Disciplina em aulas de Educação Física
Sheila Aparecida Pereira dos Santos Silva (Brasil) Doutora em Psicologia da Educação pela PUC/SP Docente dos Centros Universitários Uni-FIEO e Uni-FMU sheila.silva@bol.com.br
Agradecimentos à Renata Karina Cristino Costa pelo auxílio à busca e organização
Resumo
Resumen
Abstract |
Lecturas: Educación Física y Deportes | http://www.efdeportes.com/ revista digital | Buenos Aires | Año 5 - Nº 18 - Febrero 2000 |
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Introdução
No interior das linhas de pesquisa "Desenvolvimento Curricular" e "Formação Profissional em Educação Física" presentes no Departamento de Pedagogia do Movimento do Corpo Humano da EEFE-USP, tivemos a oportunidade de coordenar um Grupo de Estudos composto por alunos de Graduação e profissionais da área, discutindo e analisando problemas pertinentes à prática do professor de Educação Física que atua no segmento escolar. De uma forma geral, este Grupo de Estudos buscava contribuir para a atuação profissional à medida em que abordava o aspecto das estratégias de ensino, bem como para a preparação de professores em nível acadêmico quando analisava as dificuldades que docentes iniciantes apresentam em suas primeiras experiências docentes.Os trabalhos de pesquisa que vimos realizando desde 1993 tem perseguido o objetivo de contribuir para que a Educação Física seja melhor desenvolvida nas escolas e para proporcionar conhecimentos úteis no sentido de oferecermos uma formação acadêmica de melhor qualidade aos nossos alunos, futuros professores de Educação Física.
Temos defendido uma orientação para o ensino na qual os interesses e expectativas dos alunos possam ser levados em consideração, enfatizando este aspecto como constituinte da base para a ocorrência de aprendizagens significativas (AUSUBEL, 1980; MOREIRA & MASINI, 1982). Temos, então, orientado futuros professores de Educação Física, para que utilizem com moderação formas coercitivas para condução das aulas, e que venham a privilegiar formas dialógicas, analíticas e participativas.
Analisando discursos de docentes e documentos oficiais que fundamentam a formação de novos professores no Brasil, observamos que esta tem sido calcada em bases democráticas quando se refere ao aspecto social e predominantemente de base construtivista no que se refere aos processos de ensino e aprendizagem. Constatado este aspecto, chamou-nos a atenção a constatação da dificuldade que novos professores encontraram para colocar em prática o conhecimento teórico adquirido na Graduação, durante docências que acompanhamos no ano de 1994 (SILVA, 1997) na disciplina Prática de Ensino.
Na ocasião, a impressão inicial que tivemos destas docências é que estes jovens professores estavam apenas reproduzindo com seus alunos os procedimentos que vivenciaram quando também eram alunos da escola básica, ou seja, era evidente que os princípios e métodos que haviam estudado durante a educação superior não se concretizavam em sua prática pedagógica.
Apesar do local eleito para o desenvolvimento da Prática de Ensino contar com instalações físicas razoáveis e com material didático suficiente para a efetivação de boas aulas de Educação Física, raras eram as vezes em que o ambiente para o desenvolvimento das aulas, com destaque ao aspecto das relações interpessoais, podia ser considerado como o mais propício para as experiências de aprendizagem.
Quais seriam os fatores que estariam dificultando a docências destes jovens professores
Através de observações das aulas, relatórios realizados pelos professores e de reuniões de discussão da prática pedagógica, detectamos que os nove alunos-mestres acompanhados queixavam-se de problemas que classificaram como ausência de disciplina em graus maiores ou menores.Estes problemas, infelizmente, não se esgotaram no ano de 1994, quando desenvolvemos o acompanhamento da docência destes jovens professores na disciplina Prática de Ensino, mas tornaram a ocorrer durante a atuação dos novos graduandos nos anos de 1996, 1997 e 1998, agora na disciplina Educação Física no 1º Grau. Dentre os problemas de diversas naturezas detectados durante a docência nestes anos, o mais recorrente e identificado como o que maior prejuízo causou a um desenvolvimento curricular satisfatório foi aquele ligado aos incidentes disciplinares ocorridos durante as aulas.
Se, por um lado, percebíamos que o conhecimento a respeito do que já havia sido pesquisado sobre o tema "disciplina", "indisciplina", "incidentes disciplinares" não estava sendo suficiente, tínhamos consciência que as estratégias que eram utilizadas pelos docentes iniciantes ora provinham dos livros de Didática Geral e das orientações que fornecíamos a partir das mesmas fontes, ora eram elaboradas a partir do seu bom senso em interpretar situações. Em outras palavras, ainda que várias situações que envolviam incidentes disciplinares tenham sido resolvidas de maneira satisfatória, restava-nos a sensação de que precisávamos saber mais a respeito, principalmente, daquilo que se referia a pesquisas aplicadas na docência do componente curricular Educação Física.
Neste artigo, portanto, procuraremos apresentar como o tema relativo à disciplina, indisciplina, comportamentos de evasão têm sido abordados na literatura pedagógica, destacando as estratégias de ensino que têm sido eleitas, principalmente por professores de Educação Física, para lidar com estas questões durante suas aulas.
Com esta publicação, pretendemos contribuir para que os resultados desta investigação possam somar-se a outros já desvelados, vindo a aperfeiçoar a compreensão sobre o fenômeno da Educação Física Escolar e o da formação de professores.
No próximo tópico, esclareceremos os termos que vêm sendo utilizados pela literatura referente ao tema.
O que se entende por disciplina
Para abordar este tema, é preciso evidenciar os diferentes níveis de análise pelos quais tem passado e mencionar algumas controvérsias. Segundo ROSADO (1990, p. 48), ..." a diversidade de formulações acerca da disciplina é um primeiro obstáculo ao seu estudo e à delimitação conceptual deste tema".Nos círculos pedagógicos é perceptível que imperam as opiniões pessoais com pouca fundamentação científica.
Trata-se de um tema assustador para uma grande parcela de docentes e pessoas que trabalham em escolas, visto que a ocorrência de problemas relativos à disciplina mostra uma considerável capacidade de desestabilizar e alterar os rumos normais das intervenções pedagógicas.
A este respeito escreve GNAGEY (1970 , apud NAKAYAMA, 1996):
"...Os misteriosos feitos das bruxas que praticavam a magia negra dificilmente podem ter produzido uma fascinação mais cheia de temor que o tema da disciplina. Basta pronunciar suavemente esta palavra nos círculos pedagógicos para que comece a ferver o caldeirão das opiniões, os debates e o desespero..." (p. 5.)Mesmo sendo um tema pouco inovador, vemos a necessidade de encará-lo à luz das concepções educacionais mais recentes e da filosofia educacional vigente no Brasil, firmada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96) e reiterada pelos Parâmetros Curriculares Nacionais ao propor que temas como ética e convívio social sejam abordados por todos os componentes curriculares presentes nas escolas do país.
Buscando compreender o que se tem entendido por "disciplina", iniciamos pelo que se tem escrito a respeito a partir de um nível de análise macro-social, logo após mencionaremos as análises em nível pedagógico e, por último, o que tem resultado das análises em nível psicológico.
De uma forma geral , "disciplina" refere-se a um conjunto de comportamentos definidos por determinadas regras (SIEDENTOP, 1983 apud ROSADO, 1990).
Do ponto de vista macro-social, a disciplina pode ser encarada como um requisito para que um determinado modelo social ou projeto de sociedade possa ser alcançado.
De acordo com FRANCO (1986), ela é uma condição indispensável p/ conduzir uma prática pedagógica comprometida com os anseios das classes trabalhadoras e com o estabelecimento de uma sociedade igualitária.
Esta noção está vinculada a uma forma de comportamento julgado apropriado por aqueles que detém o poder de ditar regras. Sendo assim, o que se entende por comportamento disciplinado não constitui uma noção universalmente válida.
Para BORDIEU e PASSERON (1968, apud ROSADO, 1990) numa determinada época e lugar, o que se identifica como comportamento disciplinado ou apropriado é definido pela classe dominante baseando-se num sistema de valores que se deseja ver reproduzido pelos demais.
ROSADO (1990) destaca que a noção de comportamento apropriado variou no decurso do tempo e de lugar para lugar, variando ainda hoje dependendo dos contextos culturais, sociais e concepções educativas. A definição do que seja comportamento apropriado está em relação direta com os objetivos educacionais propostos. O estudo do tema, nesta perspectiva, envolve a identificação e compreensão a respeito dos valores que norteiam e fundamentam os códigos éticos e os preceitos morais de determinadas culturas.
Considerando que o domínio de conhecimento sobre disciplina e educação moral é, ainda, largamente insatisfatório, não só no que se refere aos conhecimentos práticos mas, também, no que respeita à elaboração conceitual, WILSON (1981, apud ROSADO,1990) defende a necessidade de projetos que se aproximem do estudo da prática quotidiana estudando as suas determinantes.
A compreensão do que seja comportamento disciplinado implica, por sua vez, na compreensão do que sejam "regras".e, ainda, no conhecimento dos estágios de desenvolvimento moral que condicionam a capacidade dos estudantes entenderem, atenderem, cumprirem, ou mesmo modificarem tais regras.
De acordo com FERRAZ (1997), entendemos que a regra é a normatização da relação entre dois ou mais elementos.
Situando-nos, agora, no nível de análise pedagógico, nos reportamos novamente à FERRAZ (1997) ao esclarecer que é necessário que professores sejam capazes de estabelecer distinções entre o caráter das regras baseadas em preceitos morais e aquelas estabelecidas para que o desenvolvimento de atividades lúdicas e esportivas seja possível. Ou seja, existe a necessidade de se compreender a natureza das relações que são estabelecidas através das regras, bem como sua gênese e procedência. Baseando-se em DE LA TAILLE (1984), FERRAZ (1997) menciona a ocorrência de dois tipos básicos de relação: a de coerção e a de cooperação. Afirma que, na relação de coerção, "a legitimidade da regra vai depender da autoridade de quem ela provém" e na relação de cooperação, a legitimidade da regra "dependerá do acordo firmado entre as partes."
Este mesmo autor, com base em (PIAGET, 1932), esclarece que é preciso atentar para a diferença entre as regras esportivas e as regras morais:
"embora toda regra genuinamente moral implique em uma prática e uma consciência, as regras de um jogo infantil ou esportivo diferenciam-se das regras morais como, por exemplo, não mentir, não roubar. A diferença básica está na natureza mutável e arbitrária das regras do jogo/esporte e, já as regras genuinamente morais traduzem um juízo de valor" (FERRAZ, 1997, p.28).
O que nos chama a atenção quanto a este particular é a necessidade do professor estabelecer, considerar e transmitir para seus alunos a diferença entre as regras que devem ser sempre fixas e aquelas que podem ser mutáveis. Ou seja, de acordo com seu estágio de desenvolvimento cognitivo e afetivo-social, o aluno necessita ser estimulado a desenvolver o discernimento a respeito dos aspectos da vida escolar nos quais pode interferir e, consequente, mudar, ao contrário de ser levado simplesmente a relativizar a existência de qualquer modalidade de regras.
Comentando a utilização do treinamento esportivo como forma de desenvolver o comportamento disciplinado, BRITO (1993) afirma que o significado da disciplina aparece associado tanto ao sentido intelectual, como apreensão de conhecimentos, quanto ao sentido moral, como obediência às normas e preceitos estabelecidos. Ressalva, contudo, que o sentido moral surgiu como a principal finalidade do trabalho com a disciplina no treinamento esportivo como ferramenta necessária à obtenção do rendimento.
De acordo com MAKARENKO (1980, apud FRANCO,1986), a disciplina é um resultado da educação. É a soma da influência educativa (instrução, métodos de ensino, interação professor-aluno, conteúdos transmitidos) num processo de cooperação e comprometimento com a formação do homem. Consideramos, entretanto, que os seres humanos modificam seu comportamento como resultado da interação entre processos internos de desenvolvimento cognitivo e moral e os processos educacionais, ou seja, da sua relação com o ambiente. Neste aspecto encontramos respaldo em AQUINO (1995) que, ao mencionar três concepções distintas sobre o ensino, a pedagógica, a psicológica e a psicanalítica, destaca que todas convergem no aspecto interacionista dos processos educativos.
Entendemos que o comportamento disciplinado pode ser considerado como manifestação do desenvolvimento moral, implicando na consciência e na prática de regras estabelecidas na diversas situações escolares.
Este aspecto da consciência e prática das regras também é abordado por FERRAZ (1997, p. 29). Segundo o autor, visando responder a questão: "Como os indivíduos se adaptam, na sua prática, às regras, em função da idade e do desenvolvimento?", PIAGET realizou experimentos com crianças, vindo a estabelecer quatro níveis para a prática da regra e três níveis para a consciência das regras.
Os quatro níveis para a prática da regra são:
Motor Individual. Neste nível a criança não participa nas relações sociais presentes nos jogos. O jogo que pratica é puramente individual, constando de simples aplicação funcional dos esquemas de ação;
Egocêntrico. Neste nível já começa a ocorrer uma imitação superficial das regras sendo que elas podem até ser mencionadas, porém não sendo perceptível qualquer esforço de parte da criança para cumpri-las;
Cooperação Nascente. Aqui a regra normatiza realmente a ação entre os competidores, há fidelidade ao seu cumprimento e também ocorre uma vigilância do comportamento dos oponentes; o não cumprimento da regra é considerado pela criança neste nível como um delito grave;
Codificação das regras. Ao atingir este nível, a criança demonstra grande interesse pelas regras e passa a ser capaz de buscar estratégias para vencer respitando o cumprimento das regras.
Para PIAGET (1932), a prática da regras está intimamente ligada à consciência que as crianças possuem sobre elas. Em seguida apresentamos os três níveis para a consciência das regras e seu relacionamento com a prática das mesmas.
Não obrigatoriedade. Estende-se até meados do nível egocêntrico; neste nível, a criança não dá qualquer importância à necessidade da regra;
Obrigatoriedade Sagrada. Neste nível, a regra é originada de uma autoridade divina ou paterna sendo que qualquer modificação ou adaptação às regras tradicionais do jogo são consideradas ilegítimas. Estende-se até a metade do nível de cooperação nascente;
Obrigatoriedade devida ao consentimento mútuo. Percebe-se, neste nível, que passa a haver consciência do caráter arbitrário e necessário das regras, sendo que estas derivam de uma cooperação e aceitação mútuas entre os competidores. Inicia-se na metade do nível de cooperação nascente e estende-se ao nível de codificação das regras.
O conhecimento destes aspectos do desenvolvimento moral infantil pode colaborar para que juízos preconceituosos, taxativos ou rotulações inadequadas sejam conferidas aos alunos, resultando em consequências para o seu relacionamento na escola e para o seu auto-conceito.
Por outro lado, tal conhecimento é de suma importância para que os professores possam compreender seu comportamento característico e selecionar as estratégias de ensino apropriadas aos níveis em que se encontram.
Pesquisa de MENIN (1985, apud NAKAYAMA,1996) com alunos de pré-escola até às 2ªs séries (6 a 8 anos) confirma a teoria de Piaget segundo a qual as crianças evoluem do que se denomina responsabilidade objetiva para a responsabilidade subjetiva. A responsabilidade objetiva, observada em crianças pequenas, caracteriza-se pela "simples identificação da relação de causa e efeito sem levar em consideração os motivos da ação (...)" (FERRAZ, 1997, p.30) e a responsabilidade subjetiva, observada em crianças maiores percebe-se que a intenção da ação passa a ser levada em conta.
"A explicação teórica para este fato, em parte, é encontrada na dimensão cognitiva da criança pequena que está impossibilitada de inferir, de trabalhar com hipóteses, mas somente pode se guiar por algo observável que é justamente o resultado da ação, deixando a intencionalidade em segundo plano." (FERRAZ, 1997, p.30).
No que se refere ao cotidiano escolar, quando se passa a considerar o papel que a escola desempenha na formação moral infantil, MENIN (1985, apud NAKAYAMA,1996, p.106) afirma que não há na escola, lugar para a autonomia moral, ou pelo menos as condições para que essa autonomia seja favorecida.
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