional.
No caso específico das AAL a atividade física caracteriza-se muito mais por um programa de treinamento, com seus aparelhos que visam fortalecer ou melhorar determinados grupos musculares. Esta compreensão suscita uma discussão que permite fazer uma crítica ao conceito de atividade física empregada na AAL, isto porque ela não permite movimentar o corpo livremente.
Considerações provisórias
Ao concluirmos este trabalho fomos percebendo que o programa das AAL, desenvolvido pelo MS, tem pouca discussão teórica no que tange aos benefícios à população como um todo. Outra questão gira em torno da redefinição dos espaços públicos com a criação de academias. Acreditamos que espaços abertos possibilitariam mais condições para que as pessoas realizem atividades físicas, bem como a prática de esporte.
Quanto à qualidade de vida, seria necessário desenvolvermos outro processo de produção da via material, para que as pessoas vivessem melhor, sem os problemas causados pela intensa exploração do modo de produção capitalista. Outra proposta é apresentada por Mézáros (2007), o qual defende a redução do tempo de trabalho para que as pessoas possam desenvolver outras atividades e ampliar a forma de trabalho abstrato. Esta proposta possibilita pensar em outras formas de ser e estar no mundo, uma proposta emancipatória.
Para isso seria necessário ampliarmos nosso conceito de lazer, o qual pode ser compreendido a partir dos estudos de Gramsci (2000), quando destaca a necessidade do tempo livre para a formação omnilateral, no qual todo homem,
fora de sua profissão, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, é um “filósofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma concepção de mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepção de mundo, ou seja, para suscitar novas maneiras de pensar. (GRAMSCI, 2000, p. 53).
Nas sociedades de economia capitalista, a acumulação de capital ocorre pelo aumento do tempo de trabalho necessário 4 ou socialmente necessário para a produção de uma mercadoria. Por isso na sociedade de produção capitalista a classe-que-vive-do-trabalho não conquistará o direito ao tempo livre, pois para a expansão da acumulação de capital usa-se o tempo livre dessa classe.
Mézáros (2007, p. 34), ao tratar sobre a importância do tempo para o modo de produção capitalista aponta que “o tempo é tudo, o homem não é mais nada; ele é no máximo a carcaça do tempo” (MARX, apud, MÉZÁROS 2007, p. 16). Assim sendo, a existência da vida dos seres humanos individuais é subordinada a uma entidade abstrata – promoção de valor abstrato.
Indivíduo nenhum e nenhuma forma concebível de sociedade hoje ou no futuro podem evitar as determinações objetivas correspondentes ao fardo do tempo histórico, isto porque o modo de reprodução sociometabólico do capital degrada o tempo. (MARX, apud, MÉZÁROS 2007, p. 17).
Os seres humanos não se constituem de um simples gênero animal, mas um complexo corpo social composto de uma multiplicidade de indivíduos reais. O corpo social a qual os seres humanos pertencem desenvolvem historicamente a humanidade. O desenvolvimento do sistema produtivo em termos reais se desenvolveu em cima do tempo livre do trabalhador e atualmente alcança sua forma mais aguda, pautada na reestruturação produtiva e no neoliberalismo.
Mézáros insiste na necessidade de um novo metabolismo social, em uma alternativa à barbárie produzida historicamente pelo modo de produção capitalista, uma alternativa ao cárcere do capital e sua lógica incorrigível. A proposta de Mézáros é a diminuição da jornada de trabalho, o que possibilita menor número de desempregados, e permitir que os seres humanos em seu tempo livre possam administrar seu autodesenvolvimento nas múltiplas relações sociais e que sejam mais igualitárias.
Notas
A cidade de Cidreira está localizada no litoral norte do Estado do Rio Grande do Sul. A economia gira em torno da construção civil, comércio, serviços, agricultura, turismo e pesca. A população fixa hoje é de aproximadamente 12.000 habitantes. Foram instaladas 2 polos de AAL no meio do ano de 2013, em duas praças, uma na área central e outra na periferia.
A cidade de São Francisco de Paula está localizada no nordeste (Campos de Cima da Serra) do Estado do Rio Grande do Sul. A economia gira em torno da pecuária, agricultura e turismo. A população aproximada é de 20.000 habitantes. Foi instalado um polo de AAL no início do ano de 2014, às margens do Lago São Bernardo, principal cartão postal do município.
Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor da mercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob forma especificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho concreto útil produz valores de uso. (MARX, 1996, p.175)
Tempo de trabalho socialmente necessário é o tempo de trabalho requerido para produzir-se um valor-de-uso qualquer, nas condições de produção socialmente normais, existentes, e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho.
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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 19 · N° 192 | Buenos Aires,
Mayo de 2014 |