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Um toque feminino no universo Kalunga

Um toque femenino en el universo Kalunga

 

Mestre em Educação Física pela UnB. Especialista em Docência do Ensino Superior pela UGF

Licenciado em Letras-Português e Respectiva Literatura pela UnB

Licenciado em Educação Física pela UCB

MS. Marcos Paulo de Oliveira Santos

marcospauloeducador@gmail.com
(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A pesquisa intitulada “Um toque feminino no universo Kalunga”, encetada pelo pesquisador Marcos Paulo de Oliveira Santos, trata-se de um recorte da dissertação de mestrado apresentada no bojo do Programa de Pós-Graduação (mestrado) em Educação Física da Universidade de Brasília em 2011. O trabalho pautou-se por uma investigação acurada, de cunho qualitativo, que teve por delineamento um estudo de caso da comunidade Kalunga, situada ao norte do estado de Goiás, e por procedimento de pesquisa a etnografia. A escolha da pesquisa etnográfica motivou-se pela complexidade do fenômeno a ser analisado, ou seja, o corpo. A construção do caminho metódico deu-se da seguinte maneira: (a) levantamento bibliográfico em que se construiu um apanhado geral sobre o estado da arte, consultando-se, prioritariamente, trabalhos de teses e dissertações sobre o tema investigado, com base no banco de teses da Capes/IBICT; (b) o segundo momento da pesquisa, diz respeito ao campo propriamente dito. Com a intenção de identificar o papel da mulher na comunidade Kalunga a partir das práticas corporais, foi feito o registro fotográfico e de imagem dos momentos festivos e cotidianos do grupo, procurando-se concentrar a investigação no uso do corpo, enquanto vetor polissêmico. Ao passo que ocorreram tais registros, também foi realizada a observação direta, realizando-se anotações em diário de campo; (c) os procedimentos de análise partiram das transcrições dos registros do diário de campo e da averiguação das imagens. Pretendeu-se interpretar os sentidos das imagens colhidas, tomando-se por base as falas dos sujeitos entrevistados, bem como a interpretação do "dito" acerca da imagem. À guisa de conclusão, observou-se um hibridismo cultural, porque o objeto em análise foi redimensionado, ou seja, o corpo feminino demonstrou-se polissêmico ante os fenômenos exógenos que orbitavam a comunidade. Os jovens, especialmente, foram os protagonistas dessa ressignificação; foram os responsáveis por demarcar a relação entre a tradição e a modernidade.

          Unitermos: Corpo. Cultura Mulher. Kalunga.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 179, Abril de 2013. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    O caminho histórico de ilações sobre o corpo advém da Antiguidade Clássica. E, realizar uma leitura diacrônica desse longevo cenário não constitui uma análise fácil e, sobretudo, fidedigna, já que o corpo está imbricado de uma análise biológica, bem como simbólica, e, uma série de feixes significativos que possibilitam uma constante releitura. São numerosos os caminhos a serem percorridos sobre esse objeto. “Realizar uma história do corpo é um trabalho tão vasto e arriscado quanto aquele de escrever uma história da vida” (Sant’Anna, 2001, p. 03). Desvelá-lo, em suma, constitui uma verdadeira tarefa de Sísifo1.

    Destarte, deve-se considerar que ao longo da história da humanidade vários fatores fizeram com que o corpo se tornasse um objeto de difícil apreensão e, por essa razão, uma abordagem calcada nas Ciências Sociais merece prudência e discernimento, a fim de não se fazer uma mixórdia (Le Breton, 2009). Trata-se, em suma, de uma sociologia do corpo ainda em desenvolvimento, nada obstante as valiosas contribuições de diversos pesquisadores.

    Eivado de um sem-número de signos que o caracterizam nas lógicas sociais e culturais, o corpo transcende a concepção de mera ferramenta e constitui-se em um “vetor semântico pelo qual a evidência com o mundo é construída” (Idem, 2009, p. 07).

    Porém, nem sempre foi assim. Segundo Le Breton e, tendo por recorte histórico o surgimento das Ciências Sociais, no século XIX, o corpo teve três distintas abordagens que podem ser assim compreendidas: uma sociologia implícita do corpo, momento em que os estudos ou análises se diluíam; havia outros fatores mais relevantes do que a dimensão corporal; uma sociologia em pontilhado, que ensejou consistentes elementos de estudo sobre o corpo, todavia, esses elementos não foram sistematizados e, por fim, uma sociologia do corpo, que se inclinou mais especificamente sobre o objeto corpo e estabeleceu as lógicas que nele subjazem (Idem, 2009).

    Ainda sob a égide do pensamento desse autor, a sociologia implícita do corpo teve sua gênese com as Ciências Sociais em formação no século XIX. Nesse prisma, “o homem é visto como uma emanação do meio social e cultural” (Ibidem, 2009, p. 16). Nessa perspectiva, as análises recaíram, sobretudo, nas condições miseráveis de vida dos trabalhadores no seio da Revolução Industrial. Embora já houvesse uma concepção de classe oriunda da civilização romana, foi a partir do século XIX que Karl Marx a aprofundou, “trazendo à baila aquele que seria o ponto central na discussão sobre a estratificação social: a luta de classes” (Medina, 1990, p. 60).

    Desta maneira, evidenciar a miséria física e moral; as péssimas condições de trabalho, bem como os parcos salários; o mundo reificado, etc., foram os apontamentos da obra marxista, sem se deter no objeto corpo propriamente dito. Daí a afirmação de Le Breton de uma sociologia implícita, porque o corpo não é visto apenas como algo biológico, mas, também, marcado pelas interações sociais, notadamente as explorações do mundo do trabalho alienado. Em outras palavras, ao analisar as relações sociais do trabalho, Marx indiretamente relevou os corpos coisificados.

    Ainda dentro da lógica da sociologia implícita do corpo, no mesmo período histórico, porém, contrário aos aspectos abordados na obra marxista, havia um modo de pensar e de submeter o corpo

    (...) à primazia do biológico, (mais ainda, de um imaginário biológico) as diferenças sociais e culturais, de naturalizar as diferenças de condição justificando-as por observações 'científicas': o peso do cérebro, o ângulo facial, a fisiognomonia, a frenologia, o índice cefálico, etc. O corpo é atormentado por essa imaginação abundante. Procura-se por meio de numerosas medidas as provas irrefutáveis do pertencimento a uma 'raça': os sinais manifestos na pele, da 'degenerescência' ou da criminalidade. De imediato, o destino do homem se inscreve na conformação morfológica; a 'inferioridade' das populares destinadas à colonização ou já colonizadas por 'rasas' mais 'evoluídas'; justifica-se o destino das populares trabalhadoras por alguma forma de debilidade (Le Breton, 2009, p. 17).

    Sob o prisma dessa biologização, o corpo passa a delatar o que é o ser humano; quais são as suas idiossincrasias. É a partir desse momento que as teorias racistas ganham volume; é no discurso dessa ciência nefasta que se justifica a ação da força sobre uma civilização dita “inferior”.

    O corpo traz em sua intimidade a realidade do sujeito, assim, ele não pode se esconder, porque é uma manifestação que não se altera (características fenotípicas); não se pode escolher seu destino. O corpo destina o que se deve ser e qual o lugar do sujeito no tecido social.

    Em contrapartida, os sociólogos se opuseram à dimensão meramente biológica do corpo. Reduzir o ser humano a tal aspecto seria desconsiderar as lógicas sociais e culturais. Portanto, era imprescindível ressignificar o corpo. Para tal desiderata, Durkheim (1974) cunhou a concepção de fato social, que "e algo dotado de vida própria, externo aos membros da sociedade e que exerce sobre seus corações e mentes uma autoridade que os leva a agir, a pensar e a sentir de determinadas maneiras” (Quintaneiro et al., 2009, p. 69).

    Mutatis mutandis, a visão durkheimiana -embora com viés mais social do corpo- também o deixou de modo implícito, porque sua organicidade era de competência da medicina, da biologia. Para Le Breton (2009) esse quadro começou a se modificar, primordialmente, com dois autores Hertz e Mauss, que são enquadrados por ele na sociologia em pontilhado, já que a antropologia física - que relacionava as qualidades do sujeito aos aspectos morfológicos - começava a ruir. Assim, os estudos acadêmicos dos autores supracitados demonstravam que o ser humano em verdade era o protagonista da construção social do seu corpo.

    Logo, o ser humano “não é o produto do corpo, [mas] produz ele mesmo as qualidades do corpo na interação com os outros e na imersão no campo simbólico. A corporeidade é socialmente construída” (Le Breton, 2009, p. 19).

    Mas, ainda assim, o objeto corpo não era fulcro das análises desenvolvidas; era, apenas, tangenciado (daí a expressão sociologia em pontilhado). As problemáticas exógenas tinham maior volume nas análises, embora o corpo começasse a ser questionado; problematizado.

    A partir dessa ideia, para efeitos de melhor concatenação do raciocínio aqui proposto, pode-se situar o sociólogo francês, Robert Hertz, na sociologia em pontilhado, já que ele efetuou um relevante estudo etnográfico tendo por referência o próprio corpo humano e os símbolos nele subjacentes e os relacionou às características e manifestações das diversas culturas. Constando que o corpo carrega significados culturais e serve de representação nas estratificações sociais.

    Nessa ótica, ele

    (...) observa que as razões fisiológicas são secundárias em relação ao obstáculo cultural constituído pelas representações: sempre negativas quando associadas à esquerda e sempre positivas quando se trata da direita. A oposição não é somente física, mas também moral. (...) O fisiológico está aqui subordinado à simbólica social (Le Breton, 2009, p. 20).

    O estudo de Hertz (1980) enfatizou que a preponderância da mão direita sobre a esquerda não seria exequível não fossem o reforço e as influências estranhas ao organismo, consubstanciadas na educação e no fato social, este último proposto por Durkheim (1974). Hertz (1980) tem a mesma concepção maussiana de corpo, considerando-o como um instrumento para a ação humana em um dado contexto.

    Embora tenham significados bem delimitados, a esquerda representando algo negativo e a direita algo positivo, as mãos nada mais são que “instrumentos com os quais o homem age sobre os seres e coisas que o circundam” (Hertz, 1980, p. 115). Por essa razão, a educação recai sobre a direita, para que o “negativo” (esquerda) não ganhe força. Trata-se, portanto, de uma seleção social.

    Assim sendo, segundo Hertz (1980), à luz dos conhecimentos adquiridos, o tabu relacionado ao lado esquerdo não faz mais sentido, porque isso torna o ser humano mutilado fisiologicamente. Embora seja difícil de ser desconstruído, esse tabu pode ser rompido por meio da educação.

    Marcel Mauss, por seu turno, centra suas preocupações com o corpo, calcado na noção de técnica corporal. Como se observa pelo o que se segue: “o corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento: o primeiro e o mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo meio técnico, do homem, é seu corpo” (Mauss, 2003, p. 407).

    Assim, o corpo maussiano não é meramente um instrumento, porque é também de sua autoria a definição de fato social total, o que redimensiona a questão. Nessa apreensão, Mauss (2003) também pode ser considerado como um autor que empreendeu os primeiros esforços para a construção da sociologia do corpo, isto é, conforme Le Breton (2009), uma sociologia em pontilhado.

    O corpo em Mauss ganhou um sentido maior com o acréscimo da concepção de fato social total, porque o analisando sob um tríplice aspecto (biológico, social, psicológico), o pesquisador adquire um maior leque de significados para ser considerado, quando da investigação empírica.

    Ele cunhou também a noção de técnicas corporais, que são "(...) as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo" (Mauss, 2003, p. 401).

    Ademais, sua compreensão de técnica é expressa como:

    (...) um ato tradicional eficaz (e vejam que nisso não difere do ato mágico, religioso, simbólico). Ele precisa ser tradicional e eficaz. Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral (Mauss, 2003, p. 407).

    A técnica corporal não é fácil de ser desconstruída. Daí a necessidade de uma alteridade cultural, muitas vezes negligenciada pela sociedade que impõe uma educação (e reforça estereótipos) que acabam por marcar os indivíduos. Mauss assevera que "cada sociedade tem seus hábitos próprios" (Mauss, 2003, p. 403) e que o aprendizado de uma nova técnica corporal ocorre lentamente.

    Para ele, a educação do corpo deve ter um fim em si mesmo; uma utilidade. “Creio que a educação fundamental das técnicas que vimos consiste em fazer adaptar o corpo a seu uso” (Idem, 2003, p. 421).

    Esse uso é exequível utilizando-se a concepção de homem total, para não tornar o corpo apenas uma ferramenta utilitarista. Mas, compreendendo-o como um objeto de muitos significados. Nas concepções de corpo aqui apresentadas, as contribuições de Hertz e Mauss deram-lhe um viés também simbólico e/ou semântico. Desta maneira, o pensamento meramente biológico das hard sciences sofreu uma primeira débâcle.

    Ainda dentro da divisão proposta por Le Breton (2009), a última instância seria a sociologia do corpo, entendida como aquela que delimita e problematiza com maior ênfase o objeto corpo. Essa área do campo científico tornou-se mais evidente, sobretudo, com os legados de Mauss (2003) e Hertz (1980) aqui já apresentados e principais precursores das discussões sobre o corpo. A temática corporal transcendeu a abordagem biomédica então vigente e, passou a ser objeto de construção simbólica a partir da década de 70, do século passado. Essa perspectiva ampliou as bases biofisiológicas e interpretou o corpo a partir do olhar social (Jodelet, 1984 apud Almeida, 2009).

    Diante disso, no mundo hodierno, as mudanças ou influências culturais são inevitáveis, até mesmo naquelas culturas em que o contato com o outro se dá de modo ameno. Os seres humanos são os protagonistas de suas culturas; modificam-na a todo instante. É certo também que essas mudanças podem ocorrer de modo consciente, quando há uma participação ativa dos atores sociais dentro de uma cultura ou, por vezes, ocorre de modo tácito e não muito claro (inconsciente), porque as trocas simbólicas se dão de maneira sutil e a mudança ocorre paulatinamente.

    Laraia (2009) em suas reflexões sobre o conceito de cultura reitera que o comportamento do ser humano não deve ser explicado por meio das diversidades somatológicas ou mesológicas, uma vez que essas abordagens são insuficientes para esclarecer os muitos pontos que subjazem a vida humana.

    O determinismo biológico, por exemplo, pautou durante muito tempo as relações sociais. Essa corrente era revestida de um discurso pseudocientífico, que possibilitou o surgimento de teorias racistas e eugênicas, como o nazismo. Ainda hoje se fazem sentir as heranças dessa corrente, porque muitas pessoas acreditam que “os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses” (Laraia, 2009, p. 17).

    Além dos múltiplos determinantes culturais, as condutas dos sujeitos dependem de um aprendizado adquirido em suas respectivas culturas, o que é denominado de endoculturação. Assim, as diferenças existentes entre um jovem do sexo masculino e uma moça não estão relacionadas aos hormônios que os caracterizam, mas na educação por eles apreendida (Idem, 2009). De tal sorte que é ela a responsável pelos papéis representados na sociedade.

    Outro ponto, não menos importante, comentado por Laraia, diz respeito ao determinismo geográfico que estabelece que “as diferenças do ambiente físico condicionam a diversidade cultural” (Idem, 2009, p. 21). Essa corrente de pensamento foi refutada, porque não há casualidade sobre o meio ambiente. Ao contrário, a cultura que realiza uma seleção sobre o meio; ela quem configura o meio. De tal maneira que é possível afirmar que “a grande qualidade da espécie humana foi a de romper com suas próprias limitações” (Idem, 2009, p. 24).

    Diante disso, Giddens (1991) aponta que a modernidade pode ser compreendida como um estilo ou costume de vida, ou ainda uma organização social proveniente da Europa desde o século XVII. Essas marcas sociais influenciaram mais ou menos o mundo ulteriormente.

    Entretanto, apesar de localizada no tempo e numa região geográfica, a modernidade, para esse autor, guarda características ainda pouco desvendadas. Todavia, para ele, a modernidade é essa confluência de continuidades e descontinuidades. O que nos remete ao conceito de hibridação, entendido como "os processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas" (Canclini, 2003, p. XIX). Logo, para Canclini (2003), a estrutura não pode ser considerada pura, ela sempre agrega elementos exógenos ou cria de si mesma novos aspectos, novos símbolos, adequando-se ao moderno.

    O corpo, portanto, é um objeto social, histórica e culturalmente construído e que carrega suas idiossincrasias em consonância com o ambiente que o cerca. Com base nesse prisma, buscou-se compreendê-lo no bojo da comunidade Kalunga, situada no estado de Goiás, a partir da ótica feminina.

Objetivos

    O escopo do presente estudo foi analisar as maneiras pelas quais o corpo feminino se manifesta na comunidade quilombola Kalunga, situada ao norte do estado de Goiás. Buscou-se identificar a polissemia corporal do corpo feminino a partir, sobretudo, dos festejos realizados no bojo da comunidade.

Metodologia

    A pesquisa, de cunho qualitativo, teve por delineamento um estudo de caso da comunidade Kalunga, situada ao norte do estado de Goiás, utilizando-se como procedimento de pesquisa a etnografia.

    De acordo com Oliveira (1998) a faina do cientista social consiste em observar três etapas de um mesmo processo, indissociáveis: o olhar, o ouvir e o escrever.

    A primeira etapa, o olhar, diz respeito ao modo como se compreende o objeto de análise. A maneira pela qual se percebe e analisa o objeto está intimamente vinculada ao arcabouço teórico construído ao longo do percurso acadêmico, em outras palavras, o objeto que se olha "não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade" (Oliveira, 1998, p. 19).

    Faz-se mister, portanto, que o olhar seja disciplinado com o precípuo escopo de tornar a "refração" a menor possível. É certo que se vê o que foi disciplinado para se ver, todavia não se pode olvidar que a "refração" exacerbada prejudica a análise do objeto; pode-se cair no engodo de estereotipá-lo ou saturá-lo de determinações deletérias que acabam por criar uma ciência que reforça diferenças e exclusões, ao passo que a ciência deveria promover a inclusão e a compreensão da diversidade.

    Ainda sob este prisma, pode-se trazer à baila o olhar antropológico compreendido por Daolio (2009, p. 25), que é a partir do "movimento de olhar para o outro e olhar para si mesmo através do outro", que o pesquisador ou cientista social é capaz de compreender e analisar uma dada cultura, sem negligenciar o princípio da alteridade, que é justamente o cuidado em não ter uma postura etnocêntrica ou maniqueísta (bom, ruim, evoluído, inferior), mas respeitar e entender uma cultura como parte relevante da família humana.

    Outra etapa cognitiva importante na pesquisa social e que estrutura e baliza o olhar, é o ouvir. Em verdade, o ato de ouvir é um complemento do olhar e possui as mesmas condições dele. O ouvir também "está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes" (Op. cit., 1998, p. 21).

    Por fim, como corolário das duas ações cognitivas supracitadas, tem-se o ato de escrever. Trata-se do momento de maior complexidade para o cientista social, porque estando aqui (being here), em seu gabinete, distante do lócus da pesquisa (being there), no processo de textualização ele fundamenta a sua observação, coloca vidas dentro do texto, reescreve-o constantemente, filtra-o.

    Outrossim, existe uma autonomia do pesquisador no momento de construção textual, que não é desvinculada dos dados coletados. Tudo depende da visão ou do trato com que esses dados são analisados. Em síntese, há uma quase simultaneidade entre o pensamento e o ato de escrever, que faz com que o pesquisador busque articular o olhar e o ouvir – do trabalho de campo –, com a elaboração do texto. Deste modo, antes de chegar a um aspecto formal, o texto é escrito e reescrito diversas vezes.

    Com base nessa compreensão, optou-se pela construção de um caminho metódico calcado na pesquisa etnográfica, que se justificou pelo grau de complexidade do fenômeno investigado, o que demandou do pesquisador a permanência/vivência com um grupo por um período de tempo. Neste âmbito, a trajetória da pesquisa se constituiu por meio de fases como forma de facilitar o processo de construção do método:

  1. Levantamento bibliográfico em que se construiu um apanhado geral sobre o estado da arte, consultando-se, prioritariamente, trabalhos de teses e dissertações sobre o tema investigado, com base no banco de teses da Capes/IBICT.

  2. O segundo momento da pesquisa, diz respeito ao campo propriamente dito. Com a intenção de identificar o papel da mulher na comunidade Kalunga a partir das práticas corporais, foi feito o registro fotográfico e de imagem dos momentos festivos e cotidianos do grupo, procurando-se concentrar a investigação no uso do corpo, enquanto vetor polissêmico. Ao passo que ocorreram tais registros, também foi realizada a observação direta, realizando-se anotações em diário de campo.

  3. Os procedimentos de análise partiram das transcrições dos registros do diário de campo e da averiguação das imagens. Pretendeu-se interpretar os sentidos das imagens colhidas, tomando-se por base as falas dos sujeitos entrevistados, bem como a interpretação do "dito" acerca da imagem.

Resultados da pesquisa e discussão

    Segundo Junior (2008) o termo Kalunga, de gênese africana, possui vários significados: pode ser um determinado local na margem do Rio Paranã; ou ainda uma planta de mesma denominação da região; também, uma variante da língua Bantu e que faz referência ao mar; ou traz a noção de morte, já que os escravos queriam dar a impressão aos senhores que eles tinham morrido nas serras e vãos.

    No campo empírico, quando lá estive, percebi que o rosicler da aurora confundia-se ao cenário multiforme e exótico da Chapada dos Veadeiros, espaço geográfico localizado ao nordeste do Estado de Goiás, onde está situada a comunidade Kalunga.

    Trata-se de uma região exuberante. Um profícuo santuário ecológico; com fartos depósitos auríferos e mineralogia impressionante. O clima caracteriza-se pelo seu frescor; é agradável, ameno. E, amiúde, observam-se os chuviscos breves que tornam a fauna e a flora fecundas. O terreno, em alguns trechos, é bastante acidentado e cercado por penedias com picos e anfractuosidades impactantes e belas. Adornadas de uma fímbria de luz que se modifica conforme a incidência solar.

    A paisagem é, também, entrecortada por diversos riachos que se mesclam à vegetação peculiar do cerrado; com os seus arbustos retorcidos, salpicados de folhas e flores em várias tonalidades (como demonstram as figuras 1 e 1.1).

Figura 1. Foto da Região (Foto: Marcos Paulo, 2010)

 

Figura 1.1. Foto da Região (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    É nesse contexto que, no mês de junho de 2010, estabeleci contato com o senhor Sirilo dos Santos Rosa, líder comunitário, responsável pelo núcleo do Engenho II, em Cavalcante, e Vão das Almas, em Teresina de Goiás.

    A faina de encontrá-lo não foi fácil. Antes de tal empreitada, realizei uma profunda pesquisa sobre a Chapada dos Veadeiros, especialmente, no que tange a acessibilidade, bem como os cuidados necessários para possíveis imprevistos.

    Por ser uma área de natureza abundante, foi imprescindível equipar-me com os mais variados instrumentos e recursos para eventuais necessidades. Desde água potável, alimentos, vestimentas leves, barraca a equipamentos para registros de imagens, caderno para registro de campo, documentos, entre outros. Tive, outrossim, de alugar um veículo potente (tração 4x4) para ter acesso ao local com tranquilidade.

    Embora as estradas federais, mormente a BR GO-118, apresentavam-se com boas condições de trafegabilidade, é imperioso frisar que havia determinados trechos em que a minha atenção de condutor devia ser redobrada, por conta de animais de grande porte na pista, buracos e outros percalços.

    O tempo gasto de Brasília a Cavalcante foi por volta de 3 horas; 3 horas e 30 minutos. Ao adentrar o município de Cavalcante, obtive informações no SAT (Serviço de Atendimento ao Turista) sobre como chegar ao Engenho II. Colhidas as informações, segui rumo ao destino.

    A acessibilidade à comunidade é bastante tranquila, passado o curto trajeto dentro do próprio município em que é asfaltado, adentra-se uma estrada de terra plana, onde dificilmente há problemas, exceção aos dias chuvosos. Dirige-se aproximadamente 1 hora, em companhia do cenário belíssimo do cerrado e de pouquíssimas placas de sinalização, que indicam o local da comunidade quilombola e de núcleos turísticos (cachoeiras, por exemplo) para visitantes.

    A comunidade do Engenho II ainda apresenta problemas estruturais graves, os quais, na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram tratados de forma mais intensiva. É bastante comum encontrarmos placas e informativos do governo federal com anúncios de investimentos (em energia, saneamento básico, leis fundiárias etc.) na região, bem como caminhões que levam insumos para as obras.

    A figura 1.2 demonstra esses esforços para a melhoria da comunidade. Ademais, é utilizada, ao centro, uma mão preenchida de preto na qual há uma bandeira do Brasil. Esse outdoor causou-me profundo impacto. As imagens têm essa capacidade de gerar múltiplas interpretações. E fiquei estupefato, porque aquele outdoor contrastava com a paisagem agreste; ainda em desenvolvimento. Aquela figura emblemática, em tamanhos grandiosos, causa de poluição visual nas grandes metrópoles, era, ali, uma simbologia de desenvolvimento; da modernidade que chegava. Era a marca indelével de que o Estado, doravante, não estaria mais ausente.

    A palma da mão negra com a bandeira do Brasil ao centro é a marca sine qua non de que o quilombola fez parte da história nacional e que, por isso, o Estado tentaria retribuir por meio de ações de infra-estrutura, entre outros, a carência material daquela comunidade, tantas vezes negligenciada pelos governantes.

Figura 1.2. Propaganda do Governo Federal (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    Defrontei-me, já na região do Engenho II, com diversas casas. Todas bastante singelas. Constatei que eram bem distanciadas umas das outras e em sua maioria configuravam-se somente por tijolos e não havia um acabamento. Eram cobertas por palhas ou telhas de amianto, o que me fez suscitar a clara relação com a cultura local, bem como com referentes que se aproximavam de casas pobres da periferia das grandes cidades ou mesmo de ambientes rurais, como era o caso. Ao redor, existia apenas a vegetação local, entrecortada por muita poeira de coloração esbranquiçada característica do solo. Ao centro da comunidade havia um campo de futebol, com balizas bastante danificadas. Tudo bastante precário o que inviabilizava qualquer prática esportiva. Nos momentos em que lá estive, ele não havia sido utilizado.

    É num desses cadinhos que mora o senhor Sirilo, homem de meia idade, delgado e de vestes singelas. O chapéu na cabeça reforça o traje empertigado. Ele carrega consigo um olhar perscrutador e um sorriso acolhedor.

    Demonstrando a polidez e a cordialidade difíceis de serem encontrados no ambiente citadino, ele recepcionou-me muitíssimo bem e apresentou-me, orgulhoso, algumas fotografias de entrevistas e momentos importantes de sua vida afixadas na parede da sua singela casa. Foi lá, que lhe relatei os objetivos da minha pesquisa e elucidei-lhe todos os pontos nebulosos, a fim de não cometer equívocos com a sua veneranda confiança, tampouco com o Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Brasília.

    O único adendo proferido por aquele homem incomum, dizia respeito à ética que ele esperava de mim, enquanto pesquisador. Foi-me narrado que muitos outros investigadores sociais lá estiveram, coletaram dados, fizeram entrevistas, colheram materiais, sorveram da cultura Kalunga, contudo, nunca deram um retorno à liderança ou aos membros locais. E, o pior, usufruíam dos saberes daquela comunidade e lucravam financeiramente em outras instâncias; calcados em ensinamentos e hábitos daquele povo.

    A observação, portanto, do senhor Sirilo era de que eu respeitasse a comunidade. Que não cometesse o mesmo equívoco de outros pesquisadores de não retornar ao lócus da pesquisa para divulgar o que foi feito dos dados coletados. Aliás, abro um parêntese para relatar que esse hábito é bastante comum no meio acadêmico. Ou seja, o pesquisador conquista a confiança de determinados grupos para a realização da pesquisa e, realizada a faina, desaparece. Não é dado um feedback às pessoas. Que, por sinal, são as mais interessadas nos registros que são realizados. Foi possível pressentir no campo empírico a preocupação deles com o olhar do pesquisador sobre a sua cultura.

    A empatia foi espontânea. Ele acreditou no meu propósito, porque, segundo ele, eu era oriundo da Universidade. E, sob o seu prisma, a instituição deve sim divulgar a cultura daquele povo esquecido; mas não mercantilizá-la.

    A Universidade, segundo ele, é muito afastada dos conhecimentos e saberes da cultura Kalunga. Percebi em suas palavras que, doravante, eu deveria divulgar os hábitos, costumes, crenças, enfim, as idiossincrasias daquele povo no meio universitário. Mormente, numa instituição do porte da Universidade de Brasília. Em síntese, o respeito foi o seu único e mais caro desejo. Conversamos ainda sobre assuntos triviais e volvi à Brasília para que pudesse dar prosseguimento àquela empreitada.

    Munido da documentação necessária para ingresso com pedido de aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), do Instituto de Ciências Humanas, da Universidade de Brasília, dei entrada no referido órgão, que aprovou a pesquisa celeremente.

    Nesse ínterim, tive ensejo de visitar e conhecer a comunidade Vão das Almas, em Teresina de Goiás. Sob os auspícios da senhora Ester Fernandes de Castro, que é a vice-liderança local e que me foi indicada pelo senhor Sirilo. De posse da autorização do Comitê de Ética em Pesquisa, empreendi nova viagem a microrregião supracitada, tendo os mesmos cuidados já narrados anteriormente, e lá tive oportunidade de participar das festividades da comunidade. Tais eventos ocorreram em meados de agosto, mês de Nossa Senhora da Abadia, que tem os encômios e festejos realizados no dia 15 do mesmo mês (e serão narrados mais adiante).

    O Vão das Almas, ao contrário do Engenho II, é de acesso extremamente difícil. As lajotas danificam os veículos, as penedias carregam em seu bojo fendas e obstáculos sinuosos. Não é raro encontrarmos ao longo do caminho, veículos danificados ou que necessitam de auxílio para saírem de algum atolamento. Comigo ocorreu tal constrangimento e, graças ao auxílio de algumas pessoas, consegui retirar o veículo que conduzia da areia movediça a qual havia atolado. Não foi um processo simples. Foram dispensadas várias horas para essa atividade.

    É imperioso salientar também que o acesso ocorre a partir da BR GO-118. Porém, o local é praticamente impossível de ser localizado, por causa da vegetação espessa e alta. Em determinado trecho da rodovia, há uma pequena placa que deve ser observada com muita atenção pelo condutor para que consiga ter acesso ao local. Além disso, não há retorno na referida rodovia, tampouco acostamentos. Isso dificulta bastante o acesso e torna o retorno ao local, para quem passar direto, bastante perigoso, uma vez que os veículos transitam em altíssima velocidade.

    O condutor que deve se aproximar do pouco de acostamento que existe e observar quando é possível transpassar a rodovia para ter acesso à fazenda que liga ao Vão das Almas.

    Após o dificílimo trajeto até o Vão das Almas, realizado de veículos específicos ou a cavalo, pude constatar que a comunidade se reunia ali somente para a festividade; disseram-me, posteriormente, que esse deslocamento até o local era somente nos momentos de festas. Essa notícia, para mim, foi de certo modo um alívio, porque as choupanas com as quais me deparei eram muito precárias em comparação ao que vislumbrei no Engenho II, quando do primeiro contato com o senhor Sirilo. E confesso que num primeiro momento, veio à minha mente o questionamento inexorável: “Como é possível morar aqui?”. Essa minha tergiversação é importante de ser registrada aqui, porque pude recordar do olhar a que se refere Oliveira (1998). Não estava acostumado com aqueles casebres insalubres e paupérrimos.

    Lá, no Vão das Almas, percebi tugúrios construídos à pau-a-pique. Ali, pululava aos meus olhos a velha técnica de entrelaçamento de madeiras e cipós. Em alguns existiam divisões. Em outros, era apenas o espaço. A cobertura vegetal era fustigada pelo calor insuportável do sol, que no cerrado tem uma incidência peculiar.

    A notícia do festejo é deflagrada pelas lideranças e ocorre uma espécie de imigração ao local; diversos Kalungas da vasta região se reúnem com o escopo de se confraternizarem e manterem vivas suas tradições.

    Destarte, pode-se descrever o Vão das Almas como um lugar exótico; ao mesmo tempo dantesco e belo. É o local onde vi constantemente fechar-se o leque de plumas douradas do astro-rei e, ao anoitecer, vi o balé macabro da fogueira a preencher de luz, aquela região ímpar. É o espaço recheado de choupanas, que servem de abrigo aos transeuntes (nós, estrangeiros e aos Kalungas).

    É um local antitético por excelência. Se de um lado há equipamentos de sons e veículos automotivos, por outro, é desprovido de energia elétrica e, por isso, é utilizado um gerador para alimentar as diversas barracas que são construídas para o festejo da comunidade, nas quais são vendidos acepipes e bebidas diversas.

    Não há banheiros ou quaisquer meios de saneamento básico. Um riacho, que circunda a região, é utilizado para as necessidades fisiológicas, bem como para a limpeza de utensílios ou artigos variados. Ali, no ventre da Mãe Gaia2, misturam-se os excrementos corporais, o dessedentar dos animais e a limpeza das ferramentas humanas (conforme figura 1.3).

Figura 1.3. Limpeza de utensílios (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    A relação dos frequentadores com a natureza também é paradoxal. Não sei a gênese de tal comportamento. É difícil precisar. Porém, há a convergência para dois aspectos: ou eles não têm cuidado com o local, porque permanecem lá temporariamente. Ou, é um hábito cristalizado; de difícil solução. Que eles carregam consigo em quaisquer meios em que estiverem.

    O fato é que constatei esse desrespeito com o lugar. Daí o paradoxo; daí a contradição, segundo minha análise. Porque ao mesmo tempo em que há lixeiras adornadas por desenhos infantis, coloridos, feitos em cartolinas, demonstrando o local adequado para o acondicionamento dos lixos e a necessidade de uma consciência ambiental; há também um notável descuido com o espaço que é utilizado para as festividades, favorecendo a proliferação de vetores deletérios aos humanos.

    A despeito dos apelos infantis, por intermédio dos seus cartazes, para a preservação do meio ambiente. Não foi difícil encontrar latas de bebidas, plásticos, restos de alimentos pelo chão e animais revirando o monturo, como mostram as figuras 1.4 e 1.5.

Figura 1.4. Sujeira espalhada pelo Vão das Almas (Foto: Marcos Paulo, 2010)

 

Figura 1.5. Cartaz infantil para preservação do meio ambiente (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    A juventude Kalunga não dispõe de muitos meios de lazer. Percebi no campo empírico um acentuado número de jovens consumindo bebidas alcoólicas, dirigindo motocicletas/bicicletas ou andando a cavalo. Penso que o consumo juvenil de bebida alcoólica exacerbado funcionava como uma catarse aos poucos recursos disponíveis para diversão. Foram muitos jovens e adultos que avistei no campo empírico em situações deploráveis; os ébrios se torcegavam em meio a vegetação. A impressão que tive foi que o tédio levava-os a esse caminho. O tempo passava lentamente. O festejo em si, só teve início à noite. Talvez, por isso, parecia que o dia era mais longo para todos nós que lá estávamos.

    Creio que tal sensação ocorria, porque não havia recursos para diversões. Muitas pessoas ainda chegavam ao local, montavam as barracas, outras dormiam, enfim, cada uma procurava à sua maneira uma distração.

    Desse modo, além desse aspecto lamentável do consumo alcoólico, muitos jovens aderiram aos jogos de bilhar (outro recurso disponível), todavia, para poucos. Ou ainda a bicicletas, como demonstram as figuras 1.6 e 1.7 adiante.

Figura 1.6. Jovem na mesa de bilhar (Foto: Marcos Paulo, 2010)

 

Figura 1.7. Criança na bicicleta (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    Chamou-me atenção, também, a capela. Situada no meio da região onde se reúnem os Kalungas para seus festejos. É, portanto, um lugar de destaque; privilegiado. Lá, são feitas as homenagens litúrgicas, notadamente, para Nossa Senhora da Abadia, que tem seus encômios realizados no dia 15 de agosto.

    A capela é uma casa simples e pequena, pintada em branco e adornada com papéis crepons vermelhos e brancos no umbral. Em seu interior há um pequeno altar com alguns santos do panteão católico, algumas bandeirolas multicoloridas para enfeitar o ambiente e alguns bancos onde os fiéis se acomodam para os rituais.

    As bandeirolas são confeccionadas com esmero pelas mulheres Kalungas (figura 1.9) e quando questionadas sobre os motivos pelos quais as construíram, disseram-me que era para tornar o lugar mais bonito. Não houve, pelo menos no relato que me foi passado, qualquer significado além do estético.

    Inúmeras atividades, aliás, são realizadas pelas mulheres. “A ornamentação fica a cargo das mulheres, sendo delas a iniciativa de cuidar do altar, arrumar os santos, enfeitar a bandeira (...) tirar a reza” (Godinho, 2008, p. 88).

Figura 1.8. Mulheres Kalungas adornando o lugar (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    A respeito das mulheres Kalungas, um acurado trabalho para averiguar os papéis desempenhados por elas foi empreendido por Godinho (2008: 84), que constatou

    (...) que a educação das meninas é mais rígida que a dos meninos (...) Constatei isto, quando vi uma menina de 7 anos, matar e limpar uma galinha. (...) a menina é preparada para as funções do lar, aprende prendas domésticas e forma de comportamento, conforme fala dona Eunice 'A mãe ensina que não pode sentar de qualquer jeito, não pode vestir curto e nem ficar com umbigo de fora'.

    Em verdade, no campo empírico, não constatei nenhuma rigidez por parte das senhoras com relação aos mais jovens, especialmente às moças. Ao contrário, suas vestimentas, mormente para as danças, eram caracterizadas por roupas justas, coloridas, citadinas. As mulheres têm maior autonomia nas suas ações. Fato que também é constatado por Godinho (2008). Elas que realizam diversas atividades (ir à cidade; ir ao comércio; receber aposentadorias, entre outros). Em síntese, o fenômeno global das mulheres demarcando suas posições sociais (especialmente agora, instituída uma mulher na presidência da república no Brasil), também ocorre naquela comunidade. O que se viu em campo foi o matriarcado.

    No período vespertino, os Kalungas se reuniram para celebrarem à Nossa Senhora da Abadia. É nesse momento que ocorre o Império. Essa atividade designa a saída de uma determinada família de um barracão até a capela.

    O imperador é sorteado anualmente e no barracão ocorre a preparação da sua indumentária, bem como dos demais participantes da homenagem.

    A atividade consiste em ir à capela saudar a santa e os circundantes. À frente vai o imperador, adornado de terno e gravata, uma coroa multicolorida na cabeça e sua família logo atrás. Ao seu lado, encontravam-se dois pequerruchos, simbolizando anjos, de roupas vermelhas, coroas coloridas e asas brancas. Havia ainda os mordomos, que eram responsáveis por segurarem longas varas multicoloridas, que serviam de barreira e formavam um grande quadrado para a chegada do Império. Nesse quadrado, os alferes executavam movimentos específicos de acordo com suas “ferramentas”. Havia um que portava uma espada. E outro, que segurava uma bandeira. Os movimentos executados por ambos simbolizavam ou representavam proteção e paz, que o Império trazia a todos os presentes. Não raro, os movimentos de ambos eram momentaneamente interrompidos devido à forte poeira do local. Passada essa, o cortejo prosseguia.

    A capela é tomada por dezenas de pessoas, da própria comunidade e estrangeiras, que professam a sua fé; sua devoção. As pessoas mais velhas sentam-se à frente, nos primeiros bancos, e são responsáveis por iniciarem as ladainhas. O imperador e os anjos sentam-se logo em seguida. Os alferes esperam do lado de fora. O tartamudear das orações lembra o latim e erroneamente os turistas ou menos atentos acreditam se tratar do idioma “morto”. Mas, uma atenta acuidade ou percepção linguística demonstra não o ser. Trata-se somente de uma variação linguística percebida naquela comunidade; naquele grupo. E não cabe no presente estudo tergiversar sobre a gênese de tais mudanças.

    O que pode ser relatado é a profunda devoção às imagens presentes no santuário, a quantidade de velas que são acesas e pedidos feitos para a obtenção de benefícios os mais variados possíveis. E, outrossim, o agradecimento pelas bênçãos recebidas.

    Não me foi possível precisar por quanto tempo duraram as orações. Tampouco constatei uma intromissão de nós, estrangeiros, nos cultos Kalungas. Ao contrário, todos que lá estávamos, assistíamos a tudo com respeito e silêncio.

    Ortiz (1999) teve o propósito de investigar como se deu a integração e a legitimação da Umbanda no bojo da sociedade brasileira. Para ele a Umbanda

    (...) corresponde à integração das práticas afro-brasileiras na moderna sociedade brasileira; o candomblé significaria justamente o contrário, isto é, a conservação da memória coletiva africana no solo brasileiro (...) a Umbanda (...) tem consciência de sua brasilidade, ela se quer brasileira (1999, p. 16).

    Segundo esse autor houve uma metamorfose dos costumes, crenças e valores africanos. Porém, a materialização da religião umbandista na sociedade urbano-industrial brasileira não se deu de modo tácito e harmonioso. Houve diversos períodos de tensão; de ruptura com o passado e a releitura das tradições; de violências e subjugação simbólica do branco sobre o sujeito negro, que acarretou “o desaparecimento ou a metamorfose dos valores tradicionais negros; eles [tornaram-se] caducos, inadequados a uma sociedade moderna” (Idem, 1999).

    Sua pesquisa foi demonstrar como o processo de surgimento da Umbanda esteve vinculado às transformações sociais ocorridas no país em determinado momento histórico. Quanto ao que vi no campo empírico, reitero que não houve desrespeito de qualquer natureza no ambiente sagrado dos Kalungas. Mas, foi possível perceber o empretecimento no momento litúrgico. Esse termo é do próprio Ortiz (1999, p. 33) que designa “o movimento de uma camada social branca, em direção às crenças tradicionais afro-brasileiras; trata-se de uma aceitação do fato social negro, e não de uma valorização das tradições negras”. Isso porque, embora reinasse o silêncio e o respeito, percebi em alguns estrangeiros o semblante carregado de curiosidade.

    E, talvez, alguns deles ajoelhavam-se e também faziam pedidos durante a missa, agradecendo aos santos dispostos no altar, não porque professassem a fé católica peculiar do local, mas porque ali estava posto um fato social. Daí esse diálogo ao termo de Ortiz.

    Era uma cena pitoresca diante dos meus olhos, os semblantes de devoção do Kalunga e do estrangeiro eram distintos. Aquele demonstrava maior fervor, enquanto esse, talvez, tivesse realizado os mesmos comportamentos como um autômata; era mais frio. O que não significou falta de respeito. Mas apenas diferença de emoções diante das imagens.

    De tempos em tempos, soltavam-se fogos de artifício durante a celebração. Essa prática, aliás, era realizada em sua maior parte por jovens. Isso me deixou apreensivo, porque não havia qualquer mecanismo de proteção ou cuidado por parte deles. Ao contrário, eram muitas vezes levianos e atiravam a esmo. O fato concreto é que houve um momento em que a fagulha caiu sobre a telha de palha de um casebre e iniciou-se o fogo sobre o mesmo. A sorte é que vários homens jovens chegaram ao telhado com bastante desenvoltura e conseguiram controlar o fogo que se espalhava. Esse episódio ocorreu no decurso das orações na capela. O estranho foi que as pessoas mantiveram-se nas orações, talvez não tivessem escutado os gritos de fogo!

    Ao finalizarem as ladainhas e os agradecimentos ou pedidos, repete-se toda a dinâmica empreendida no início e o Império retorna ao barracão. Ato contínuo, sob a estrutura que lá havia, as pessoas ficavam à vontade para o festejo, cercadas por muitos acepipes, bebidas e forró.

    Foi possível registrar a interação de gerações; o corolário da tradição e da modernidade. Um jovem, de calça jeans, blusa laranja e boné, tomava refrigerante quando foi convidado por uma senhora para dançar. Ele não titubeou. Aceitou o convite e dançaram bastante. Essa cena, a priori inusitada, repetiu-se por diversas ocasiões no festejo.

    A banda formada por Kalungas e/ou amigos e que animava bastante o festejo. Na imagem é possível perceber dois instrumentos básicos e que não podem faltar no forró: a sanfona e o triângulo. Esse fenômeno musical será analisado mais adiante. O fato que merece destaque é a presença marcante desse ritmo após as homenagens litúrgicas.

    Havia uma simbiose cultural entre os músicos e os Kalungas; todos se irmanavam em torno do ritmo do forró. E a animação perdurou por várias horas...

    Diminuída a azáfama com a chegada do crepúsculo, quando o zimbório de veludo escuro da noite com seus pingentes de prata fulgurantes recaíam sobre nós, era o momento das missas. Além das pessoas da própria comunidade, vários estrangeiros se aglomeravam na capela para acompanharem as orações e registrarem os mínimos detalhes dessa cultura. Nesse ínterim, houve também o deslocamento do mastro às cercanias da capela3 e a queima de fogos de artifício de tempos em tempos.

    Terminadas as orações, todos os presentes na capela e adjacências seguiram o mastro por toda a comunidade. Eles também circundavam a capela por diversas vezes, sob o estrondo dos fogos de artifício e às mãos carregavam pequenas tochas. Assim, seguia a procissão...

    Após um período considerável de tempo, houve uma pausa no cortejo. Fizeram um silêncio profundo. Os homens prepararam a base e, ao erguerem o mastro, houve uma ovação considerável em favor da santa homenageada e o ribombar dos fogos de artifício. Além de uma fogueira imensa próxima ao mastro, que não possuía nenhuma significação especial. Ali estava para afugentar o frio que era demasiado. Erguer o mastro designava também o início do festejo.

    O fato curioso que merece menção diz respeito ao comportamento juvenil. Eram pouquíssimos os que acompanhavam o culto religioso. Concomitante às homenagens litúrgicas, ao longe, os jovens se locupletavam com uma dança em particular: o forró. Mas, agora, com equipamentos eletrônicos e caixas de som. Já que a banda acompanhava o cortejo e tocava músicas específicas às rezas. Havia uma fronteira bastante demarcada, porém, não litigiosa: de um lado, os jovens com o forró eletrônico ou os mais famosos da indústria cultural; de outro, os mais velhos e outras pessoas visitantes que acompanhavam a procissão.

    Assim, sob os auspícios do mastro já erguido, alguém gritou: “A sussa!”. De repente, os músicos pararam e iniciaram um toque bastante peculiar, que caracterizava a dança sussa. Não percebi, nessa dança, o mesmo entusiasmo que o forró executado mais distante causava aos jovens. Ao contrário, pouquíssimas pessoas a dançavam.

    As figuras foram colocadas a seguir, para melhor compreensão dos gestos e dos significados imbricados nos mesmos. A figura 2 demonstra um dos músicos do forró participando da dança sussa. Esse senhor cantava as cantigas que embalavam a dança; além de executar alguns acordes em sua sanfona. Como demonstra a imagem, percebi os semblantes mais sérios dos circundantes. Eis o motivo pelo qual afirmei que não constatei o mesmo brilho no olhar; a mesma alegria que percebi no forró. Havia mais um clima de apatia por parte de muitos Kalungas, que de participação propriamente dita. Enquanto nós, estrangeiros, estávamos tomados pela curiosidade em desvendar aquela magia corpórea tão peculiar.

    Foi nesse momento que eu percebi o estertor de uma cultura. A sussa foi executada por poucos minutos, aproximadamente uns 15 ou 20 minutos. Para, logo em seguida, dos mais tenros aos mais velhos, todos se lançarem ao forró executado pela animada banda. O diferencial é que os jovens já o faziam desde o início; ou seja, não participaram dos rituais de celebração, tampouco da sussa. Mas escutavam o forró eletrônico.

Figura 2. Músico (forró) (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    A figura 2.1 demonstra algumas senhoras dançando a sussa. Eram duas mulheres Kalungas que trajavam-se de modo simples. A primeira, de blusa de frio rosa e saia verde com estampas floridas, calçava chinelos e tinha os pés sujos devido a poeira do lugar. A segunda, mais jovem, trajava blusa de frio também cor rosa, calça jeans, bota e um gorro preto com detalhes listrados em vermelho e branco para se proteger do frio. Algumas pessoas próximas, isso eram poucas, batiam palmas para acompanhar a dança sussa.

    A sussa é caracterizada pelo batuque. O senhor que portava a sanfona acompanhava o ritmo e, por vezes, seu som cobria o executado para a sussa. Mas isso não impedia que a dança continuasse.

    Porém, o fato concreto é que tivemos dificuldades para realizar o registro adequado da dança, isso porque ela teve início por volta de 1 hora da madrugada e durou poucos minutos (em torno de 15 ou 20 minutos). Nós, (estrangeiros, pesquisadores, visitantes, etc.) não portávamos equipamentos potentes para a completa cobertura do momento, visto que a iluminação era somente da lua e dos pequenos ramalhetes acesos em homenagem à Santa. Outra dificuldade encontrada no campo foi o empurra-empurra das pessoas que estavam em círculo para ver a dança, o que dificultava ainda mais o registro.Consideradas essas dificuldades, encetei a filmagem como me era possível... (utilizei o nightshot plus da handycam que portava). Entretanto, o registro indelével se fez marcar na minha memória e no meu coração. Aqueles que dançavam, humílimos, demonstravam a certeza de que deveriam manter aquela cultura viva. E isso é difícil de traduzir em palavras...

    A dança em si teve início quando um dos músicos gritou: “Olha a sussa!”. O círculo foi feito e as senhoras adentravam-no para dançar. A dinâmica lembra um pouco a capoeira, ou seja, há uma roda, na qual o par adentra para dançar; quando um sai, outro entra e, assim, sucessivamente. Embora lembre um desafio ou disputa, não é isso que ocorre. O movimento se dá sempre em parceria; não necessariamente entre homem e mulher. Nesse comenos, não há papel delimitado. Os gêneros têm igualdade na roda; o que os diferem são as vestimentas. As mulheres movimentam bastante as saias, ao passo que os homens concentram-se mais na batida dos pés.

    O movimento corporal é simples, mas conforme relataram-me, é algo que está no sangue (o que configura a marca identitária do movimento). Disseram-me também que não é possível determinar um padrão de movimento, visto que cada Kalunga sente a música e a representa a sua maneira.

    Não obstante, tentei descrever alguns dos cenários que se me apresentaram. Ainda com base na figura 2.1 é possível ver os membros superiores distendidos ao longo do corpo, raras vezes eles foram ou são utilizados. E, sob o ponto de vista mais técnico, quando o são é para dar equilíbrio. Há um movimento bastante rápido dos pés e, não necessariamente uma ordem de início (se pé esquerdo ou direito, tanto faz). Ocorrem, também, giros de 180º graus ou às vezes completos. O que foi mais costumeiro foram os giros mais simples para direita e esquerda. Ao som dos tambores, os participantes movimentam os pés freneticamente. Há uma incidência sobre o baixo corporal, contudo, sem denotar um ar lascivo. Pelo menos, não constatei isso em campo. As pessoas que dançavam a sussa apresentavam os rostos marcados pelo riso, pela descontração ou a seriedade devido à concentração em executar os movimentos.

    Cada pessoa fica alguns segundos na roda, em torno de 30 segundos; algumas chegam a 1 minuto. Variou bastante. Não há uma delimitação fixa!

Figura 2.1.a. Mulheres dançando Sussa (Foto: Marcos Paulo, 2010)

 

Figura 2.1.b. Mulheres dançando Sussa (Foto: Marcos Paulo, 2010)

    Em estudo bastante interessante, Barbosa e Bairrão (2008) propuseram-se a analisar o movimento corporal em rituais umbandistas, com o intuito de contribuírem para o “conhecimento da umbanda no atinente à sua linguagem corporal, assim como de levantar subsídios para uma etnopsicologia brasileira” (2008, p. 226). Para esse mister, utilizaram-se do método Laban4, que analisa de que modo o corpo pode transmitir estados internos (por ele denominado de esforços), consubstanciados em movimentos. Essas reflexões ou noções auxiliam na compreensão da sussa, representadas nas figuras acima.

    Para ele, "existem valores intangíveis que inspiram movimentos" (Laban, 1978, p. 19). Nesse particular, pude constatar que as palavras da senhora Ester, minha cicerone, foram valiosas e caracterizavam o que esse autor exarou em sua obra. Quando a perguntei sobre a sussa, ela me respondeu, peremptória: "A sussa é uma dança Kalunga. Tá no sangue". Creio que essa última afirmativa, de cunho metafórico, representa essa intangibilidade proposta por Laban. Para efeito desse trabalho, interpretei esse dado como um fenômeno vinculado à identidade. A dança, portanto, é uma marca identitária! E o sujeito Kalunga é um virtuose. Ele possui os recursos intrínsecos adrede mobilizados para a execução dessa dança. O leitor pode se perguntar: Que recursos são esses? A própria Ester responde: "Tá no sangue!".

    O autor ainda estabelece que a dança necessita ser descrita para que não se percam seus símbolos fundamentais. "Uma literatura da dança e da mímica escrita em símbolos de movimentos é tão necessária e desejável como os registros históricos da poesia, na escrita, e da música, na notação musical" (Idem, 1978: 53). Entretanto, há um impeditivo também para a análise do movimento da sussa. Por ser algo que está "no sangue", cada Kalunga tem uma particularidade, uma expressividade a externar no momento da dança. Isso torna a faina descritiva bastante espezinhada e seria por demais prolixa para o escopo deste trabalho.

    Ao analisarem as danças registradas em imagens e vídeos (figura 2.2), as jovens evocaram a tradição, a feminilidade, o prazer em se manter a cultura, especialmente, a sussa, eminentemente uma dança feminina. Ao passo que os rapazes preferem o forró, devido a proximidade dos corpos e a maior possibilidade do flerte. Os jovens, nascidos na comunidade, mas migrantes para os grandes centros urbanos, volviam com as características ou costumes sorvidos na cidade. E os manifestavam por meio de suas vestimentas e, sobretudo, por meio de suas danças, nas quais a prevalente era o forró. Essa prática corporal dava-se com vários objetivos; o fulcral, segundo o relato dos jovens, era a possibilidade de manter os corpos próximos aos das meninas. Dançar separado não fazia sentido para eles. Além desse aspecto, eles viam a sussa como algo antiquado. Não percebi um conflito inter-geracional; eles respeitavam essa prática corporal, porém, ela não lhes era agradável.

Figura 2.2. Jovens analisando as danças registradas (Foto: Marcos Paulo, 2010)

Conclusões

    Um conceito seminal nas Ciências Sociais é o fato social total. Caudatário desse preceito, intentou-se nessa pesquisa realizar uma sociologia do corpo. Sem desconsiderar as partes dessa totalidade, quais sejam os aspectos biológico, psicológico e social.

    Para tal desiderata empreendeu-se o estudo de caso e por técnica de pesquisa a etnografia. O decurso dessa caminhada mostrou-se profícuo, porque ensejou uma análise acurada do campo empírico. Investigação que calcou-se no corpo e, especialmente, na dança, por considerá-la “a poesia das ações corporais no espaço” (Laban, 1978). E por ser considerada, metaforicamente, uma poesia, cada indivíduo possui uma interpretação sui generis dos versos, estrofes e rimas que o corpo pode propiciar.

    Por meio dos discursos orais e do contexto que se me apresentou, percebi que o passado, tantas vezes evocado pelos mais velhos, já não residia em grande parte naquela comunidade. Aliás, ruiu-se o discurso passadista de escravidão, refúgio, atraso. Ao contrário, pouquíssimos Kalungas falavam sobre esses assuntos e quando o faziam eram para pessoas de fora que não conheciam de fato o contexto histórico do Brasil. O cenário, por sua vez, falava por si mesmo. Demonstrava que antes de se deparar com um contexto de pobreza extrema e atraso em todos os sentidos, encontrava-se uma cultura bastante profícua.

    Isso porque os mais jovens, com o modus vivendi do meio urbano, volviam à comunidade não para somente rever os mais velhos e as tradições somente, mas para participar dos folguedos e caracterizá-los conforme os hábitos apreendidos no contexto urbano. Curioso foi perceber veículos automotivos com músicas de grande apreço popular no cotidiano daquela comunidade. Peculiar foi constatar que muitas pessoas mais velhas, ao contrário do que se poderia imaginar, também apreciavam as músicas e dançavam, aos poucos, com os mais jovens.

    Não se trata de uma comunidade indene! Mas, que se ressignificou no tempo e no espaço. Tornou-se híbrida. E o intercâmbio entre a tradição e a modernidade se consubstancia no papel da mulher, no seu toque sutil, em manter a tradição, em enfeitar o espaço para o festejo, em ensinar as jovens nas danças tradicionais, em aprender as rezas com as senhoras da Capela etc.

    A mulher, portanto, nessa comunidade, é fator importantíssimo para a manutenção de uma cultura que é brasileira por excelência.

Notas

  1. Segundo a Mitologia Grega, foi um mortal que foi condenado por Zeus ao trabalho pernóstico e cansativo de rolar uma imensa pedra ao cume de um monte e, lá chegando, a pedra voltava a cair para a base. Forçando-o a recomeçar a trajetória novamente.

  2. Segundo a Mitologia Grega era a deusa da Terra; Mãe da Terra; elemento primordial.

  3. O responsável pela condução do mastro é sorteado previamente. A dinâmica e a simbologia do mastro podem ser melhor compreendidas a partir dos estudos de Marinho (2008) e Siqueira (2006). Trata-se, em síntese, de uma madeira enorme, fina, que em sua ponta tem afixada a bandeira de um determinado santo e é erguida próxima a capela.

  4. Rudolf Von Laban (15/12/1879-01/07/1958) nascido na Bratislava, então pertencente à Hungria, é considerado um dos maiores teóricos da dança no século XX.

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  • SANT´ANNA, Denise Bernuzzi de. É possível realizar uma história do corpo? In: SOARES, Carmen Lúcia (Org.). Corpo e História. Campinas, SP: Autores Associados, 2001. SIQUEIRA, Thaís Teixeira de. Do tempo da sussa ao tempo do forró, música, festa e memória entre os Kalunga de Teresina de Goiás. 135 f. (Mestrado em Antropologia). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade de Brasília – UnB, Brasília, 2006.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 18 · N° 179 | Buenos Aires, Abril de 2013
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