efdeportes.com

Subsídios para pesquisas em educação: 

sob a égide das Práticas Sociais e Processos Educativos

Insumos para la investigación en educación: al amparo de las Prácticas Sociales y los Procesos Educativos

 

*Claretiano – Centro Universitário. Sociedade de Pesquisa Qualitativa em Motricidade Humana

Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos

**Unidade de Atendimento a Criança da Universidade Federal de São Carlos

Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos

***Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de São Carlos

Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos

(Brasil)

Fábio Ricardo Mizuno Lemos*

fabiomizuno@claretiano.edu.br

Rosa Maria Castilho Martins**

rcmartins@ufscar.br

Evaldo Ribeiro Oliveira***

evaldoneab@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          Neste artigo, objetivamos apresentar reflexões relacionadas com a construção de referencial teórico no campo de pesquisa em educação, sob a égide das Práticas Sociais e Processos Educativos. A partir, principalmente, de Paulo Freire, Enrique Dussel e Ernani Fiori, são apresentadas as bases de pensamento desta perspectiva de pesquisa, a qual se funda no devir humano, no conhecimento enquanto processo educativo e na consideração das relações de dominação situadas no contexto de América Latina. Entendemos que a principal contribuição das pesquisas em Práticas Sociais e Processos Educativos está na consideração da educação enquanto processo a ser construído coletivamente, assumindo para isso, a importância de reconhecer e valorizar as compreensões de todos os envolvidos nessa trajetória.

          Unitermos: Prática Social. Processo Educativo. Pesquisa em Educação.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 187, Diciembre de 2013. http://www.efdeportes.com/

1 / 1

Contextualizando a pesquisa em educação

    Nas últimas décadas, ocorreu um crescimento ampliado no número de pesquisas da área de educação no Brasil, decorrentes da expansão da pós-graduação, podendo ser observadas mudanças nas temáticas e problemas, nos referenciais teóricos, nas abordagens metodológicas e nos contextos de produção dos trabalhos científicos (ANDRÉ, 2001).

    Os estudos que nas décadas de 1960-1970 caracterizavam-se por análise das variáveis de contexto e no seu impacto sobre o produto, passam, nos anos 1980, a ser substituídos pelos que investigam sobretudo o processo. Das preocupações com os fatores extra-escolares no desempenho de estudantes, passa-se a uma maior atenção aos fatores intra-escolares: neste momento aparecem os estudos que se “debruçam” sobre o cotidiano escolar, focalizam o currículo, as interações sociais na escola, as formas de organização do trabalho pedagógico, a aprendizagem da leitura e da escrita, as relações de sala de aula, a disciplina e a avaliação. Assim, o exame de questões genéricas, quase universais, foi cedendo espaço a análises de problemáticas localizadas, cujas investigações são desenvolvidas em seu contexto específico (ANDRÉ, 2001).

    Os enfoques também se ampliaram e diversificaram. Como afirma Gatti (2000), a propagação da metodologia de pesquisa–ação e da teoria do conflito, no início dos anos 1980, fazem mudar o perfil da pesquisa educacional brasileira, abrindo espaço a outras abordagens.

    Recorre-se não mais exclusivamente à Psicologia ou à Sociologia, mas à Antropologia, à História, à Linguística, à Filosofia. Constata-se, assim, que para compreender e interpretar grande parte das questões e problemas da área de educação é preciso adotar enfoques multi/inter/transdisciplinares e de tratamentos multidimensionais.

    Se os temas e referenciais se diversificam e se tornam mais complexos entre os anos 1980 e 1990, as abordagens metodológicas também acompanham essas mudanças. Nesse sentido, “ganham” importância as pesquisas chamadas de “qualitativas”, que englobam um conjunto heterogêneo de perspectivas, de métodos, de técnicas e de análises, compreendendo desde estudos etnográficos, pesquisas participantes, estudos de caso, pesquisas-ação, até análises de discurso e de narrativas, estudos de memória, histórias de vida e história oral (ANDRÉ, 2001).

    As duas últimas décadas (1980 e 1990), ainda de acordo com André (2001) também assistiram a uma mudança no contexto de produção dos trabalhos de pesquisa:

  • nas décadas de 1960 a 1970 o interesse estava nas situações controladas por experimentação, pautadas em pesquisas de “laboratório”;

  • nas décadas de 1980 a 1990 o exame de situações “reais” do cotidiano da escola e da sala de aula é que constituíram uma das principais preocupações do pesquisador.

    Se o papel do pesquisador era sobremaneira o de um sujeito de “fora”, nos últimos dez anos tem havido uma grande valorização do olhar “de dentro”, fazendo surgir muitos trabalhos em que se analisa a experiência do próprio pesquisador ou em que este desenvolve a pesquisa com a colaboração dos participantes.

    A partir da década de 1990 foram buscados novos enfoques e paradigmas para compreender a prática pedagógica e os saberes pedagógicos e epistemológicos relativos ao conteúdo escolar a ser ensinado/aprendido. Neste período, inicia-se o desenvolvimento de pesquisas que, considerando a complexidade da prática pedagógica e dos saberes docentes, buscam resgatar o papel do professor, destacando a importância de se pensar a formação numa abordagem que vá além da acadêmica, envolvendo o desenvolvimento pessoal, profissional e organizacional da profissão docente (NUNES, 2001).

    Essa virada nas investigações passou a ter o professor como foco central em estudos e debates e decorreu da oposição a estudos anteriores que acabavam por reduzir a profissão docente a um conjunto de competências e técnicas (NÓVOA, 1995).

    Como bem considera Gatti (2005, p. 606), “A educação está imersa na cultura e não apenas vinculada às ciências, que foram tomadas na modernidade como as únicas fontes válidas de formação”.

    Porém, com essa alteração no enfoque, um problema se apresenta, de acordo com Alves-Mazotti (2001): muitas pesquisas, sob a alegação de valorização dos saberes dos professores e de suas práticas, limitam-se a reproduzir falas dos sujeitos, sem qualquer tentativa de identificar regularidades, relações e categorias e/ou se servir de um instrumental analítico capaz de organizar e dar sentido aos dados. A crescente valorização da prática e da subjetividade parece estar levando a uma tendência à reificação da prática e do sujeito, em prejuízo da construção de conhecimentos relevantes e do diálogo com os autores que já se ocuparam do tema.

    Mas o que parece mais grave é que esse enfoque de pesquisa também não contribui nem para a transformação da vida dos sujeitos, nem para a melhoria das práticas pedagógicas. A compreensão das subjetividades e das práticas pedagógicas requer que se busque relacioná-las às condições sociais em que foram produzidas, procurando ir além da mera descrição, contribuindo para o debate mais amplo e para a produção de conhecimentos que possam ser apropriados por outrem (ALVES-MAZZOTTI, 2001).

    Dessa forma, Borges (1996, p. 14) analisando a divisão existente entre quem pesquisa e quem ensina, propõe que “[...] talvez se possa pensar que a valorização dos saberes da experiência, dos saberes docentes de um modo geral, seja uma alternativa no sentido de buscar uma maior aproximação da formação acadêmica com a realidade escolar, estreitando os vínculos na relação entre teoria e prática”.

    Assim, talvez se possa auxiliar no desencontro entre a pesquisa e os problemas da educação básica, entre a pesquisa em educação e o cumprimento de seu papel, junto às instituições de educação básica (LÜDKE; CRUZ, 2005).

    A pesquisa efetuada na universidade beneficia-se dos recursos e da preparação dos pesquisadores, que exercem essa atividade como própria de seu status e de suas atribuições. Entretanto, temos que reconhecer a falta de produtividade, ou mesmo de alcance da pesquisa universitária junto à escola básica e a evidência de que os professores dessa escola estão mais habilitados para perceber melhor os problemas cruciais que afligem esse nível de ensino. Ao mesmo tempo, esses professores, que foram formados pela universidade, deveriam ter recebido ali sua devida iniciação à pesquisa, para poderem se desenvolver plenamente como profissionais autônomos, na melhor acepção do termo “profissional”, por mais discutível que reconheçamos que ele seja (LÜDKE; CRUZ, 2005, p. 105).

    A aproximação da pesquisa em educação das duas realidades que lhe dizem respeito, a da universidade, onde ela é habitualmente feita, e a da escola de educação básica, onde ela é requisitada para atender os problemas mais vitais, é um desafio (LÜDKE; CRUZ, 2005), principalmente em uma concepção tecnicista de professor como mero implementador de práticas pedagógicas ou do pesquisador como produtor de um conhecimento inaplicável (NUNES, 2008).

Outro olhar sobre os contextos de pesquisa

    Em uma concepção de educação humanista, libertadora, a qual é assumida pela linha de pesquisa em Educação, Práticas Sociais e Processos Educativos, os papéis dos sujeitos envolvidos no processo de pesquisa, assim como as relações estabelecidas entre estes, assumem outra forma.

    Nesse ínterim, na sequência, apresentaremos reflexões sobre as suas bases teóricas, divididas em três partes: “Humanização: Ser Humano em constante devir”; “Conhecimento: na óptica dos processos educativos”; “Situados na América Latina”.

    Vale salientar, que nossa pretensa propriedade de discussão das Práticas Sociais e Processos Educativos está na inserção, enquanto pesquisadores e pesquisadora no mestrado e no doutorado em Educação, na área de Processos de Ensino e de Aprendizagem e linha de pesquisa Práticas Sociais e Processos Educativos, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos (PPGE/UFSCar).

Humanização: ser humano em constante devir

    Os seres humanos são seres histórico-sociais, num permanente movimento de busca, porque têm a consciência do mundo e a consciência de si como seres inacabados e inconclusos. Também são seres condicionados mas não determinados, “[...] porque, inacabado, sei que sou um ser condicionado mas, consciente do inacabamento, sei que posso ir além dele. Esta é a diferença profunda entre ser condicionado e o ser determinado” (FREIRE, 2005, p. 53).

    Como seres histórico-sociais, são seres únicos, marcados por características definidas a partir das relações pessoais e interpessoais, das construções de identidade e de sentimento de pertença, seja ao grupo familiar, social, étnico-racial, de gênero, de faixa etária, de orientação sexual, entre outros.

    Contudo, como produtor, reflexo e produto do meio em que vivem, muitos, praticam o que Freire (2001, p. 17-18) denomina como isolamento negativo, ou seja, fazem girar tudo em torno de si e de seus interesses, em uma postura individualista, egoísta, personificados como:

    É a solidão de quem, mesmo na presença de uma multidão, só vê a si, à sua classe ou grupo, em sua gulodice afogando o direito dos outros. É gente que quanto mais tem, mais quer, não importam os meios de que se serve. Gente insensível que junta à insensibilidade sua arrogância e malvadez; que chama as classes populares, se está de bom humor, “essa gente”, se de mau humor, “gentalha”.

    Compartilhar com tal postura individualista seria negar que estamos no mundo e com o mundo e para isso com os outros, significando-o e significando-se através das relações (FREIRE, 2001). Neste sentido, não cabe conceber o ser humano como mero objeto – ele se recusaria a aceitar, pois “[...] o anti-diálogo autoritário ofende a natureza do ser humano, seu processo de conhecer e contradiz a democracia” (FREIRE, 2001, p. 80).

    Ainda, destaca Freire (2006a, p. 90-91), “[...] dizer a palavra não é privilégio de alguns [...] Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais”.

    Para a tomada ou retomada da existência, para o protagonismo, Freire (2006a) indica o caminho: a relação dialógica com o outro. Um diálogo igualitário, que supõe que as falas e proposições de cada participante serão tomadas por seus argumentos e não pelas posições que ocupam (idade, profissão, gênero, classe social, grau de escolaridade etc.).

    O ser humano vai constituindo, assim, sua humanidade e conquistando o mundo, para libertar-se, constituir-se e reconstituir-se como ser responsável pela sua humanidade. Tarefa esta, realizada por meio da conscientização, ou seja, conscientizar-se como ser humano, significar e resignificar o mundo, compreender-se como sujeitos históricos.

Conhecimento: na óptica dos processos educativos

    O processo de conhecimento implica em uma busca permanente, mas também em curiosidade pela compreensão do objeto. Corroborando com as palavras de Freire (2005, p. 55) “[...] a curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele”.

    Contudo, alerta-nos o citado autor, uma curiosidade que parte da curiosidade ingênua, a qual, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita para a epistemológica.

    Na verdade, a curiosidade ingênua que, “desarmada”, está associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade e não de essência (FREIRE, 2005, p. 31).

    É o respeito pelo “saber de experiência feito”, resultante da curiosidade ingênua, mas também a consciência de sua necessária superação. Não se trata, então, apenas do conhecimento escolar, construído na escola. Trata-se também, de um “saber ingênuo”, de um saber popular que os educandos:

    [...] trazem consigo de compreensão do mundo, nas mais variadas dimensões de sua prática na prática social de que fazem parte. Sua fala, sua forma de contar, de calcular, seus saberes em torno do chamado outro mundo, sua religiosidade, seus saberes em torno da saúde, do corpo, da sexualidade, da vida, da morte, da força dos santos, dos conjuros (FREIRE, 2006b, p. 85-86).

    Deste modo, conhecer e aprender é um processo educativo não restrito ao ensino escolarizado e em uma escala crescente. Acreditar no contrário é, sem dúvida, calar uma imensa parcela da população.

    Se estivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas, nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação (FREIRE, 2005, p. 44).

    Freire (2005), relata sobre o conhecimento para além dos conteúdos, ou seja, o conhecimento para “pensar certo”, que supera o ingênuo, é um ato comunicante, de entendimento co-participado – “Só existe saber na invenção, na reinvenção, na busca inquieta, impaciente, permanente, que os homens fazem do mundo, com o mundo e com os outros” (FREIRE, 2006a, p. 67). Um pensar antidogmático, anti-superficial, um pensar crítico.

    Não há uma ruptura entre o “saber de experiência feito” e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, há sim uma superação.

    Ainda em relação ao saber, Fiori (1986, p. 3) aborda a conscientização como necessária à educação e compreende que estas se implicam mutuamente: “A conscientização é o ‘retomar reflexivo do movimento da constituição da consciência como existência’”.

    E ao produzir-se e reproduzir-se neste movimento, o ser humano constitui-se e assume sua existência: “Neste refazer-se consiste seu fazer-se e seu fazer” (FIORI, 1986, p. 3). Assim, a verdadeira educação requer participação ativa neste processo de constituição do ser humano: “Educar, pois, é conscientizar, e conscientizar equivale a buscar essa plenitude da condição humana” (FIORI, 1986, p. 3).

    Nesta busca, pela humanização, ao ser humano cabe assumir a responsabilidade de educar-se em comunhão, pois, os processos educativos se dão numa relação de mútua aprendizagem, do mais para o menos experiente e vice-versa, e não simplesmente em uma relação que um é educado pelo outro (DUSSEL, s/d).

    É importante destacar que ao falarmos sobre educação, estamos nos referindo a processos educativos que acontecem durante toda a vida, através do qual os seres humanos podem ter a oportunidade de tomar consciência da realidade em que estão inseridos, tornando-se capazes de refletir de maneira crítica sobre seu papel histórico e social.

Situados na América Latina

    Entendemos o contexto que estamos situados, a partir de uma América Latina marcada por relações de dominação, exploração e desumanização, desde os tempos de colonização.

    Para Ianni (1993), a formação da sociedade na América Latina se deu sempre através de uma relação de dominação, desde a época do colonialismo/escravagismo, onde se desenvolveu o sistema de castas, sistema este que implica em segmentos sociais marcados por barreiras rígidas, onde o proprietário, o “senhor”, sentia-se como conquistador e dispunha dos outros (índios, mestiços, negros, mulatos, entre outros) a mercê da sua vontade e comando. Após este período, desenvolve-se a sociedade de classes, que também é marcada por desigualdades sociais, econômicas, políticas, culturais, raciais e regionais.

    Dussel (s/d), ao fazer uma análise das relações na sociedade como um todo (lar, escola, trabalho), coloca que o processo de aculturação/dominação, no qual a cultura do outro deixa de ter valor perante os fundamentos da cultura dominante, pode estar presente nas relações mestre-aluno, médico-enfermo, engenheiro-população e outras mais, consideradas relações pedagógicas.

    Na sociedade contemporânea observa-se fatores marcantes dessas desigualdades, sendo frequente o estabelecimento de relações de domínio entre pessoas, grupos e segmentos da sociedade, onde alguns ao se verem como superiores acabam por desvalorizar o saber do “outro”, acreditando que pessoas de classes menos favorecidas, em especial, são desprovidas de cultura/saber/capacidade.

    Na relação com outras classes, como a de profissionais/mediadores, estas têm dificuldade de aceitar que “[...] as pessoas ‘humildes, pobres, moradoras da periferia’ são capazes de produzir conhecimento, são capazes de organizar e sistematizar pensamentos sobre a sociedade” (VALLA, 1996, p. 178). O cerne da questão, porém, é a necessidade de se reconhecer a cultura popular, com suas representações sociais e visões de mundo específicas, elaboradas segundo lógicas e categorias próprias. Ao ignorá-las ou desqualificá-las, corre-se o risco de não entendê-las em sua essência, pois, as “classes subalternas” demonstram seus conhecimentos e eles são importantes para que se tenha mais clareza da realidade. É necessário “[...] aceitar o fato de que o conhecimento é produzido também pelas classes subalternas” (VALLA, 1996, p. 187).

    Nesse sentido, Fiori (1986, p. 3) que entende a consciência como existência e história, num movimento em que o homem se constitui e assume, ao produzir-se e reproduzir-se, num refazer-se que consiste seu fazer-se e seu fazer, apresenta a emergência de uma autoconsciência crítica dos povos da América Latina, sendo para isso,

    [...] de vital importância uma reflexão comprometida com a práxis da libertação, que nos permita captar, com lucidez e coragem, o sentido último deste processo de conscientização. Só assim será possível repor os termos dos problemas de uma educação autenticamente libertadora: força capaz de ajudar a desmontar o sistema de dominação, e promessa de um homem novo, dominador do mundo e libertador do homem.

    Pois, “[...] inclusive a mais feroz dominação não é capaz de coisificar totalmente o homem” (FIORI, 1986, p. 6). “As estruturas podem aprisionar o homem ou propiciar sua libertação, porém, quem se liberta é o próprio homem” (FIORI, 1986, p. 3), quando toma sua existência em suas mãos, quando protagoniza sua história.

    Por mais que se queira esconder, todos sabemos muito bem que a história de nosso povo é cheia de lutas e de resistências: desde as revoltas indígenas aos quilombos, das lutas pela libertação colonial às revoltas contra a escravidão e a tirania, até as greves dos trabalhadores no início e por todo o século XX (LARA, 2003, p. 32).

Pesquisando na perspectiva de práticas sociais e processos educativos

    A denominação Práticas Sociais e Processos Educativos, para a perspectiva de pesquisa em Educação que estamos apresentando, não é fortuita, advém do entendimento de que é na participação em práticas sociais, que os seres humanos formam-se para a vida em sociedade, que ocorrem as aprendizagens, mediatizadas pelos processos educativos.

    Práticas sociais decorrem de e geram interações entre os indivíduos e entre eles e os ambientes natural, social, cultural em que vivem. Desenvolvem-se no interior de grupos, de instituições, com o propósito de produzir bens, transmitir valores, significados, ensinar a viver e a controlar o viver, enfim, manter a sobrevivência material e simbólica das sociedades humanas (OLIVEIRA et al., 2009, p. 4).

    Esta definição nos leva a compreender que toda vez que se estabelece uma relação entre pessoas ou grupos de pessoas, que pode ocorrer em diversas situações e lugares, com os mais variados propósitos (econômicos, políticos, educativos, entre outros), encontramos aí uma prática social.

    Este encontro de pessoas acontece com a finalidade de atender a uma diversidade de objetivos, tais como: repassar conhecimentos, valores e posturas diante da vida; suprir necessidades de sobrevivência; controlar ou expandir a participação política de pessoas e comunidades; propor e/ou executar transformações na estrutura social ou articular-se para mantê-las; garantir direitos em geral, ou seja, as práticas sociais podem tanto estar vinculadas ao propósito de transformar realidades injustas e opressoras, como podem estar voltadas para a manutenção de iniquidades (OLIVEIRA et al., 2009).

    Assim sendo, muitas vezes, os objetivos a que se propõem e o tipo de interação que acontece entre as pessoas ou grupos, dentro de uma prática social, estarão diretamente influenciados pelas características de organização da sociedade, podendo resultar na manutenção de relações de dominação ou, em sentido oposto, na busca de alternativas para superá-las.

    De acordo com Freire (2006a, p. 32), a partir do reconhecimento da desumanização como realidade histórica é possível pensar a humanização como possibilidade: “[...] humanização e desumanização, dentro da história, num contexto real, concreto, objetivo, são possibilidades”. Assim, a partir da constatação de que a humanização é uma vocação negada na injustiça e na violência dos opressores, Freire (2006a, p. 32) acredita que esta vocação é “[...] afirmada no anseio de liberdade, de justiça, de luta dos oprimidos, pela recuperação de sua humanidade roubada”.

    A partir dessas colocações, podemos dizer que muitas práticas sociais buscam a superação de uma condição desumana, de uma realidade opressora, na qual apenas alguns se vêem como pessoa humana e os outros são vistos como “coisas”. E nesta superação é necessário que os oprimidos ultrapassem este estado de quase “coisas”, buscando reconstruir-se como humanos (FREIRE, 2006a).

    Ao encontro desta exposição, Dussel (s/d), a partir da construção de um conhecimento filosófico e científico enraizado na experiência, na cultura, na história e nas utopias dos povos periféricos, reconhecendo e apresentando a dominação sofrida pelos povos da América Latina, a partir da opressão – pela matança, pela aculturação –, indica a tomada de consciência para a ruptura, a libertação.

    Torna-se emergente, então, o desenvolvimento de uma cultura autêntica que seja participação ativa, verdadeiro aprendizado, comprometido com o processo histórico cultural, por isso mesmo conscientização, cultura que se sabe, saber que critica e promove, em um processo educativo em que aprender não seja receber, repetir e ajustar-se, mas sim participar, desadaptar-se e recriar (FIORI, 1986).

    Contudo, em uma cultura alienada, amplamente disseminada em nossa sociedade, passando a ser um reflexo ideológico, mitificante, da dominação das consciências, o ser humano desumaniza-se, porque se conforma, porque renuncia à historicização. O aprendizado se transforma em domesticação, o ensino transmite o feito e impõe os valores dominantes. A educação se define como adaptação, articulada na funcionalidade do sistema (FIORI, 1986).

    O condicionamento, a domesticação de uma ideologia fatalista embutida no discurso neoliberal, aplicada preponderantemente às classes populares, têm a capacidade de penumbrar a realidade, de nos “miopizar”, de nos ensurdecer, de fazer a muitos de nós aceitar docilmente discursos fatalistas neoliberais, que proclamam, por exemplo, “[...] ser o desemprego no mundo uma desgraça do fim do século” (FREIRE, 2005, p. 126).

    Tem-se então a constituição de dois “pólos”, de um lado os que aprisionam, oprimem e dominam e, do outro, os que são aprisionados, oprimidos e dominados.

    Contudo, o verdadeiro processo educativo requer a reivindicação, para o ser humano, da posição de sujeito do processo histórico, valorizando-o, o que requer, para isso, a opção e a luta – a opção pelo ser humano e a luta por sua desalienação (FIORI, 1986).

Considerações

    Por todo o exposto, podemos afirmar que a visão de mundo que considera a existência das práticas sociais e, como parte delas, os processos educativos, que reconhece a diversidade de culturas, experiências e histórias presentes na sociedade, abre novas perspectivas para pensar a pesquisa em educação.

    Desta forma, para entender “o quê” e “como” as pessoas aprendem, a escola, em suas práticas escolarizadas, deixa de ser o único foco de pesquisa. Ampliam-se as possibilidades de realizar investigações que tenham como objetivos “[...] compreender como e para que as pessoas se educam ao longo de suas vidas, em situações não escolarizadas, assim como o de apreender a influência desses processos nas aprendizagens escolares” (OLIVEIRA et al., 2009, p. 1).

    Nestas investigações o compromisso é de pesquisar “com” e “entre” pessoas e grupos, e não “sobre” estes, buscando o diálogo, o respeito ao outro, assumindo uma postura de amorosidade, simplicidade, colaboração. Nesta perspectiva os participantes da pesquisa são vistos como colaboradores, para que juntos, pesquisadores e comunidade, possam compreender tanto as experiências de marginalização, quanto as de resistência e luta (OLIVEIRA et al., 2009).

    Assim, tornar-se pesquisador é parte do tornar-se pessoa cada vez mais humanizada e cidadão sempre mais comprometido, por isso requer ações vinculadas aos interesses e necessidades de uma realidade cultural e social que, no caso de nosso continente, está reclamando uma intervenção que estabeleça relações justas.

    Cidadãos são mulheres e homens que tomando a história dos grupos a que pertencem nas mãos, empreendem luta para que todos, nas suas particularidades sejam reconhecidos, aceitos e respeitados, e buscam garantias para participar das decisões que encaminharão os destinos da sua comunidade, da nação onde exercem sua cidadania, do continente onde vivem.

    Assim sendo, em nosso entendimento, a formação de pesquisadores que tenha na educação sua problemática central, precisa considerar a amplitude da existência e assumir a diversidade das trajetórias dos que se envolvem em processos educativos, seja como aprendizes, como acompanhantes ou sujeitos da investigação.

Referências

  • ALVES-MAZOTTI, A. J. Relevância e aplicabilidade da pesquisa em educação. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 39-50, jul. 2001.

  • ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: buscando rigor e qualidade. Cadernos de Pesquisa, n. 113, p. 51-64, jul. 2001.

  • BORGES, C. M. F. Formação e prática pedagógica do professor de educação física: a construção do saber docente. Reunião da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, 19., 1996, Caxambu. Anais... Belo Horizonte: ANPEd, 1996.

  • DUSSEL, E. D. A pedagógica latino-americana (a Antropológica II). In: DUSSEL, E. D. Para uma ética da Libertação Latino Americana III: Erótica e Pedagógica. São Paulo: Loyola; Piracicaba: UNIMEP, s/d. p. 153-281.

  • FIORI, E. M. Conscientização e educação. Educação & Realidade, v. 11, n. 01, p. 03-10, jan./jun. 1986.

  • FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 43. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006a.

  • FREIRE, P. Pedagogia da esperança: um reencontro coma pedagogia do oprimido. 13. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2006b.

  • FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. 31. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

  • FREIRE, P. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho D’Água, 2001.

  • GATTI, B. A. Pesquisa, educação e pós-modernidade: confrontos e dilemas. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 126, p. 595-608, dez. 2005.

  • GATTI, B. A. Produção da pesquisa em educação no Brasil e suas implicações socio-político-educacionais: uma perspectiva da contemporaneidade. Conferência de Pesquisa Sociocultural, 3., 2000, Campinas. Anais... Campinas, 2000.

  • IANNI, O. Interpretações da história. In: IANNI, O. O labirinto latino-americano. Petrópolis: Vozes, 1993. p. 9-39.

  • LARA, F. Trabalho, educação e cidadania: reflexões a partir de educação entre trabalhadores. Rio de Janeiro: CAPINA/CERIS/MAUAD, 2003.

  • LÜDKE, M.; CRUZ, G. B. Aproximando universidade e escola de educação básica pela pesquisa. Cadernos de Pesquisa, v. 35, n. 125, p. 81-109, mai. 2005.

  • NÓVOA, A. Os professores e as histórias da sua vida. In: NÓVOA, A. (Org.). Vidas de professores. Porto: Porto Editora, 1995.

  • NUNES, C. M. F. Saberes docentes e formação de professores: um breve panorama da pesquisa brasileira. Educação e Sociedade, v. 22, n. 74, p. 27-42, abr. 2001.

  • NUNES, D. R. P. Teoria, pesquisa e prática em Educação: a formação do professor-pesquisador. Educação e Pesquisa, v. 34, n. 1, p. 97-107, abr. 2008.

  • OLIVEIRA, M. W. de; GONÇALVES E SILVA, P. B.; GONÇALVES JUNIOR, L.; GARCIA-MONTRONE, A. V.; JOLY, I. Z. Processos Educativos em práticas sociais: reflexões teóricas e metodológicas sobre pesquisa educacional em espaços sociais. In: REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 32., 2009, Caxambu. Anais... Caxambu: ANPEd, 2009. p. 1-17.

  • VALLA, V. V. A crise de interpretação é nossa: procurando compreender a fala das classes subalternas. Educação & Realidade, v. 21, n. 02, p. 177-191, 1996.

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Búsqueda personalizada

EFDeportes.com, Revista Digital · Año 18 · N° 187 | Buenos Aires, Diciembre de 2013
© 1997-2013 Derechos reservados