A construção das identidades entre meninos e meninas nas aulas de Educação Física La construcción de las identidades entre niños y niñas en las clases de Educación Física Construction of identities among boys and girls in Physical Education classes |
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*Acadêmica do curso de Educação Física da Universidade Regional do Estado do Rio Grande do Sul, Unijuí. Bolsista PIBIC/CNPq **Professora orientadora. Professora Doutora do curso de Educação Física e do mestrado em Educação nas Ciências da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí. Participante do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero (Geerge), vinculado ao PPGEdu da UFRGS do grupo Paidotribus, da Unijuí |
Tatiana Bonfada Trevisan* Taline Marzari* Maria Simone Vione Schwengber** (Brasil) |
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Resumo Esta pesquisa objetiva identificar a construção das identidades entre meninos e meninas nas aulas de Educação Física. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com caráter de inspiração etnográfica, do tipo estudo de caso, situada no campo dos estudos de gênero e da educação, relacionada a uma escola de Ensino Fundamental da Rede Pública Municipal de Ensino de Ijuí (RS). Para a organização dos dados, lançamos mão de alguns recursos, como observações das aulas e aplicação de questionário aos alunos. A amostra escolhida envolveu alunos/as dos Anos Iniciais (4ª série) e dos Anos Finais (7ª série). Os resultados obtidos com a pesquisa mostram que: a) as narrativas de gênero surgem por parte dos alunos com xingamentos, apelidos maldosos ou até mesmo com agressividade; b) os meninos, pela habilidade técnica de saber jogar futebol, impõem-se no espaço (a quadra); c) há um desejo muito claro dos alunos pela prática do futsal, nas aulas de Educação Física. Unitermos: Educação Física. Gênero. Disputas entre meninos e meninas.
Abstract This study tries to identify the construction of identities among boys and girls in Physical Education classes. This is a qualitative research, with ethnographic inspiration, of the case study type, located in the field of gender and education studies, related to an Elementary School from the Municipal Education System of Ijuí (RS). To organize the data, we used some features such as class observations and the application of a questionnaire to students. The chosen sample involved students from the Early Years (4th grade) and Final Years (7th grade). The results of the research show that: a) the gender narratives arise from students with swearing, unkind nicknames or even aggressiveness; b) boys, because of their technical skills to play soccer, impose themselves in space (the court); c) there is a very clear desire of male students for the practice of indoor soccer in Physical Education classes. Keywords: Physical Education. Gender. Disputes between boys and girls.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 179, Abril de 2013. http://www.efdeportes.com/ |
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Problematização
As narrativas relatadas a seguir são comuns em grande parte das aulas de Educação Física observadas e talvez demonstrem um pouco das disputas entre meninas e meninos no contexto da escola pública pesquisada. Apresentamos a seguir narrativas decorrentes nas aulas de Educação Física dos Anos Iniciais e dos Anos Finais, marcadas pela agressividade, pelos xingamentos e por apelidos maldosos.
Durante as aulas de Educação Física, os corpos estão muito expostos e, nesse sentido, surgem muitas manifestações de discriminações, de adjetivações, em que alguns corpos são ‘flechados no coração’, com descaso e preconceito. São elas: ignorante, idiota, burra, boca aberta, lerdas; enfim, as chacotas dos pontos fracos. Há uma forte celebração da boa aparência, das performances, dos desempenhos (SCHWENGBER, 2009), da construção do masculino com características mais hábeis e fortes do que o feminino.
Diante dessa construção do gênero masculino, observam-se narrativas como as expostas acima, as quais agridem o feminino. Essas expressões conferem às meninas um lugar de inferioridade e um sentimento de incapacidade de realizar as atividades, lugar este afirmado pelo comportamento dos meninos que querem impor superioridade e o fazem através da agressão verbal e, às vezes, física.
Para Vigarello (1998, p. 17), o
[...] corpo é o primeiro lugar onde a mão do adulto marca a criança, ele é o primeiro espaço onde se impõem os limites sociais e psicológicos que foram dados à sua conduta, ele é o emblema aonde a cultura vem inscrever seus signos como também seus brasões.
Dessa maneira, o corpo incorpora as normas, os preceitos, as leis dos espaços sociais no qual está inserido, assim como é no corpo que se demarcam as questões de gênero entre meninos e meninas.
É importante estudar o contexto escolar, pois a escola está entre os espaços sociais ocupados pelas crianças e pelos adolescentes na contemporaneidade. A escola é parte do projeto pessoal de vida dos sujeitos e, segundo Gusmão (2003 apud OLIVEIRA, 2010, p. 93), “a escola é um espaço de sociabilidades, de encontros e desencontros, buscas e perdas, descobertas e encobrimentos, de vida e negação da vida”. Trata-se de um espaço sociocultural, que, sob a ótica da cultura,
[...] leva em conta a dimensão do dinamismo, do fazer-se cotidiano, levado a efeito por homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, negros e brancos, adultos e adolescentes, enfim, alunos e professores, seres humanos concretos, sujeitos históricos, presentes na história, atores na história. Falar da escola como um espaço sociocultural implica, assim, resgatar o papel dos sujeitos na trama social que a constitui, enquanto instituição. (DAYRELL, 1996 apud OLIVEIRA, 2010, p. 93).
No entanto educar é, mais do que valorizar a cultura do educando, é ensinar o sujeito a pensar em si no mundo, além daquele no qual ele se insere.
A escola é uma instituição privilegiada, na medida em que possibilita o contato entre atores com diferentes visões de mundo, podendo promover o seu encontro e a troca de significados e vivências. A busca do entendimento da diferença já faz parte da visão do profissional da educação, assim como a distância que existe entre o universo escolar e a realidade dos alunos. (DAUSTER, 1996 apud OLIVEIRA, 2006, p. 69).
O autor segue apontando que, “mais do que nunca, cabe à escola dialogar e buscar aproximar esses mundos distantes”, sobretudo entre meninos e meninas.
Por isso, nos interessa ampliar o nosso conhecimento sobre como meninos e meninas se relacionam no espaço escolar, principalmente nas aulas de Educação Física. Mergulhar nesse tema significa mapear minuciosas descrições do cotidiano escolar, destacando alguns fatos (cenas escolares) que possibilitem compreender essas relações.
Muitas vezes, a escola, bem como as aulas de Educação Física, acaba reproduzindo alguns estereótipos de gênero masculino e feminino, delimitando espaços, definindo o que pode ou não fazer, o que é designado só às meninas e aos meninos, definindo também posturas, jeitos, preferências. Segundo Santomé (1998, apud OLIVEIRA, 2006, p. 65), “as culturas silenciadas e/ou negadas são aquelas dos grupos minoritários e ou/marginalizados que, por não disporem de estruturas importantes de poder acabam não sendo contempladas, quando não, estereotipadas e deformadas”.
A Educação Física e as suas práticas passaram a ser entendidas pelo viés cultural. E como Bracht (1999) nos fala, deve-se recorrer ao conceito de cultura corporal de movimento. O movimentar-se é entendido como forma de comunicação com o mundo, “que é constituinte e construtora de cultura, mas, também, possibilitada por ela. É uma linguagem, com especificidade, é claro, mas que, enquanto cultura habita o mundo do simbólico” (ibidem, p. 45).
As manifestações corporais humanas têm um viés cultural, sendo ele então o principal conceito para a Educação Física, na qual o profissional
[...] não atua sobre o corpo ou com o movimento em si, não trabalha com o esporte em si, não lida com a ginástica em si. Ele trata do ser humano nas suas manifestações culturais relacionadas ao corpo e ao movimento humanos, historicamente definidas como jogo, esporte, dança, luta e ginástica. O que irá definir se uma ação corporal é digna de trato pedagógico pela educação física é a própria consideração e análise desta expressão na dinâmica cultural específica do contexto onde se realiza. (DAOLIO, 2004, p. 2-3).
Torna-se necessário que as aulas de Educação Física considerem as diferenças que os alunos têm entre si, e que faça “da diferença entre os alunos condição de igualdade, em vez de ser critério para justificar a subjugação de uns sobre os outros” (idem, 2003, p. 18).
A Educação Física tradicionalmente traz também a cultura de que só os habilidosos podem jogar, quem tem uma maior aptidão física e um bom rendimento, fazendo com que os alunos que não têm essas características não gostem das aulas e acabem não participando. Daolio (ibidem, p. 126) diz que as aulas têm que ser planejadas para atingir todos os alunos, “sem esta descriminação dos menos habilidosos, se são meninas, gordinhos, baixinhos ou mais lentos”.
O ideal seria uma Educação Física que soubesse reconhecer as diferenças físicas e culturais, garantindo o direito de todos à prática, sem constrangimentos e preconceito, porque os humanos são iguais justamente pela expressão de suas diferenças (idem, 1995).
Narrativas como as expostas acima podem nos ajudar a conhecer parte das relações de conflitos na escola entre meninos e meninas, desde elas mesmas. A partir disso surgiram as seguintes indagações: como e quais narrativas de identidades de gênero são construídas por meio da ação discursiva entre os alunos? Como meninos e meninas se relacionam nas aulas de Educação Física?
A escola, as turmas observadas e a professora de Educação Física
No início do 2º semestre de 2011, fizemos o primeiro contato no local onde foram realizadas as observações, as quais se deram de outubro a dezembro de 2011. Com a turma dos Anos Iniciais, as observações ocorreram nas segundas-feiras, das 9h30min às 11h30min. Com a turma dos Anos Finais, ocorreram nas terças-feiras, das 13h15min às 15h10min.
Conversamos com a direção e após com a coordenação pedagógica, que nos encaminhou à professora de Educação Física responsável pelos Anos Iniciais e pelos Anos Finais. De acordo com Geertz (2001), um dos cuidados que o pesquisador deve ter desde os primeiros contatos é a preocupação de se fazer aceito.
A Escola Municipal tem uma estrutura simples com todo o seu espaço térreo. Apresenta uma sala de professores, secretaria, sala de vídeo e biblioteca com climatizadores, sala da direção, refeitório, banheiros e salas de aula. A escola não possui ginásio de esportes próprio e utiliza o do bairro, que se localiza ao lado da escola, o qual, nos dias de muita chuva, não pode ser ocupado, pois a quadra fica muito úmida. A escola tem uma estrutura muito bem conservada; possui um pátio grande na frente, rodeado de bancos ao ar livre, e também uma pracinha nos fundos. Os alunos observados estudavam na manhã, e as aulas de Educação Física também aconteciam neste turno.
A turma da 4ª série era composta de 23 alunos, sendo 13 meninas e 10 meninos, de classe média baixa, oriundos das proximidades da escola. A turma era bem agitada, com estudantes agressivos e desrespeitosos uns com outros; o relacionamento entre meninos e meninas era nada amigável.
A turma da 7ª série era composta de 33 alunos, sendo 17 meninas e 16 meninos, porém em nenhuma das aulas observadas a turma estava completa, pois sempre participavam no máximo 25 alunos. Pertencentes a famílias de classe média baixa, os alunos eram considerados como alguns dos mais agitados e desobedientes da escola. As meninas não participavam na maioria das aulas; ficavam sentadas ao redor da quadra, mexendo em seus celulares, que levavam escondido da professora. Os meninos estavam sempre dispostos a jogar futebol e reclamavam quando a professora propunha alguma atividade diferente. Meninos e meninas quase nunca se entendiam para jogar, a não ser por duas alunas que sabiam jogar futebol e que conseguiam se enturmar com os meninos.
A professora se formou pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí em 1999 e, além desta escola, lecionava em outra na cidade de Coronel Barros/RS. Formada há 12 anos, trabalhava 40 horas semanais, sendo 20 horas em cada escola.
Processo de descrição das cenas
Estudar o cotidiano escolar não é tarefa fácil, e isso ainda é pouco realizado por pesquisadores. Sendo assim, o/a pesquisador/a precisa ter bastante atenção quanto às percepções de alunos/as e professor/a, assim como ao princípio da relativização, o que permite um conhecimento mais aproximado sobre os/as estudantes e sua cultura.
Optamos por descrever cenas do cotidiano escolar com o intuito de mostrar a dinâmica da escola, as relações entre os sujeitos, assim como os afetos, os desafetos e as violências sofridas e praticadas naquele ambiente. Não basta só fazer uma investigação teórica sobre os alunos; é preciso entrar no cotidiano da criança, observar suas atitudes, brincadeiras, relacionamentos com alunos do mesmo gênero ou do gênero oposto. Costa (2004, p. 20) considera que, para enriquecer um estudo, deve-se levar muito em conta a observação do cotidiano, “possibilitando uma melhor compreensão de como as crianças expressam as relações de gênero, dos seus modos particulares de lidar com essas questões”.
“É, então, na esfera do dia a dia comum, dos pequenos e rotineiros eventos que a escola (como todas as outras instituições sociais) fabrica, ‘faz’ homens e mulheres” (LOURO, 1995, p. 175). A seguir, apresentamos e organizamos cenas escolares a partir das observações registradas no diário de campo. As cenas narradas constituem parte de um diário de campo de nossas idas e vindas da escola em 2011: representam uma aula de Educação Física dos Anos Iniciais (4ª série) e dos Anos Finais (7ª série), respectivamente. O diário de campo se presta como escrita com um caráter descritivo-analítico, como documento de registro das observações.
Cena 1 – Toda aula brigo com alguém
Processo de análise da cena 1
As meninas são maioria na turma e gostam das atividades propostas, de modo que são as primeiras a se organizarem e são elogiadas pela professora, por seu comportamento e desempenho. Os meninos oferecem muita resistência, pois querem apenas jogar futsal, debocham das atividades, dizem não fazer e que são “bobagens”.
Nas observações das aulas e principalmente na cena anteriormente descrita, foi possível perceber relações de gênero marcadas por agressividade, xingamentos e desrespeito. Meninos e meninas parecem não conseguir conversar; preferem se impor pela força das agressões. Meninos querem mostrar superioridade, mas meninas se fazem presentes resistindo e enfrentando-os, defendendo um espaço.
As narrativas de gênero surgem por parte dos alunos com xingamentos, apelidos maldosos ou até mesmo com agressividade entre ambos os sexos. Percebe-se isso em expressões como “nanica”, “boca aberta”, “girafa”, “feioso”, “cala a boca, pequeninha”, “bicho feio, tomei um susto”. Narrativas como essas são comuns em quase todas as aulas, assim como chutes, empurrões, tapas. Em relação à professora, não foi possível perceber em suas falas e ações distinção entre meninos e meninas, porém ela sempre teve mais problema com os meninos em suas aulas, e as meninas estavam sempre preparadas para as atividades. Diante dessa situação de agressividade, ela relata ficar impotente.
No caminho ao ginásio, não há silêncio e, sim, expressões gestuais; meninos e meninas se chutam, empurram, falam palavrões, iniciam discussões sem motivos. Parece impossível que ocupem o mesmo espaço sem se agredir.
Durante a aula prática, a professora até tenta fazer grupos mistos, mas meninos e meninas reclamam bastante, tornando a aula uma bagunça maior ainda. A professora já reclamou algumas vezes do mau comportamento dos alunos. Na maioria das aulas, são os mesmos que aprontam.
Nas poucas tentativas que a professora fez em juntar meninos e meninas no mesmo grupo, percebeu-se que, quando um menino falha, os outros xingam, porém menos do que quando as meninas erram. Se uma menina erra, as outras riem ou mandam a primeira fazer direito, mas não com palavrões. Quando um menino erra, as meninas xingam.
Acredita-se que esses frequentes comportamentos agressivos são demonstrações de que meninos querem mostrar superioridade diante das meninas, e estas não aceitam, então se mostram dispostas a defender seu espaço também na aula de Educação Física. Algumas meninas já não apresentam um comportamento esperado, de delicadeza e recato, e muito menos de submissão. Elas enfrentam os meninos e dificilmente cedem algo a eles sem ao menos lutar por aquilo que querem. Esses comportamentos não acontecem apenas nas aulas de Educação Física, visto que a disputa por espaço sempre estará presente em qualquer ambiente.
No entanto, quando as crianças percebem uma ‘autoridade’ do outro sobre si, há o conflito, a disputa. Tanto meninas quanto meninos demonstram a necessidade de se sobressaírem no grupo misto. As atividades propostas pela professora nas aulas de Educação Física, de acordo com o que foi presenciado, são marcadas pela sociabilidade do conflito e também localizam meninas e meninos que, pela disputa, defendem seus interesses e objetivam o domínio da brincadeira e do jogo.
As identidades de gênero são produzidas por meio de repetidos enunciados performativos; inserem-se num campo de lutas dos atores (meninos e meninas) por poder de significações. Definir-nos por ser homem ou mulher faz parte de um amplo processo cultural. É nessa direção e sob essa perspectiva conceitual que faz sentido compreender os sujeitos (as crianças) e as práticas educativas de gênero e, aqui, da Educação Física escolar. Desse modo, percebe-se o quanto as referências ao gênero não são meras características oriundas da biologia do corpo – são construções sociais, históricas, datadas e localizadas aqui em um espaço, como no universo da escola.
Isso leva-nos a considerar que as atividades físicas têm também uma dimensão produtiva de feminilidade e masculinidade. O interior da escola torna-se um importante cenário de disputa das relações de gênero que se desdobra em diversas práticas curriculares. A escola apresenta-se como espaço de poder, um lugar em que as crianças se constituem como determinados tipos de sujeito, em que elas constroem as identidades, neste caso, as de gênero.
Cena 2 – Mulher, você é uma boca aberta
Processo de análise da cena 2
Observa-se aqui o ‘caráter mais competitivo’ presente no comportamento do menino em oposição ao ‘caráter pacífico’ do comportamento da menina. As meninas não se sentem desafiadas a jogar, nem pela professora que não faz nenhum movimento pedagógico de investimento na direção de ensiná-las, de modo que as próprias meninas também se contentam, dizendo: “nós gostamos de brincar de boneca, casinha” e não praticar nenhum esporte. Já os meninos também não são desafiados pela professora, mas eles trazem consigo algumas habilidades, especialmente de praticar o futsal, pois muitos frequentam escolinhas para ter seu aperfeiçoamento, desenvolvem suas habilidades para ter agilidade com a bola, desenvolvem sua visão periférica, treinam passes, situações de jogo coletivo.
Nas aulas de Educação Física observadas, as meninas parecem não se importar com o domínio das habilidades motoras dos meninos; por sua vez, eles xingam, brigam, chamam-nas por palavrões, mas isso não faz com que elas se incentivem a jogar, para ser melhores que eles, pois simplesmente não se importam.
Aqui interessa pensar que talvez a própria professora colabore, oferecendo mais proteção aos meninos e sugerindo desvantagens para as meninas nas áreas de jogos tidos como pertencentes ao domínio masculino e também não intervém quando os meninos dirigem xingamentos às meninas.
Na cultura da sociedade contemporânea, o esporte é um domínio fundamentalmente masculino. Na situação observada, os meninos apresentam maior desempenho motor em relação às meninas, principalmente na locomoção e na manipulação de objetos, além de terem maior resistência, tamanho e força. Para Ferreira (1998), as diferenças no desenvolvimento motor nos meninos proporcionam melhor desempenho em atividades que exijam potência muscular, como saltos, chutes, arremessos, e as meninas têm maior facilidade em atividades com equilíbrio e flexibilidade.
As meninas necessitam de um espaço de aprendizagem motora, mas são ‘roubadas’ nessas oportunidades de se desenvolver corporalmente e esportivamente, como observamos. E, desse modo, são recebidas com ‘xingões’ e com chacotas, deixando-as reprimidas e sem atitudes de agir corporalmente.
Para Souza (2006), muitos trabalhos têm tematizado a desigualdade de meninos e meninas, em que os meninos dominam as meninas e os professores mesmo assim oferecem mais atenção a eles, deixando-as em desvantagem. Os garotos xingam as meninas até que elas desistam do jogo, deixando o espaço livre para eles; sendo assim, os professores corrigem e chamam mais a atenção dos meninos e deixando as meninas livres para escolher se querem entrar no jogo ou ficarem ao redor da quadra, dando toques com bolas. Souza (2006) também destaca que as meninas são cúmplices da distinção dos gêneros, pois preferem fazer qualquer outra coisa para não ter que jogar com os meninos. Enquanto isso, os garotos se preocupam em desenvolver uma superioridade em cima das meninas, para mostrar aos pares que têm autoridade.
ABREU (1995 apud ALTMANN, 1998, p. 49) “constatou que, ao considerarem as meninas inabilidosas, meninos têm uma pré-disposição em não aceitar sua participação nos jogos”. Essa falta de habilidade leva a uma maior descriminação nas aulas do que elas serem mulheres, pois quem tem habilidade, nesse tipo de aula, acaba por ser aceita no jogo (ibidem). O professor de Educação Física teria a função de ensinar e de estimular as meninas para a prática esportiva, desenvolvendo e aperfeiçoando suas habilidades no jogo, assim se sentirão mais confiantes frente aos meninos e motivadas para a prática do esporte.
Na cena destacada, ainda temos a menina que se designa de loira burra. Ela mesma se inferioriza em frente aos outros, neste caso, dos meninos. Chamamos a atenção para o quanto essa expressão ‘loira e burra’ é feminina (loira e burra), pois quase nunca escutamos ‘loiro e burro’. Essa expressão parece circular na cultura há muito tempo. Outro ponto importante é que a professora também “não se importa com essa nomeação” e não interfere.
A história da ‘loira burra’ vem do século 1 a. C., em uma crítica do poeta Propércio. Algumas das mulheres desse século pintavam os cabelos para imitar as gaulesas e germânicas, para os povos bárbaros. “Muitos males cercam a garota que estupidamente pinta seu cabelos com uma falsa cor”. Parece que essa expressão associada às loiras continua. Já a teoria biológica moderna descreve que ‘fios louros’ são comuns em crianças e tendem a escurecer quando adultos.
Na contemporaneidade, esse preconceito é retomado num conjunto de piadas e letras de música tais como, por exemplo, nos anos 90 do século XX, na música do cantor Gabriel, o Pensador que gravou a música ‘Lôraburra’, que tornou a expressão mais forte recentemente. Esses efeitos parecem circular facilmente na cultura até nos dias de hoje junto às meninas loiras, de modo que elas próprias, como no caso descrito, se definem como modo a justificar sua habilidade esportiva, minimizando-se em frente aos colegas.
Algumas considerações
Constituir-se como ser masculino e feminino faz parte de um amplo processo cultural, do qual participam instituições como família, igreja e escola. É nessa direção que se faz importante compreender os sujeitos e as questões de gênero dentro do ambiente escolar.
O interior da escola torna-se um cenário de disputa em que meninos e meninas querem se afirmar. A escola, em muitos momentos, delimita o que é apropriado a cada um dos gêneros; ela mesma produz as diferenças entre eles, quando os separa na sala de aula, no recreio e também nas aulas de Educação Física.
Nos diversos espaços sociais em que vivemos, bem como na escola e nas aulas de Educação Física, acabamos por ser classificados. Como afirma Mac An Gahill (1996 apud SOUSA; ALTMANN, 1999, p. 55), “os sistemas escolares modernos não apenas refletem a ideologia sexual dominante da sociedade, mas produzem ativamente uma cadeia de masculinidades e feminilidades heterossexuais diferenciadas e hierarquicamente ordenadas”.
Ao observarmos as cenas descritas, percebemos um desejo de impor superioridade por parte dos meninos. Meninas muitas vezes mostram-se submissas, porém às vezes decidem lutar pelo seu espaço nas aulas de Educação Física. Precisamos considerar que o processo de socialização das novas gerações não pode ser considerado simples, linear ou mecânico. “Ele é complexo, sutil e marcado por inevitáveis resistências individuais e grupais, bem como por profundas contradições” (SOUSA; ALTMANN, 1999, p. 64). Isso porque são contradições fortalecidas pelo viés cultural, difíceis de ser modificadas.
[...] nesse processo, a tendência conservadora lógica – presente em toda comunidade social para reproduzir comportamentos, valores, ideias, artefatos e relações que são úteis para a própria existência do grupo humano – choca-se inevitavelmente com a tendência, também lógica, que busca modificar os caracteres dessa formação que se mostram desfavoráveis para alguns dos indivíduos ou grupos que compõem o complexo e conflitante tecido social. (PÉREZ GOMES, 1998 apud SOUSA; ALTMANN, p. 64).
As duas cenas são reveladoras de conflitos diários que essas crianças e adolescentes realizam para sobreviver. Foi possível perceber que o esporte é usado como ferramenta de superioridade.
[...] o esporte funciona como uma estratégia de legitimação da masculinidade para os meninos, que assim ocupam a maior parte do pátio. É um espaço em que meninas não brincam devido à articulação de dois elementos: por serem meninas e por serem menos habilidosas. Isso também se aplica àqueles meninos considerados menos habilidosos e fortes, estabelecendo-se aí um parâmetro de valoração da “masculinidade”. (WENETZ; STIGGER, 2006 apud FURLAN, 2009, p. 74).
Complementando esse pensamento, Sousa e Altmann (1999, p. 6) trazem a ideia de que,
Com a introdução do esporte moderno como conteúdo da Educação Física escolar no Brasil, principalmente a partir dos anos 30, a mulher manteve-se perdedora porque era um corpo frágil diante do homem. Todavia, era por "natureza" a vencedora nas danças e nas artes. O corpo da mulher estava, pois, dotado de docilidade e sentimento, qualidades negadas ao homem pela "natureza". Aos homens era permitido jogar futebol, basquete e judô, esportes que exigiam maior esforço, confronto corpo a corpo e movimentos violentos; às mulheres, a suavidade de movimentos e a distância de outros corpos, garantidas pela ginástica rítmica e pelo voleibol. O homem que praticasse esses esportes correria o risco de ser visto pela sociedade como efeminado. O futebol, esporte violento, tornaria o homem viril e, se fosse praticado pela mulher, poderia masculinizá-la, além da possibilidade de lhe provocar lesões, especialmente nos órgãos reprodutores.
Apostamos na escola e nas aulas de Educação Física para o enfrentamento das questões de gênero, pois acreditamos que professores e professoras, como sujeitos adultos, possam intervir no processo de ensino e fazer que as diferenças entre os gêneros, bem como os conflitos, sejam minimizados.
Nota
Os nomes são fictícios para preservar a identidade dos alunos.
Referências
ALTMANN, Helena. Rompendo fronteiras de gênero: Marias e homens na Educação Física. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,1998.
BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da educação física. Cadernos Cedes, Campinas, n. 48, p. 69-88, 1999.
COSTA, Arlete de. Cenas de meninas e meninos no cotidiano institucional da educação infantil: um estudo sobre as relações de gênero. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.
DAOLIO, Jocimar. Da cultura do corpo. Campinas: Papirus, 1995.
______. Cultura, educação física e futebol. Campinas: Unicamp, 2003.
______. Educação Física e o conceito de cultura. Campinas: Autores Associados, 2004. (Coleção Polêmicas do nosso tempo).
FERREIRA, Mauro; BOHME, Maria Tereza Silveira. Diferenças sexuais no desempenho motor de crianças: influência da adiposidade corporal. Revista Paulista de Educação Física, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 181-192, jul./dez. 1998.
FURLAN, Cássia Cristina. Além das aparências: gênero e corpo no cotidiano da Educação Física escolar. Monografia (Licenciatura em Educação Física) – Universidade Estadual de Maringá, Maringá, 2009.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
OLIVEIRA, Rogério Cruz de. Educação Física, escola e cultura: o enredo das diferenças. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
______. “Não levo jeito, professor...”. In: DAOLIO, Jocimar. Educação física escolar: olhares a partir da cultura. Campinas: Autores Associados, 2010. p. 86-100.
SOUSA, Eustáquia Salvadora de; ALTMANN, Helena. Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos Cedes, v. 19, n. 48, ago. 1999.
SOUZA, Érica Renata de. Marcadores sociais da diferença e infância: relações de poder no contexto escolar. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.
VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de Janeiro: Zahar,1998.
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