Mitos relacionados com a especialização no desporto Mitos relacionados con la especialización en el deporte |
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*Universidade do Porto – Faculdade de Desporto **Leixões Sport Clube ***Castêlo da Maia Ginásio Clube *****Universidade do Porto – Faculdade de Medicina Associação Académica de São Mamede (Portugal) |
José Afonso* ** Patrícia
Coutinho* ***
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Resumo O tema da especialização desportiva tem sido alvo de controvérsia continuada (Baker, Cobley, & Fraser-Thomas, 2009; Côté, Murphy-Mills, & Abernethy, 2012; Ericsson, Krampe, & Tesch-Romer, 1993), sobretudo quando se incide na questão da especialização precoce. Nomeadamente, existe desacordo em relação ao conceito e amplitude da especialização, bem como uma vilificação do conceito de especialização precoce (Baker, 2003; Baker, et al., 2009; Ericsson, et al., 1993). Este conceito é frequentemente associado a desfechos menos positivos para o atleta, particularmente ao nível físico (lesões, problemas musculares e tendinosos), psicológico (decrescimento do divertimento e motivação para a prática, redução dos níveis de autoestima e autoconfiança, distúrbios alimentares) e social (isolamento social, comportamentos reprováveis) (Baker, 2003; Baker, et al., 2009; Wiersma, 2000). Como noutras áreas do conhecimento, porém, argumentaremos que a controvérsia deriva de conceitos erróneos e de mitos que afastam treinadores e professores de Educação Física do verdadeiro significado e potencial da especialização. Concretamente, parece haver uma errónea interpretação duma relação unilateral entre especialização em jogo e especialização em treino, que pode, na realidade, assumir contornos complexos nada lineares. Unitermos: Especialização desportiva. Especialização precoce. Educação Física. Mitos.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 18 - Nº 181 - Junio de 2013. http://www.efdeportes.com/ |
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Sobre a especialização
A especialização é uma estratégia de otimização de recursos, atribuindo papéis específicos a agentes específicos (Ericsson, 2007). Neste sentido, cada parte dum sistema, longe de constituir uma mera reprodução de outra parte desse sistema, representa uma especificidade capaz de potenciar o comportamento global do próprio sistema. No caso duma equipa desportiva, ao invés de procurarem jogadores com características homogéneas, os treinadores procuram jogadores heterogéneos, com qualidades divergentes, procurando construir um sistema de sinergias no qual as capacidades individuais são otimizadas, potenciando a performance global da equipa. A especialização é, em última análise, uma estratégia altamente produtiva, racional e eficaz de obter elevadas performances (Ericsson, et al., 1993). De modo semelhante, o nosso corpo tem rins, pulmões, coração, ossos, fáscias, olhos, cada órgão servindo a sua função e contribuindo para um todo mais rico e mais capaz de responder às solicitações do meio.
Com efeito, a evolução biológica serviu-se da especialização para potenciar a adaptação de cada espécie ao seu nicho ecológico. As espécies são todas diferentes, cada uma especializada na exploração de potencialidades distintas no meio envolvente. Mas a biologia levou a especialização mais longe, sendo cada organismo individual um sistema de subsistemas, sendo cada subsistema especializado em aspetos diferentes da regulação dos processos relacionados com a vida. No caso do ser humano, a diferenciação celular – ou seja, a sua especialização – tem início logo no 4º dia após a fecundação. Desde uma etapa tão precoce que o sistema se desenvolve e otimiza a sua performance à custa de processos de especialização (Amit & Itskovitz-Eldor, 2002). Esta analogia permite, desde logo, apreender que o conceito de precoce deverá, quando associado ao processo de especialização desportiva, ser relativizado.
Ademais, a especialização biológica não ocorre num momento único; com efeito, a especialização vai-se tornando cada vez mais profunda e complexa no decorrer do tempo, o que indicia que a especialização não é uma qualidade absoluta, mas um continuum que admite inúmeras gradações. Por último, da mesma forma que a biologia mantém uma certa abertura, nomeadamente via células satélite presentes também nos adultos, igualmente os processos de vida e, mais concretamente, de treino desportivo poderão acoplar alguma multilateralidade dentro do conceito de especialização. Utilizando o exemplo do voleibol, a distribuição poderá ser treinada por todos os jogadores duma equipa altamente especializada, embora em contextos diferentes de ocorrência: o treino de distribuição dum distribuidor irá diferir daquele dum atacante central, mas com uma base técnica com algumas parecenças e sempre visando cumprir um propósito de jogo que consiste em proporcionar ao atacante as melhores condições de finalização possíveis. Ainda no voleibol, uma nota de rodapé: o conceito de penetração não deve ser confundido com o conceito de especialização. Com efeito, existem sistemas de jogo com penetração que não implicam especialização, como sendo o 0:6:0 com distribuidor em zona 1.
Sobre o conceito de precocidade
Os receios arquétipos associados à expressão ‘especialização precoce’ derivam de preocupações de que a especialização seja, de algum modo, nefasta para a manifestação futura de outras potencialidades do organismo (Wiersma, 2000). No entanto, desde logo nos vemos confrontados com a definição de precocidade. Quando podemos afirmar que uma dada especialização foi precoce? Emerge, de imediato, a noção de que associar precocidade a uma idade ou faixa etária específicas não se afigura como a melhor forma de proceder. Na realidade, especializar alguém numa função desportiva aos 14 anos pode ser precoce, adequado ou mesmo tardio. É sabido que a idade biológica pode admitir desvios significativos relativamente à idade cronológica (Malina & Bielicki, 1992). A título ilustrativo, um atleta de 13 anos de idade cronológica pode ter uma idade biológica de 10 anos, enquanto outro, da mesma idade cronológica, pode ter uma maturidade biológica de 16 anos.
Se as variações no desenvolvimento biológico são consideráveis e aconselham prudência na rotulação de certos processos como sendo ou não precoces, importa, ainda, considerar aspetos de considerável relevância para esta discussão, nomeadamente o background do sujeito: qual a sua história de desenvolvimento pessoal e social, qual o seu passado desportivo, qual o seu passado na modalidade em causa, que motivações para a prática atual, que condições desportivas, que contexto de equipa (Davids & Baker, 2007; MacNamara, Button, & Collins, 2010; Phillips, Davids, Renshaw, & Portus, 2010). Na realidade, a complexidade de tais fatores e as enormes discrepâncias permitem verificar que certos processos de especialização possam ser considerados tardios numa equipa de 12 anos de idade e, simultaneamente, precoces numa equipa de 16 anos de idade – bastando, para tal, que haja considerável desfasamento entre os níveis de preparação de cada um dos grupos. Em suma, fazer equivaler precoce a uma determinada faixa etária é inútil e induz em graves erros de preparação. Concretamente, inibindo o desenvolvimento de patamares mais elevados de performance por receios infundados.
Por outro lado, existem janelas de oportunidade que devem ser respeitadas e que, muitas vezes, ocorrem bastante cedo no desenvolvimento da pessoa (Ford et al., 2011). Analise-se o caso da aprendizagem da língua-mãe e a maior dificuldade observada na aprendizagem duma segunda língua. Todavia, a aprendizagem desta segunda língua será tão mais difícil quanto superior for a idade em que ocorra. Neste sentido, certas aprendizagens e especializações não serão prejudiciais por surgirem mais precocemente, mas apenas quando surgem tardiamente. Aliás, o próprio conceito de precoce vai-se modificando com os padrões culturais e sociais em evolução: há alguns anos atrás, poucos portugueses aprendiam inglês na escola; uns anos após, muitos travavam contacto com esta língua a partir do 5º ano de escolaridade; hoje, fazem-no logo no 1º Ciclo de ensino. Esta maior precocidade, longe de ter introduzido efeitos nefastos a longo prazo, antes melhorou drasticamente o domínio da língua inglesa e o à-vontade para a aplicar num contexto social.
A precocidade é um conceito que varia substancialmente, ainda, de desporto para desporto (Côté, et al., 2012). Neste âmbito, aceita-se que um guarda-redes seja especializado aos 8 anos de idade, no futebol, mas, no voleibol, olha-se com desconfiança para a especialização de um libero aos 13 anos. A inevitável comparação entre desportos permite, desde logo, perceber que as idades e timings para especialização assumem valores completamente diversos consoante as exigências da modalidade em questão, remetendo novamente para a relatividade deste conceito. Contraste-se, a título de exemplo, a ginástica rítmica com o atletismo de ultra-endurance (Baker, Côté, & Deakin, 2005b; Law, Côté, & Ericsson, 2007). De resto, veja-se o que o mundo teria perdido se certas pessoas tivessem sido impedidas do acesso a uma preparação precoce: Mozart, com apenas 5 anos de idade, já compunha música. De acordo com a teoria da prática deliberada, são necessários, no mínimo, 10 anos de prática intensiva e altamente estruturada para se alcançar o alto nível (Ericsson, et al., 1993). Assim, será interessante perceber qual a idade de entrada no alto nível nas diferentes modalidades desportivas, o que dará indicações concretas acerca dos timings de início da prática deliberada. Sublinhe-se que a prática deliberada ocorre já após a iniciação desportiva e admite já, portanto, a especialização.
Procedimentos de especialização
Especialização coletiva parcial e progressiva: é possível especializar um distribuidor, no voleibol, mas não especializar as funções dos atacantes nem as funções assumidas quando em zona defensiva ou quando no bloco e na receção. Os sistemas de jogo poderão evoluir para uma especialização mais completa ao longo do tempo, não precisando de o fazer de uma forma absoluta e num mesmo timing.
Especialização de treino versus de jogo: o treinador pode jogar com sistemas especializados mas ir variando os atletas que realizam essas funções a cada jogo ou a cada set. Ademais, pode especializar as funções em jogo mas manter considerável multilateralidade no treino. Exemplos:
O não-recebedor em jogo pode continuar a desenvolver a receção em treino.
Os atacantes podem continuar a desenvolver a distribuição em treino.
Os distribuidores podem continuar a desenvolver a chamada de ataque e a finalização.
Os atletas mais baixos e/ou com menor alcance, mesmo que não bloquem em jogo, podem continuar a desenvolver a sua capacidade de blocar em treino.
Especialização versus multilateralidade: mesmo num estado de especialização individual máxima, o atleta pode continuar, em treino, a passar por solicitações diversas daquelas que irá realizar em jogo, mantendo portas abertas para o futuro. Exemplo: um distribuidor poderá continuar a treinar receção, potenciando uma futura reconversão em libero.
Especialização reversível: a especialização não precisa de ser encarada como algo de definitivo. Um jogador pode especializar-se numa função e, posteriormente, ser reconvertido numa outra função. De resto, até no mercado de trabalho há inúmeros casos de pessoas que, após uma vida a estudar e a trabalhar numa determinada área, vêm-se na necessidade de mudar de área (p.e.: por motivo de desemprego), ou seja, de se re-especializarem.
Comentários finais
Em suma, acreditamos que a especialização é benéfica para a evolução dos atletas, mas importa desmistificar este conceito e apresentá-lo na sua complexidade. O nosso objetivo é estimular a discussão entre os treinadores e promover um avanço na qualidade da prática, liberto de preconceitos que lhe são prejudiciais.
Referências
Amit, M., Itskovitz-Eldor, J. (2002). Derivation and spontaneous differentiation of human embryonic stem cells. Journal of Anatomy, 200(3), 225-232.
Baker, J. (2003). Early Specialization in Youth Sport: a requirement for adult expertise? High Ability Studies, 14(1), 85-94.
Baker, J., Cobley, S., & Fraser-Thomas, J. (2009). What do we know about early sport specialization? Not much! High Ability Studies, 20(1), 77-89.
Baker, J., Côté, J., & Deakin, J. (2005b). Expertise in Ultra-Endurance Triathletes Early Sport Involvement, Training Structure, and the Theory of Deliberate Practice. Journal of Applied Sport Psychology, 17, 64-78.
Côté, J., Murphy-Mills, J., & Abernethy, B. (2012). The development of skill in sport. In N. Hodges & A. M. Williams (Eds.), Skill acquisition in sport - research, theory and practice. New York: Routledge.
Davids, K., & Baker, J. (2007). Genes, environment and sport-performance: why the nature-nurture dualism is no longer relevant. Sports Medicine, 37(11), 1-20.
Ericsson, K. (2007). Deliberate practice and the modifiability of body and mind: toward a science of the structure and acquisition of expert and elite performance. International Journal of Sport Psychology, 38, 4-34.
Ericsson, K., Krampe, R., & Tesch-Romer, C. (1993). The Role of Deliberate Practice in the Acquisition of Expert Performance. Psychological Review, 100(3), 363-406.
Ford, P., Croix, M., LLoyd, R., Meyers, R., Moosavi, M., Oliver, J., Williams, C. (2011). The Long-Term Athlete Development model: Physiological evidence and application. Journal of Sports Sciences, 29(4), 380-402.
Law, M., Côté, J., & Ericsson, K. A. (2007). Characteristics of Expert Development in Rhythmic Gymnastics: A Retrospective Study. International Journal of Sport and Exercise Psychology, 5, 82-103.
MacNamara, Á., Button, A., & Collins, D. (2010). The Role of Psychological Characteristics in Facilitating the Pathway to Elite Performance Part 1: Identifying Mental Skills and Behaviors. The Sport Psychologist, 24(1), 52-73.
Malina, R., & Bielicki, T. (1992). Growth and Maturation of Boys Active in Sports: Longitudinal Observations From the Wroclaw Growth Study. Pediatric Exercise Science, 4, 68-77.
Phillips, E., Davids, K., Renshaw, I., & Portus, M. (2010). Expert performance in Sport and the dynamics of talent development. Sports Medicine, 40(4), 271-283.
Wiersma, L. D. (2000). Risks and Benefits of Youth Sport Specialization: Perspectives and Recommendations. Pediatric Exercise Science, 12, 13-22.
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