Políticas do corpo na sociedade líquido-moderna: novos desafios à Educação Física Políticas del cuerpo en la sociedad líquido-moderna: nuevos desafíos para la Educación Física |
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*Graduado em Educação Física – Licenciatura e Bacharelado Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, UNIJUÍ **Professor Doutor do Departamento de Humanidades e Educação da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio
Grande do Sul, UNIJUÍ |
Daniel Bardini Dürks* Sidinei Pithan da Silva** |
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Resumo Este texto tem como objetivo, a partir dos escritos de Zygmunt Bauman, compreender as novas problemáticas referentes ao trato com as políticas do corpo na transição da “sociedade de produtores” (sólido-moderna) para a “sociedade de consumidores” (líquido-moderna). A educação do corpo produtor (sociedade sólido-moderna) era caracterizada pela busca por “normalidade” no nível de “saúde” (ausência de doenças), objetivando adequá-lo e torná-lo apto para atuar na linha produtiva. A educação do corpo consumidor (sociedade líquido-moderna), por sua vez, é caracterizada como uma política de incentivo às sensações corporais que propiciem prazer. Neste momento, o corpo consumidor é orientado a manter-se focado na busca pela “boa forma” ou da “aptidão”, caracterizadas pelos prazeres e experiências subjetivas permitindo ao sujeito explorar as diversas opções oportunizadas pelo mercado. Nesse contexto, a Educação Física e os profissionais da área são desafiados a tematizar a pluralidade de práticas corporais emergentes na sociedade sem se renderem a nova ideologia consumidora e sem “vender ilusões” aos sujeitos. Unitermos: Corpo. Sociedade de consumo. Educação Física.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 18 - Nº 181 - Junio de 2013. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
Este texto pretende compreender aspectos referentes ao ideário da educação corporal existentes no contexto da sociedade líquido-moderna (sociedade de consumidores) e pensar alguns desafios para a Educação Física. Para tanto, pretende-se, sobretudo, apreender as principais transformações em relação às políticas do corpo, conforme os escritos de Zygmunt Bauman (2001) e destacar alguns desafios para a Educação Física. Em parte, estes desafios estão relacionados a uma crítica permanente do imaginário social existente sobre o corpo na cultura comunicacional contemporânea.
Bauman (2001), em linguagem metafórica, caracteriza a sociedade atual como líquido-moderna. De maneira ampla, as diferentes facetas da sociedade contemporânea vêm sofrendo uma série de transformações que atingem, desde aspectos da vida pública, até aspectos da vida privada. Essas transformações são consideradas pelo autor como o derretimento da solidez e a conseqüente liquefação das instituições. Estas, na modernidade líquida, permanecem em constante transformação, movendo-se com maior facilidade, leveza e rapidez. Isto significa, para Bauman, que ainda estamos na modernidade, mas uma modernidade diferente da anterior (modernidade sólida).
Uma das principais transformações da sociedade líquido-moderna é a transição de uma sociedade até então de “produtores”, para uma sociedade de “consumidores”. Na sociedade de produtores a vida social “tende a ser normativamente regulada” (BAUMAN, 2001, p. 90), com o indivíduo seguindo a lógica em viver conformado, ou seja, buscando atingir uma vida dentro do patamar normal, isto é, com o mínimo de condições necessárias para desempenhar seu papel social, mas sem buscar o máximo de suas ambições, caracterizadas pela luxúria. Já na sociedade de consumidores, a vida social emerge com outras visões de mundo, onde “o céu é o limite” (BAUMAN, 2001, p. 90) para as possibilidades surgidas. O indivíduo é orientado pela lógica do mercado, em que o novo logo se torna descartável.
Essa alteração em especial, (re) condiciona o imaginário da noção de corpo existente na sociedade. “Se a sociedade dos produtores coloca a saúde como o padrão que seus membros devem atingir, a sociedade dos consumidores acena aos seus com o ideal da aptidão (fitness)” (BAUMAN, 2001, p. 91). Observemos então as principais diferenças entre as políticas de corpo na sociedade sólido-moderna e líquido-moderna para pensar nos desafios da Educação Física no campo da educação corporal.
Em diferentes obras (Vida em Fragmentos, Modernidade Líquida e Vida Líquida) Bauman compreende que uma das atuais “ansiedades” impregnadas na sociedade líquido-moderna está relacionada à concepção de corpo existente no imaginário social contemporâneo. No entanto, antes de adentrar na discussão do autor em relação ao corpo consumidor, é pertinente compreender o seu ideário em relação ao corpo na fase produtora da sociedade (ou na fase sólido-moderna).1. As políticas do corpo na sociedade sólido-moderna
Em Vida em Fragmentos o autor desenvolve a reflexão que, na sociedade de produtores, o corpo era subentendido como uma ferramenta necessária para manter a produção das grandes indústrias, sendo fundamental como mão de obra para o trabalho. O corpo do produtor/soldado deveria ser disciplinado e “a única contribuição exigida do corpo em si era que fosse capaz de reunir a força necessária para responder de pronto aos estímulos com o vigor necessário” (BAUMAN, 2011, p. 157). A capacidade da aptidão para o trabalho do corpo produtor/soldado foi denominada como “saúde”. Na obra Modernidade Líquida o conceito de saúde característico da sociedade de produtores é desenvolvido por Bauman (2001, p. 91) ao mencionar que:
A saúde como todos os conceitos normativos da sociedade de produtores, demarca e protege os limites entre “norma” e “anormalidade”. “Saúde” é o estado próprio e desejável do corpo e do espírito humanos – um estado que (pelo menos em princípio) pode ser mais ou menos exatamente descrito e também precisamente medido. Refere-se a uma condição corporal e psíquica que permite a satisfação das demandas do papel socialmente designado e atribuído – e essas demandas tendem a ser constantes e firmes. “Ser saudável” significa na maioria dos casos “ser empregável”: ser capaz de um bom desempenho da fábrica, “de carregar o fardo” com que o trabalho pode rotineiramente onerar a resistência física e psíquica do empregado.
A sociedade dos produtores direcionava o sujeito a atingir a conformidade. O objetivo era manter-se entre a linha média das ambições de vida, ou seja, “seguramente entre a linha inferior e o limite superior – manter-se no mesmo nível (tão alto ou baixo, conforme o caso) do vizinho” (BAUMAN, 2001, p. 90). No caso do trato com o corpo, a meta do corpo produtor era estar em conformidade com os padrões de saúde estabelecidos pelas agências reguladoras (Estado-Nação), as quais determinavam a diferença entre o normal e o anormal. A condição para ser considerado normal (saudável), era estar livre de doenças e em condições físicas e psíquicas para desempenhar sua função na linha produtiva. O corpo produtor era um corpo-objeto (GHIRALDELLI, 2007), entendido como parte necessária da engrenagem do maquinário social. Portanto o corpo produtor assumia um valor “meramente instrumental” (BAUMAN, 2009, p.119).
2. As políticas do corpo na sociedade líquido-moderna
A visão de Bauman sobre as novas políticas do corpo na sociedade líquido-moderna (sociedade de consumidores) passa diretamente pela leitura do contexto essencialmente consumista vislumbrado na contemporaneidade. Em relação à “sociedade de consumidores”, Bauman compreende que:
A “sociedade de consumidores” é um tipo de sociedade que (recordando um termo, que já foi popular, cunhado por Louis Althusser) “interpela” seus membros (ou seja, dirige-se a eles, os saúda, apela a eles, questiona-os, mas também interrompe e “irrompe sobre” eles) basicamente na condição de consumidores. [...] A “sociedade de consumidores”, em outras palavras, representa o tipo de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas, e rejeita todas as opções culturais alternativas (BAUMAN, 2008, p. 70-71)
O autor interpreta que a principal preocupação em relação ao trato do corpo não é mais com a saúde (corpo produtor/soldado), mas sim com a boa forma (Vida em Fragmentos e Vida Líquida) ou com a aptidão (Modernidade Líquida). Para explicitar esse pensamento, inicialmente iremos nos ater nos escritos de Bauman em Vida em Fragmentos1 (2011). Nesta obra, o autor menciona que o corpo na sociedade de consumidores (ou líquido-moderna) “é, antes de tudo, um receptor de sensações; ele absorve e digere experiências. A capacidade de ser estimulado torna-o um instrumento de prazer. Essa capacidade é chamada boa forma” (BAUMAN, 2011, p. 157). Diferentemente da saúde, que pode ser identificada como normal ou anormal, a boa forma não pode ser mensurada e quantificada; é pertencente à individualidade do sujeito, o qual está fadado a jamais atingir o nível desejado de perfeição em relação ao seu corpo. Sempre é possível receber novas sensações, e o Mercado está empenhado para oferecer o maior número e as mais variadas possibilidades de prazeres e sensações corporais.
Em Modernidade Líquida o autor volta a explorar a noção de corpo consumidor como um corpo orientado “pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais por regulação normativa” (BAUMAN, 2001, p. 90). Ao invés de buscar a saúde, o consumidor é orientado a buscar a “aptidão”. A ‘”sociedade de consumidores” impele o sujeito a permanente adequação, a estar sempre pronto para novas sensações, novos prazeres e quereres voláteis. Ao contrário da “saúde que é uma condição ‘nem mais nem menos’, a aptidão está sempre aberta do lado do ‘mais’. [...] a aptidão diz respeito a quebrar todas as normas e superar todos os padrões” (idem, p. 92). O corpo, agora, é guiado pela sua “experiência subjetiva” e não mais, exclusivamente, pela manutenção da saúde; não basta ser normal, tem que estar apto para as mais variadas possibilidades de atingir o prazer corporal. A busca pela aptidão não possui um fim natural, mas sim, a busca incessante de objetivos momentâneos que logo serão substituídos por novas metas a serem alcançadas.
Em Vida Líquida, Bauman volta a desenvolver sua reflexão sobre a concepção do corpo consumidor na sociedade líquido-moderna. O corpo consumidor, ao contrário do significado meramente instrumental do corpo produtor, possui um “valor-fim ou um valor-destino” (BAUMAN, 2009, p.119). O autor volta a salientar que o objetivo primordial do corpo consumidor é colocar-se em “boa forma”. Esta que, segundo Bauman (idem, p. 122), “não conhece limite superior; na verdade, ela é definida pela ausência de limites – mais especificamente, por sua inadmissibilidade. Seu corpo pode estar em excelente forma, não importa – sempre será possível melhorar”.
3. Novos desafios em Educação Física no contexto da sociedade líquido-moderna
A Educação Física, assim como as demais áreas de conhecimento, em especial as ligadas às ciências humanas, necessita compreender as novas condições societárias. O desafio imposto pela pluralidade de sentidos do corpo consumidor reflete um sentimento de crise identitária dos profissionais responsáveis pela educação corporal. Mais especificamente Silva (2012, p. 595) afirma que:
A crise identitária sentida pelos profissionais de Educação Física se deve em grande medida a este deslocamento em relação às funções sociais da Educação Física em relação à educação corporal e às transformações na esfera da política econômica. Na modernidade sólida, as funções sociais estavam claramente definidas, a partir do recorte biológico, privilegiando a adaptação/educação através da disciplina, do controle e da vigilância (higienismo, militarismo, esportivismo). Na modernidade líquida, a partir do recorte cultural, abre-se um imenso leque para compreender a modernidade do corpo, mas ao mesmo tempo as formas e forças de dominação social (globalizadas, extraterritoriais) sobre ele não se dão mais de forma clara e administrada como fora na modernidade sólida, mas sim de forma caótica, desordenada e instável.
O sujeito antes preocupado em seguir o padrão de saúde estabelecido para o bom convívio social e para ser empregável, agora na sociedade líquido-moderna, é confrontado com as inúmeras possibilidades surgidas no mercado de consumo (BAUMAN, 2001, 2009, 2011). As políticas de construção do corpo na modernidade sólida (sociedade dos produtores) estabeleciam uma determinação social (normativa) padrão e homogênea para os corpos. Restava aos sujeitos seguir o padrão único pré-estabelecido para serem considerados normais. O pecado moral residia em desviar-se da norma. As políticas de produção do corpo na modernidade líquida (sociedade dos consumidores) não estabelecem uma determinação única e padronizada de formatação e educação do corpo, deixando aos sujeitos a condição de escolher, o que deve ser feito com seu corpo, e principalmente enfrentar a ambivalência da pluralidade de sentidos que são postos à venda no mercado. O pecado moral reside em não deslocar-se e movimentar-se na superfluidez do mercado.
A Educação Física, na fase sólido-moderna, era ancorada pelas ciências biológicas a qual orientava o conhecimento e a intervenção dos profissionais da área para a manutenção dos índices de saúde do corpo através da atividade física, normalmente reguladas e patrocinadas pelas políticas públicas do Estado-Nação. “Hoje”, na sociedade líquido-moderna, a Educação Física precisa lidar com o corpo “coletor de sensações” (BAUMAN, 2001) ou um corpo aberto a história (BRACHT, 2011). Essas “sensações” são movidas pela privatização das práticas corporais, em que vários agentes concorrem por uma fatia do espaço, normalmente, guiados pelos interesses e regras do mercado consumidor (ou seja, regras para vender a receita da “felicidade”). Nesse contexto, segundo Bracht (2011, p. 112) destacam-se
[...] a indústria esportiva (incluída a indústria da comunicação) a poderosa indústria do fitness, a indústria do turismo e a indústria dos cuidados do corpo (cosméticos, spas etc.). Tais agentes criam significados para as práticas corporais, mas não lutam pela hegemonia (no sentido político como o Estado o faria ou fez na modernidade sólida), brigando, isso sim, por fatias do mercado, dinâmico e em constante movimento, como sabemos.
Contudo, apesar da pluralidade de práticas corporais que emerge na sociedade líquido-moderna, salienta-se a interpretação de Fensterseifer e Silva (2008), em que a Educação Física não deve “vender ilusões” aos sujeitos. A ambivalência em relação ao trato com o corpo na sociedade líquido-moderna promove e estimula quadros assustadores causados por “distúrbios como anorexia, bulimia, vigorexia, permarexia (obsessão por dieta), lipofobia (fobia a gordura), ortorexia (obsessão por alimentos sadios)” (FENSTERSEIFER; SILVA, 2008, p. 57). Portanto, ao não “vender ilusões” o profissional/professor de Educação Física pode colaborar na educação corporal do sujeito, favorecendo não tanto à simples adesão às práticas corporais, mas sim ao caráter reflexivo deste em relação às práticas corporais/exercícios físicos. Sobretudo, pode o educador, para além do instrutor, ajudar aos sujeitos a compreenderem melhor o mundo e a sociedade em que vivemos (FENSTERSEIFER; SILVA, 2008).
Considerações finais
A reflexão de Bauman sobre o corpo na sociedade de consumo pode nos causar estranheza e discordância em relação a alguns apontamentos. Contudo, é de extrema importância para pensarmos sobre as novas políticas corporais emergentes no atual modelo societário. Atualmente, não se pode negar que o corpo está no centro das preocupações, afinal, uma boa imagem corporal proporciona oportunidades e “abertura de portas” em diversas instâncias da vida. Por esse contexto, é inegável que o trato com o corpo mercadoria tornou-se uma grande fatia do mercado consumidor, espaço em que as empresas lançam tendências a serem seguidas a todo o momento. O corpo, nesta política nunca estará em “boa forma” e quando o sentimento de conformidade for alcançado, logo estará estampada na capa da revista uma nova tendência corporal, tornando a busca pela “boa forma” um processo inatingível necessitando a permanente adaptação do sujeito aos padrões impostos pelo Mercado.
Todavia, o contexto do corpo na sociedade de consumo exige a reflexão profunda acerca da responsabilidade da Educação Física. Devemos compreender que o corpo “é agora tão ‘socialmente regulado’ quanto antes” (BAUMAN, 2009, p.130), Dessa forma, cabe o exercício reflexivo permanente sobre a necessidade de não só explorar uma fatia desse mercado de “sensações e prazeres”, os quais muitas vezes se transformam em fobias e doenças crônicas (vejamos os inúmeros distúrbios e doenças ocasionadas pela busca da “boa forma” a qualquer custo), mas sim, de buscarmos, através da Educação Física (em especial no contexto escolar), um espaço em que os sujeitos possam refletir sobre o imaginário social dominante no contexto comunicacional líquido-moderno.
Nota
Essa obra foi publicada na Inglaterra no ano de 1995, porém sua publicação no Brasil veio ocorrer somente em 2011.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
_______. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
_______. Vida Líquida. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
_______. Vida em Fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
BRACHT, V. A Educação Física brasileira e a crise da década de 1980: entre a solidez e a liquidez. In: MEDINA, J. P. A Educação Física cuida do corpo... e “mente”. 26. ed. Campinas, SP: Papirus, 2011. p. 99-116.
FENSTERSEIFER, P. E.; SILVA, S. P. Qualidade de vida e Educação Física: conhecimento e intervenção crítica na sociedade de consumo. Caderno de Educação Física (Unioeste), v. 7, n. 12, p. 55-58, 2008.
GHIRALDELLI JUNIOR, P. O Corpo: Filosofia e educação. São Paulo: Ática, 2007.
SILVA, S. P. A Educação Física entre o projeto social da modernidade sólida e o projeto social da modernidade líquida. Educação (Santa Maria), v. 37, n. 3, p. 585-598, set./dez. 2012.
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