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O corpo em relação: uma possibilidade de organização

El cuerpo en relación: una posibilidad de organización

 

Professores de Educação Física da FEF/UFG

(Brasil)

Dr. Tadeu João Ribeiro Baptista

Dra. Sissilia Vilarinho Neto

tadeujrbaptista@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          Existem diferentes concepções de corpo que interferem de maneira significativa na Educação Física, as quais são mencionadas, sem que muitas vezes saibamos a sua origem ou autores que se aproximam delas. O objetivo desse trabalho é revisar as concepções de alguns autores que representam alguns períodos históricos e a partir dessa revisão de literatura, discutir a possibilidade de organização das concepções de corpo que facilitem o debate na Educação Física.

          Unitermos: Corpo. Educação Física. Classificação. Concepções. Filosofia.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 189, Febrero de 2014. http://www.efdeportes.com/

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    O corpo é um objeto de estudos intrigante. Ele é ao mesmo tempo simples e complexo. Simples por fazer parte da vida das pessoas, permitindo-se conhecê-lo empiricamente. Desse modo, ele se apresenta todos os dias de maneiras variadas sendo exposto e escondido, usado e abusado, libertado e reprimido por diferentes situações e determinações sociais. Ele é um dos grandes temas de diferentes campos de conhecimento que lidam com o ser humano, perpassando-as da medicina – com o seu cunho meramente biológico, até as ciências humanas como a sociologia, que o discute em variados paradigmas epistemológicos. A filosofia se propôs a pensar o corpo em diferentes concepções, sendo esta uma área que também possui um conhecimento sistematizado e metódico que permite a apropriação de saberes fundamental à humanidade.

    O corpo é assim a expressão material e espiritual da existência humana (BAPTISTA, 2013), sem a qual seria impossível a presença do homem sobre a terra, devido a uma história, a uma condição animal (biológica) de existência, estando esta relacionada igualmente com a psicológica, a sociológica, a teológica, entre tantas outras dimensões que poderiam ser mencionadas.

    É por esta multiplicidade de dimensões e fatores que elaboramos esse trabalho sobre o corpo, por entender que algumas concepções desenvolvidas ao longo da história, ajudam a compreender melhor este objeto de estudo. Assim sendo, discutimos algumas das concepções de corpo mais significativas durante a história. Assim, pretendemos discutir como é possível aproximar algumas destas concepções em grupos que nos ajudem a olhar para o Corpo como um elemento fundamental para a Educação Física. Destarte, este texto se justifica pelo fato de essas concepções contribuírem para a compreensão do corpo, tendo-se como método de coleta de dados a revisão de literatura.

    Assim, para analisar as concepções principais e propor uma “classificação”1 das concepções de corpo, pretendemos pensá-las a partir das relações estabelecidas pelo corpo, tendo como metodologia uma revisão de literatura pautada na avaliação de textos de autores da filosofia e da sociologia, considerados clássicos, os quais, ainda hoje, trazem reflexões para o debate sobre o corpo. Por isso, o texto será dividido em duas partes. Na primeira, discutiremos algumas concepções de corpo consideradas relevantes e, no segundo momento far-se-á uma proposta de classificação para as concepções de corpo.

Revisando as concepções de corpo

    O corpo possui uma longa história de debates e reflexões que se iniciam na antiguidade com os filósofos gregos. Esta discussão nunca foi única, isolada ou tranqüila, contudo, em decorrência dos limites de um artigo, serão apresentadas reflexões representativas de alguns momentos históricos, correndo o risco de deixar a discussão unilateral, porém entendendo que os autores selecionados são considerados fundamentais para a compreensão do corpo na Filosofia e na Educação Física.

    Alguns autores já fizeram sistematizações a respeito do corpo na história, debatendo inclusive algumas contribuições, entre os quais podemos citar Gonçalves (1994), Medeiros (1998) e Zoboli (2012). Estes autores dialogaram por diferentes enfoques, trazendo as colaborações para demonstrar a maneira como este debate foi realizado. No entanto, apesar destas abordagens, propomos o diálogo com alguns autores responsáveis por esta discussão desde a Antiguidade clássica.

    O debate iniciado na antiguidade sobre o corpo tem como um de seus expoentes Platão. Para ele, a alma é mais divina que o corpo, por isso, pode-se dizer que existe uma supremacia daquela sobre este. Ademais, a idéia de que o corpo é inferior à alma, e porque não dizer a sua prisão, está posta em uma de suas passagens do “Fédon” ao mencionar: “(...) enquanto tivermos o corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção, jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade” (PLATÃO, 1999: 127). Assim, pode-se dizer que o corpo corruptível é uma condição para que a alma se mantenha presa a um mundo de mentiras e ilusões que mantém a alma longe daquilo que seria a sua felicidade plena: a verdade. Logo,

    Os filósofos, ao verem sua alma presa ao corpo e obrigados a apreciar as coisas por intermédio do corpo, com se fosse através de um cerca ou prisão e não por ela mesma, ao que fazem com que a alma, acorrentada, ajude a apertar seus ferros, ao reconhecerem que a filosofia vem se apossar de sua alma nesse estado, consolam-na suavemente e trabalham em liberdade fazendo-a ver que os olhos do corpo estão repletos de ilusões, bem como seus ouvidos e todos os outros sentidos, e a advertem que não os utilize mais do que exige a necessidade [...] (PLATÃO, 1999, p. 149).

    Se nas outras passagens de Platão, havia alguma dúvida sobre superioridade da alma e da idéia de que o corpo é a prisão que impede a compreensão mais ampla, devido às ilusões provocadas por ele, nesta passagem estas dúvidas cessam, tendo-se em vista, a ideia do corpo como uma prisão. Destarte, essa visão da antiguidade, expressa nas palavras de Platão do corpo como o elemento corruptor da alma, fica demonstrada a percepção presente na Antiguidade clássica do corpo como algo inferior à alma.

    Zoboli (2012, p. 37) comenta que:

    Platão deduzia a partir de seus pressupostos que a alma, antes de se encarnar no corpo, teria vivido a contemplação do mundo das ideias, onde tudo conheceu por simples intuição, ou seja, por um conhecimento imediato, sem precisar fazer uso dos sentidos, ou seja, da materialidade corpórea. Platão pensava também que a alma reencarnava, depois da morte, em outro corpo.

    Se na Antiguidade, a primazia da alma prevalecia sobre o corpo e Platão foi um bom representante desta imagem, na Idade Média o corpo se mantinha desconsiderado, aspecto demonstrado por Santo Agostinho (1973a), um dos seguidores da lógica platônica, na obra “De Magistro”. Este autor, considerado um dos principais teólogos de todos os tempos, sobremaneira, daquele período dentro da Igreja Católica, a qual, de certa forma dominava o mundo. Assim como Platão, Santo Agostinho demonstra a superioridade da alma sobre o corpo, condição esta presente no pensamento cristão daquele período. Este autor escreve:

    Mas, se para as cores consultamos a luz, e para as outras coisas que percebemos mediante o corpo consultamos os elementos deste mundo, os mesmos corpos percebidos e os próprios sentidos de que a mente se serve como de intérpretes para conhecer as coisas externas; e, no entanto, para aquelas coisas que se conhecem mediante a inteligência consultamos, por meio da razão, a verdade interior [...] (SANTO AGOSTINHO: 1973a, p. 351-2).

    A passagem de Santo Agostinho aponta para a idéia de que o corpo permite a percepção das coisas externas, enquanto que a razão permite o conhecimento das coisas internas. Assim, como para esse filósofo cristão, o conhecimento só é possível pelo contato fornecido por Cristo e este age através das coisas internas. Inferimos deste modo, que o corpo assimila apenas o interno, considerado inferior à alma responsável pelo desenvolvimento das coisas internas.

    Em outro texto de Santo Agostinho (1973b), o autor vai demonstrar em alguns trechos a prevalência da alma sobre o corpo. Em uma dessas passagens, ele diz:

    Que amo então quando amo o meu Deus? Aquele que está no cimo de minha alma? Pela minha própria alma hei de subir até Ele. Ultrapassarei a força com que me prende ao corpo e com que encho de vida o meu organismo. Mas não é com essa vida que encontro o meu Deus, porque (nesse caso) também “o cavalo e a mula que não têm inteligência”, O encontrariam, pois possuem essa mesma força que lhes vivifica os corpos (SANTO AGOSTINHO, 1973b, p. 200, Grifo nosso).

    Santo Agostinho, enquanto um representante do pensamento cristão do período medieval confirma em suas “Confissões” que o caminho para Deus está na alma e não no corpo, visto que, a sua relação é meramente com este mundo. Pois, o corpo do homem possui a mesma força do cavalo e da mula. Se, dentro do pensamento cristão, o importante é o caminho para Deus, pode-se coligir que o importante é a alma e não o corpo, porquanto, este é meramente animal, e assim, finito e menos importante. Desse modo, o “[...] catolicismo idealiza uma renúncia do corpo já na ‘vida terrena’ para que o sujeito possa atingir a eternidade tão sonhada e desejada ‘no céu’. O preço que ele paga para ter acesso a essa eternidade é a renúncia do seu próprio corpo” (ZOBOLI, 2012, p. 46)

    Pode-se analisar então que, apesar do corpo ser uma constante no debate, sobretudo na sua relação com a alma, ele é ao mesmo tempo considerado inferior àquela. Assim sendo, se na Antiguidade e na Idade Média o corpo é visto com inferior, na Modernidade ele tem um debate distinto. Nesse momento não pode ser representado por apenas um autor, pois, nesta fase, o aumento do debate e a emergência de diferentes paradigmas epistemológicos fazem com que este tema, o corpo, passe a ter posicionamentos diferentes, os quais precisam ser identificados e analisados, mesmo que rapidamente, uma vez que, estas concepções distintas podem interferir na análise aqui realizada.

    Um marco neste debate será Descartes (1973), o qual é até hoje uma referência na concepção de corpo. A discussão desse autor começa com a sua tentativa de superar a dúvida que o aflige quanto à existência, procurando de todas as formas, evitar os possíveis erros decorrentes da assimilação dos sentidos, e ao mesmo tempo compreendendo a essência da alma e do corpo. Diz ele:

    [...] compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse ela não deixaria de ser tudo o que é (DESCARTES, 1973, p. 47, Grifo nosso).

    A preleção realizada por Descartes mostra que a alma e o corpo são substâncias totalmente distintas uma da outra, o que implica, necessariamente que elas possuem inclusive condições de existência totalmente diferentes, quando ele afirma que a alma não depende de qualquer coisa material – o corpo – para viver, e que esta alma que constitui o eu passa a ser a “coisa” mais importante, visto que ela não morre junto com o corpo, que é a substância infinita na existência do homem. Para Descartes (1973, p. 62) a alma humana “(...) é de uma natureza inteiramente independente do corpo e, por conseguinte, que não está de modo algum sujeita a morrer com ele; depois, como não se vêem outras causas que a destruam, somos naturalmente levados a julgar por isso que ela é imortal (Grifo nosso). Considerando-se que a alma é imortal, portanto, mais importante do que o corpo por sua condição de finitude, este é identificado por Descartes como nada além de uma máquina. Em determinado ponto, Descartes (1973, p. 57) compara o funcionamento dos órgãos com o de um relógio composto de contrapesos e rodas. Para Descartes (1973, p. 60):

    O que não parecerá de modo algum estranho a quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens pode produzir, sem empregar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande multidão de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo como uma máquina que tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada e contém movimentos mais admiráveis do que qualquer das que possam ser inventadas pelos homens (Grifo nosso).

    A idéia do corpo como máquina proposta por Descartes contribui para algumas condições a serem percebidas. A primeira é de que existe, acima de tudo, a mão divina, colocando a idéia de Deus como presente na criação de todas as coisas, o que, não foge muito da concepção da supremacia da alma que se apresentou em Platão e em Santo Agostinho, não podendo nos esquecer neste momento que Descartes era um católico. Em segundo lugar, há de se considerar que entender o corpo como uma máquina, como coisa material, perecível e ao mesmo tempo, um possível objeto de estudo para as ciências, inclusive as mecânicas, visto que, ele é uma máquina composta por inúmeras peças. Assim, Descartes é um representante fundamental da concepção racionalista de ciência e sua concepção de corpo máquina, estará presente de maneira significativa entre os positivistas, sobretudo nas ciências biológicas até a atualidade.

    Contudo, existem outros paradigmas de análise que também se preocupam com o corpo como objeto de estudo, dentre as quais se podem considerar a fenomenologia como uma delas. Dentro das análises fenomenológicas de corpo, é possível identificar como uma das mais expressivas, a abordagem realizada por Merleau-Ponty (1999), que vai inclusive considerar a relação entre corpo e alma na perspectiva de sua inter-relação.

    Em uma de suas passagens ele dirá que o “[...] corpo é o veículo do ser no mundo e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles” (p. 122). Assim, diz este autor que o corpo relaciona-se com o mundo, definindo a sua consciência neste contato. Destarte,

    [...] se é verdade que tenho consciência do meu corpo através do mundo, que ele é no centro do mundo, o termo não-percebido para o qual todos os objetos voltam sua face, é verdade pela mesma razão que meu corpo é o pivô do mundo: sei que os objetos têm várias faces porque eu poderia fazer a volta em torno deles, e neste sentido tenho consciência do mundo por meio de meu corpo (MERLEAU-PONTY, 1999,p. 122, Grifo nosso).

    Esta citação de Merleau-Ponty demonstra que a relação entre a consciência e o mundo só se estabelece através do corpo, visto que, somente assim, torna-se possível conhecer o mundo e tomar consciência do corpo.

    Para ele não há alma sem corpo, nem corpo sem alma e ainda, só se torna possível conhecer o mundo através do corpo, pois ele é o ser humano, pois, a “[...] união entre a alma e o corpo não é selada por um decreto arbitrário entre dois termos exteriores, um objeto e outro sujeito. Ela se realiza a cada instante no movimento da existência” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 131). As palavras expressas pelo autor são importantes por demonstrar um outro processo de relação existente entre o corpo e a alma.

    Dentro da perspectiva da fenomenologia poderíamos citar ainda outro autor que se debruça em alguns momentos da sua obra, sobre a questão do corpo: Nietzsche. Na obra “Assim falava Zaratustra”, Nietzsche (2011) apresenta um dos discursos de seu personagem denominado “Dos que desprezam o corpo”, o personagem em uma das passagens comenta:

    Mas o homem desperto, o sábio diz: “Todo eu sou corpo e nada mais; a alma não é mais que um nome para chamar algo de corpo”.

    O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor [...].

    Detrás de teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um amo mais poderoso, um guia desconhecido, que se chama “o próprio ser”. Habita em teu corpo; é teu corpo (NIETZSCHE, 2011, p. 39).

    Este autor conseguiu estabelecer um processo de inversão na filosofia, quando se discute a questão do corpo. Como disse Zoboli (2012, p. 57):

    [...] foi com Nietzsche que começaram a ser construídas novas epístemes para se compreender o corpo. A compartimentalização do ser humano pregada pelo paradigma corpo/mente é algo extremamente limitante, condicionador e reducionista. A visão de ser humano mecanicista, dualista e linear já está há tempos ultrapassada, e Nietzsche foi ícone nessa inversão, se analisada a história da filosofia.

    Assim, podemos identificar que esses dois autores que discutiram o corpo a partir da perspectiva fenomenológica, conseguem dialogar com o corpo como a expressão do ser humano, um corpo que é e, não um corpo que se tem. A própria maneira de eles dialogarem com o corpo sem fragmentá-lo com a alma ou a mente, colabora para que o corpo (o próprio ser humano) seja pensado de maneira plena.

    Finalmente, o corpo é entendido em sua relação materialista dialética, tendo-se como pressuposto as considerações feitas por Marx (2002). Neste texto, a existência física do ser humano, o corpo físico (ou ainda, o corpo orgânico) representado pelas mãos, pernas e cérebro do homem, só se mantém em relação aos elementos externos a ele. Assim, pode-se considerar esta relação ainda mais ampla, porquanto, relacionar-se com a natureza significa dizer, o homem relaciona-se consigo, e também, a natureza está se relacionando com ela própria, diria o autor. Sobre isso comenta Marx (2002):

    A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgânico: 1) como imediato meio de vida; e igualmente 2) como objeto material e instrumento da sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, ou seja, a natureza na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive da natureza, ou também, a natureza é o seu corpo, com o qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes significa apenas que a natureza inter-relaciona consigo mesma, já que o homem é uma parte da natureza (p. 116, Grifo nosso).

    Pretende-se iniciar a análise da citação de Marx (2002) de um de seus pontos finais: “(...) a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes (...) (Ibid.)”. Esta passagem demonstra não ser possível considerar a vida humana sem considerar o físico e o espiritual (a consciência), os quais, são face à natureza, inter-subordinados um ao outro. Isso se justifica, pois, sem a natureza não é possível a permanência da vida humana – física e espiritual – sobre a terra, mas, de outro lado, a natureza não faz nenhum sentido sem ser compreendida e assimilada pela consciência do homem, sem a qual não existiria por si só. Fundamentado neste contexto, Baptista (2013) comenta que existe a interação inextricável do corpo da consciência/consciência do corpo. Em outras palavras, cada objeto em volta do indivíduo – inclusive o próprio corpo – só existe por fazer sentido para a sua consciência.

    O debate pode se dar também pelo diálogo do corpo com o poder. Talvez o autor que melhor representa esta ideia seja Michel Foucault. Este autor comenta:

    Eu acho que o grande fantasma é a idéia de um corpo social constituído pela universalidade das vontades. Ora não é o consenso que faz surgir o corpo social, mas a materialidade do poder se exercendo sobre o corpo dos indivíduos. [...] O domínio, a consciência de seu próprio corpo só puderam ser adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do belo corpo [...] tudo isso conduz ao desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio (FOUCAULT, 1999, p. 146)

    As reflexões de Foucault, permitem pensar que o corpo está sujeito a uma série de processos de controle, os quais se apropriam do próprio corpo para obter domínio sobre a própria consciência. Desse modo, é possível identificar o corpo no seu contexto social, dialogando com o componente individual. É possível dizer a partir de Marx (2002) que é o corpo inorgânico, definindo as relações e a ação do corpo orgânico.

    Além destas reflexões, na atualidade, ainda existem autores que dialogam com o corpo a partir da perspectiva de que o corpo é fluído, ou ainda, mero objeto de estudo, pois, não são os corpos que se movimentam, mas homens e mulheres que interagem entre si (LE BRETON, 2010). Esta forma de compreensão do corpo, é discutida a partir dos autores que se apresentam em uma perspectiva pós-moderna (alguns dirão da perspectiva pós-estruturalista). Afirma Le Breton:

    É preciso ressaltar a ambiguidade que consiste evocar a noção de um corpo que só mantém relações implícitas, supostas com o ator com quem faz indissoluvelmente corpo. Qualquer questionamento sobre o corpo requer antes a construção de seu objeto, a elucidação daquilo que subentende. O próprio corpo não estaria envolvido no véu das representações? O corpo não é uma natureza. Ele nem sequer existe. Nunca se viu um corpo: o que se vê são homens e mulheres. Não se vê corpos. Nessas condições o corpo corre o risco de nem mesmo ser um universal. [...] O corpo não é uma natureza incontestável objetivada imutavelmente pelo conjunto das comunidades humanas, dada imediatamente ao observador que pode fazê-la funcionar como num exercício do sociólogo (LE BRETON, 2010, p. 24, grifo nosso).

    Este debate vem ganhando fôlego no campo da Educação Física e já existem alguns autores que se contrapõe a esta perspectiva, sendo um deles Herold Junior. Diz este autor:

    Mooers (s.d.) observa que: “Transformando o corpo em uma abstração discursiva o pós-modernismo meramente retoma o dualismo mente/corpo dos tempos anteriores” (p. 22).

    Esse autor também nota que algumas correntes filosóficas baseadas nas tendências pós-modernistas enxergam a “descorporificação” como um sinônimo de emancipação. Afinal, “liberados dos constrangimentos da corporeidade, pode ser pensado que nós poderíamos também ser liberados de várias formas de discriminação corporal expressas no racismo e sexismo” (p. 17). (apud HEROLD JUNIOR, 2008, p. 100)

    A crítica feita por Herold Junior (2008) parece significativa, sobremodo, quando em seguida, ele comenta sobre a necessidade de se considerar todo o contexto do debate, trazendo à luz de perspectivas teóricas como a do marxismo.

    Enfim, a partir desta breve discussão propomos a reflexão sobre uma possível classificação a respeito do corpo em relação.

O corpo em relação: fazendo proposições

    As concepções de corpo presentes no item anterior são demonstrativas das diferentes possibilidades de análise em relação ao corpo. Contudo, há de se considerar o fato de as mesmas apresentarem potencial de diálogo entre elas. Acreditamos assim, que seria possível, para uma análise didática, considerar o corpo e todo o debate ocorrido a partir, por meio de suas relações.

    Falar do corpo em suas relações significa admitir que a sua história, e a maneira como ele foi pensado e discutido, quase nunca aconteceu, tendo como referência apenas os paradigmas epistemológicos ou a sua condição de existência empírica dissociadas de outras análises.

    Destarte, o corpo se constitui a partir de relações diversas, sendo elas organizadas, geralmente, no debate com a alma (Platão e Santo Agostinho), com ele mesmo, sendo visto como uma máquina (Descartes), na sua relação com o mundo de forma plena (Merleau-Ponty e Nietzsche), ou mesmo uma relação com o mundo por meio da natureza, da sociedade ou do poder (Marx e Foucault). Finalmente, aqueles que não o veem necessariamente por sua materialidade, mas na sua discursividade, como objeto de estudo (Le Breton). Partindo desta análise, propomos o quadro 1.

    Esta forma de se compreender o corpo por meio de suas relações com a alma, com ele mesmo, com o mundo, ou com a perspectiva pós-moderna, não se pretende definitiva, mas apenas considerar uma forma de se refletir sobre as diferentes abordagens estabelecidas na filosofia e na sociologia, as quais trazem impactos significativos para a prática da Educação Física.

Quadro 1. Categorização Didática das Concepções a partir das Relações de diálogo com o Corpo.

Relação do Corpo

Forma de se Pensar o Corpo

Corpo da Alma

Esta é provavelmente a tendência mais clássica da filosofia. Aqui o corpo é sempre comparado com a alma, devido à sua condição de finitude face à infinitude da alma, ou ainda como a sua prisão ou motivo de pecado e de não evolução da alma.

Corpo Próprio

Nesta perspectiva o corpo é visto apenas pela sua existência. Dessa forma, ele é tratado como máquina ou como elemento meramente biológico.

Corpo com o Mundo/Natureza

Nessa concepção normalmente o corpo é visto em relação com o mundo que o cerca ou com a natureza, entendida por sua dimensão histórica e, portanto, vinculada às construções e transformações pelo trabalho e por suas determinações sociais. Muitas vezes ele se aproxima de concepções existenciais, pensando o corpo pela sua relação com outros seres humanos, constituindo assim a sua subjetividade.

Corpo sem o Corpo/Corpo Pós-Moderno

Nessa perspectiva o corpo é visto por duas possibilidades. A primeira passa pela perspectiva de que o corpo como algo natural/cultural pode ser manipulado por uma série de recursos ligados à biotecnologia como as próteses e a possibilidade de clonagem. Por outro lado, existe a defesa de o corpo não ser um componente material, empírico, mas uma categoria, um objeto de estudo, pois, o que existe são homens e mulheres e não corpos.

Considerações finais

    Ao fazer as considerações finais deste texto, pretendemos reafirmar a necessidade de se compreender o corpo no campo da Educação Física. Esta expressão material/espiritual da existência humana deve ser debatida, refletida, pesquisada em suas múltiplas dimensões, sejam elas vinculadas aos componentes biológicos, psicológicos, filosóficos, sociais, religiosos, culturais, entre outros.

    No entanto, até este momento, o principal limite estabelecido pela Educação Física é compreender o corpo por apenas uma de suas possibilidades, negando as outras de maneira geral. O presente texto, não pretende fazer isso, porém, reconhecemos os limites que foram estabelecidos pelo espaço de um artigo, os quais, pretendemos apresentar em outros momentos.

Nota

  1. Apesar de sabermos que as “classificações” são sempre arbitrárias, a proposta aqui é estabelecer uma forma de análise a partir das relações que o corpo estabelece com a alma, com ele próprio, com o mundo, entre outros.

Referências

  • BAPTISTA, Tadeu J. R. A Educação do corpo na sociedade do capital. Curitiba: Appris, 2013.

  • DESCARTES, René. O discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1973, pp. 25-71. (Coleção Os Pensadores).

  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 14. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1999.

  • GONÇALVES, Maria A. S. Sentir, pensar, agir: corporeidade e educação. Campinas: Papirus, 1994.

  • LE BRETON, David. A Sociologia do Corpo. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2010.

  • MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2002.

  • MEDEIROS, Mara. Didática e prática de ensino da educação física: para além de uma abordagem formal. Goiânia: CEGRAF-UFG, 1998.

  • MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

  • NIETZSCHE, Friedrich. Assim falava Zaratustra. Petrópolis: Vozes, 2011.

  • PLATÃO. Fédon ou da alma. São Paulo: Nova Cultural, 1999, pp. 115-190. (Coleção Os Pensadores)

  • SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Abril Cultural, 1973b: 9-316. (Coleção Os Pensadores)

  • SANTO AGOSTINHO. De Magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1973a: 319-56. (Coleção Os Pensadores)

  • ZOBOLI, Fábio. Cisão corpo mente: espelhos e reflexos na práxis da educação física. São Cristóvão: Editora da UFS, 2012.

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