Carandiru: o corpo detido Carandiru: el cuerpo detenido Carandiru: the body arrested |
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Grupo de Pesquisas Interdisciplinares em Sociologia do Esporte Universidade de São Paulo (Brasil) |
Adriele Gehring Ana Carolina Maragno Karen Dorta Marco Antonio Bettine de Almeida |
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Resumo A partir dos nossos estudos sobre memória, mesclando nosso interesse por cinema e história, chegamos até o Carandiru. Lugar que foi a maior penitenciária da América Latina, com capacidade para quatro mil homens. Abrigava no final, mais de sete mil condenados por diferentes crimes, sofrendo de uma mesma pena. O aprisionamento e privações do corpo e, principalmente, da alma. Este artigo pretende dialogar com a história do Carandiru, as relações de corpo e disciplina presentes numa penitenciária, sustentadas pela idéia dos corpos dóceis e da evolução dos métodos punitivos de Foucault. Analisar as formas de tratamento desses corpos, e subverter o olhar dentro do documentário O prisioneiro da grade de ferro, que trata a verdadeira realidade de quem viveu parte dessa história marcada por um massacre há vinte e um anos. Unitermos: Corpo. Punição. Disciplina. Carandiru.
Abstract From our studies on memory, merging our interest in film and story, we come to the Carandiru. Place which was the largest prison in Latin America, with a capacity of four thousand men. Housed in the end, more than seven thousand convicted of various crimes, suffering from the same pen. The imprisonment and deprivation of the body and especially soul. This article intends to engage with the history of Carandiru, body and relationships present in prison discipline, underpinned by the idea of docile bodies and the evolution of punitive methods of Foucault. Examine ways of treating these bodies, and subvert the look in the documentary The Prisoner of the iron bars, which is the true reality of who lived part of history marked by a massacre for twenty-one years. Keywords: Body. Punishment. Discipline. Carandiru.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 189, Febrero de 2014. http://www.efdeportes.com/ |
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“O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis
a uma economia dos direitos suspensos”.
Introdução
A partir dos nossos estudos sobre memória, mesclando nosso interesse por cinema e história, chegamos até o Carandiru. Lugar que foi a maior penitenciária da América Latina, com capacidade para quatro mil homens. Abrigava no final, mais de sete mil condenados por diferentes crimes, sofrendo de uma mesma pena. O aprisionamento e privações do corpo e, principalmente, da alma.
Este artigo pretende dialogar com a história do Carandiru, as relações de corpo e disciplina presentes numa penitenciária, sustentadas pela idéia dos corpos dóceis e da evolução dos métodos punitivos de Foucault. Analisar as formas de tratamento desses corpos, e subverter o olhar dentro do documentário O prisioneiro da grade de ferro, que trata a verdadeira realidade de quem viveu parte dessa história marcada por um massacre há vinte e um anos.
Carandiru, a película de Hector Babenco
No século XVIII temos os suplícios como principal forma de punição, categorizados como espetáculos punitivos, onde buscavam torturar e massacrar o corpo físico dos condenados. Espetáculo devido à forma em que se davam as penas. Penas públicas, abertas para a apreciação do povo, que vibravam observando o desfigurar dos corpos em sua frente.
Com o passar dos anos certa culpa, ou humanização, começa a questionar essas condenações e os métodos de fazê-la.
Por volta de 1837, aos poucos a punição deixa de ser cena, tendo cunho negativo tudo que implicava em espetáculo. Ocorreu uma inversão de papéis, onde o carrasco parecia o criminoso, os juízes, assassinos. Os supliciados passavam a ser objeto de admiração e piedade. Chegando ao ponto em que as execuções públicas eram vistas como uma chama que quanto mais queimava, mais acendia e instigava a violência. Se o assassinato era apresentado como um crime horrendo, qual o sentido de vê-lo sendo cometido, sem remorso?
Um fato é marcante em algumas dezenas de anos, o desaparecimento dos suplícios, tirando o corpo do alvo principal da repressão penal. Entramos na era dos castigos incorporais, mudando o foco da punição, do corpo, para a alma. Tocar o mínimo possível no corpo, passando a acreditar numa discrição do fazer sofrer, arranjando sofrimentos mais sutis, para atingir algo que não é propriamente físico. Atuando profundamente sobre o intelecto, as vontades, disposições, e o coração.
A liberdade é considerada um dom e um direito. Privando, coagindo e obrigando os indivíduos a se adequarem perante regras e normas, seria um castigo incorporal? A disciplina nasce muitas vezes do sofrimento? O sofrer da alma reflete no sofrer do corpo?
Carandiru, o Prisioneiro da Grade de Ferro
O Complexo Penitenciário do Carandiru foi considerado um presídio-modelo, tendo sido projetado para atender às exigências do Código Penal republicano de 1890, que previa separação de réus primários de presos reincidentes e separação dos presos pela natureza do delito. O projeto do presídio foi elaborado pelo engenheiro-arquiteto Giordano Petry, inspirado no Centre Pénitentiaire de Fresnes, na França, no modelo "espinha de peixe" (que ainda existe em funcionamento até hoje). Em duas décadas de funcionamento, entre 1920 e 1940, o presídio atingiu sua capacidade máxima, chegando ao número de 1.200 detentos. Nesse momento, foi considerado um padrão de excelência nas Américas, atraindo a visita de inúmeros políticos, estudantes de direito, autoridades jurídicas, que vinham a São Paulo para visitá-lo.
A penitenciária do Carandiru era aberta à visitação pública e chegou a ser considerada um dos cartões postais da cidade de São Paulo. Dada sua importância, em 1936 o sistema implantado foi citado no livro Encontros com homens livros e países, escrito por Stefan Zweig "que a limpeza e a higiene exemplares faziam com que o presídio se transformasse em uma fábrica de trabalho”. “Eram os presos que faziam o pão, preparavam os medicamentos, prestavam os serviços na clínica e no hospital, plantavam legumes, lavavam a roupa, faziam pinturas e desenhos e tinham aulas." A partir de 1940, quando a penitenciária excedeu sua lotação máxima, ela começa a passar por sucessivas crises. Na tentativa de resolver os problemas, foi construída a Casa de Detenção, elevando a capacidade total para 3.250 detentos. O complexo do Carandiru chegou a abrigar oito mil detentos, mas diante das decorrentes crises que culminavam em tragédias, devido às péssimas condições e a má administração, no ano de 2002 teve início o processo de desativação.
A maior casa de detenção da América Latina, o Carandiru, teve um conhecido e lamentável final. Um massacre lavou de sangue o chão da penitenciária há vinte e um anos, marcando a história e a vida de muitas pessoas.
Recordar Carandiru. Dr. Mariano Castex. Buenos Aires, novembre de 2010
Pensar na evolução dos métodos de punição, na história do Carandiru, seus presos, os corpos desses presos, e chegar até o massacre, não é uma espécie de retrocesso? Ou estaríamos revivendo parte da história? Reviver uma forma desumana de punição, igualando os que levam o nome do poder e do estado, aos condenados que não tiveram muitas vezes piedade ou consciência dos crimes que cometeram.
Esse tema tende a ter várias e diferentes formas de ser analisado, nosso objetivo aqui é observar o contexto do que foi o Carandiru, com foco nas formas de tratamento dos corpos desses condenados. O documentário O prisioneiro da grade de ferro, serviu como apoio para nossa análise. Lançado no ano de 2003, com direção de Paulo Sacramento, o documentário foi filmado pelos próprios presos, que receberam câmeras e toda a liberdade para registrar o que realmente acontecia por trás dos muros imensos e das grades de ferro. Nele podemos conhecer a história de alguns condenados, e como eles tocaram a vida dentro da casa de detenção, com suas ocupações, distrações, quereres, saudades, e anseios. As privações sempre foram consideradas uma espécie de sofrimento físico, privar o indivíduo do seu poder e direito de ir e vir é extremamente cruel e perturbador. E como já vimos aqui, é uma forma de se ferir a alma, numa tentativa de disciplinar e corrigir os indivíduos para estarem aptos a voltar a conviver em sociedade.
20 anos da Massacre de Carandiru. Barbara D'Aversa
Como uma boa obra de cinema físico e não ficcional, o documentário constrói uma atmosfera muito particular. Colocando num jogo de superfícies, cenários, personagens, e histórias, ajustando a montagem e respeitando o tempo desses personagens se faz com que a rede de corpos seja exposta para o espectador. Podemos pensar nessa rede de corpos, como a instituição e o estado pensam nos corpos desses presos. Moldando através de sua ordem e regras, na tentativa de formar corpos dóceis, prontos e disciplinados nos esperados padrões da sociedade. A disciplina imposta nos presídios muitas vezes caminha junto da disciplina criada pelos próprios presos, como um encontro correlacionando liberdade-coação, rua-presídio. No próprio documentário podemos nos deparar com esse encontro, como algo necessário para diminuir a dor da punição estabelecida. O sofrer da alma, diferente do sofrer físico corporal, pode ser algo trabalhado e entendido frente às privações e limitações que estão expostos. Também diferente do sofre físico, curar uma ferida, costurar um corte, o sofrer da alma deixa o indivíduo fragilizado e seu corpo serve como uma pintura, passando para quem o vê toda a realidade do que esta vivendo. Trabalhar seu corpomente em meio ao caos é algo muito difícil, seguir e cumprir ordens de dois sistemas (presídio-instituição, presídio-presos), transforma o sofrer da alma em atitudes e escolhas. Escolhas, como sempre, são ações que geram reações. A reação que os presos obtinham dos companheiros muitas vezes valia sua vida. Afinal, o que é menos um corpo, pra quem vive no meio de uma rede de corpos?
Considerações
De acordo com o documentário citado, os métodos de punição vão muito além de maus tratos físicos, pois se deixa de agredir um corpo para que esse seja massacrado pelo tempo, pela falta de cuidado, condições básicas de saúde e assistência médica, saneamento básico, além da alimentação escassa e tão pouco nutritiva. Esses fatores são responsáveis não apenas por causar degradação do corpo físico como também da alma. Os sujeitos, seres humanos, submetidos a esse regime, certamente não caminham para a ressocialização. Ao ingressar no sistema carcerário os indivíduos passam a ser tratados como iguais, sem distinção em relação aos crimes cometidos. De acordo com CASTRO (1991), perante a equipe dirigente, a prisão constitui o espaço onde se realiza a nova ordem social e todos são submetidos a um autoritarismo que exerce um poder sem controle. Nesse sistema dá-se lugar ao adestramento e disciplina, de acordo com Foucault aos “corpos dóceis". Assim sendo, toda hierarquização que acontece por conta dos próprios presos, se fortalece por vista grossa do sistema, que se aproveita da situação para manter a falsa sensação de ordem ainda mais fortalecida.
A prisão é onde mais se aprende de violência (Castro, 1991). Neste panorama, os indivíduos acabam por construir estratégias de sobrevivência que fazem da delinqüência um modo de vida (Castro, 1991). Acabam se vendo reféns de suas escolhas, dos caminhos que os levaram até ali, e encurralados pelo sistema carcerário são obrigados a se enquadrarem as normas da prisão. Tanto como instituição formal, quanto pelo mundo criado pelos presos, onde existem normas e regras para conseguir sobreviver. Os corpos detidos, não deixam de serem corpos... Porém marcados pelo exercício da brutalidade.
Referências bibliográficas
CASTRO M. M. P. Ciranda do medo: Controle e dominação no cotidiano da prisão. Revista USP p. 58-64, 1991.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 2009.
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