Corpo e Educação Física: reflexões sobre a prática pedagógica Cuerpo y Educación Física: reflexiones sobre la práctica docente |
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* Professora da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de GoiásLicenciada em Educação Física na UNESP/Rio Claro-SP. Doutora em Enfermagem Psiquiátrica na USP/Ribeirão Preto-SP **Servidora da Universidade Federal de Goiás. Licenciada em Educação Física na UFG. Especialista em Educação para Diversidade e Cidadania na UFG |
Aline da Silva Nicolino* Lara Wanderley** (Brasil) |
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Resumo Este artigo busca identificar a concepção de corpo de professoras de Educação Física e como essa temática é problematizada em seus objetivos e conteúdos. Para isso, foi realizada uma pesquisa de campo de caráter qualitativo, em duas escolas públicas de Goiânia, utilizando como instrumentos de coleta de dados documentos (Projeto Político Pedagógico, Plano de Ensino e Diário de Turma), questionário e entrevista semi-estruturada. As análises indicam uma prática pedagógica voltada à dimensão física, enfatizando a aprendizagem motora, a importância de promover o desenvolvimento corporal dos estudantes e os cuidados com a saúde, enquanto finalidades da Educação Física. Palavras-chave: Corpo. Educação Física. Prática pedagógica.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 178, Marzo de 2013. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
A excessiva preocupação e cuidado com a aparência corporal podem ser evidenciados sob diferentes discursos, sobre qualidade de vida, sinalizados por uma diversidade de sentidos, significados e valores aos corpos que mudam através do tempo e das comunidades. Para melhor interpretar as concepções de corpo saudável, produzidos pela cultura ocidental referente à construção de saúde e beleza, é preciso elencar alguns atributos que compõe esta representação, como aparência física jovem, rígida e sem excessos, fazendo um recorte das marcas e linguagens impressas nos registros e falas de professoras de Educação Física. A reflexão parte de uma forte representação de um corpo produtivo e saudável.
A relação entre saúde e beleza é veiculada em discursos propagados principalmente pela mídia, no sentido de gerar/produzir um sentimento de culpabilização carregado de símbolos de derrota, descuido e irresponsabilidade, o que muitas vezes, justifica o uso de técnicas e intervenções físicas e químicas, amparados em investimentos tecnológicos e científicos.
Tais códigos normativos, relacionado à aparência física, nos remete a alguns questionamentos, como a compreensão da dinâmica social a que estamos inseridos, as exigências atribuídas ao corpo, às veiculações de imagens corporais que os meios de comunicação transmitem diariamente, a valorização de atributos físicos atrelados ao indivíduo, bem como a naturalização de uma legitimidade científica apoiada para tais fins.
Segundo Silva (2000), a expectativa criada sobre o corpo vai se apoiar nos avanços da ciência, principalmente da Medicina, a qual passa a tratar o corpo a partir de uma dimensão anatomofisiológica, minimizando seu caráter subjetivo e sua constituição sócio-histórica-cultural. A Medicina tende a reforçar uma absolutização da vida física ao não conceituar e admitir a natureza histórica e social do corpo, tomando-o, assim, como um objeto homogêneo. Tal concepção ao desconsiderar as manifestações e construções históricas e culturais enfatiza somente sua constituição biológica e afirma sua condição de objeto.
Ao se apoiar na ciência e, sobretudo, nas questões biológicas e morais do corpo, a sociedade, seguindo os princípios capitalistas, busca conhecer e estudar o corpo a fim de manter o controle sobre ele: “A transformação do corpo em algo que pode ser conhecido e mensurável é, também, sua transformação em algo que pode ser dominado.” (SILVA, 2001, p.12). Nesse sentido, as estratégias investidas para maior controle e disciplinamento dos indivíduos acabam resultando em uma tentativa de moldar o comportamento e a imagem corporal.
Ao buscar um disciplinamento dos corpos a sociedade moderna vai promover e incentivar, também, um cuidado com o corpo, entendendo esse como uma forma de cobrar da sociedade uma responsabilidade e força de vontade para atender às expectativas criadas sobre o mesmo. Promover um cuidado com o corpo objetivando uma melhor aparência a ser projetada em público, torna-se cada vez mais uma necessidade para os indivíduos, a qual é acompanhada pelo crescimento de diversos conhecimentos referentes ao corpo, principalmente nas áreas de estética, saúde, educação e de técnicas e objetos que lhe correspondem.
Essa exploração do capital sobre o corpo, que tem por finalidade manter uma cultura de aparências, estimula os indivíduos a buscar um modelo de beleza física, a qual vai dar indícios de um bem-estar físico, de aceitação social, e que vai justificar o uso de técnicas, intervenções, como dietas, exercícios físicos, cirurgias.
Seguindo essa lógica da sociedade ocidental contemporânea, a Educação Física também tem contribuído para afirmar a constituição biológica dos indivíduos, o disciplinamento dos corpos, o desenvolvimento da saúde, o cuidado com o corpo e com a aparência física, visto que no contexto histórico dessa área, influenciada pela instituição militar e pela medicina, prevalecem os saberes e práticas em saúde que não compreendem a totalidade e integralidade dos indivíduos.
A Educação Física inserida na sociedade e, principalmente, no ambiente escolar assume um discurso relacionado a hábitos saudáveis e higiênicos, força e virilidade, tendo como objetivo educar o corpo para a saúde, apoiando-se nas práticas esportivas e na Ginástica, manifestações em destaque no século XIX, para cumprir sua função de promover o desenvolvimento das capacidades físicas, mentais e morais dos indivíduos.
Sobre isso Bracht (1999, p.73) acredita que:
[...] o nascimento da EF se deu, por um lado, para cumprir a função de colaborar na construção de corpos saudáveis e dóceis, ou melhor, com uma educação estética (da sensibilidade) que permitisse uma adequada adaptação ao processo produtivo ou a uma perspectiva política nacionalista, e, por outro, foi também legitimado pelo conhecimento médico-científico do corpo que referendava as possibilidades, a necessidade e as vantagens de tal intervenção sobre o corpo.
O tratamento dado a Educação Física a partir desse caráter técnico e estético reflete as características de uma sociedade inserida na lógica capitalista, a qual estabelece um culto ao corpo, priorizando a beleza física como definidora da identidade pessoal. Faz-se necessária, então, uma reflexão com relação a essa cultura, que, em sua pluralidade, valoriza princípios estéticos e minimiza os sujeitos a uma lógica individualista e de submissão.
A intenção desta análise não é aprofundar ou delimitar os investimentos de cuidado e controle diário impressos no corpo em diferentes nacionalidades, etnias, raças, classes, orientações sexuais, faixas etária, mas trazer a discussão de como tais conhecimentos são (re)elaborados por cada indivíduo, assumindo diferentes manifestações e ressignificações no processo educacional mais claramente na prática pedagógica. Por entendermos a escola como um espaço que possibilita a discussão e a reflexão crítica, na qual se faz presente o trato com o corpo, trazemos as falas e registros de duas professoras de Educação Física no sentido de identificar a concepção de corpo e como problematizam a temática nos objetivos e conteúdos propostos.
Buscando alcançar os objetivos realizamos uma pesquisa de campo de caráter qualitativo, com enfoque no estudo multicasos, em duas escolas públicas de Goiânia, uma estadual e outra municipal, com duas professoras de Educação Física, com base em uma perspectiva materialista histórico-dialética, visando analisar diferentes realidades, identificando e compreendendo os fenômenos, suas causas, significados, implicações e relações (GOMES; MINAYO, 2007; TRIVIÑOS, 1987).
Como instrumentos para coleta de dados utilizamos o Projeto Político Pedagógico das instituições escolares; Plano de Ensino e/ou Diário de Turma das professoras de Educação Física; questionário com perguntas abertas e fechadas e entrevista semi-estruturada, realizadas com as docentes, referentes às temáticas corpo e Educação Física.
As análises dos dados apresentaram-se em três etapas: pré-análise, descrição analítica e interpretação inferencial, os quais tiveram por objetivo possibilitar a compreensão dinâmica, estrutural e histórica da realidade social (TRIVIÑOS, 1987).
Para cumprimento dos preceitos éticos, as diretoras das instituições e as professoras de Educação Física pesquisadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que apresentava o tema, os objetivos e os procedimentos da pesquisa e garantia a não identificação das escolas e das professoras. Dessa forma, os dados e as falas são apresentados por meio do seguinte ordenamento: professora 1 (P1), referente à docente da escola estadual, e professora 2 (P2) referente à docente da escola municipal, sendo que o Projeto Político Pedagógico das escolas são identificados de acordo com o órgão das instituições (Secretaria Estadual de Educação de Goiás – SEE/GO e Secretaria Municipal de Educação de Goiânia – SME/GO), garantindo, assim, o anonimato das pesquisadas.
Apresentação e análise dos dados
Partindo das articulações entre corpo e Educação Física buscamos, por meio da análise e interpretação dos dados coletados, compreender as concepções das instituições e das professoras investigadas, bem como estabelecer relações com a prática pedagógica.
Tendo por referência os Projetos Políticos Pedagógicos elaborados e disponibilizados pelas instituições percebemos que ambas acreditam que o papel da escola vai além da transmissão dos conhecimentos e conteúdos curriculares, levando em consideração sua função mais ampla, como consta no documento “[...] faz-se necessário transformar a escola em um espaço privilegiado de análise, discussão e reflexão da realidade com o objetivo de buscar soluções para os inúmeros problemas existentes neste século, e de modo efetivo e direto, na comunidade escolar [...]” (SEE/GO, 2009, p.7). A instituição municipal, compartilhando da mesma proposta, afirma que a escola deve ser para os estudantes “[...] o lugar que vai lhes proporcionar condições de construir seu próprio conhecimento, através da troca de experiências, tornando-os assim cidadãos conscientes, críticos e ativos em nossa sociedade.” (SME/GO, 2009, p.8)
Sendo assim, a escola e o processo educacional são apresentados com a função de formar cidadãos críticos e conscientes para atuarem na realidade social na qual estão inseridos, em que se acredita que o processo educacional deve contribuir para a socialização do saber sistematizado, construído historicamente e para a transformação social, por meio do enfretamento dos problemas sociais e atuação crítica na sociedade (SAVIANI, 1995). No entanto, não há uma articulação entre o papel da educação e da Educação Física, visto que a instituição estadual não traz apontamentos sobre a Educação Física, ou sobre qualquer outra disciplina, no que diz respeito a sua função, seus conteúdos e objetivos. E a municipal, ao apresentar, prioriza a percepção e o conhecimento do próprio corpo e as influências estabelecidas socialmente:
Adotar atitudes de respeito mútuo, dignidade e solidariedade em situações lúdicas e esportivas, repudiando qualquer espécie de violência; Promover práticas que levem o aluno a descobrir e conhecer seu próprio corpo, partindo da cultura corporal, oportunizando-lhe momentos de reflexão e criatividade a partir das experiências trazidas pelo próprio aluno e outras vivenciadas no ambiente escolar; Dinamizar práticas que orientem os alunos a conhecerem o próprio corpo [...]; Oportunizar práticas educativas que levem o aluno a concretizar conhecimentos e vivências, analisando a complexidade do seu corpo, em relação ao mundo que o cerca. (SME/GO, 2009, p.16).
Essa proposta apresenta a Educação Física como uma disciplina inserida e relacionada ao contexto social, sendo responsável por possibilitar o conhecimento do corpo, por meio de práticas criativas e reflexivas, porém não estabelece relações entre o objetivo dessa disciplina e a função mais ampla da Educação Física e da educação, formar sujeitos críticos e atuantes na realidade visando a sua transformação.
Além da necessidade de haver uma articulação entre a proposta pedagógica da escola e das disciplinas ministradas, percebe-se também a importância do planejamento do professor para a realização de um trabalho pedagógico consciente, crítico e que possibilite o cumprimento dos objetivos da educação e da Educação Física.
No que diz respeito ao planejamento das docentes pesquisadas, analisamos o Plano de Ensino e o Diário de Turma para melhor compreender as estratégias utilizadas em sua prática pedagógica, a professora da escola estadual não elabora nenhum desses documentos, justificando essa ausência pelo fato de ter entrado na escola há pouco tempo, apesar de estar ministrando aulas na instituição há dois meses, o que dificulta a organização e a sistematização do trabalho pedagógico, visto que o planejamento possibilita pensar, estruturar e concretizar os objetivos propostos, bem como contribui na condução do processo pedagógico em busca da efetivação de mudanças.
A professora da escola municipal disponibilizou o Plano de Ensino, o qual contém os objetivos e os conteúdos que serão desenvolvidos durante o ano, de forma geral os objetivos apresentados são:
Conhecer os limites e as possibilidades de movimento do próprio corpo, tendo consciência das diferentes posições corporais; Adotar atitudes de cooperação e respeito às regras; Conscientizar-se da diferença entre seus lados, fortalecendo o lado dominante; Experimentar diferentes formas de movimentos ampliando seu domínio corporal no tempo e n espaço; Realizar atividades utilizando as capacidades físicas; Ter consciência dos limites e das possibilidades de movimentos corporais, reconhecendo a importância da educação corporal. (P2, 2009).
Tais objetivos privilegiam o conhecimento do corpo e estão relacionados aos aspectos psicomotores, ou seja, lateralidade, coordenação, noção de tempo e espaço, com um destaque para alguns princípios como coletividade, cooperação e respeito às regras, destacam, também, que a prática pedagógica desta docente engloba conhecimentos curriculares e específicos a serem tratados pela Educação Física, bem como abrange princípios éticos. Com relação aos conteúdos apresentados são elencados: organização de regras; atividades envolvendo força, velocidade, resistência, coordenação; atividades com movimentos variados, individuais e em grupos; movimentos locomotores variando ritmo e trajetória; movimentos para melhorar a compreensão dos conceitos à frente, atrás, direita, esquerda; entre outros. Estes aspectos contemplados priorizam o desenvolvimento motor, físico como a principal dimensão que constitui os indivíduos e apresentam elementos que se aproximam de um discurso anatomofisiológico, os quais não compreendem a amplitude da Educação Física, uma disciplina que lida com os elementos da cultura corporal construídos historicamente pela humanidade (COLETIVO DE AUTORES, 1992).
Tendo por referência o questionário e a entrevista semi-estruturada buscamos identificar as concepções de corpo das docentes investigadas e as estratégias pedagógicas utilizadas por elas para trabalhar com essa temática, em que a professora da escola estadual afirmou que ainda não tinha trabalhado nada referente ao corpo, o que levanta a reflexão de como essa docente pensa, vivencia e desenvolve seus conteúdos e suas interseccionalidades com o corpo, visto que a Educação Física lida com o corpo o tempo todo. “[...] a Educação Física [...] tem o corpo como objeto de estudo.” (CARVALHO, 2004, p.46). Ao apresentar o que considera importante ser trabalhado com relação a essa temática diz: “[...] meu propósito é desenvolver o corpo deles, não só o físico, mas a corporeidade [...].” (P1, 2009). Essa afirmação mostra que apesar de não ter discutido a temática corpo com os estudantes considera que é importante trabalhá-la, pensando não somente no aspecto biológico, mas no desenvolvimento corporal, desenvolvendo a corporeidade, a qual engloba as dimensões biológicas, simbólicas e subjetivas, construídas socialmente, e que caracterizam as vivências corporais (SANTIN, 2000 apud BONFIM, 2009).
Já a professora da escola municipal discute essa temática com os estudantes, buscando trabalhar o conhecimento e o respeito do próprio corpo, seus limites, tempo e espaço que ocupa. Essa afirmação indica que a docente enfatiza em sua prática pedagógica a compreensão, o conhecimento, o respeito e os cuidados com o corpo, priorizando o desenvolvimento motor, físico como a principal dimensão que constitui os indivíduos. Estes aspectos apresentam elementos que se aproximam de um viés biologicista, que não trazem discussões para que os estudantes entendam o corpo como resultado, também, das manifestações e construções sociais e históricas (GOELLNER, 2007).
Ambas as pesquisadas apresentam concepções, elementos e objetivos contemplados em sua prática pedagógica que se aproximam da proposta defendida pela abordagem da Psicomotricidade que caracteriza o movimento como um instrumento para proporcionar a aprendizagem e o desenvolvimento motor e cognitivo. A análise que se faz sobre essa abordagem diz respeito ao objetivo central, conferido à Educação Física, de desenvolver a consciência corporal dos estudantes, e, além disso, refere-se ao fato dessa perspectiva não ser pensada especificamente para a Educação Física e, sim, para a educação. Acredita-se que:
A Educação Física escolar [...] não deve ser vista como a área que apenas e tão-somente irá ensinar aos alunos as técnicas ‘corretas’ dos esportes, da ginástica ou da dança, ou a que vai corrigir ou refinar os gestos, mas a área que vai a partir da dinâmica cultural específica de seus alunos no que se refere às questões do corpo, do movimento, dos esportes, etc. para ampliá-la, discuti-la, confrontá-la, refutá-la, enfim, tornar o aluno um sujeito emancipado e autônomo nas questões corporais. (DAÓLIO, 2001, p.34)
É preciso compreender essa disciplina, portanto, como uma área que possibilite a reflexão do corpo e da cultura corporal, entendendo-os na perspectiva do contexto social em que os estudantes estão inseridos, buscando a formação de indivíduos críticos e reflexivos que interfiram na realidade social e concretizem a emancipação humana, como proposto pelo Coletivo de Autores (1992).
Com relação à concepção de corpo das docentes, a professora da escola estadual apresenta um corpo saudável como: “[...] a ausência ou o mínimo possível de doença, [...] tanto mental quanto a doença física [...] é uma pessoa feliz com a vida dela, [...] fisicamente, mentalmente, espiritualmente, com todos os fatores possíveis.” (P1, 2009), tal concepção aproxima-se da definição de saúde proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS), um completo bem-estar físico, mental e social, sugerindo uma fragmentação do corpo em partes e caracterizando uma concepção biologicista que desconsidera a totalidade do ser humano e afirma a necessidade de reconstruir essa cultura de forma que ela não seja engendrada pela segmentação (SILVA, 2001).
A docente da instituição municipal traz um corpo saudável como sendo aquele que:
[...] você consegue ter com ele felicidade, mas é lógico que você tem que contribuir. e você consegue, tenta pelo menos, ter uma alimentação controlada, você consegue fazer um esporte regularmente, pra que esse seu corpo trabalhe melhor, você consegue ter uma saúde boa e aí você também vai ter esse corpo saudável. É lógico que se você conseguir manter-se magrinha é melhor. (P2, 2009).
A concepção apresentada revela um corpo saudável atrelado ao bem-estar individual, próximo do anunciado e divulgado pela mídia, que constrói um padrão de beleza corporal e necessidades para alcançar esse modelo, o que é caracterizado por Anzai (2000) como o corpo enquanto objeto de consumo.
Evidencia-se, também, uma associação entre corpo saudável, exercício físico, alimentação e corpo belo, quando essa mesma docente diz que controlando a alimentação e praticando algum esporte se consegue saúde, um corpo saudável e magro. Essa concepção mostra-se inserida no discurso propagado pela sociedade moderna, que incentiva a busca por um padrão de beleza para ser apresentado em público, criando a necessidade de um cuidado diário com o próprio corpo e responsabilizando o indivíduo por alcançar ou não a aparência bela. Relaciona-se, ainda, esse bem-estar físico e mental almejado à aceitabilidade social, já que aqueles que se enquadram no ideal de beleza propagado são melhores vistos e aceitos pela sociedade, o que é apresentado e problematizado por Castro (2004).
Apesar de terem expressado diferentes compreensões e considerações acerca do corpo saudável, da sua concepção de corpo, as docentes pesquisadas apresentam opiniões que perpassam o discurso inserido e estimulado pela mídia e pela ordem social vigente, que prioriza o bem-estar físico e mental, a boa aparência, a prática de exercícios físicos e boa alimentação como elementos essenciais para ter um corpo saudável e para serem aceitos socialmente. Essas concepções dão indicações de um discurso voltado para o viés biologicista, que considera a estética, a beleza e a saúde, como categorias centrais e principais para se compreender o corpo.
Considerações finais
O estudo buscou identificar a concepção de corpo de professoras de Educação Física, bem como as estratégias utilizadas para trabalhar e problematizar essa temática nos conteúdos apresentados pelas docentes pesquisadas, visando refletir sobre a forma como o corpo é pensado e discutido no ambiente escolar e no contexto social. Com base nos instrumentos de coleta e análise de dados, interpretamos que a concepção de corpo de uma das professoras investigadas está voltada para a preocupação e o investimento sobre um corpo saudável e bem cuidado, adquiridos por meio da prática de esportes e boa alimentação. A outra docente destaca a ausência de doenças, o equilíbrio físico, mental e espiritual, como vertentes fundamentais para se pensar no corpo. Tais elementos são construídos, constituídos e (re)elaborados por influências advindas do contexto social, formação acadêmica e experiências vivenciadas, em que estão presentes as interferências da sociedade ocidental contemporânea, a qual incentiva e valoriza os cuidados com o corpo, a aparência física e a eficiência do corpo.
Essas representações sinalizam o corpo em uma perspectiva fragmentada, interferindo na compreensão e significação das manifestações corporais, bem como na efetivação da prática pedagógica das docentes, visto que o processo educacional está diretamente relacionado ao contexto social. Assim, entendemos que esses discursos centrados nos cuidados higiênicos e nos aspectos físicos desconsideram a integralidade do corpo e sua constituição histórica e cultural, os quais também devem ser dialogados e problematizados no âmbito escolar, para que se entendam os elementos e contextos que permeiam o corpo e a sociedade.
Com relação às estratégias utilizadas para lidar com a temática corpo, as docentes indicaram o desenvolvimento corporal dos estudantes, dando ênfase à percepção e conhecimento do corpo, do espaço que ele ocupa e seus limites, o que reforça a associação da Educação Física aos cuidados com o corpo físico e valoriza a dimensão física e psicobiológica, havendo uma aproximação das finalidades da Educação Física sob o viés higienista. As respostas contemplam uma concepção de Educação Física próxima da abordagem psicomotora, em que a aprendizagem motora é um meio para o estímulo cognitivo, priorizando o conhecimento e produtividade do próprio corpo e os cuidados com a saúde para melhor adequar e adaptar os indivíduos a sua realidade concreta.
Tendo por referência uma perspectiva de Educação Física que confere especificidade a seus conteúdos e objetivos, considerando os conhecimentos produzidos culturalmente pela humanidade, questionamos qual o papel que essa disciplina escolar vem assumindo ao contemplar apenas o desenvolvimento corporal dos estudantes. Devemos considerar, portanto, a necessidade da Educação Física possibilitar não somente o ensino dos conhecimentos sistematizados da cultura corporal, mas, também, compreender esses conteúdos, as relações estabelecidas no contexto social e suas contradições para, assim, atuar criticamente na sociedade, visando à superação das desigualdades e à transformação da realidade social.
Nesse sentido, pensar e contextualizar a função da Educação Física traz possibilidades para que se supere a compreensão do corpo de forma fragmentada, reduzida, que prioriza somente o aspecto físico, fisiológico e o desenvolvimento corporal, passando a entendê-lo e problematizá-lo, também, com base na sua construção e manifestação histórica, social, cultural, estética e política. Assim, acreditamos que o processo educacional mostra-se fundamental, visto que, por representar e discutir o corpo, a Educação Física e o contexto social, possibilita não só a reflexão e problematização acerca da historicidade e manifestação do corpo e da cultura corporal, mas, também, a formação de cidadãos conscientes do seu papel social, que possam agir de forma a concretizar uma sociedade democrática e a emancipação humana.
Para além desses apontamentos interpretados nestes universos investigados, constatamos a relevância dos professores, enquanto educadores, os quais devem compreender não apenas os conhecimentos curriculares sistematizados presentes no ambiente escolar, mas também, a realidade social, a fim de agir criticamente nesses ambientes. Para isso, o constante processo de formação e aprendizagem dos docentes mostra-se fundamental para a concretização dessa finalidade e para a formação de indivíduos que também contribuam com essas mudanças.
Referências
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BONFIM, Tânia Regina. Corporeidade e Educação Física. Faculdades integradas FAFIBE, 2009.
BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da Educação Física. Caderno Cedes, Campinas, ano XIX, n.48, p.69-88, agosto, 1999.
CARVALHO, Yara Maria de. O “mito” da atividade física e saúde. 3ª ed. São Paulo: Hucitec, 2004.
______ . Saúde, sociedade e vida: um olhar da Educação Física. Revista Brasileira de Ciência do Esporte, Campinas: v.27, n.3, p.153-168, maio 2006.
CASTRO, Ana Lúcia de. Culto ao corpo: identidades e estilos. In: CONGRESSO LUSO-AFRO-BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS. Coimbra, 8., set. 2004. Anais... Coimbra, 2004, p.1-14.
COLETIVO DE AUTORES. Metodologia do ensino de Educação Física escolar. São Paulo: Cortez, 1992.
DAÓLIO, Jocimar. A antropologia social e a Educação Física: possibilidades de encontro. In: Educação Física e Ciências Humanas. CARVALHO, Yara Maria de; RÚBIO, Kátia. (orgs.). São Paulo: Hucitec, p.27-38, 2001
GOELLNER, Silvana Vilodre. A produção cultural do corpo. In: LOURO, Guacira Lopes; FELIPE, Jane; GOELLNER, Silvana Vilodre. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
GOMES, Suely Ferreira Deslandes Romeu; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. 26. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.
SAVIANI, Dermeval. Pedagogia histórico-crítica: Primeiras aproximações. 5. ed. São Paulo: Autores associados, 1995.
SILVA, Ana Márcia. Corpo, ciência e mercado: reflexões acerca da gestação de um novo arquétipo da felicidade. Campinas: Autores Associados, 2001.
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