efdeportes.com

Cultura e Alimentação: uma análise etnográfica de práticas alimentares

Culture and Power: an ethnographic analysis of dietary practices

Cultura y Alimentación: un análisis etnográfico de las prácticas alimenticias

 

*Doutorando em Ciências Sociais CPDA, UFRRJ

**Mestre em Política Social pela UFF, RJ

***Mestrando em Política Social pela UFF, RJ

(Brasil)

Daniel Coelho de Oliveira*

daniel.coelhoo@yahoo.com.br

Thiago Augusto Veloso Meira**

thiagomeira2@hotmail.com

Vagner Caminhas Santana***

caminhasdokiau@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          Iremos analisar o trabalho dissertativo de Oliveira (2009). A proposta do autor é a de compreender a alimentação da tribo Kaingáng localizada na Terra Indígena (TI) Xapecó, a partir de uma perspectiva antropológica, de forma que seja possível contemplar os aspectos práticos e simbólicos dos rituais e as práticas alimentares da tribo. Logo de início, é feita uma diferenciação entre comida e alimento, entendendo que a comida refere-se aos aspectos culturais da alimentação, e o alimento estaria ligado à satisfação de necessidades fisiológicas, enquanto a comida se refere às noções de corpo e paladar com culturalmente constituídos, o alimento ao corpo estritamente biológico. A comida seria social e culturalmente significativa e, portanto, distinta da experiência estritamente fisiológica de alimentar-se.

          Unitermos: Cultura. Alimentação. Comida.

 

Abstract

          We will review the dissertation work of Oliveira (2009). The author's proposal is to understand the power of the tribe Kaingáng located on Indian Land (IT) Xapecó, from an anthropological perspective, so that it is possible to contemplate the practical and symbolic rituals and dietary practices of the tribe. Early on, a differentiation is made between food and nourishment, understanding that food refers to the cultural aspects of food, and food would be linked to the satisfaction of physiological needs, while food refers to the notions of body and palate with culturally constituted the food to the body strictly biological. The food would be socially and culturally significant and therefore distinct from the strictly physiological experience of eating.

          Keywords: Culture. Feeding. Food.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 184, Septiembre de 2013. http://www.efdeportes.com/

1 / 1

    Na dissertação, é trabalhado o conceito de auto-atenção, em seu sentido mais amplo. Neste, inserem-se os ritos, os casamentos, a organização de parentesco, a cosmologia, as narrativas míticas, as práticas de subsistência, a distribuição de comida, entre outras práticas dos Kaingángs. Neles, ficam expressas as técnicas de auto-atenção cujo objetivo é a manutenção e reprodução do corpo social da tribo.

    Que os alimentos são essenciais para a subsistência todos nós sabemos. Mas, dentro de alguns contextos rituais, eles podem desempenhar outras funções importantes, ou seja, os bens são capazes de estabelecer e manter relações sociais. Douglas e Isherwood (2009) afirma que não limitar o foco de visão ao uso prático dos bens seria como perceber as escolhas individuais ou grupais como formas de classificação e o ato de consumir como um ritual. Com argumento semelhante, Lévi-Strauss (1989) ressalta que, mais do que bons para comer, certos produtos são bons para pensar. Um objeto pode ser bom para comer, abrigar ou vestir, mas sua maior virtude está na capacidade de apresentar uma face visível da cultura. Dessa forma, entende-se que o debate sobre alimentação em estudos etnográficos pode apontar importantes questões sobre a relação entre conhecimento tradicional e conhecimento científico.

    Interessa-nos, neste Paper, entender como o autor analisa os aspectos sociais e culturais da alimentação dos Kaingáng, no que diz respeito às práticas sociais de compartilhamento de comida e como ele observa as representações nativas sobre corpo e saúde. Na introdução, o autor destaca: “Buscarei compreender essas práticas e representações utilizando-me da cosmologia e dos discursos nativos.” (OLIVEIRA, p.04). Ao utilizar o conhecimento nativo, o trabalho capta a maneira como ocorre a construção de pessoas e a fabricação dos corpos nas sociedades indígenas, temas bem recorrentes nas cosmologias do povo estudado.

    Oliveira (2009) utiliza baseada no método de George Marcus (1995), denominado “follow the thing”, ou seja, ele “seguiu a comida” em vários espaços, como em eventos em que acontecia comensalidade, como festas religiosas, tanto evangélicas quanto católicas, aniversários, jogos de bocha e futebol, merenda escolar e refeições em diferentes residências.

    A leitura do trabalho de Oliveira (2009) será realizada a partir de duas perspectivas. Primeiramente, iremos apresentar como o autor observa o conhecimento nativo, como ele relaciona o mesmo com o conhecimento técnico científico sobre alimentação. E, depois, analisar a diferenciação que ocorre dentro do próprio “sistema nativo”, ou seja, como o conhecimento foi descrito. A proposta de analisar um trabalho sobre ritos e práticas alimentares de uma comunidade indígena, permite também relacionar este tema com o debate sobre saber tradicional, ciência e a própria idéia de biodiversidade, questões estas que serão abordadas na parte final do paper.

Da origem as tradições alimentares atuais

    Quem são os Kaingáng? Oliveira (2009) destaca que os Kaingáng são uma etnia indígena estabelecida nas regiões sul e sudeste do Brasil. Por volta do início do século XIX inicia contatos permanentes e intencionais entre brancos e Kaingáng. Mas um século depois ocorre um grande conflito na região. O Governo brasileiro, para estimular a colonização dessa região, concedeu terras a empresas nacionais e estrangeiras, dentre elas a Brazil Railway Co., responsável pela construção da Ferrovia São Paulo – Rio. A companhia recebeu como pagamento pela estrada de ferro, terras ao longo da ferrovia. Porém as terras concedidas, já eram habitadas por milhares de pessoas, dentre essas fazendeiros e posseiros que não aceitaram facilmente ceder suas terras às empresas colonizadoras, disputa que culminou na Guerra do Contestado. Uma figura central da Guerra do Contestado foi o monge São João Maria, que lutou contra a expropriação das terras e sobre o qual existem diversas histórias de curas e milagres entre os Kaingáng. Os Kaingáng não aceitaram passivamente a perda de seu território, desferindo ataques frequentes aos colonizadores. Nesse período os índios são retirados à força de suas terras, seja pelas armas dos jagunços profissionais, contratados pelas companhias colonizadoras, ou pela coerção da polícia e da justiça. Com o intuito de apaziguar os conflitos entre indígenas e agentes colonizadores, assim como a pressão da sociedade civil organizada e comunidade internacional, as quais já criticavam o massacre da população indígena, são criadas em 1902 e 1903 respectivamente as áreas indígenas de Palmas e Xapecó. (OLIVEIRA, 2009)

    O trabalho dissertativo também demonstra que a terra dos Kaingáng da TI Xapecó foi bastante explorada ao longo das últimas décadas do século XX. Conseqüentemente, o cotidiano nas diversas aldeias foi influenciado pela chegada das frentes de expansão capitalista, dos produtos industrializados e sua inserção na política regional. Devido à condição de ruína ambiental das terras, os indígenas alteraram o que eles denominam de “sistema dos antigos” ou o “sistema do índio”, fortemente baseado na caça, pesca, coleta e agricultura de subsistência. Ou seja, apesar das dificuldades o passado é compreendido como o tempo “bom”. Vejamos como o autor utiliza das falas dos entrevistados para falar do passado:

    A gente comia torresmo daquelas carnes. (...) Tudo plantava, milho branco, milho cateto, palha roxa, milho amarelo. Hoje não plantam mais, vem de saquinho não sei da onde... Viu como mudou? (...) Plantava milho, batata-doce, amendoim, feijão, moranga, mandioca, melão, melancia, nós não comprava essas coisas. Tinha purungo cheio de mel de abelha, do mato. (D. Emiliana, novembro de 2008) (OLIVEIRA, 2009. p.61).

    Seria possível dizer que práticas alimentares estariam comprometidas, que estaria em curso a mudança do habitus desta população. Na visão de Bourdieu (1983, p.61), o habitus é um saber incorporado, “Um sistema de disposições duráveis, estruturáveis e estruturantes, com predisposição a funcionar com estruturas estruturantes, isto é como princípio gerador e estruturador de práticas e representações”; produto de uma aquisição, feita através da família, do convívio entre grupos sociais e no sistema de ensino. Em Elias (1994), habitus é entendido como um saber incorporado, pensado no intuito de contornar a dicotomia entre indivíduo/sociedade. Habitus compreende, portanto, os comportamentos individualizados e os partilhados pelos membros dos grupos. Elias (1994) diz que, apesar de o conceito de habitus remeter ao passado, ele não se caracteriza como algo fixo ou estático, mas é mutável com o passar do tempo.

    Conforme Wacquant (2007), a renovação sociológica proposta por Bourdieu através do conceito de habitus transcende a oposição entre objetivismo e subjetivismo. O habitus passa a ser uma visão mediadora, que ajuda a romper com a dualidade do senso comum, entre indivíduo e sociedade, ao captar a interiorização da externalidade, e a externalidade da interioridade, ou seja, a maneira que a sociedade se torna depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis. O habitus é capaz de criar um princípio de socialização e de individualização: socialização devido ao fato de se terem categorias de juízo e de ação, originárias da sociedade, e que são compartilhadas por todos que foram submetidos a condições e condicionamentos sociais similares. Assim, seria possível falar em habitus de consumo tradicional, ou mesmo habitus Kaingáng. Existe, por outro lado, a individualização, porque cada pessoa possui uma trajetória de localização única no mundo, internalizando esquemas estruturados por meios sociais passados e estruturantes de ações e representações presentes.

    Os dados etnográficos apresentados demonstram que as mudanças econômicas, ecológicas, sociais e culturais (culinária) estão estritamente relacionadas à mudança no habitus da comunidade. A população Kaingáng da TI Xapecó lembra o wãxi como um tempo com mais fartura do que o presente, no qual a comida era “custosa para conseguir”. Utilizando a fala dos mais velhos, o que, de certa forma, dá mais legitimidade ao trabalho, o autor aponta que a comida atual é vista como “fina” e “contaminada”, ela acarreta conseqüências para os corpos dos jovens e das crianças. É corrente a apresentação no discurso de que os jovens estão mais “fracos”, com a “natureza fraca”.

    Se, por um lado, a comida não consegue sustentar os corpos, por outro, também os corpos não estão acostumados com a comida. É que o corpo dos Kaingáng não seria acostumado com a comida fóg1. Para explicar a situação, uma das entrevistadas argumenta: “nas cidades a vacina para gripe é dada apenas às pessoas acima dos 60 anos, enquanto na TI é aplicada em todas às pessoas, pois os Kaingáng não estariam acostumados a essa doença, sendo necessário vacinar todos.” (OLIVEIRA, 2009. p.74)

    Em pesquisa realizada na mesma região Diehl (2001) aponta a dieta com um ponto essencial da cultura Kaingáng. A dieta é central na etiologia das doenças e também relevante no uso dos recursos terapêuticos. Muitos indígenas Kaingáng, indicam os alimentos como causadores de determinadas doenças. Desta forma, a comida moderna, comprada na cidade, é vista como a principal responsável pela natureza fraca dos índios está portanto na origem das doenças. Os índios entrevistados pela autora são unânimes ao destacarem a necessidade de cumprir determinadas regras alimentares, principalmente referentes ao uso do “remédio do mato”. É interessante notar que a utilização concomitante do “remédio do mato” e do medicamento não era recomendada, ou seja, dois “saberes” diferentes são incorporados a regra de dieta dos Kaingáng.

    Diehl (2001) também ressalta que há uma percepção de eficácia por parte dos profissionais da saúde, baseada em um instrumental da racionalidade biomédica, consequentemente, pouco permeável à inclusão de outras racionalidades que poderiam observar eficácia de “produtos do mato”. Está postura está ligada à antiga idéia de que as “etnomedicinas” não possuem uma lógica médica, sendo de caráter mágico-religioso, enquanto a biomedicina é científica, moderna e progressista.

    De acordo com Oliveira (1996) apud Diehl (2001), a dieta Kaingáng está diretamente relacionada com o cuidado como o corpo. Suas regras envolver restrições alimentares, com de certas carnes e gordura de porco, a bebidas, de forma especial as alcoólicas. Na visão dos Kaingáng, existem grandes diferenças entre a alimentação do “tempo antigo” e do “tempo atual”, o que demonstra que o contato interétnico teve impacto sobre o grupo. Os mais jovens são vistos como fracos porque comem comida contaminada de os animais são criados à força sob ração e vacinados. No tempo antigo os animais eram criados soltos, conforme a sua própria natureza.

    Ao longo do texto, é evidenciado, várias vezes, a diferença entre o antigo e tradicional e o sistema de alimentação atual.

    “As crianças já vêm fracas de natureza. Hoje pra nascer um nenê, dependendo do lugar tem que ir na mão do médico, parto normal já é bem pouco que acontece na reserva indígena. Antigamente quando ficava grávida, com 3 meses já começava a tomar chazinho do mato. A primeira comida que dava pras crianças era canjica de pishé, depois dos 9 meses apenas, bem pouquinho, senão estraga o intestino. Sopa da canjica firma o intestino da criança. Era assim, agora não é mais, dão papá de bolacha, dão leite, dão coisa que nem sabe o que é (Dona Emiliana, novembro de 2008). (OLIVEIRA, 2009. p.76)

    Oliveira (2009) não se limita a analisar a dicotomia comida “forte” versos “fraca”, “natural” versos “industrializada”, ou “plantada” versos “comprada”. Também aparecem situações em que é preciso fazer dieta para curar alguma doença. Na linguagem nativa captada pelo autor: há a “comida enxuta”, ideal para períodos de doença; já a “comida molhada” é proibida em situações de doença contagiosa, porque dificultaria a cura, de acordo com o saber local.

    Na dissertação, também é possível verificar a oposição entre o saber tradicional da comunidade e o conhecimento científico dos médicos. Por exemplo, através dos cuidados alimentares que os pais devem tomar em relação ao recém-nascido e a si mesmos quando nasce uma criança. Trata-se de uma dieta que tem início com a gestação: “... a gestante deve começar a tomar uma colher de sopa de chá de guarirova por dia, sendo que no dia do nascimento deve ser tomado “um capão” do chá, porque “dá suador”. (OLIVEIRA, 2009 p.78). O pesquisador é enfático ao realizar o julgamento do sistema de alimentação do nativo.

    “Notemos, portanto, a dicotomia “comida enxuta” e “comida molhada” presente em diferentes casos de dieta, sendo que a comida molhada algumas vezes está associada à comida “fraca”, do branco, e não deixaria “enxugar” a doença. Em outros casos, segundo a etiologia nativa, a pessoa que esteja doente, portanto “fraca”, não pode comer comida muito “forte”, principalmente à noite, pois é muito pesada para seu corpo fraco. Houve o caso de uma pessoa que operou o apêndice e durante o período de recuperação comeu carne de porco à noite, comida considerada “forte”, tendo assim uma recaída. Apesar do consumo de comida forte criar resistência às doenças, essa não pode ser consumida quando a pessoa está com o corpo debilitado ou doente. Quando a pessoa está tomando vehn kagta, dependendo do remédio, não se pode consumir vinagre, pois este eleva a temperatura do Organismo.” (OLIVEIRA, 2009. p.79)

    O termo “égoro” é designado para descrever “comidas do mato”, geralmente folhas utilizadas em saladas. O autor procura, no trabalho dissertativo, explorar os conceitos nativos dentro da própria lógica de entendimento da comunidade. Para atingir esse objetivo, boa parte do trabalho é dedicada à descrição do processo de produção ou colheita e preparo desses alimentos. Podemos verificar tal recurso na passagem em que é descrito como as comidas antigas são utilizadas como remédio.

    “O Fãe, ou caraguatá, é uma fruta considerada remédio pra amarelão, bronquite, asma, sendo também indicado em casos de reumatismo. Segundo Dona Diva para se fazer o remédio é preciso moer e fervê-lo, fazendo um xarope. Outros “coquinhos” diversos são também descritos como bons para a saúde, pois “tem vitaminas”. O Pyrfé (urtigão) é considerado bom pra bexiga, rim, vesícula, pressão alta e hipertensão. A samambainha (povéj grã) faz bem para as veias, nervos e circulação. Suas propriedades são associadas às características morfológicas da planta, que se parece com veias. O radite do mato é também associado às suas características, sendo considerado “bom para a anemia”, pois “tem veias”. (p.80)

    Ao demonstrar a associação de plantas nativas com remédios ocidentais, o autor tenta explicitar que a comunidade sabe da existência de dois distintos sistemas de conhecimento. Segundo ele, “alguns curadores incorporaram ‘remédios da farmácia’ no preparo de seus vehn kagta (remédios do mato).” (OLIVEIRA, 2009. p.82). Em sua visão, o sistema médico nativo é associado ao discurso biomédico. Dentro da perspectiva que valoriza o alimento como possuidor de propriedade terapêutica, é realizada uma divisão entre: comida forte e comida fraca.

    A comida antiga é vista como “forte” e boa para a saúde, enquanto a comida atual é classificada com “fraca” e contaminada. A comida é apontada como uma forma de auto-atenção do indivíduo. As comidas do passado são as únicas capazes de fortalecer os corpos, são resistentes às doenças, sem contar as diversas propriedades terapêuticas das mesmas.

    Para Haverroth (1997) apud Diehl (2001), os Kaingáng incorporam com facilidade o conhecimento e uso das plantas tidas como medicinais. Muitas plantas forma introduzidas no período recente. Neste contexto aparece a Pastoral da Saúde como agente externo, que introduziu e assimilou novas plantas e novas formulações de remédios.

    A maioria dos remédios são produzidos por “plantas mato”, porém, os curadores também elaboram medicamentos a partir de animais ou suas partes. Por exemplo, há alusão a utilização do chifre de boi ou de cabrito. Para produzir o remédio, o chifre é queimado e raspado para retirar as cinzas, que são colocadas em água para tomar em jejum, uma ou mais colheres. Não se faz chá das cinzas muito forte, pois além de matar a lombriga e a pessoa. Gorduras retiradas de diferentes animais também são utilizadas para aplicar sobre a pele para curar feridas.

    A pesquisa realizada por Oliveira (2009) foi capaz de demonstrar como os sistemas nativos de classificação são constituídos. Por exemplo, em relação aos modos de produção, ocorrem transformações e persistências dentro da comunidade indígena no preparo e consumo do alimento; é interessante pensarmos em termos de transformação e persistência. Oliveira (2009) não utiliza noções aculturalistas, que percebem a cultura das sociedades não-ocidentais como sendo simplesmente substituídas por valores ocidentais. Durante a pesquisa de campo, ele percebeu relações curiosas entre a dicotomia “comida tradicional” e “comida introduzida”. Por exemplo, ao falar de “comidas antigas”, um dos primeiros pratos citados pelos nativos é o famoso “bolo na cinza”. Esse bolo é feito com farinha de trigo, um ingrediente do “povo branco”, sendo utilizado para o preparo de um prato tradicional. Em outras palavras, mesmo a relação comida “tradicional” versos “introduzida” é relativizada pelos nativos. Veremos agora como este “saber tradicional” pode ser relacionado com a idéia de ciência e biodivesidade.

Saber tradicional, ciência e biodiversidade

    Na visão de Arruda & Diegues (2001, p.32) conhecimento tradicional é entendido como um “... conjunto de saberes e saber-fazer a respeito do mundo natural e sobrenatural, transmitido oralmente, de geração em geração.” Ou seja, nestas comunidades, não existe uma classificação dualista, ou qualquer linha divisória entre o “natural” e “social”. Descolla (1997) apud Arruda & Diegues (2001, p.32) indica que para os Achuar da Amazônia, a floresta e as roças, não se constituem lugares onde são retirados os meios de subsistência, mas sim palco de uma “sociabilidade sutil”, de seres que se distinguem dos humanos somente pela heterogeneidade das aparências e pela ausência de linguagem. Para eles, os humanos podem tornar-se animais e vice-versa. Em outras palavras, as cosmologias indígenas amazônicas não fazem distinções ontológicas entre humanos, de um lado, e um grande número de animais e plantas de outro. Desta forma, é essencial ter em conta que, na cosmologia indígena, a “natureza” e outros conceitos como “ecossistema”, tal como a ciência ocidental entende, não são domínios autônomos e independentes, mas fazem parte de um conjunto de inter-relações.

    A importância do conhecimento tradicional das populações indígenas também é destacada por Lévi-Strauss (1989), ele aponta a existência de técnicas muitas vezes complexas, que possibilitam, por exemplo, converter raízes tóxicas ou grãos em alimentos. De acordo com Lévi-Strauss (1989), nestes grupos humanos, há uma atitude científica, uma curiosidade assídua e alerta, uma vontade de conhecer pelo prazer de conhecer, pois apenas uma fração das observações e das experiências poderia fornecer resultados práticos de utilização imediata.

    A análise realizada por Oliveira (2009) ressalta que não existem diferenças acentuadas entre as formas pelas quais o povo Kingáng produz e expressam seu conhecimento sobre o plano alimentar do mundo natural e expressões desenvolvidas pela ciência moderna.

    Na concepção dos Kaingáng é possível pensar a biodiversidade como pertence tanto ao domínio do natural como do cultural e intimamente ligada as suas práticas alimentares. Já a biodiversidade tal como vê a ciência é fruto exclusivo da natureza, não pertence a lugar nenhum senão a uma teórica teia de inter-relações e funções. A melhor tradução para o conhecimento dos Kaingáng seria a idéia de “etnociência”. Os argumentos de Oliveira (2009) resgatam está idéia. Conforme Arruda & Diegues (2001, p.36) este enfoque “... parte da lingüística para estudar os saberes das populações humanas sobre os processos naturais, tentando descobrir a lógica subjacente ao conhecimento humano do mundo natural, as taxonomias e classificações totalizadora”.

Considerações finais

    Analisamos aqui um trabalho concluído, o que Latour (2000) chama de “ciência pronta”. Para que os argumentos expostos por Oliveira (2009) saíssem vencedores, ele precisou cercar-se de aliados poderosos (instrumentos de pesquisa de campo, literatura, referências), de modo que se torna difícil argumentar contra suas proposições. Na dissertação, é possível verificar o resgate de importantes referências que buscam dar legitimidade ao trabalho.

    Para maior legitimidade de seu estudo, Oliveira (2009) resgata outros trabalhos que abordaram a mesma temática. Um dos seus pares é o trabalho de Sergio Batista da Silva (2002) que realiza uma etnografia com os Kaingáng do Rio Grande do Sul. De forma análoga, o pesquisador gaúcho também fez associações de propriedades terapêuticas com características morfológicas dos “remédios do mato”. Também são citados trabalhos de Almeida (1998), Aquino (2008), Crépeau (1997), Haverroth (1997), entre outros. Todos “arregimentados” como aliados, conforme termo de Latour (2000), e colaboram para elevar o status do trabalho construído por Oliveira (2009) a um patamar “científico”.

    Logo na introdução do trabalho Oliveira (2009) destaca que já participou de outros estudos etnográfico, e o presente trabalho dissertativo foi resultado da inserção em um projeto intitulado “Projeto Avaliação do modelo de atenção diferenciada aos povos indígenas: os casos Kaingáng (Santa Catarina) e Munduruku (Amazonas).” Neste sentido, entende-se que a delimitação temporal da pesquisa e a explicitação dos principais colaboradores no processo são essenciais para o leitor ter informações para julgar o trabalho. Latour (2000) já dizia que o fato científico é “construído” e que, para entendê-lo, é necessário entender como se deu esta construção, quais os personagens participantes, as relações entre eles.

    Se colocarmos a proposta de Latour (2000) como válida e entendermos que todo fato científico é construído a partir de uma rede de associações, a qual transforma recursos dispersos em uma teia que parece estender-se por todo lugar, será possível entender que, dentro da extensa rede de pesquisa, há vários nós. Os índios, o pesquisador, os não-índios, o material utilizado na pesquisa de campo, como gravadores, máquinas fotográficas2, os avaliadores do trabalho dissertativo, os autores que compõem a referência bibliográfica, enfim, sem a rede seria impossível a construção do processo de pesquisa.

    Vimos que a partir das lentes de Oliveira (2009) a cultura Kaingáng pode ser vista como padrão possível de significados herdados do passado, ao mesmo tempo em que é um abrigo para as necessidades interpretativas do presente. Conforme Douglas e Isherwood (2009, p.112), “Os rituais são convenções que constituem definições públicas visíveis. Antes da iniciação, havia um menino, depois dela, um homem; antes do rito do casamento, havia duas pessoas livres, depois dele, duas reunidas em uma”. Viver sem rituais é viver sem significados claros e, possivelmente, sem memórias. Por isso, tanto para sociedades com a Kaingáng quanto para nós, os rituais servem para conter a flutuação dos significados de suas práticas.

    A dissertação de Oliveira (2009) sobre os Kaingáng apresenta de forma clara todo um escopo de conhecimento deste povo. Não se trata de um conhecimento estático, talvez visto de fora, possa ser compreendido como “Senso comum” conforme a definição de Souza. Poderia ser entendido com um “saber” que passou por intensas metamorfoses ao longo do tempo. Ele apresenta uma análise sobre lógicas diferentes de conhecimento. O povo Kaingáng, consegue expressar através do “senso comum” um conjunto organizado se saberes alimentares; Clifford Geertz (2006) demonstra que o senso comum, embora não esquematizado e não organizado, se trata de “mais um” sistema cultural, uma forma de conhecimento como a arte, a religião, a ciência, a filosofia, entre outras. Ele está presente em todas as sociedades, sejam elas as mais modernas ou mesmos as tradicionais.

    O grau de desenvolvimento de sistemas planejados e organizados de pensamento e ação que difere as sociedades tradicionais das modernas. É possível considera o senso comum como um conjunto organizado de pensamento deliberado resultante de uma apreensão da realidade efetuada por uma sabedoria coloquial que julga ou avalia esta mesma realidade. O trabalho de Oliveira (2009) consegue se afasta a idéia de que o conhecimento Kaingáng é um conjunto de meras opiniões resgatadas da experiência, sem qualquer tipo de reflexão.

    Para finalizar o instigante debate sobre os ritos e práticas alimentares do povo Kaingáng, devemos resgatar Durkheim (1996, p. 473-474) que diz: “Virá o dia em que nossas sociedades conhecerão de novo horas de efervescência criadora ao longo das quais novos ideais surgirão, novas fórmulas aparecerão para servir, durante um tempo, de guia à humanidade; e, uma vez vividas essas horas, os homens sentirão espontaneamente a necessidade de revivê-las de tempo em tempo pelo pensamento, isto é, de conservar sua lembrança por meio das festas que renovem regularmente seus frutos.” Os rituais de alimentação presentes na tribo estudada são mais do que um conjunto de práticas individuais para satisfação das necessidades básicas. São momentos em que há uma recriação a partir da criação do ideal; não se trata, portanto, de um ato secundário, ou inexpressivo, mas onde o grupo se faz e se refaz.

Notas

  1. Fog é uma palavra Kaingáng para designar os não-índios.

  2. É importante destacar que uma rede de pesquisa, para Latour (2000), pode ser composta de atores humanos e não-humanos.

Referências bibliográficas

  • ALMEIDA, Ledson Kurtz. Dinâmica religiosa entre os Kaingang do Posto Indígena de Xapecó. 1998. 165 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – PPGAS, UFSC, Florianópolis, 1998.

  • AQUINO, Alexandre Magno de. Ën Ga Uyg Ën Tóg (“Nós Conquistamos Nossas Terras”): Os Kaingang No Litoral Do Rio Grande Do Sul. 2008. 213 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – PPGAS, UnB, Brasília, 2008.

  • ARRUDA, Rinaldo; DIEGUES, Antonio Carlos (org.). Saberes tradicionais e biodiversidade no Brasil. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2001.

  • BOURDIEU, P.; CHAMBOREDON, J.C.; PASSERON, J.C. El Oficio del Sociólogo. México: Siglo Veintiuno Editores, 1978.

  • CRÉPEAU, Robert.. Mito e ritual entre os Indios Kaingáng do Brasil meridional. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.3, n. 6, p. 173-186, 1997.

  • HAVERROTH, Moacir. Kaingáng: um estudo etnobotânico - uso e classificação das plantas cultivadas na área indígena Xapecó (oeste de SC). 1997. 192f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - PPGAS, UFSC, Florianópolis, 1997.

  • DIEHL, Eliana Elisabeth. Entendimentos, práticas e contextos sociopolíticos do uso de medicamentos entre os Kaingáng. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Sáude Pública, 2001.

  • DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.

  • DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1996.

  • ELIAS, Norbert. O processo civilizador Vol 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1994.

  • GEERTZ, Clifford. O saber local. Petrópolis: Vozes, 2006.

  • LATOUR, B. Ciência em Ação. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

  • LÉVI-STRAUSS, Claude. O Pensamento Selvagem. São Paulo: Papirus, 1989.

  • MARCUS, George. Ethnography in/of the world system: the emergence of multi-sited ethnography. Annual Review of Anthropology, n 24, p. 95-117, 1995

  • OLIVEIRA, M.C. Os Curadores Kaingáng e a Recriação de suas Práticas: estudo de caso na aldeia Xapecó (Oeste de S.C.).Santa Catarina. Dissertação de Mestrado, Florianópolis: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, 2009.

  • WACQUANT, Loïc. Esclarecer o Habitus. São Paulo. Educação & Linguagem Ano 10. Nº 16. 63-71, Jul-Dez. 2007.

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Búsqueda personalizada

EFDeportes.com, Revista Digital · Año 18 · N° 184 | Buenos Aires, Septiembre de 2013
© 1997-2013 Derechos reservados