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O preconceito contra o deficiente ao longo da história

El prejuicio contra la persona con discapacidad a lo largo de la historia

 

Professor da disciplina de Educação Física adaptada, UERJ

Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Rio de Janeiro

(Brasil)

Gustavo Casimiro Lopes

gustavo.casimiro@gmail.com

 

 

 

 

Resumo

          O preconceito contra pessoas com deficiência é um comportamento ainda bastante aparente na sociedade contemporânea. Mesmo com o número crescente de campanhas e movimentos sociais, ainda é possível se observar gestos e atitudes que como resultado final fazem com que o portador de deficiência seja um indivíduo excluído da sociedade. Por outro lado, o senso comum indica que esse contexto é algo que sempre esteve presente na história humana, legitimando este comportamento de várias formas. Porém, alguns estudos mostram de forma cada vez mais contundente que esta prática exclusivista foi construída historicamente com o passar dos anos.

          Unitermos: Deficiente. Preconceito. Discriminação social. Eugenia.

 

Abstract

          Prejudice against people with deficiency is still very prevalent in contemporary society. Even with the crescent number of campaigns and social movements still is possible to se gestures and attitudes which make these people excluded from society as a final result. Otherwise common sense indicates that this context is something that was always present in human history, legitimating this behavior in multiple ways. However some studies show that this exclusivist practice was historically built during the years.

          Keywords: Deficient. Prejudice. Social discrimination. Eugenics.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 176, Enero de 2013. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A condição das pessoas com deficiência é um terreno fértil para o preconceito em razão de um distanciamento em relação aos padrões físicos e/ou intelectuais que se definem em função do que se considera ausência, falta ou impossibilidade, sendo baseada apenas em um aspecto ou atributo da pessoa, tornando a diferença uma exceção (SILVA, 2006). O indivíduo que apresenta alguma deficiência é em muitos casos exposto a situações de agressão e violência, geradas basicamente pelo preconceito. Neste contexto, persiste a idéia de que estas pessoas seriam “anormais” ou “limitadas”, fato que inclusive faz com que o deficiente tenha dificuldades para se inserir no mercado de trabalho (CRISTINA & RESENDE, 2006). Além disso, existem relatos mostrando na escola a existência de práticas discriminatórias, como o bullying (BOZI et al, 2008).

    A relação da sociedade com a pessoa com de deficiência varia de cultura para cultura e refletem crenças, valores e ideologias que, materializadas em práticas sociais, estabelecem modos diferenciados de relacionamentos entre esta e outras pessoas, com ou sem deficiências (FRANCO & DIAS, 2005). Muitas vezes o termo utilizado para descrever um indivíduo com deficiência é negligenciado e em muitos casos o termo mais usado é portadores de deficiência. Ao realizar uma pesquisa na base de dados Scielo, foram encontrados 6 artigos publicados entre 2001 e 2011, que utilizaram o termo “portador” de deficiência. A partir de 1981, foi introduzida a expressão pessoa deficiente, porém este termo foi abandonado, já que sugeria que a pessoa inteira é deficiente. Em seguida surgiu o termo pessoa portadora de deficiência, freqüentemente reduzida para portadores de deficiência, palavra que logo sofreu críticas, pois de acordo com o movimento pelos direitos das pessoas com deficiência, as pessoas não portam uma deficiência como portam um sapato ou uma bolsa (RODRIGUES & SELEM, 2006). Por volta da metade da década de 90, entrou em uso a expressão pessoas com deficiência, que valoriza o cidadão e mostra com dignidade a realidade da deficiência, termo este que permanece até os dias atuais (SASSAKI, 2003). 

    Cabe destacar que estes comportamentos são também influenciados por diversos fatores, incluindo questões culturais e sociais ao longo da história. Registros históricos mostram que no período que compreende os anos de 1200 até 1940, pessoas com deficiência eram submetidas a diversos procedimentos que em muitos casos levavam à morte como pode ser observado na Tabela 1 (adaptada de ADAMS, 2007).

Tabela 1. Descrição dos métodos adotados para tratar portadores de deficiência nos períodos entre 1200 e 1940

    O antropólogo Francis Galton (1822-1911), publicou em 1901 um manuscrito onde aplicava a Teoria da Evolução de Charles Darwin, na sociedade humana. Neste texto ele afirmava que existem pessoas com mais “valor cívico” do que outras e que tal patamar poderia ser alcançado, por meio do acasalamento seletivo tal como é feito com bois e cachorros (GALTON, 1901). Nesta época, se considerava que ao impedir a procriação dos indivíduos de menor valor, através da esterilização, se impedia que sua “fraqueza” fosse perpetuada para a próxima geração melhorando o estoque do material humano. No entanto esse conceito foi remodelado, incluindo também o extermínio baseado no argumento de não era necessário para a sociedade se importar com pessoas “mentalmente ou intelectualmente mortas” quando o Estado sacrificou gerações de vidas saudáveis e jovens no campo de batalha. Sendo assim, no final da Primeira Guerra Mundial, teve início na Alemanha nazista um programa de eutanásia para crianças deficientes (Figura 1), chamado programa T4, que também tinha como objetivo se expandir para adultos (HUDSON, 2011). Baseado na lógica nazista esse projeto foi amplamente divulgado por meio de cartazes e tinha o seguinte lema: “... porque Deus não quer que o doente se reproduza”.

Figura 1. Criança com deficiência intelectual na Alemanha nazista que provavelmente foi morta durante o Projeto T4. Fonte: http://goo.gl/Z0P2w

    A visão Eugenista da sociedade é anterior a esse período, onde podem ser observados registros de tais práticas em diferentes regiões do mundo. No Império Bizantino, a Igreja Católica em conjunto com o Estado, levava pessoas com deficiência para mosteiros (SCHEWINSKY, 2004), enquanto que na Idade Média, a deficiência era vista como atuação de maus espíritos e do demônio, sob o comando das bruxas, e também resultado da ira celeste e castigo de Deus (ADAMS, 2007).

Práticas discriminatórias anteriores à Idade Média

    Em Esparta essa ideologia pode ser observada de forma bem clara. Por volta de 480 a.C., crianças recém-nascidas frágeis ou com alguma deficiência eram jogadas do alto do monte Taigeto a mais de 2.400 metros de altura por não estarem dentro do padrão físico adequado (SULLIVAN, 2001). A civilização romana, por sua vez, preconizava a perfeição e estética corporal, a deficiência era tida como monstruosidade fato que legitimava atos seletivos tal como descreve SILVA (1987) o famoso discurso de Sêneca (4-65 d.C) que justifica o infanticídio:

    ..."Não se sente ira contra um membro gangrenado que se manda amputar; não o cortamos por ressentimento, pois, trata-se de um rigor salutar. Matam-se cães quando estão com raiva; exterminam-se touros bravios; cortam-se as cabeças das ovelhas enfermas para que as demais não sejam contaminadas; matamos os fetos e os recém-nascidos monstruosos; se nascerem defeituosos e monstruosos afogamo-los; não devido ao ódio, mas à razão, para distinguirmos as coisas inúteis das saudáveis”. (p.46).

    Nesta época, indivíduos portadores de deficiência eram apresentados como monstros para o público, inclusive de forma artificial através de manipulações cirúrgicas (DASEN, 1988). Estudos indicam que a cultura grega, pode ter sido de fato um ponto de transição na forma como o deficiente era tratado pela sociedade. Portadores de deficiência na Grécia eram descritos por palavras como “fraco”, “incompleto” ou “imperfeito”. As evidências disponíveis indicam que a sociedade é que determinava se uma pessoa era ou não deficiente. Se um indivíduo com uma determinada limitação era capaz de se sustentar ou tivesse alguém que lhe desse auxílio, ele se mantinha integrado na sociedade e não era considerado clinicamente deficiente (BAKER, 2006). Portadores de nanismo recebiam uma avaliação social positiva, devido a uma semelhança com os sátiros1 e com o mundo dionisíaco (DASEN, 1988). Por outro lado, paradoxalmente a deformidade era tratada com certo horror e, além disso, a perfeição física era tida como pré-requisito determinante da qualidade da alma (SULLIVAN, 2001). Na mitologia grega temos o exemplo de Hefesto, o deus do metal e do fogo, que era manco e por isso considerado disforme aos olhos dos antigos gregos, sendo posteriormente expulso do Olimpo por sua própria mãe a deusa Hera (EBENSTEIN, 2006).

A visão egípcia sobre o deficiente

    O Egito era anteriormente conhecido como a “Terra dos Cegos”, tal era a quantidade de pessoas acometidas por doenças oftalmológicas como conjuntivite, catarata e glaucoma. Tais informações puderam ser confirmadas após a descoberta do famoso “Papiro de Ebers”, nome dado em homenagem ao seu descobridor, o egiptólogo Georg Ebers (Figura 1). Neste documento que data de 1.500 a.C, encontram-se fórmulas mágicas e tratamentos para diversos males, incluindo doenças oftalmológicas, além de uma descrição relativamente precisa do sistema circulatório (FINGER, 1994).

Figura 2. Parte do famoso “Papiro de Ebers”, mostrando uma receita para a cura da asma que consistia 

em misturar ervas juntamente com tijolo aquecido e inalar seus vapores. Fonte: http://goo.gl/cdoSP

    Outro fato bastante interessante pode ser observado no monumento da XIX Dinastia, produzido há mais de 1.300 anos antes de Cristo. Nessa peça está apresentado um homem identificado como “Roma”, juntamente com sua esposa e filho durante um ritual religioso. Ele exercia um cargo de grande responsabilidade na época que era o de porteiro do templo de um dos deuses egípcios. Roma era portador de uma deficiência física bastante evidente em sua perna esquerda, cujas características (pé equino e musculatura atrofiada) sugerem ser poliomielite. Além disso, ele devia apresentar dificuldades de locomoção uma vez que ele carrega em sua mão esquerda um longo bastão de apoio (Figura 2).

Figura 3. Monumento representando um deficiente físico que ocupava um cargo

de grande responsabilidade no Egito Antigo. Fonte: http://goo.gl/cdoSP

    Existem outras indicações de que no Egito Antigo os portadores de deficiência não eram necessariamente isolados da sociedade, sugerindo que a pessoa com deficiência se integrava em diferentes classes sociais, inclusive constituindo família. Relatos adicionais mostram também que eles exerciam funções de relativa importância social como pode ser observado em diferentes achados arqueológicos (KOZMA, 2006).

    Outra deficiência física relativamente comum no antigo Egito era a acondroplasia, que é a forma mais comum de nanismo rizomélico2. Esta doença altera o crescimento afetando a ossificação endocondral, sendo caracterizada como um distúrbio autossômico dominante, porém cerca de 80 a 90% dos casos são representados por novas mutações. Dessa forma, na maioria dos casos os pais de filhos acondroplásicos não apresentam a mutação gênica (LOPES et al, 2008). Estes achados foram confirmados por meio da análise de esqueletos e também são abundantemente encontrados em pinturas e registros deixados pelos egípcios. Interessantemente, existem relatos de que em alguns casos foram encontrados registros mostrando que havia anões bem posicionados socialmente que também constituíram famílias, inclusive com pessoas que não apresentavam esta doença. Na figura abaixo é possível perceber a estreita semelhança entre a representação de um anão no Egito antigo e um indivíduo portador de acondroplasia nos dias de hoje (Figura 4).

Figura 4. Paciente portador de acondroplasia (A); Tumba de um anão contendo sua representação física (B). 

Os hieróglifos indicam que ele prestava serviços a pessoas da alta hierarquia egípcia. Fonte: http://goo.gl/4GjTj

    Também foram encontrados diversos registros de anões que exerciam funções especializadas como: pescadores, domadores de animais, dançarinos, enfermeiros, entre outros (HAMADA & RIDA, 1972). De maneira geral os anões tinham uma representação muito positiva no Egito Antigo, pois se acreditava que seu aspecto representava alguma significância mágica, existindo inclusive preces específicas para proteção em situações de perigo. Outro aspecto bastante interessante reside no fato de que alguns deuses eram anões e tinham culto próprio (Figura 5). Uma dessas divindades era o deus anão Bes, que era cultuado como o Deus do Amor, da Fertilidade e da Sexualidade (KOZMA, 2006).

    O povo Egípcio buscava o desenvolvimento espiritual através da tradição de ensinamentos. Neste sentido, existia um documento chamado “Instruções de Amenemope”, que era tido como um código de conduta moral egípcio e que determinava que anões e deficientes em geral fossem respeitados, sendo este um dever moral (KOZMA, 2006; KOZMA et al, 2011). Esse manuscrito se encontra preservado quase em sua totalidade no Museu Britânico e um de seus trechos diz:

    “Não faça gozações de um homem cego nem caçoe de um anão, nem interfira com a condição de um aleijado. Não insulte um homem que está na mão de Deus, nem desaprove se ele erra.” (KOZMA et al, 2011).

Figura 5. Escultura representando o deus Bes, que tinha como uma de suas principais funções 

repelir o Mal (358-341 a.C), 30ª Dinastia reinado de Nectanebo II. Fonte: http://goo.gl/BoiY6

    Filler et al (2007) encontrou indícios históricos do que se considera ser o procedimento de neurocirurgia mais antigo registrado no mundo (3.000 a.C). O processo se refere a uma manobra de tração que foi utilizada de forma eficaz em um caso de lesão da medula cervical. Interessantemente, existem relatos no “Papiro de Ani” (Livro dos Mortos), mostrando que Osíris após ser esquartejado por Seth, recobrou a força e o controle de suas pernas, após tratar de sua coluna vertebral. A conexão entre uma coluna vertebral íntegra e a habilidade de locomoção, era reconhecida nessa época e aparece como metáfora para representar a vida e a morte em inúmeros sarcófagos egípcios, sendo normalmente representada pela “Coluna de Djed” (Figura 6).

Figura 6. Imagem que mostra a “Coluna de Djed”, mecanismo que ao ser colocado nas costelas e na coluna 

vertebral do Deus Osíris promoveu sua cura e lhe devolveu sua capacidade de caminhar. Fonte: http://goo.gl/CCZjD

    Com o avanço tecnológico na pesquisa, novos estudos puderam ser realizados com a utilização de técnicas mais modernas. O trabalho de Hawass et al (2010), mostrou a partir de abordagens Paleogenômicas, que o rei Tutancâmon, o jovem faraó do Egito, era frágil, deficiente físico e sofria de “desordens múltiplas” quando morreu aos 19 anos de idade, em cerca 1234 a.C. Os pesquisadores diagnosticaram na múmia de Tutancâmon e de alguns de seus familiares, diversas desordens ortopédicas Ao que tudo indica, Tutâncamon sofria de uma rara desordem óssea conhecida como Doença de Köhler II, que afeta principalmente o osso navicular do pé afetando o suprimento vascular, gerando dor, edema e finalmente necrose. Além disso, existem indícios de que ele também apresentava pé equinovaro, também conhecido como pé torto congênito (Figura 7). Estas informações são corroboradas pela grande quantidade de bengalas e medicamentos encontrados em sua tumba. Porém estas condições por si só não teriam condição de provocar a morte do faraó. Os pesquisadores também encontraram DNA de Plasmodium falciparum, parasita responsável por causar malária. A descoberta levou a equipe de cientistas a concluir que a combinação desse quadro pode ter sido a responsável por sua morte precoce.

Figura 7. (A) Tomografia computadorizada mostrando uma vista sagital dos pés de Tutancâmon, onde se é possível perceber um diferença no ângulo 

de Rocher (valores normais são iguais a 126º); (B) Alteração estrutural no pé esquerdo característica de pé equinovaro. Fonte: http://goo.gl/V1IdG

Achados arqueológicos primitivos

    A pesquisa realizada por Buquet-Marcon et al (2009), relatou o que se acredita ser o registro mais antigo de uma amputação bem sucedida realizada de forma intencional e com relativa precisam. O procedimento foi realizado há aproximadamente 7.000 anos atrás na região que hoje compreende a França. Diferentemente do que se possa imaginar, após uma inspeção do material os pesquisadores não encontraram sinais de contaminação, sugerindo que o processo foi realizado em condições relativamente assépticas. As informações disponíveis também indicam que o paciente conseguiu viver após a amputação sem maiores problemas. Além disso, o dado mais interessante é que as roupas e a forma como o corpo foi sepultado, sugerem que esse era um indivíduo que ocupava um importante lugar na sociedade da época (Figura 8). Os autores concluem que nesse local existia um conhecimento médico relativamente avançado com complexas regras sociais, que parecem ter influenciado a maneira como pessoas nesta condição eram tratadas.

Figura 8. Esqueleto encontrado na escavação, com a ferramenta utilizada na amputação ao lado esquerdo do crânio (A); Ampliação do 

úmero amputado (B); Reconstrução computadorizada da peça óssea e sinais de cicatrização (setas brancas) (BUQUET-MARCON et al (2009)

    Registros ainda mais antigos, referentes ao período Paleolítico Superior (40.000 anos atrás), mostram indícios bastante detalhados sobre o tratamento dado aos indivíduos portadores de deficiências. Formicola & Buzhilova (2004) descrevem um enterro de duas crianças, um menino (12-13 anos) e uma menina (9-10 anos), no sito arqueológico de Sunghir, localizado na Rússia. Os resultados encontrados sugerem que as duas crianças possuíam uma anomalia chamada de curvatura congenital dos ossos longos. O extremo cuidado na realização do funeral (decoração e posicionamento dos corpos) sugere a existência de um complexo sistema de crenças e simbolismo envolvendo o portador de deficiência. Análises macroscópicas do esqueleto da menina também sugerem que sua deformidade não a impediu de ser fisicamente ativa.

    Outro achado bastante interessante foi o enterro duplo de uma mulher e de um adolescente, encontrados em Romito, Itália. Análises realizadas no esqueleto mostram que o rapaz sofria de nanismo acromesomélico3 (HUNTER & FORMICOLA, 2008). Geralmente uma pessoa com esta condição possui inteligência normal, sem apresentar complicações médicas graves. Porém, ocorre uma severa deficiência de crescimento, com mobilidade articular limitada nos braços. Estas limitações físicas provavelmente interferiram com sua subsistência, principalmente se considerarmos uma sociedade nômade de caçadores-coletores. No entanto, o posicionamento dos esqueletos, que parecem se abraçar (HOLT & FORMICOLA, 2007), assim como a forma como o enterro foi realizado, sugerem tolerância e cuidados para um indivíduo com severas deformidades nesta época do Paleolítico Superior, como podemos observar na Figura 9 (FRAYER, 1987).

Figura 9. O enterro de uma mulher e de um adolescente anão

na caverna de Romito, Itália (FORMICOLA, 2007)

    O arqueólogo Ralph Solecki, encontrou na caverna de Shanidar, Iraque um esqueleto masculino de um Neandertal, com cerca de 50 anos que apresentava severos ferimentos na cabeça e nos braços, que foram adquiridos em idade muito anterior. Os indícios apontam que este homem foi cuidado por outros membros do grupo, fato inclusive que indica algum grau de capacidade cognitiva (SOLECKI, 1971).

Discussão

    Embora possamos ter a priori, um contexto onde pessoas com deficiência eram eliminadas da sociedade por serem incapazes, algumas pesquisas vem mostrando que essa concepção não ocorreu em todos os períodos históricos. De acordo com as evidências disponíveis, os egípcios parecem ter sido um dos povos antigos que mais manifestaram formas de inclusão social e de estratégias terapêuticas em casos de deficiência. Cabe ressaltar que estes comportamentos também puderam ser observados mesmo em épocas mais antigas, (FRAYER, 1987; BUQUET-MARCON et al, 2009). Da mesma forma, este comportamento parece ter sido resgatado somente a partir do Humanismo, no século XV, onde a concepção de Homem se modificou, iniciando-se a diferenciação no tratamento de portadores de deficiência e da população pobre em geral (SCHEWINSKY, 2004).

    No que se refere às intervenções ortopédicas, existem diversos registros de procedimentos para inúmeras situações, que eram realizados no Egito, na Grécia e em Roma (BRORSON, 2009). Com relação ao nanismo, interessantemente não foram encontrados registros sobre o nanismo nos papiros egípcios, indicando que esta condição não era considerada uma deficiência e nem uma condição médica (KOZMA, 2006).

    O culto ao corpo útil e aparentemente saudável pela sociedade contemporânea entra em rota de colisão com aqueles que portam uma deficiência, pois estes lembram a fragilidade que se busca negar. Sendo assim, a condição das pessoas com deficiência é um terreno fértil para o preconceito em razão de um distanciamento em relação aos padrões físicos e/ou intelectuais que se definem em função do que se considera ausência, falta ou impossibilidade. Fixa-se apenas num aspecto ou atributo da pessoa, tornando a diferença uma exceção (SILVA, 2006). Por outro lado, o corpo marcado pela deficiência, por ser disforme ou fora dos padrões, lembra a imperfeição humana (FRANCO & DIAS, 2005).

    Em conclusão, podemos observar que os registros que datam de aproximadamente 40.000 anos atrás sugerem que o cuidado direcionado ao deficiente já existia em períodos primitivos da Humanidade. De maneira geral o deficiente participava ativamente da vida social, desde que sua condição não fosse limitante para tal. Já no Egito Antigo, a ausência de documentação médica mostra que capacidade de autonomia do indivíduo era determinante para se definir alguém como deficiente. A inclusão social do deficiente era incluída entre o código de conduta moral da época, sendo este um dos primeiros registros sobre o tema. A exclusão social do deficiente foi construída historicamente em um processo de transição que parece ter ocorrido na Grécia Antiga por volta de 480 a.C. que se concretizou após a queda do Império Egípcio pelos romanos (SULLIVAN, 2001). A expansão do Império Romano na Europa pode explicar, ao menos em parte, a modificação na forma como o deficiente passou a ser encarado pela sociedade, persistindo até os dias de hoje. Entender este processo pode ajudar a compreender algumas das bases onde se sustentam certos pré-julgamentos e comportamentos discriminatórios contra o deficiente. O fato mais interessante recai na forte possibilidade de que diferente do que o senso comum nos indica a exclusão social do deficiente ao longo da história não é uma norma. Infelizmente os estudos que mostram essas nuances foram realizados fora do Brasil dificultando o acesso a tais informações, que precisam ser divulgadas para que novas discussões sobre o tema possam ser estimuladas.

Notas

  1. Entidade mitológica que vivia nos campos e bosques, com o corpo metade humano e metade bode.

  2. Relativo à articulação coxo-femoral ou à do ombro; que se relaciona com a raiz de um membro.

  3. Crescimento desproporcional do esqueleto que afeta principalmente os antebraços, mãos e pés. 

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