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Corpo e sedução: algumas reflexões sobre a mulher da década de 1930

Cuerpo y seducción: algunas reflexiones sobre la mujer en la década de 1930

 

*Doutora em História, professora dos cursos de História, Moda e Mestrado

em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale

Pesquisadora do grupo Cultura e Memória da Comunidade

**Acadêmica de Jornalismo na Universidade Feevale

Bolsista de Iniciação Científica da Fapergs

Claudia Schemes*

claudias@feevale.br

Grazziela Dobler**

grazzieladobler@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo procura refletir sobre a história da mulher em Novo Hamburgo/RS nos anos 1930. O processo de busca de informações foi baseado em processos criminais ocorridos na cidade durante o período determinado e que envolveram o crime de sedução, ou como ficou conhecido mais tarde, crime de defloramento. No processo, as vítimas processavam os rapazes por terem se aproveitado de sua inocência, prometendo casamento e tirando a sua virgindade.

          Unitermos: Corpo. Mulher. Sedução. Processo criminal.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 18, Nº 179, Abril de 2013. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Este artigo tem como temática central algumas reflexões acerca da mulher operária em Novo Hamburgo/RS e como a mesma era vista pela sociedade local.

    A trajetória feminina é pouco estudada pela historiografia local, sendo que apenas recentemente o grupo de pesquisa Cultura e Memória da Comunidade, da Universidade Feevale, vêm se debruçando sobre a questão do feminino na cidade acima citada, e este artigo é uma pequena parte desse estudo mais abrangente.

    Adotamos a prática metodológica da micro-história como base para as reflexões aqui apresentadas, visto que a mesma permite a redução do universo de análise sendo o local e as evidências periféricas vistos como possibilidades de reconstrução do universal (VAINFAS, 2002).

    Buscamos, através de processos criminais locais, caracterizar perfis individuais femininos para compreender a realidade das mulheres na década de 1930 na cidade, pois, através destes processos, podemos observar como a mulher era considerada pela sociedade local e, principalmente, pelos homens.

    Observamos que situações cotidianas, que hoje nos passam despercebidas, eram consideradas relevantes nos julgamentos dos processos crime, tais como: quanto tempo a mulher passava na rua, com quem ela andava, se ela ajudava nas tarefas de casa, eram questões freqüentemente abordadas como forma de formular um perfil da mulher. Diante deste fato, as mulheres que não seguiam determinadas leis sociais eram rotuladas de prostitutas.

O crime de sedução no Brasil

    Segundo o Código Penal de 1940, no título “Crimes contra os Costumes” - costume entendido como a conduta sexual determinada pelas necessidades e conveniências sociais - o crime de defloramento foi desmembrado de duas formas: o crime de sedução, no qual a conjunção carnal pode não ter sido pretendida, e o crime de posse sexual da mulher virgem mediante uma fraude, no qual na posse sexual a suposta vítima mulher era enganada pelo homem que havia prometido casamento.

    Até os anos 1920 acreditava-se que a sedução, ainda ligada ao crime de defloramento, deveria, por obrigação, vir acompanhada da promessa do casamento e do cumprimento desta. Após 1920, a sedução deixou de ter a conotação de “promessa de casamento”, passando a ser vista como uma enganação, ou seja, começou a ganhar um sentido diferenciado do que vinha recebendo. Sedução passou a ser relacionada a “pedidos, afagos, carícias, meiguice, influxo desnorteante” - e começou-se a reconhecer que as mulheres eram suscetíveis às emoções de seus corpos e que possuíam desejos que poderiam ser maliciosamente aflorados. Assim, a lei passou a proteger a inexperiência da mulher e o crime de sedução passou a ser visto como um “crime contra os costumes” (MÉDICI, 1941, p. 402).

    Entrava em debate a questão material exigida: a ruptura do hímen. “No novo Código Penal de 1940 e no conceito dos escritores da medicina judiciária sobre desvirginamento, não se indagava mais sobre a ruptura do hímen bastando, para configurar-se o crime, a conjunção carnal ilícita.” Desta forma, a sedução, da mesma maneira como o defloramento, sofre uma mutação para um fim comum, que é o desvirginamento da mulher (MÉDICI, 1941, p. 402).

    O código de 1940 trouxe mudanças sobre a caracterização do crime, pois os juristas passaram a considerar que o mesmo deveria ter um tratamento mais racional e mais lógico ao configurar de forma mais clara o elemento moral - a sedução. Essa mudança acarretou a troca do nome do crime, que passou de defloramento para sedução. Na época, o então Ministro da Justiça Francisco Campos justificou o projeto que regulamentava o crime de sedução e expôs como critério essencial para que fosse caracterizada a culpabilidade do acusado que a moça, no qual a família havia recorrido à justiça, fosse recatada: “O projeto não protege a moça que se convencionou chamar emancipada, nem tampouco aquela que, não sendo de todo ingênua, se deixa iludir por promessas evidentemente insinceras” (CÓDIGO 5 EM 1: Constituição Federal, Civil, Processo Civil, Penal, Processo Penal. 2009, p. 594).

O caso de Celina de Athayde

    Para as reflexões deste artigo utilizaremos um processo crime do ano de 1936 que, conforme ressaltamos no início do texto, pode ser considerado um exemplo que nos permite vislumbrar a realidade da mulher de um determinado período em um determinado local.

    O caso apresentado a seguir é o de Celina de Athayde, de 18 anos, branca, solteira, operária, natural e residente em Novo Hamburgo.

    O acusado é Reynaldo Haack, 36 anos, branco, casado, industrialista, natural e residente em Novo Hamburgo.

    O caso se deu no ano de 1936 e a denúncia partiu da própria empregada do acusado, Celina, que o acusou de ter tido relações sexuais com ela. Segundo a moça, o fato se deu na própria residência do denunciado.

    Logo no início do processo, Celina já foi submetida ao auto de exame médico para comprovar a ruptura do hímen. O auto foi realizado no dia nove de novembro de 1936, e o laudo médico comprovou que houve o rompimento do hímen e que este já era antigo.

    Em depoimento na delegacia, Celina afirmou que Reynaldo, na condição de patrão, pediu a ela que fosse até sua casa para fazer uma limpeza na cozinha. Celina foi até a casa do patrão e, quando chegou, se deparou com tudo fechado e, repentinamente, Reynaldo a abraçou por trás. Ele disse que não adiantaria gritar, pois ninguém ouviria. Naquela situação Celina foi obrigada a ceder, mesmo contra a sua vontade, caracterizando um defloramento. Mesmo com o ocorrido, Celina continuava a trabalhar na fábrica para Reynaldo, pois necessitava do dinheiro que recebia para ajudar no sustento de sua família.

    A versão de Reynaldo Haack era diferente, pois ele afirmou que a acusação de Celina não era verdade. Que ela trabalhava, sim, em sua fábrica, mas não na casa de sua família.

    Um fato importante entrou, então, em cena: Reynaldo era casado com Pauline Haack. Nesta situação estava em jogo não apenas a honra de um homem de poder, dono de um empreendimento importante, mas a imagem de um homem de família, que era respeitado por manter uma vida culta e de responsabilidades. Uma brecha se acionou, pois a natureza e a seriedade de seu relacionamento vinham a determinar se ele era realmente o “criminoso” ou não.

    A primeira testemunha de Celina, Antonio dos Santos, casado, 36 anos, residente em Novo Hamburgo, afirmava que ela era uma boa moça e tinha boa procedência. O mesmo também afirmou que Celina possuía um namorado, e que este freqüentava a casa dela. A outra testemunha, Fabiana Ferreira, falou que conhecia a família há mais de três anos e que eles eram pessoas exemplares, sendo que Celina era uma moça de boa procedência. Também afirmou que não sabia se Celina tinha um namorado.

    Em um relatório da delegacia apontava-se que Reynaldo era casado e, por isso, pediu a Celina que não contasse a ninguém sobre o ocorrido. O exame médico comprovou o defloramento e todas as testemunhas da vítima disseram que a família e a vítima tinham bons precedentes e era de índole honesta. Segundo a testemunha Fabiana Ferreira, a moça era “trabalhadora, honesta, de boa índole e que, apesar de ser pobre, era séria”. Outra testemunha da vítima, Antonio Santos, usou as mesmas palavras para descrever Celina: “honrada, séria e moça de família”. A mãe da vítima afirmou que sua filha sempre foi uma moça trabalhadora e que só ficou sabendo do defloramento quando ela decidiu colocar Reynaldo na justiça.

    Pauline Haack, testemunha e esposa de Reynaldo, afirmou que conhecia Celina e que esta trabalhava na fábrica de seu marido e que não sabia os motivos pelos quais ela vinha apresentando a denúncia, pois nunca haviam tido desentendimento pessoais e não acreditava que seu marido, um homem honesto e de família, seria capaz de fazer tal coisa. Pauline também afirmou que Celina trabalhava apenas na fábrica e nunca havia ido ou sido solicitada para ir a sua casa lavar o assoalho, conforme ela contou. Da mesma forma, ela afirmou que Celina trabalhou durante dois anos na fábrica e neste tempo nunca havia apresentado mau comportamento. Pauline também afirmou que Celina falava que tinha um namorado, mas nunca havia citado um nome e ela nunca havia visto os dois juntos.

    Pauline afirmou que a presença de Celina nunca fora necessária para limpeza, pois ela possuía uma empregada na época que até aquele momento residia e trabalhava para ela. Ao ser confrontada, Celina afirmou que realmente a empregada existia e que não sabia o motivo pelo qual Reynaldo havia solicitado que ela fosse limpar a casa, sendo que a família possuía empregadas. Esta descrição mostra que, apesar de saber que não havia necessidade, a moça se rendeu a uma relação de submissão.

    Segundo relata o processo, chegou à delegacia uma carta que, a princípio, havia sido escrita por Celina para um homem chamado João Costa, na qual ela se declarava para o homem e dizia sentir saudades. Ao ser interrogada, Celina afirmou que a carta não foi de seu punho e que ela não namorava este rapaz, embora o tivesse conhecido em seu emprego anterior, no qual era cozinheira em uma casa de família, local em que ele também trabalhava.

    Estevan Estefani, pai de Celina, afirmou em depoimento que havia proibido o namoro de Celina com João Costa. Ao ser questionado sobre a carta que Celina havia, supostamente, escrito para João, na qual ela o convida para fugir, o pai da moça afirmou que não sabia e estava tomando conhecimento no fato naquele momento. Estevan também afirmou que, apesar do ocorrido, sua filha nunca havia falado mal do ex-patrão, fazendo-o acreditar que este era um homem “de bem” e honesto.

    Maria Eugênia Athayde, mãe da vítima, trouxe à tona um fato de grande importância: de que Celina estava grávida e Reynaldo sabia. Tanto que, na primeira tentativa de tentar resolver as coisas, a família havia procurado por ele e ele havia proposto que Celina tivesse o filho em um hospital em Porto Alegre para que depois a criança fosse dada para a adoção. Não aceitando a proposta, ele então sugeriu que a criança fosse morta e ofereceu a ela uma quantia de 'mil réis' para que ela continuasse em silêncio e não contasse a sua família.

    O juiz trouxe à tona uma das acusações de uma testemunha de defesa, que afirmava que João Correa e Celina dançavam de forma indecente em bailes da região. A mãe da moça, porém, afirmou que isso não era verdade, que eles dançavam mas sempre de forma muito respeitosa.

    Antonio dos Santos, testemunha de Reynaldo Hack, afirmou que era vizinho do acusado e conheceu ele e a família há cerca de cinco anos e que todos são pessoas de respeito. Outros vizinhos do acusado também estiveram presentes falando sobre a procedência da família e indicando que não haviam visto Celina na casa do vizinho.

    O juiz julgou como “improcedente a acusação da ofendida”, absolvendo, assim, Reynaldo Hack. As justificativas foram de que o caso da vítima não foi bem esclarecido, sendo que havia “provas e contraprovas de seus bons e maus precedentes”, como um laudo sobre a carta que afirmava que a mesma fora escrita pelo punho da vítima com declarações amorosas para outro homem. Segundo o juiz, o defloramento não se caracterizou, a não ser que tivesse ocorrido o uso de algum entorpecente, o que não houve. Devido aos dados coletados pelas testemunhas a vítima não foi considerada uma donzela digna e cheia de pudor que precisasse dos cuidados da justiça.

Considerações finais

    Refletindo sobre o caso apresentado, podemos dizer que era muito difícil uma moça de classe social menos favorecida, no caso, uma operária de fábrica, conseguir ganhar um processo criminal.

    Conforme destaca Bruschini (1990), no decorrer da análise dos processos criminais e procedimentos legais para o julgamento da denúncia, são percebidas certas peculiaridades que no desenrolar da trama provocam uma inversão de papéis, e aquela mulher que supostamente era vítima de um homem que investiu nela galanteios e encheu de promessas, acabou desvendando uma “vida cheia de vícios, gestos e atitudes inadequados à moça digna de proteção legal”. Tudo isso visto através de argumentações de advogados de defesa e testemunhas.

    Determinados nomes, como “prostituta”, “vagabunda”, “moça da vida”, “moça desonrosa”, entre outros, eram associados a moças através de depoimentos de testemunhas neste e em outros processos analisados que não foram objeto deste artigo.

    Jogos de poder são constantemente colocados em prática, fazendo uso da relação de submissão por parte da vítima e para moças pobres, operárias, abrir um processo-crime poderia ser uma saída para ascender de uma vida difícil.

    No período estudado, valores sociais eram extremamente importantes para validar a índole moral vigente. A mulher deveria saber “escolher suas companhias”, voltar cedo para casa, ter um “comportamento recatado”, divertir-se sem fazer “insinuações”, pois estes eram fatores levados em consideração na hora de caracterizar a vítima de um processo-crime por sedução.

    Por fim, podemos dizer que a micro-história nos permite, através do resgate de uma trajetória individual, vislumbrar o panorama no qual a mulher estava inserida, bem como se davam suas relações sociais, embora tenhamos claro que, como diz Pesavento (2000), não podemos abandonar a totalidade e a complexidade de uma realidade em prol do micro. Segundo ela “a micro-história busca ver no local uma porta de entrada ou janela para resgatar o universal e se propõe [...] exatamente o resgate desta articulação entre o todo e a parte” (PESAVENTO, 2000, p.232).

Referências

  • BRUSCHINI, Cristina. Mulher, casa e família. São Paulo: Fundação Carlos Chagas/Vértice, 1990.

  • CÓDIGO 5 EM 1: Constituição Federal, Civil, Processo Civil, Penal, Processo Penal, 2009. Disponível em: http://migre.me/dPU9a Acessado em 01/03/2013

  • GOLDENBERG, Mirian. O corpo como capital: estudos sobre gênero, sexualidade e moda na cultura brasileira. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2007.

  • MEDICI F°, Atugasmin. O Crime de Sedução no Novo Código Penal. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.134, dez 1941.

  • PESAVENTO, Sandra Jatahy. Esta história que chamam micro. In:GUAZZELLI, Cesar A.B et alii (org.) Questões de Teoria e Metodologia da História. Porto Alegre: Editora da Universidade, 2000.

  • PRIORE, Mary Del. Histórias íntimas. Sexualidade e erotismo na história do Brasil. São Paulo: Planeta, 2011.

  • RASPANTI, Márcia. Vestindo o corpo: breve história da indumentária e da moda no Brasil, desde os primórdios da colonização ao final do Império. In: DEL PRIORI, Mary (Org.). História do corpo no Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2011.

  • REICHERT, Emannuel Henrich. A sedução e a honestidade: representações de gênero nos processos de crimes sexuais (Porto Alegre, 1920-1926). Porto Alegre: UFRGS, 2008. Monografia de conclusão.

  • VAINFAS, Ronaldo. Micro-história. Os Protagonistas Anônimos da História.Rio de Janeiro: Campus, 2002.

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