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Maratona no gelo: uma ambientação para a resiliência

La maratón en el hielo: un entorno propicio para la resistencia

 

*Licenciado em Educação Física e Pedagogia, Especialista em Pedagogia do 

Movimento Mestre em Educação Escolar e Doutorando na mesma área

Docente nas Faculdades Network e na Secretaria da Educação São Paulo

**Graduado em Ciências Sociais, Mestre em Educação Escolar e Doutorando na mesma área

Atualmente é docente da pós-graduação (MBA) e da FAC São Roque

Kleber Tuxen Carneiro*

Eliasaf de Assis**

kleber2910@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente texto busca apresentar uma reflexão sobre resiliência na ambientação de uma maratona no gelo apresentada por uma emissora televisiva brasileira no ano de 2012. A associação entre superação e corrida não nos parece uma constatação inédita. O esporte de maneira geral denota a transcendência dos limites, apresentando a superação como um valor inerente à prática esportiva. Entendemos, todavia, que a conjuntura apresentada por ocasião da expedição registrada pela emissora de televisão, somada às diferentes motivações que alentaram os corredores participantes da prova produziram um cenário que potencializou uma narrativa reflexiva sobre o fenômeno da resiliência. O registro midiático da maratona no gele serve de ensejo a uma reflexão baseada em uma bela experiência de manifestação de resiliência, sobre a qual o presente texto pretende discorrer.

          Unitermos: Maratona. Mídia. Transcendência. Resiliência.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 18 - Nº 180 - Mayo de 2013. http://www.efdeportes.com/

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Uma palavra inicial

    “A vida, especialmente quando submetida à coação, busca e cria outras formas de ordenação. É sua transcendência que lhe confere essa liberdade criativa. Liberdade pelo menos de protestar e de insurgir. Pode-se torturar o ser humano, e até matá-lo, mas ninguém consegue lhe tirar essa capacidade de se opor”.

(Boff, 2000, p. 39).

    Não é a primeira vez que se procurou refletir sobre a estreita relação entre corrida (maratona) e resiliência. Em outro estudo empreendido pelos presentes autores (Assis et al, 2012), elaborou-se uma reflexão sobre o filme “Carruagens de fogo” e o quanto a corrida ambienta a resiliência, podendo ser um pertinente instrumento educacional.

    Não obstante, mais uma vez procuraremos conjecturar a respeito dessa intrigante relação entre maratona e resiliência. Como cenário para nossa reflexão analisaremos uma expedição à Antártida, registrada por uma emissora televisiva. Segue a descrição: no ano de 2012, uma emissora de televisão brasileira, apresentou uma série de reportagens, misturando reality show e jornalismo. A série foi denominada "Planeta Extremo", um slogan que ilustra o tom do seriado: práticas esportivas radicais em locações ambientadas em alguns dos lugares mais inóspitos do globo. O protagonista, apresentador e na maioria das vezes um dos protagonistas das performances, foi o respeitado repórter Clayton Conservani.

    Embora a série tenha sido exibida em apenas quatro episódios, em domingos consecutivos, segundo o apresentador as gravações foram antecedidas por cinco meses de preparo (incluindo-se o preparo físico e psicológico), como descreveu em entrevista concedida à revista Época (CASALETTI, 2011).

    O primeiro desafio da expedição constituiu-se na disputa de uma maratona de 42 km e uma corrida de 100 quilômetros no gelo da Antártica, com temperatura em torno de 30ºC negativos e ventos de mais de 100 km/h. Já a segunda aventura do programa, ocorreu na Cordilheira dos Andes, na América do Sul, com o objetivo de encontrar os destroços de um avião que transportava os integrantes de uma equipe de rúgbi uruguaia e que caiu nas montanhas há quase 40 anos no local. Acompanhado de um dos sobreviventes, ele refez a trilha que as vítimas percorreram em busca de ajuda.

    O terceiro episódio acontece na Noruega, tendo em vista encontrar e desmistificar as belezas que circundam a Aurora Boreal, um dos fenômenos naturais mais espetaculares do planeta. E findando a série, o último desafio foi enfrentar um mergulho nas cavernas mais perigosas do mundo, nas Bahamas, encarando 36 metros de profundidade.

    Por limitações de espaço, o presente texto não discorrerá sobre todos os episódios da série. Antes, nos dedicaremos ao primeiro episódio da expedição, que narra uma das mais belas experiências que associam corrida (maratona) e superação.

    Não nos parece nenhuma novidade a associação entre superação e corrida. Superação é um termo recorrente quando se reporta ao universo desportivo, seja na antiguidade, ou nos tempos atuais. Na Carta Olímpica o lema Citius (o mais rápido), Altius (o mais alto), Fortius (o mais forte) (p. 18) escrito pelo Barão de Coubertin, inspirado nos valores dos Jogos Olímpicos Helênicos, expressa a mensagem que o Comitê Olímpico Internacional dirige aos atletas de todo o mundo, convidando-os a superar-se de acordo com o espírito olímpico.

    Deste modo o desporto, de maneira geral, apresenta a superação como valor inerente. Incentiva-se assim a transcendência dos limites. A propósito lembramo-nos da pertinente conceituação de transcendência apresentadas por Boff (2000, p. 31- o grifo é nosso) “Então, transcendência, fundamentalmente, é essa capacidade de romper todos os limites, superar e violar os interditos, projetar-se sempre num mais além”.

    Considerando a transcendência como a causadora da inclinação humana a “violar interditos” e “superar limites”, podemos notar a estreita ligação, sugerida por Boff (2000), entre transcendência e superação de limites. Entretanto, no caso específico da maratona apresentada pela série, não nos parece ser ela, a modalidade esportiva, a protagonista da superação como freqüentemente assistimos nas esferas esportivas. Diversos outros componentes somaram-se, formando uma atmosfera. Dentre eles podemos notar a peculiaridade dos participantes e as diferentes motivações para que ingressassem na prova. Formou-se, durante o evento, uma conjuntura especial que resultou em uma ambientação apropriada para a manifestação de outra palavra: resiliência.

    E aqui nos deparamos com uma nomenclatura nova e sediciosa, ainda pouco propagada no cotidiano do campo das ciências humanas. As ocorrências da palavra “resiliência” se verificam em diversas áreas do conhecimento humano, desde as ciências dita duras (física, matemática, engenharia, entre outras) como também nas ciências biológicas (medicina, psiquiatria, entre outras). E apenas relativamente cedo nas ciências humanas (psicologia da aprendizagem, sociologia, filosofia, entre outras). Por isso, inicialmente, apresentaremos o conceito de resiliência.

O conceito de resiliência

    Concisamente apresentaremos algumas nuances a respeito do conceito de resiliência, nas diferentes áreas do conhecimento humano, como dito anteriormente. O termo resilire, em latim, significa “saltar para trás” ou “saltar acima”. Estranhamente também significa “afastar-se, desviar-se”. Nas acepções, podemos encontrar dois aspectos relacionados com o mesmo conceito, No primeiro, resiliência pode denotar a capacidade de “saltar”, “pular”, de “sair” de determinada circunstância, já o segundo aspecto pode-se entendê-la como espécie de “desvio”, a fim de evitar enfrentamentos, de situações adversas.

    Todavia, buscaremos apresentar algumas apropriações conceituais, recebidas pelo termo entre as diferentes áreas. Cabe ressaltar que a complexidade e abrangência do conceito e os limites do presente texto acabam por não conseguir abordá-lo na totalidade, mas apenas situar e contextualizar o leitor.

    Deste modo, dentro das ciências exatas mais especificamente na área de física de materiais (muito utilizada no ramo da metalurgia), a palavra ‘resiliência’ é concebida como a capacidade dos metais de resistir aos golpes e recuperar sua estrutura interna. Dito de outro modo, significa a capacidade elástica de um material para recobrar sua forma original depois de ter sido submetido a uma pressão deformadora.

    Nas ciências biológicas/médicas, encontramos o uso da palavra “resiliência” no campo da anatomia, na especialidade da osteologia. Neste campo o conceito é entendido e apresentado para expressar a capacidade que os ossos têm para crescer na direção correta depois de uma fratura.

    Aproximando-nos mais das ciências humanas (onde desenvolveremos mais expansivamente o conceito), especificamente na psicologia do desenvolvimento, o termo é compreendido como a capacidade do ser humano para recuperar-se da adversidade. Como define o autor:

    [...] resiliar [résilier] é recuperar-se, ir para frente depois de uma doença, um trauma ou um estresse. É vencer as provas e as crises da vida, isto é, resistir a elas primeiro e superá-las depois, para seguir vivendo o melhor possível. [...] Implica que o indivíduo traumatizado se sobrepõe [rebondit (se desenvolve depois de uma pausa)] e se (re)constitua (Theis, 2003: 50).

    Cabe ressaltar que estamos tratando de um conceito contemporâneo e relativamente novo, que sofreu adequações ao longo de tempo (Infante, 2005). Há aproximadamente três décadas se iniciaram os primeiros estudos que deram origem ao que atualmente se concebe por resiliência.

    O conceito nasceu e começou a desenvolver-se com Michael Rutter1 (1985, 1993), na Inglaterra e Emmy Werner, nos Estados Unidos, espalhando-se depois pela França, Países Baixos, Alemanha e Espanha. A visão norte-americana teve uma orientação principalmente comportamental centrada no individual. Já a visão européia apresentou uma visão preferencialmente psicanalítica e assumiu uma perspectiva ética. Mais tarde, o conceito entrou na América Latina assumindo uma dimensão comunitária, desafiada pelos problemas do contexto social (Suárez Ojeda, 2004, p. 18-9).

    Assim, observa-se na literatura especializada sobre o tema, que nos últimos anos, entre os especialistas em resiliência, encontram-se duas gerações de pesquisadores (Masten, 1999; Luthar e outros, 2000; Luthar e Cushing, 1999; Kaplan, 1999). A primeira, nos anos 1970, tendo como pergunta central: “Entre os sujeitos que vivem em risco social, o que distingue os que se adaptam positivamente dos que não se adaptam à sociedade?” (Kaplan, 1999). Esse grupo busca identificar os fatores de risco e de resiliência que influem no desenvolvimento de indivíduos que se adaptam positivamente, apesar de viverem em condições de adversidade.

    A geração seguinte de pesquisadores, nos anos 1990, aprimorou a pergunta: “Quais são os processos associados a uma adaptação positiva, já que a pessoa viveu ou vive em condições de adversidade?” O foco de pesquisa da segunda geração, retoma o interesse da primeira em inferir que fatores estão presentes nos indivíduos com alto risco social e que se adaptam positivamente à sociedade. Mas agregou-se aos objetivos dos estudos compreender a dinâmica entre fatores que estão na base da adaptação resiliente.

    Ambas as gerações de pesquisadores oferecem contribuições complementares, enriquecendo as áreas não apenas de reflexão e análise teórica, mas também contribuindo substancialmente para as políticas sociais e práticas de intervenção. Este novo enfoque, no lugar de enfatizar os fatores negativos ou fatores de risco (características ou qualidades de uma pessoa ou comunidade que tem grande possibilidade de prejudicar a saúde), que permitam prever um possível risco, busca identificar os fatores positivos ou fatores protetores (são as condições ou os contornos capazes de favorecer o desenvolvimento de indivíduos ou grupos, e em muitos casos, de

    reduzir os efeitos de circunstâncias desfavoráveis), que surpreendentemente muitas vezes aparecem nos sujeitos. Substitui-se o modelo “adoecedor” por um de “promoção”, ou melhor, de expansão.

    A resiliência, portanto, seria a capacidade do indivíduo se reconstituir, ir além após uma doença, um trauma ou um estresse, ou seja, resistir a eles primeiramente e superá-los posteriormente, para seguir vivendo melhor. Deste modo, podemos afirmar que os desdobramentos da resiliência, implicariam num rompimento com o passado lançando o olhar para um futuro reconstruído.

    Essa expressão, “rompimento com o passado”, pode parecer indelicada e sem empatia diante da condição de indivíduos feridos pelo abuso ou discriminações que reportam a infância e pressupõem a necessidade de um tratamento terapêutico prolongado. Mas a ênfase na superação pode ser útil, seja pela velocidade com que se opera uma mudança ambiental, ou no processo inicial que levará a um tratamento quando esse se fizer necessário.

    Feita tal contextualização histórica e conceitual acerca da resiliência, nos ateremos mais especificamente agora à descrição da evolução histórica da corrida, que foi o ambiente que impulsionou a manifestação da resiliência em nosso estudo. Assim sendo, inicialmente apresentaremos a relevância da corrida para evolução humana; em seguida sua organização e sistematização tornando-se em atletismo e posteriormente a maratona no gelo, o evento que proporcionou a ambientação para reflexões presentes em nosso texto.

Considerações sobre corrida (maratona) e sua sistematização denominando-se atletismo

    A origem da corrida é incerta, entretanto, ela esta ligada aos primórdios da humanidade. Basta considerar que o Homem-de-Neandertal já se apropriava das práticas biocorporais, como: caminhar, correr, saltar e arremessar. Tais movimentos foram fundamentais a fim de se locomover, escapar dos predadores e caçar, entre outras circunstâncias para sobrevivência.

    Assim, a corrida sempre esteve presente na evolução e desenvolvimento da humanidade, uma vez que, a condição nômade da Pré-história, denotava um princípio básico para sobrevivência. Portanto, correr, saltar e arremessar era uma contingência para a manutenção e preservação da vida.

    Não obstante, na Idade Antiga, existem baixos-relevos datados de 3500 a.C. que representam egípcios praticando a corrida, o salto, exercícios náuticos e hípicos. Na Europa, na época pré-céltica, sabe-se que também se praticou atletismo, na Irlanda, por exemplo.

    Em 2500 a.C., embora as corridas ganhem outras conotações e implementos, ela continua permeando a humanidade, os egípcios já se ocupavam de provas de luta livre e combates com paus. Dez séculos depois, os cretenses dedicavam-se à dança, ao pugilato e à corrida a pé, como forma de lazer. Várias descobertas arqueológicas confirmam que os antigos habitantes da China, Índia e Mesopotâmia também conheciam pela mesma época, as corridas e os lançamentos de peso.

    Segundo Dornelles2 (s.d.), o registro mais antigo de uma corrida com um caráter sistematizado (atletismo) está datado somente em 1496 a.C. como descreve o trecho a seguir:

    Segundo Homero, a primeira referência de uma prova de corrida como prova atlética, dataria do ano de 1496 a.C., organizada por Hércules. Diz a lenda que Hércules, depois de peregrinar pelo mundo, realizando proezas incríveis, radicou-se na ilha de Creta, aí construindo um estádio. Nele realizando competição de corridas com outros simpatizantes. (DORNELLES, s.d.)

    No entanto, se considera o nascedouro do esporte sistematizado a Grécia Antiga, segundo Filóstrato, em 1225 a.C. foi disputado o primeiro pentatlo, composto por provas de corrida, salto em distância, luta e lançamento de disco e dardo (por um mesmo atleta). No canto XXIII da Ilíada, Homero narra os funerais de Pátroclo, junto aos muros de Tróia, e as provas atléticas que Aquiles fez celebrar em honra do morto.

    Mas, a primeira competição oficial de Atletismo ocorreu na cidade de Olímpia, na Grécia, quando aconteceram os primeiros Jogos Olímpicos da Antiguidade, instituída por Hércules (herói mitológico cujas façanhas, segundo a lenda, estariam ligadas à própria origem dos jogos), tem o seu ponto de partida em 776 a.C., pois foi a partir desta data que os nomes dos campeões passaram a ser inscritos nos registros públicos.

    Avançando cronologicamente, até 456 a.C., quando a península grega é invadida e seu povo dominado pelo Império Romano, se inicia a declínio dos Jogos que posteriormente seriam denominados de Olímpicos. As disputas, que até então tinham um caráter cordial e mesmo educacional, convertem-se em combates sangrentos.

    Segundo Vieira3 (2007, p. 18), em 393 D.C., o então imperador romano Teodósio, cristão ortodoxo, proibiu qualquer prática que tivesse rememorasse cultos não-cristãos, entre os quais os Jogos “Olímpicos” Romanos. A partir desse período a corrida é esquecida e as demais práticas esportivas também. Os atletas já não desfrutavam do prestigio que os competidores gregos haviam conquistado. Os atletas são geralmente escravos ou prisioneiros de guerra, que passam a ser treinados como gladiadores na intenção de divertir o povo, com apresentações em arena, em formato de circo, ou de um teatro Dornelles (s.d.).

    Cabe ressaltar, que mesmo com a proibição das corridas, ou qualquer outra prática desse gênero, algumas regiões ainda mantiveram tais práticas, ainda que em pequenos lampejos, como na America pré-colombiana e alguns países do Oriente. Contudo, o olhar para as práticas corporais na Europa Medieval restringe-se na preparação para guerras (invasão e expansão territorial). O objetivo é a formação de exércitos e o aperfeiçoamento do uso da espada, lanças, arco e flecha; instrumentos essenciais nas disputas pela terra, como bem elucidam as cruzadas4.

    Mas, avançando cronologicamente e adentrando já na Idade Contemporânea, as corridas e as demais práticas corporais recebem uma nova conotação, ou melhor, dizendo, uma nova configuração. Se outrora elas estiveram vinculadas a sobrevivência e posteriormente, à preparação para as invasões territoriais, agora se tornam espetáculos de superação dos limites humanos. Ou seja, decorridos milênios, a arte do movimento converte-se em espaço de lazer, onde: velocidade, destreza e força são habilidades apreciadas e comparadas, surgindo o que contemporaneamente denominamos de Atletismo, ou desporto. (CBAt-BRASIL, s.d.)

    Como destaca Dornelles (s.d., p.3):

    Muitas das provas atléticas que hoje conhecemos foram, originalmente, habilidades necessárias para a sobrevivência do homem primitivo. Tinha que correr para perseguir ou escapar de seus inimigos, que fossem feras famintas, quer fossem homens pertencentes a grupos rivais. Tinha que atacar animais que lhe proporcionavam alimentos e vestuários. Não há dúvida que suas corridas tomaram forma de provas de velocidade, tanto como de grandes distâncias e até corridas com obstáculos, quando deviam saltar sobre pedras e outros impedimentos. O homem pré-histórico lançou pedras e paus em animais, a fim de matá-los. Esses lançamentos devem ter dado origem ao que hoje conhecemos como disco, peso, dardo e martelo. A necessidade de saltar sobre correntes d’água e grandes pedras, deu origem, por sua vez, aos saltos em distância, salto com vara e o salto em altura. Observando o nosso selvagem e recolhendo informações dos historiadores, é fácil concluir e afirmar: O exercício físico nasceu com o homem, e momentos após nasceu o Atletismo.

    Segundo a CBAt (2008), o atletismo, que contempla a base dos movimentos e habilidades para as demais modalidades desportivas, surgiu da necessidade natural de correr, saltar e lançar objetos desde a pré-história ajudando assim, a sobrevivência de nossos antepassados mais distantes.

    [...] Afinal, o ser humano já corria, saltava obstáculos e lançava objetos, muito tempo antes de fabricar suas primeiras flechas, de aprender a montar em cavalo e de nadar. Assim, por representar movimentos próprios do ser humano, o Atletismo é chamado esporte-base. (CBAt, 2008 p.6)

    Portanto, o CBAt (2008, p.9) define-o como: “Atletismo são provas atléticas de pista e de campo, maratonas, corridas de rua, marcha atlética, corrida através do campo (cross country) e corrida em montanhas”. Após termos apresentado sucintamente a historicidade da corrida até sua sistematização em forma de desporto (atletismo), discorreremos sobre a maratona no gelo, apresentada por expedição midiática, de um canal televisivo brasileiro. Evento, que em nosso entendimento, ambientou uma das mais lindas experiências de superação, e resiliência já vistas.

    Como já dito anteriormente, no caso específico da maratona apresentada pela série não nos parece ser ela, a maratona, a protagonista da superação como freqüentemente assistimos nas esferas esportivas. O que ocorre é a soma da atmosfera proporcionada por ela, incluindo a peculiaridade dos participantes e as diferentes motivações de que estavam imbuídos, levando-os a ingressar na prova e formando essa conjuntura especial. E por essa e outras razões, que não nos cabem explicitar no presente texto, buscamos apresentar um registro científico de tal episódio, para que se produza ciência com consciência, como muito bem nos alerta Morin (2010).

A atmosfera da maratona no gelo

     A expedição se inicia com uma maratona de 42 quilômetros, mas não no local convencionalmente utilizado (ruas ou avenidas) para prática do atletismo, mas no gelo da Antártica. A temperatura varia em torno de 30ºC negativos e os ventos podem atingir mais de 100 km/h. Os brasileiros integram um grupo de 40 atletas de 16 diferentes países que disputaram as provas. Exclusivamente essa condição climática já seria suficiente para denotar a necessidade de grande superação física e psíquica, condições essas, inóspitas até para os insetos mais resistentes, dizem os especialistas.

    Mas como já dissemos anteriormente, superação é um termo recorrente quando se reporta ao universo desportivo, sendo que, o desporto de maneira geral, apresenta a superação como valor inerente a ele. Entretanto, ao longo dos dias que antecediam a maratona, o repórter/corredor conheceu pessoas que estavam lá movidas por um ideal, para além dos limites da derrota ou vitória. Havia competidores que superavam a preocupação com a premiação, embora não fossem todos. Essas histórias foram construindo um ambiente, ou melhor, uma atmosfera transcendental.

    Histórias como a de um pai que perdeu seu filho vítima das drogas e resolveu competir sozinho para homenageá-lo, já que o filho sonhava em realizar a prova. E ele dizia ter certeza que o filho dele estava lá espiritualmente. Naquele "deserto" branco, seria possível, de alguma forma reencontrar alguém tão especial? Por qual razão, as adversidades em algumas circunstâncias produzem tamanha transcendência?

    Outra linda história foi narrada por uma das participantes, uma jovem americana de Nova Orleans que sobreviveu ao Furacão Katrina. Ela afirmou que gostaria de concluir a prova para servir de exemplo para quem perdeu tudo no desastre. A jovem competidora não apresentava as melhores condições físicas, não aparentando possuir o condicionamento necessário para terminar a prova.

    Em outra bela narrativa temos um maratonista canadense que participa de corridas pelo mundo em busca de doações para combater a NOMA5, doença que pode ser fatal em 80% dos casos. Foram muitas histórias, que os limites do presente escrito não nos permitem descrever.

    No entanto, a ambientação conjectural da maratona, foi tão impactante que o próprio repórter/corredor/apresentador (Clayton Conservani) vivenciou uma profunda experiência de resiliência. Diante de uma situação tão adversa, ele admite que também teve que buscar uma motivação especial para vencer o desafio. “Estava absolutamente sozinho naquele deserto branco, cansado de corpo e de cabeça, quando pensei na minha filha. Como estava com uma mini-câmera, comecei a falar com a câmera como se fosse a minha filha. E isso me deu forças para continuar e ganhar posições na corrida. Foi uma experiência quase espiritual e de amor que ajuda a superar as dificuldades de uma situação como aquela", disse a ÉPOCA6. Fundamentando-se no relato do repórter, poderíamos dizer que experimentou uma significativa experiência de resiliência.

    Poderíamos continuar narrando as histórias, talvez apresentarmos os resultados, ou até descrever analiticamente as duas etapas da maratona, no entanto as pequenas histórias aqui discorridas são suficientes para afirmar que a atmosfera produzida por essa maratona produziu um dos mais belos espetáculos de personificação da resiliência já apresentado em canais televisivos.

    Adiante apresentaremos nossas considerações finais sobre a intrigante relação entre maratona e resiliência.

Uma palavra final

    Procuramos ao longo deste estudo, apresentar uma intrigante experiência entre maratona (neste caso no gelo) e resiliência. Embora o evento registrado fosse a princípio apenas mais uma programação televisiva, chamou a atenção dos pesquisadores autores deste artigo que tal experiência apresentasse elementos empíricos interessantes e suficientes para converter-se num registro científico que pudesse correlacionar dois fenômenos interessantes: a corrida (o desporto) e a superação (a resiliência).

    Assim, observamos que a resiliência é uma possibilidade de ressignificação dos sentimentos produzidos em determinadas situações adversas. Ou dito em outros termos: A resiliência é um processo que pode trazer novo significado e senso de propósito ao indivíduo que a protagoniza. Seja em seu sentido mais estrito, quando resiliência quer dizer "saltar" determinadas circunstâncias infaustas, desviando-se de enfrentamentos ou sofrimentos desnecessários. Ou nos exemplos mais notáveis, que ilustram a capacidade do indivíduo se reconstituir, ir além, como em alguns dos casos aqui narrados. Deste modo, podemos afirmar que os desdobramentos da resiliência implicariam num rompimento com o passado lançando o olhar para um futuro reconstruído.

    Vale lembrar que algumas circunstâncias, ainda que adversas, nos conferem possibilidades de experimentar os limites da condição humana; e romper, insurgir com os mesmos. E aos voltarmos de tais experiências, somos impelidos a ampliar nossa "marcha" pela liberdade, tornando-nos mais compassivos, generosos e solidários, como ficou explícito na atmosfera dessa maratona no gelo.

    Não foi o resultado do evento competitivo, nem tão pouco a premiação ou o pódio da disputa que produziu o efeito de ensinar as pessoas a como superar uma prova, no sentido mais literal da palavra. Mas as razões que levaram esses anônimos competidores à condição de heróis resilientes foi o enfrentamento de condições adversas em prol de ideais coletivos, ou altruístas, infinitamente superiores aos que normalmente se tem expectativa de ver em uma maratona. Talvez essa seja uma grande mensagem de contestação aos imperativos categóricos que cerceiam o universo desportivo.

Notas

  1. Rutter é professor de Psiquiatria Infantil no Instituto de Psiquiatria da Universidade de Londres. É uma autoridade internacional em desenvolvimento infantil e psiquiatria infantil, foi laureado com numerosos prêmios, incluindo o prêmio de eminente Contribuição Científica da Associação Americana de Psicologia. 

  2. DORNELLES, L. do A. Atletismo. Caderno Universitário da Disciplina Atletismo. Gravataí, RS: ULBRA, s.d.

  3. VIEIRA, S. O que é Atletismo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: COB, 2007.

  4. As Cruzadas foram expedições do exército cristãos, a fim de expandir o catolicismo e libertar a Terra Santa (atual Palestina) dos turcos (muçulmanos), patrocinadas pela Igreja Católica (Clero). O nome Cruzadas é utilizado porque os cristãos teciam uma cruz nas suas roupas, simbolizando o voto prestado à igreja.

  5. “Cancrum Oris” ou simplesmente NOMA Trata-se de uma gangrena viciosa e mortal que corrói a carne ao redor da boca alastrando-se por toda a face, atingindo principalmente crianças de até 6 anos de idade. Estima-se que 70 a 90 % das crianças assoladas por este mal, morrem, porém para aquelas que sobrevivem, resta a trágica situação de passar o resto dos seus dias com desfigurações tão grotescas a ponto de serem rejeitadas por suas sociedades.

  6. CASALETTI, D. Planeta Extremo a nova série do Fantástico. Rio de Janeiro, jul. 2011. Revista Época. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI245840-15220,00.html. Acesso em: 05 abr. 2013.

Referências

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  • BRASIL, CBAt. Atletismo: regras oficiais. Secretaria de Educação Física e Desportos, s.d.

  • BOFF, L. O tempo de transcendência: O Ser Humano como Projeto Infinito. Rio de Janeiro: Sextante, 2000.

  • CASALETTI, D. Planeta Extremo a nova série do Fantástico. .Net, Rio de Janeiro, jul. 2011. Revista Época. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI245840-15220,00.html. Acesso em: 05 abr. 2013.

  • COI (2001). Carta Olímpica. Lausanne: Comitê Olímpico Internacional.

  • DORNELLES, L. do A. Atletismo. Caderno Universitário da Disciplina Atletismo. Gravataí, RS: ULBRA, s.d.

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  • Kaplan, H. Toward an understanding of resilience: A critical review of definitions and models, en Glantz, M.; Johnson, J. (eds.), Resilience and development: positive life adaptations, New York, Plenum Publishers, p. 17-84, 1999.

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  • Luthar, S.; Cushing, G. Measurement issues in the empirical study of resilience: Na overview, en Glantz, M.; Johnson, J. (eds.), Resilience and Development: Positive Life Adaptations, New York, Plenum Publishers, p. 129-160, 1999.

  • Masten, A. Resilience comes of age: Reflections on the past and outlooks for the next generation of researchers, en Glantz, M.; Johnson, J. (eds.), Resilience and development: positive life adaptations, New York, Plenum Publishers, p. 281-296, 1999.

  • MORIN, E. Ciência com consciência. 14ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

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  • Rutter, M. (1985) Resilience in the face of adversity: protective factors and resistance to psychiatric disorder. British Journal of Psychiatry, 147, 598-611.

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  • SUÁREZ OJEDA, E. N.; MUNIST, M.; RODRIGUEZ, D. Seminario Internacional sobre aplicación del concepto de Resiliencia en proyectos sociales. Buenos Aires: UNLa, 2004.

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  • VIEIRA, S. O que é Atletismo. Rio de Janeiro: Casa da Palavra: COB, 2007.

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