Os filhos do Seu Zé Roberto: memórias do boxe Los hijos de Seu Zé Roberto: memorias del boxeo |
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*Mestre em Ciências da Motricidade Humana **Doutora em Educação Departamento de Educação Física da UNESP Universidade Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Campus de Rio Claro |
Fernando Paulo Rosa de Freitas* Sara Quenzer Matthiesen** (Brasil) |
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Resumo Este artigo trata da trajetória de vida de José Roberto de Oliveira, ex-lutador e técnico esportivo da modalidade do boxe. As informações para esse trabalho foram tomadas em vídeo a partir de entrevista pessoal. Tem como objetivo preservar a memória de personagens e fatos relevantes relacionados a história e disseminação do boxe pelo interior do Brasil. Unitermos: História. Esporte. Boxe. José Roberto de Oliveira.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 190, Marzo de 2014. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
Ser um lutador de boxe nunca foi uma das coisas mais suaves desse mundo. Não foi, não é, e, provavelmente, nunca será. Mas talvez seja esse o maior atrativo desse esporte. Foi seguindo esse interesse que conhecemos José Roberto de Oliveira, ou, simplesmente, “Seu Zé Roberto”, em 1985, quando buscávamos um local para treinar o boxe, sob a influência dos filmes da época: ainda existiam cinemas pela cidade e os filmes de lutas atraiam grande público. Foram também os anos que despontaram grandes ídolos da chamada “nobre arte”, como Adilson “Maguila” Rodrigues e Mike Tyson, ganhando espaço nas TVs brasileiras, primeiramente, na Rede Bandeirantes e, depois, na Rede Globo.
A despeito do grande destaque que o boxe teve nessa época, eram poucas as cidades do interior do Estado de São Paulo que contavam com uma academia. Sendo assim, quem quisesse treinar e morasse no interior precisava colocar o pé na estrada, ou, se contentar em socar um saco de pancadas pendurado no quintal de casa ou em uma academia de halterofilismo. Nessas academias também era comum encontrar dois pares de luvas e alguém disposto a trocar uns socos, o que quase sempre virava briga.
Com a falta de informação da época, seguimos a primeira dica de onde treinar o boxe: uma notícia no Jornal Gazeta Esportiva dava conta que havia sido inaugurada uma academia no ginásio “Constâncio Vaz Guimarães”, no bairro do Ibirapuera, na capital do Estado. Chegamos a treinar algumas vezes nessa academia, dirigida na época pelo professor Waldemar Zumbano, um dos tios de Éder Jofre. Por lá também apareciam esporadicamente seus irmãos, Ricardo e Ralph Zumbano, este último técnico do “Maguila” e da Academia do B.C.N. Como a viagem era muito longa, a opção era ir de trem, saindo de madrugada. A opção mais próxima, soubemos mais tarde, seria o Clube Atlético Campinas, onde o professor José Roberto da Oliveira, de quem trataremos nesse artigo, ministrava os treinos.
Depois de vinte e cinco anos na função de técnico esportivo naquela cidade, seu Zé Roberto se aposentou e voltou a residir em sua cidade natal, Dois Córregos. Foi lá, no dia 15 de Julho de 2013, que reencontramos esse velho amigo: chegando a uma sala anexa ao ginásio municipal de esportes, pudemos ouvir o som característico do “bater corda”. Lá estava seu Zé Roberto se exercitando enquanto aguardava os primeiros alunos. Do alto de seus 73 anos de vida, “se Zé”, como é mais conhecido na cidade, aceitou o convite que a prefeitura local lhe fez parar voltar a ativa. Continua formando boxeadores, tanto daquela cidade, quanto das cidades vizinhas: lá também encontramos dois garotos que vieram de Torrinha, e que para lá se dirigem somente para treinar o boxe, assim como aconteceu conosco já há algumas décadas.
Sozinho, sozinho... nada!
“Seu” Jose Roberto de Oliveira, nascido em 17/12/1939 é natural de Dois Córregos – SP, filho do Sr. Marcílio de Oliveira e de Dona Jovelina de Oliveira. Sua família sempre lidou com lavoura e criação. Seu pai, como empregado, cuidou de uma fazenda por muito tempo, junto com a esposa, sete irmãos e cinco irmãs. Mais tarde, o dono dessa fazenda emprestou dinheiro para que seu pai comprasse um sítio. A partir dessa primeira aquisição, comprou outros três sítios e formou uma pequena fazenda, levando-se em conta as necessidades de sua grande família. Nessa fazenda seu Zé Roberto diz que trabalhou pouco, só cuidando das criações pequenas, como os porcos e galinhas. Frequentar escola nessa época, também, diz ter sido muito pouco.
Aos 15 anos, foi influenciado pelos conselhos de amigos de seu pai, que diziam que ele deveria sair para a vida e correr atrás de estudo e trabalho, pelo que se mudou para a capital do estado. Logo conseguiu emprego em uma oficina, estudou por mais um tempo e começou a treinar o boxe. Aos dezoito anos, serviu o Exército no antigo 4º Regimento de Infantaria, no Bairro Quitaúna, na cidade de Osasco, atual 4° Batalhão de Infantaria Leve (4º BIL). Incorporado entre mil e duzentos recrutas, seu Roberto se lembra da dureza do sargento, que dava instrução até que alguns deles desmaiassem de cansaço. Por ter experiência esportiva, seu Zé Roberto passou a dirigir o treinamento físico. Depois de quase dois anos, foi para a reserva na condição de sargento.
Na capital paulista, seu Zé Roberto viveu por 15 anos, trabalhando, estudando e treinando. Dá crédito a proteção divina e aos bons relacionamentos para o bom encaminhamento e as conquistas que alcançou em sua vida, principalmente, nesse período que era jovem e estava longe de casa. Não excluí, porém, a própria responsabilidade, citando a vontade e a garra que teve, atitudes que também estimula e aconselha a seus alunos, caso queiram vencer na vida de maneira honesta.
As lutas e o boxe em outros tempos
Ao rememorar os primeiros contatos que teve com o mundo das lutas, seu Roberto afirma que em seu tempo de garoto não havia nenhum tipo de academia que as ensinasse, pelo menos em sua cidade natal, Dois Córregos. O que havia era um tipo de luta livre feito na rua, no meio do público, sem regulamento de peso, sem técnico, ou mesmo, qualquer treinamento. Como não tinha um regulamento certo, “mais parecia uma briga de animais”, analisa. “E o público, até que gostava...” Esse tipo de luta acontecia em qualquer lugar, mas lembra que quando apareciam os circos na cidade, as lutas e os desafios sempre faziam parte dos espetáculos. Recordando esses fatos seu Zé Roberto entende que as lutas eram feitas de uma maneira muito errada e que o boxe e as lutas, de maneira geral, evoluíram bastante: “Hoje é necessário ser formado em uma faculdade para ser professor, você precisa obedecer a um regulamento estabelecido mundialmente, precisa ter um médico e um enfermeiro com um tubo de oxigênio no corner, uma ambulância na porta do ginásio e, precisa ver se seu atleta realmente tem condições de estar lutando e suportar os golpes. Não é só estar forte”.
Mas não foram somente os regulamentos que mudaram, observa: “Quando eu comecei em São Paulo, naquela baixada, os caras nem tinham estreado como lutadores e já tinham a cara toda quadrada de tanto levar bordoada”. Essas recordações do seu Zé Roberto se confundem com as nossas, embora já de algumas décadas mais adiante: o treino de luvas era muito próximo de uma luta real, mesmo que, como técnico, seu Zé Roberto sempre advertisse os alunos quando a coisa esquentava: “Sem violência, sem violência”, insistia. Às vezes as repreensões adiantavam. Às vezes, não.
Seu Roberto também não deixava o aluno chegar à academia e já ir lutando. Tinha que se preparar primeiro, bater muito saco, fazer ginástica. Mas, na época, quem gostaria de fazer uma longa viagem para chegar à academia e fazer o mesmo que poderia ter feito em casa? Era aquela ansiedade para vestir as luvas e partir pra luta. Quando chegava a vez dos novatos, então, os veteranos faziam roda para rir da comédia proporcionada: o pau comia e, sem saber socar ou se defender corretamente, aconteciam muitos erros bisonhos: socava-se com as costas das mãos, virava-se de costas, abria-se a guarda, saia-se todo marcado, mas, realizado. Havia academias, porém, em que novato ou lutador que chegava, de praxe, tinha que tomar uma boa sova.
Esse tipo de coisa, porém, seu Roberto nunca permitiu na academia: dividia bem os alunos que iriam “fazer luva”, por peso e por nível técnico. Caso misturasse, sempre orientava quem tinha a vantagem para maneirar. Muitas vezes, era o próprio seu Roberto que vestia as luvas e treinava com seus alunos. Treinava com todos, desde os campeões até os novatos. Fechava-se bem e servia como perfeito sparring, orientando enquanto treinava. Batia muito em baixo, certamente pensando em preservar seu atleta, mas, também, ensinando a arte de minar o fôlego do adversário. Também era interessante ver como seus alunos o respeitavam nesse momento, segurando as mãos e se desculpando quando acertavam um golpe um pouco mais forte.
Por mais garra que buscasse em seus alunos, Seu Zé Roberto nunca ensinou ou incentivou alguém a brigar na rua. Muito pelo contrário: ensinava a se desviar das confusões “para não te sobrar nada de graça”. Ensinava o boxe “como uma defesa pessoal, para se ter um reflexo e um raciocínio que lhe ajudassem na vida, desde a se esquivar dos problemas, até a malandragem de chegar a um local de treino e não ir socando de cara uma pera ou saco que você não conhecesse: você não sabe se alguém colocou uma pedra ou um ferro ali dentro pra te quebrar a mão”. Foi essa a maneira e essas as instruções que marcaram muitos dos que começaram no boxe.
Seu Zé Roberto, por sua vez, começou no boxe a partir de seu trabalho. Quando foi para São Paulo trabalhar em uma oficina mecânica conheceu “[...] o filho do patrão, que treinava um tal de Jiu-Jitsu, uma coisa que eu acho que é meio de burguês. Então eu acompanhava esse garoto”. Notaram então que seu Roberto era meio forte e começaram a falar para que ele treinasse, pelo que o levaram para uma academia de boxe, a do Wilson Russo, na Rua da Consolação, bem de frente para a igreja.
Na época em que seu Roberto treinava, a academia Wilson Russo teve quatro técnicos: “primeiro o Waldemar Zumbano, depois veio o Garrito, o espanhol. Depois o Romeu Cuminato. Depois o Pedro Galasso, que foi o primeiro campeão sul-americano”.
Wilson Russo, na verdade, era uma firma muito grande, e que tinha a sua própria academia. “A academia ficava bem de frente para a Avenida Consolação, que antigamente era rua e, depois, tiveram que derrubar uma parte para abrir a avenida”.
Seu José Roberto lutando na antiga academia Wilson Russo
Foi nessa época, também, que Éder Jofre havia mudado de categoria de peso e, seu técnico, o Carolo, mudou-se para a academia do Ginásio do Morumbi, que havia sido recém-inaugurada. “Então para o Éder ficava longe, e ele passou a treinar um tempo na academia do Wilson Russo, onde seu tio Waldemar dava os treinos”. Foi quando seu Roberto teve a oportunidade de fazer treinos de luvas com o grande campeão.
Por aquela academia também passaram outros grandes lutadores, como Eddie Roosevelt um peso-pesado norte-americano que veio lutar com Luis Faustino Pires, que chegou a ser campeão sul-americano e enfrentou grandes campeões como Oscar Bonavena e George Foreman (este último lhe quebrou um dos braços em uma luta no Madison Square Garden, no ano de 1971). Quando o americano chegou ao Brasil sem falar nada do português, foi treinar na academia do Wilson Russo e, chamaram seu Roberto para ser sparring de um mostro bem mais pesado do que ele.
As terças-feiras, as lutas que aconteciam na academia do Wilson Russo, que na verdade era um ginásio, eram transmitidas pelo Canal 5. Essas jornadas televisivas de boxe se estenderam para os campeonatos realizados no CMTC Clube na década de 1980, quando eram retransmitidas pela TV Gazeta, um canal que, infelizmente, pegava mais na capital. No interior, o sinal dessa TV chegava muito fraco, quando chegava.
Sobre os lutadores antigos Seu Roberto entende que estes pareciam ter muito mais garra, talvez pelo treino mais bruto: “Antigamente, se você chegasse a uma academia, colocavam uma fera para te dar uma mão de pau, só pra ver se você era macho. Aí se você voltasse você começava a treinar. Não tinha técnica, porque era do jeito que eles (os técnicos) tinham aprendido: era briga mesmo, era pauleira. Muitos desses esportes (de luta) ficaram mal vistos por esse motivo”.
O aprendizado e outras conquistas alcançadas por meio do boxe
Apesar da dureza do antigo sistema para o aprendizado e treinamento do boxe, seu Roberto entende que a maior lição que tirou de sua via como lutador é o respeito ao próximo, representado tanto pelas regras escritas nos manuais do esporte, como nas regras de educação escritas no caráter de cada pessoa.
A ética dentro dos esportes, diga-se de passagem, parece ser cada vez mais discutida, especialmente no meio acadêmico. Tem, no entanto, alguns entraves quando o discurso vai para a prática. Um exemplo é o entendimento de que o esporte não educa por si mesmo e, caso seja esse o objetivo, é importante que o professor direcione suas aulas para esse fim. Fosse isso uma verdade absoluta, do mundo das lutas antigas só teria saído gente violenta e, hoje, só formaríamos cidadãos conscientes. Sobre essa questão, seu Roberto faz uma constatação das dificuldades da pedagogia atual: “Hoje em dia, não sei... você manda os caras fazerem luvas com alguém mais fraco eles descem o braço. Não sei se é falta de educação, de orientação. Você fala, fala, fala e parece que não adianta nada. Já a formação de vocês (professores), é pra isso. Se não tiveram é porque a faculdade é muito fraca”.
Entendemos que o esporte com fins educativos deva ser direcionado por meio de orientação e formação. Notamos, porém, que o esporte no passado, nem sempre contando com esse viés educativo, também educou muita gente. Assim como o trabalho, a vida e o tempo, o esporte ensinou muitos dos antigos pela prática e reflexão. Houve e haverá, fatalmente, os que não conseguirão ou estarão dispostos a aprender por diversos motivos: “Aqueles que gostavam de arrumar encrenca, que gostavam de puxar um fuminho, eu puxava a orelha deles, então eles fugiam de mim”.
Seu Roberto menciona, por exemplo, algumas passagens de um de seus grandes atletas, que chegou a ser campeão estadual, Levi Leandro, um peso-mosca excepcional nas esquivas e nos “toques”, mas que lhe dava um certo trabalho: “Uma vez foi uma moça lá na academia, que era professora na Unicamp. Ela ia à academia pra se manter, porque tinha a cabeça meio carregada. Uma vez eu a coloquei pra fazer luvas com o Levi e avisei: Levi, você veja a sua posição, a sua postura, e veja que ela é mulher e não pode receber bordoada (naquele tempo, boxe não era coisa pra mulher). Ahh... ela até que batia bem, veio deu umas bordoadas nele, ele deu uma balanceada e deve ter pensado: O que? Mirou bem o queixo e deu um cruzado que a deixou ajoelhada. Eu disse, Vá Levi, deixa a mão de ser ordinário, que você é cabecinha mesmo. Xinguei. Outra vez ele levou o irmão dele mais velho, que não treinava, eu falei: Levi, você vai lutar com seu irmão, ele é mais pesado, mas não tem experiência, coitado, então você alivia, ajuda ele. Ah..., começou e ele já desceu o braço no irmão dele. Falei: mas você não tá vendo que seu irmão não tem experiência, agora você vem descer o pau nele Levi? Pelo que ele respondeu: Ah não, seu Roberto. Lá em casa ele quer dar uma de machão, então aqui eu vou dar uma castigada nele. Não tinha jeito, às vezes”.
Mesmo com esses contratempos esporádicos, Seu Roberto sempre teve o cuidado de orientar bem seus atletas. Isso foi uma constante. Por trabalhar com uma modalidade que pode ferir seus praticantes, então, os cuidados se redobravam, apesar de seu Zé Roberto entender que os cuidados devem estar presentes no ensino de qualquer atividade, desde um “jogo de bolinha de gude com uma criança, até para orientar uma pessoa quando ela toma umas a mais na balada”. Os cuidados com seus atletas, naturalmente, iam além dos possíveis ferimentos nas lutas, se estendendo para outros aspectos da vida, como a discrição e o respeito.
Em Campinas, por exemplo, seu Zé Roberto chegou a receber atletas que vinham do presídio para treinar. Entre dez ou doze presos que estavam no regime semiaberto vinham de camburão até a antiga rodoviária (hoje demolida) e, depois, iam a pé para o Clube Atlético, que ficava bem próximo. “Para ir de um lugar a outro na academia, ou mesmo ao banheiro, esses presos pediam licença. Eles faziam isso para mim, aqueles presidiários. Tinham muito respeito. Só pediam para não dizer para os outros que eram da cadeia, especialmente quando vinha um policial ou delegado para treinar. Ali, no treino, é que um aprendia a respeitar o outro”, conclui.
Nessa caminhada, seu Roberto formou grandes equipes de atletas amadores que disputaram os Jogos Abertos, Forja dos Campeões, Torneio Kid Jofre, Campeonato Paulista, entre outros. Por muitas vezes Campinas chegou ao pódio nessas competições, tornando-a uma referência no boxe amador do interior paulista. Dos grandes campeões amadores de nossa época, Levi Leandro, Almir, Alexandre Borghi, Luiz Fernando Caetano e Silva (o “Caetano”, que se tornou profissional e chegou a lutar na Rússia. Atualmente, dirige o Clube Atlético Campinas na função que atuava seu Zé Roberto), Emerson “Tempestade”, Edmundo Maria Filho e Fernando Tressino, um peso médio-ligeiro na época e, atualmente, mesmo veterano, continua lutando como peso-pesado em uma nova modalidade, o M.M.A. Além dos amadores, por vezes ainda aparecia algum profissional, para o qual a garotada não costumava amaciar nos treinos. Havia também muitos veteranos, que iam mais pela ginástica, muito boa, aliás, mas que também faziam luvas, como o “Maximiliano”, ex-campeão Pan-americano dos pesos-pesados. Como qualquer academia, também passou muito atleta cheio de vontade, mas com pouco talento, como um de quem não lembramos o nome, e que era cego de um olho. Acabou indo treinar em outra academia de Campinas, pois seu Roberto não queria colocá-lo para lutar, com medo que sofresse algum castigo que lhe prejudicasse a vista que ainda era boa. Em sua primeira luta, lembra seu Zé Roberto, “acabou levando um nocaute feio, que mais ficou parecendo um cadáver deitado no ringue”.
Seu Zé Roberto também se lembra de outro tipo de lutador, os “burgueses”, que participavam dos treinos e das lutas da maneira mais suave, como os que levou uma certa vez para lutar em Bragança Paulista: “um deles começou a comer pipoca e tomar guaraná e eu perguntei: Mas você vai lutar e fica se enchendo aí? Aí ele me respondeu que não ia lutar mais não. Eu fiquei bravo e perguntei, então, porque ele tinha vindo, mas nem adiantou. Outro subiu lá pra lutar e, pá da lí, pá de cá... ele acabou levando uma piaba que caiu no ringue e gritou bem alto: Mãe!!! O ginásio quase veio a baixo”.
A grande maioria dos lutadores, porém, era de gente bem simples, como um saqueiro que veio de Leme, que era muito forte. “Levei ele pra Bragança e eu já sabia que ele não ia lutar porque o outro lutador deu W.O. Não falei pra ele, porque tinha que subir no ringue pra ser dada a vitória. Então ele ficava andando pra lá e pra cá no ringue, mostrando que era forte. Quando então falamos que o outro lutador tinha dado W.O., ele não entendeu. Estufou de uma vez o peito e queria saber quem era esse tal de W.O. que ele queria pegar. Quando o cara é muito forte, fica assim”. Na época, inclusive, boa parte dos técnicos não recomendava os treinos de musculação, por acreditar que deixavam o lutador lento, travado.
Seu José Roberto também foi técnico da Seleção Paulista de Boxe por três vezes, tendo disputado campeonatos brasileiros no Rio Grande do Sul, no Guarujá e na cidade de São Paulo, sempre conquistando o título de equipe campeã.
Como atleta, seu Zé Roberto foi vice-campeão do Campeonato da Gazeta Esportiva, atual “Forja dos Campeões”, mesma colocação alcançada no Torneio Estimulo, ou “Kid Jofre”. Como profissional fez apenas duas lutas, se retirando para se dedicar ao trabalho.
Os filhos do seu Zé Roberto
Rever o próprio passado e as pessoas que dele fizeram parte, invariavelmente, é um exercício que traz diferentes emoções, esclarecimentos e surpresas. Ao reencontrar o seu Zé Roberto depois de tantos anos, vieram a mente muitas recordações, como o “discurso preparatório para quem iria lutar”, onde tentava levar ao limite a noção de brio, de honra e de garra que a pessoa tinha que ter pra vencer na luta e, também, na vida, onde os desafios, muitas vezes, são maiores que os encontrados no boxe.
Imagino que essas instruções marcaram muitos de seus lutadores. Alguns devem ter aprendido rápido, se tornando logo campeões. Outros levaram mais tempo. Pelos fatos que presenciamos, no entanto, pudemos ver que cada um respondia com o que podia para corresponder a confiança do seu técnico: me lembro de um garoto pedindo desculpas a equipe por ter perdido por nocaute e de outros que, mesmo contundidos ou com um osso quebrado, não se entregavam na luta.
Formar um lutador com os cuidados para que não se machuque e, ao mesmo tempo, prepara-lo para suportar um grande castigo, muitas vezes parece uma contradição. Seu Roberto lidava bem com isso, ensinando que o boxe não é lugar de hesitação ou dúvida. Quando fazia luva com seus alunos, insistia muito para que esses batessem, caso contrário soltava suas cutucadas. Era o tal do “quem não bate, apanha”.
Muitas coisas, naturalmente, seus alunos aprendiam sozinhos, como a necessidade de ser humilde nesse meio. Não há nada mais frustrante, por exemplo, do que treinar, treinar e pegar um lutador liso, pegador, de talento, a despeito que estes, muitas vezes, nem se esforçam tanto. Nesse caso a vitória, muitas vezes, era permanecer em pé até o final.
Imaginamos que, para todos os companheiros que resolveram trilhar esse caminho, o boxe teve diferentes significados. Para alguns foi só uma diversão, para outros uma paixão que resistiu ao final de suas carreiras e, para uns poucos, um caminho profissional. Entre as perdas e ganhos de quem se envolveu com o boxe, quisemos saber de seu Roberto o que este lhe trouxe de melhor, pelo que nos respondeu: “Vou falar sinceramente, é muito simples: eu me sinto feliz de você estar aqui hoje. Eu não tive filhos, então vocês são meus filhos. Isso foi a melhor coisa que eu tive. Principalmente em relação a aqueles que eu não fiz quase nada, que eu apenas conversei. Para alguns que eu fiz alguma coisa, enfiei a mão no bolso pra ajudar, levei cesta básica, arrumei emprego por causa das amizades que eu tinha, por essa luz... esses caras nunca me procuraram, são mal agradecidos. É preciso ter humildade, honestidade”
Em uma das viagens para lutar na capital, seu Roberto nos contou que não teve filhos e que, certa vez, ficou de adotar um bebê que estava para nascer. Uma moça lhes havia prometido a criança, pelo que compraram tudo o que era necessário e se prepararam para recebê-la. Mas a tal moça acabou se arrependendo e não entregou o bebê, pelo que foi uma grande decepção e acabaram desistindo da ideia de ter filhos.
Não tendo filhos, alguns alunos do seu Roberto escreveram uma crônica em um jornal de Campinas com o título “Os filhos do Seu Roberto”, que retratava bem a consideração e estima que tinham por ele. Hoje, alguns deles, espalhados pelo Brasil e pelo mundo, ainda se recordam e entram em contato com o grande professor e amigo.
O descanso do guerreiro
Vivendo atualmente em Dois Córregos, seu Zé Roberto desfruta do merecido descanso e do conforto conquistado por uma vida de trabalho, tanto seu quanto de sua esposa, Dona Antônia.
Já havíamos conhecido sua casa em Campinas, quando lá pousamos depois de uma luta. Contrastando com a rudeza do ambiente do boxe, sua casa era o retrato do capricho. Conhecendo sua casa atual, essa impressão se renovou. O casal mantém o ambiente impecável, cultivam muitas plantas e tem um canto especial para a devoção.
Pensando no quanto lutaram para chegar a essa situação e, no quanto ainda lutam, nos lembramos daquele verso da música “The boxer”, de Simon & Garfunkel, que diz que “o boxeador está se retirando, mas o lutador permanece”. Seu Roberto certamente permanecerá lutando enquanto viver e na memória de todos seus alunos.
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EFDeportes.com, Revista
Digital · Año 18 · N° 190 | Buenos Aires,
Marzo de 2014 |