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Violência e artes marciais. A influência
do processo civilizador no Kung Fu

Violencia y artes marciales. La influencia del proceso civilizador en el Kung Fu

Violence and martial arts. The influence of the civilizing process in the Kung Fu

 

*Graduanda em Ciências da Atividade Física pela USP

**Doutor da Escola Artes, Ciências e Humanidades da USP

(Brasil)

Simone Cassoli Ferraz*

simone.ferraz@usp.br

Marco Antonio Bettine de Almeida**

marcobettine@usp.br

 

 

 

 

Resumo

          O presente estudo busca discutir uma possível relação entre o conceito de Processo Civilizador, apresentado pelo sociólogo alemão Norbert Elias e as artes marciais, mais especificamente a arte do Kung Fu. Buscou-se nesse ensaio verificar a influência do Processo Civilizador nas artes marciais, já que tal arte busca transmitir seus conceitos de uma forma tradicional, preservada por milhares de anos na cultura chinesa. O objetivo principal deste estudo é verificar se a violência está presente no campo da arte marcial, mais precisamente, no Kung Fu.

          Unitermos: Processo civilizador. Kung Fu. Violência.

 

Resumen

          Este estudio tiene la intención de debatir una posible relación entre el concepto de proceso de civilización, planteado por el sociólogo alemán Norbert Elias y las artes marciales, específicamente el arte del Kung Fu. Se buscó determinar la influencia del proceso civilizador en las artes marciales, ya que este arte busca transmitir sus conceptos de una manera tradicional, preservado por miles de años en la cultura china. El objetivo principal de este estudio es verificar si la violencia está presente en el campo del arte marcial, más precisamente, en el Kung Fu.

          Palabras clave: Proceso civilizador. Kung Fu. Violencia.

 

Abstract

          This study intends to discuss a possible relationship between the concept of Civilizing Process, presented by the German sociologist Norbert Elias and the martial arts, specifically the art of Kung Fu. We sought to determine the influence that test the Civilizing Process in martial arts, such as art seeks to convey his concepts in a traditional manner, preserved for thousands of years in Chinese culture. The main objective of this study is to verify if the violence is present in the field of martial art, more precisely, in Kung Fu.

          Keywords: Civilizing process. Kung Fu. Violence.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 174, Noviembre de 2012. http://www.efdeportes.com/

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Artes marciais

    O Brasil tem uma cultura característica, onde busca difundir esportes coletivos competitivos como o futebol e o voleibol, no entanto, ele se mostra resistente quando a questão são esportes de luta, sendo este um grande instrumento de socialização, essencial para o desenvolvimento do indivíduo e tema central deste artigo.

    A palavra luta vem do latim “lucta” e quer dizer “combate, com ou sem armas, entre pessoas ou grupos; disputa”, a palavra arte significa “conjunto de preceitos ou regras para bem dizer ou fazer qualquer coisa”, e a palavra marcial é remetida a “Marte o deus da guerra, referente à militares ou guerreiros” (FERREIRA, 1999).

    Segundo Drigo (2006) artes marciais podem ser caracterizadas como lutas por ser uma atividade corporal que envolve ataque e defesa. Um artista marcial segue uma filosofia de vida, diferenciando-o, por exemplo, dos lutadores de boxe.

    As artes marciais são um conjunto de valores virtuosos, permeado por moralidade e religiosidade (BARREIRA, 2002).

    O Kung Fu faz parte da grande herança cultural do povo chinês e sua origem pode ser encontrada na pré-história, onde nossos ancestrais lutavam contra animais e outros homens com a finalidade de garantir sua sobrevivência (Ji,1986). Com isso, os guerreiros compreenderam a importância de melhorar a capacidade física e as habilidades de combate, além de possuírem boas armas, com treinamento de alta intensidade em tempos de paz. O treinamento propiciou o surgimento de inúmeras artes marciais com o decorrer do tempo, incluindo o Kung Fu, que é conhecido pela inspiração dos movimentos dos animais e do bem-estar com a saúde e defesa pessoal.

    Por ter nascido na China, às artes marciais são conhecidas por Wu Shu, que por sua vez, foram chamadas de Bu Shi no Japão. Dessa forma, o mesmo ideograma representa Arte Marcial em ambos os países. O que mostra a figura 01.

Figura 01. Ideograma “Wu” (chinês) ou “Bu” (japonês), que significa

“marcial”, representa a idéia de “parar a violência” (LIMA, 2000, p.112)

    Segundo Minick (1975), o Kung Fu é conhecido pela observação e inspirado nos movimentos dos animais.

    O Kung Fu/Wu Shu carrega três importantes linhas de pensamento, a primeira é o confucionismo, a segunda é o taoísmo e a terceira e mais conhecida é o budismo, que continuam presentes em diversos países. As duas primeiras linhas pregam fundamentalmente o equilíbrio entre tudo que existe no Universo por meio da contemplação do Tao que significa caminho, e do equilíbrio dinâmico entre as forças como Yin e Yang nas manifestações da natureza, como mostra a figura 02. Segundo Lima (2000, p.125) surgiram escolas internas ou taoístas de Kung Fu que tem como principal característica o desenvolvimento do Chí que significa Energia Vital Humana, adquirida por intermédio de exercícios de respiração e meditação, o que leva o fortalecimento natural dos órgãos internos, ossos e músculos do corpo visando longevidade e o desenvolvimento do “interior para o exterior”.

Figura 02. T’ai C’hi Tu: símbolo formado pelas forças complementares Yin (preto) e Yang (branco)

    Foi com o 28º sucessor de Buda (Bodhidharma) que o mosteiro Shaolin da província de Honan, recebeu uma grande bagagem cultural indiana. Os monges de Shaolin aprenderam a religião budista, práticas de ioga e técnicas de luta indiana denominada Vajramushti. Partindo-se desse pressuposto, surgiu o Kung Fu produzido por estilos externos, duros ou budistas, que segue “um caminho de desenvolvimento do Exterior para o Interior” (LIMA, 2000, p. 125)

    De acordo com Lima (2000), atualmente estão catalogados na China mais de 360 estilos diferentes de Kung Fu/Wu Shu com características taoístas, budistas, estilo do norte, estilo do sul e estilos mistos, considerados estilos tradicionais.

    Segundo Ortega (1997), o Kung Fu deve ser visto como atividade esportiva sistematizada e com regras próprias, medidas que permitem a organização de torneios e campeonatos. As competições são caracterizadas em três categorias, formas ou rotinas (Kati), Lutas combinadas (Toi Chat) e os Combates (Kuoshu e Sanshou).

    No entanto, o termo Kung Fu não possui uma tradução correta no ocidente, pois se trata de uma forma interpretativa do termo cantonês “Gong Fu” que tem significado conotativo “Tempo de Habilidade”, “Trabalho Duro ou Árduo”, “Habilidade em Executar Alguma Coisa” (LIMA, 2000, p.109), essas expressões não definem uma arte marcial em si, mas designa tempo e energia gastos no desenvolvimento de certa habilidade fundamentada na arte, mas não necessariamente arte marcial, ou seja, um indivíduo Kungfuísta pode ter habilidades como pintura, musica, dança, poemas, e claro, artes marciais.

Processo Civilizador e violência

    Segundo Brasil (1998), os aspectos histórico-sociais das lutas do ponto de vista do PCN relatam a “compreensão do ato de lutar: por que lutar, com quem lutar, contra quem ou contra o que lutar”.

    Norbert Elias ao apresentar o Processo Civilizador nos traz um entendimento sobre as transformações que ocorreram com as artes marciais, devido às mudanças ocorridas na sociedade que foram influenciadas com a função e aplicação das artes marciais.

    A violência é uma das grandes preocupações da sociedade por estar sempre presente no campo da política, da economia, da moral, do Direito, das relações humanas e institucionais, e do plano individual (MINAYO, 1994).

    De acordo com Domenach (1981) a violência deve ser analista em rede:

    “Suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituições de aparência respeitável. A violência dos indivíduos e grupos tem que ser relacionada com a do Estado. A dos conflitos com a da ordem”

    Em outras palavras, a violência faz parte da humanidade, se mostrando de forma peculiar em sociedades específicas, trazendo inúmeros questionamentos.

    A seguir, será mostrada uma reflexão científica sobre três tópicos da violência:

    A primeira é a Violência Estrutural que oferece um “marco” à violência do comportamento, se aplicando as estruturas organizadas e da família, sistemas econômicos, políticos e culturais conduzindo à opressão de diversos grupos onde as conquistas da sociedade são negadas o que os torna mais vulneráveis. As práticas de socialização são influenciadas por essas estruturas (BOULDING, 1981), o que leva indivíduos a aceitarem ou no infligirem sofrimentos, de acordo com o que é lhe correspondido de forma natural.

    A segunda é a Violência de Resistência que ao contrário da violência estrutural, esta geralmente não é “naturalizada” e sim objeto de contestação e repressão por parte dos detentores do poder político, econômico e cultural. Segundo Denisov (1986), a violência e a justiça vêm de encontro a uma complexa unidade dialética, que pode pisotear, rebater ou defender a justiça.

    A terceira é a Violência da Delinquência que trata das ações cometidas socialmente reconhecidas fora das leis. Esta por sua vez, passa pela violência estrutural que confronta indivíduos, corrompe e impulsiona ao delito. O que mais contribui com a expansão da delinqüência é a delinqüência, a alienação do trabalho, o menosprezo de valores e normas em função do lucro, o consumismo, o machismo e por fim o culto a força (MINAYO, 1994).

    Outro ponto importante no processo da civilização é o auto-controle, segundo Elias (1980) ocorre uma mudança na balança entre controle externo e auto-controle, favorecendo o ultimo.

    Os autores Adorno (1993 e 1995), Oliveira (1995), Paixão (1991), Tavares (1998) e Zaluar (1994), definem violência como o não reconhecimento do outro, a anulação ou a cisão do outro, Zaluar também define como ausência de compaixão, e Tavares como a palavra emparedada ou o excesso de poder, já para Brant (1989), Caldeira (1991) e Kowarick e Ant (1981) a violência é vista como negação da dignidade humana. Como podemos observar, há pouco ou nenhum espaço existente para o aparecimento do sujeito da argumentação, da negociação ou da demanda, que fica na exibição da força física pelo seu oponente ou esmagado pela arbitrariedade dos poderosos que se negam ao diálogo (ZALUAR, 2001).

    De acordo com as idéias de Foucault, a violência não se resume a atos de agressão física, com o avanço do processo de civilização entre os séculos XVI e XVIII, corresponderia a um recuo da violência bruta, substituindo-se os enfrentamentos corporais por lutas simbólicas. Dessa forma, a violência simbólica supõe a adesão dos dominados às categorias que embasam sua dominação (CHARTIER, 1995).

    Segundo Bourdieu (1989), a violência exercida pelo poder das palavras que negam, oprimem ou destrói psicologicamente o outro, é operada pelos mandatários do “Estado, detentor do monopólio da violência simbólica legitima”. A violência simbólica seria o:

    [...] poder de construção da realidade, que tende a estabelecer [...] o sentido imediato do mundo (e, em particular, do mundo social), supõe aquilo que Durkheim chama o conformismo lógico, quer dizer, uma concepção homogênea do tempo, do número, da causa, que torna possível a concordância entre as inteligências. (Bourdieu, 1989, p. 9)

    Para Bourdieu, o símbolo é instrumento de integração social, porque cria a possibilidade de consenso sobre o sentido do mundo e da dominação. Por outro lado, instrumento estruturado e estruturante de comunicação e de conhecimento, os símbolos, é exercício da dominação quando os instrumentos da dominação contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (Bourdieu,1989, p. 11).

    De acordo com os autores Soares, D’Araújo e Castro (1994) e Zaverucha (1994), no Brasil, a violência física (e não a simbólica), é comumente empregada para forçar o consenso, defender a ordem social a todo preço. A questão está na forma de manifestação deste que possibilita ou não o estabelecimento da negociação, na qual se exerce a autonomia do sujeito e se cria novas idéias pela palavra.

    A análise deste artigo se refere a compreender a influência do processo civilizador no Kung Fu, para verificar se há evidencias de violência associado à prática da arte marcial chinesa.

Objetivo

    O objetivo do presente trabalho é verificar se a violência está presente no campo da arte marcial, mais precisamente, no Kung Fu.

Metodologia

    Participaram do estudo 60 pessoas, sendo 30 praticantes da arte marcial Kung Fu e 30 pessoas sem experiência na área, que fazem parte da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo – EACH-USP.

    Foi aplicado um questionário sobre violência ao longo de seis meses, sendo um no começo do semestre, o segundo no meio do semestre e o terceiro no final do semestre, onde as variáveis foram desconsideradas e apenas as respostas foram analisadas.

Discussão

    Existem inúmeros motivos para justificar a violência. Para Elias (1990), à forma de regras sociais cada vez mais complexas e com o objetivo de gerar, nos cidadãos, a ideia de que a responsabilidade de domar os ímpetos e agir de forma ‘não passional’ é sua.

    A arte marcial por ser um sistema regrado e organizado, acaba sendo uma representação direta de um processo lento voltado para um controle da violência. Se as artes marciais são cada vez mais regradas, então a violência também é regrada e controlada.

    As práticas marciais, de acordo com as ideias de Elias, passaram a abandonar o sistema de tentativa e erro, ou seja, o guerreiro que sobrevive passa adiante suas técnicas, para um momento em que padrões racionais são utilizados para determinar seus pontos principais. Shun (1998) segue a mesma linha, quando afirma o começo do abandono de técnicas fatais, visando à retratação do combate direto em favor da visão pacificadora – civilizadora.

    As práticas corporais possuem uma grande tradição, além de uma eficácia dirigida para objetivos específicos. O fato das técnicas orientais estarem no âmbito marcial, é um ponto de suma importância de que antigamente os povos encaravam questões mais profundas quando comparadas com o mundo ocidental (MAUSS, 1974).

Resultados

    As respostas dos três questionários mostraram que os alunos não associam o Kung Fu com a violência. Ao responderem se os colegas os consideram uma pessoa agressiva, 50% das pessoas sem experiências em artes marciais afirmaram que sim, no entanto 0% dos praticantes de artes marciais afirmou que não. 100% dos grupos acreditam que a prática do Kung Fu é positiva e não é sinônimo de violência.

Conclusão

    Ao longo de seis meses foram aplicados três questionários sobre violência e Kung Fu, sendo um no início do semestre, o segundo no meio do semestre e o terceiro ao final do semestre.

    Nas três aplicações do questionário, tanto os alunos praticantes da arte marcial Kung Fu quanto os não praticantes, não relacionaram a violência com a prática do Kung Fu.

    Os alunos praticantes da arte marcial Kung Fu declararam que com a prática se tornaram menos agressivos, mais atenciosos, calmos, seguros, aumento da concentração, tranquilidade e dificilmente se envolvem numa briga, por entenderem que não há necessidade para isso, tendo em vista o conhecimento técnico e suas possíveis consequências.

    Os alunos não praticantes declararam que o Kung Fu não é uma arte marcial violenta e que fariam Kung Fu sem problemas.

    Sem dúvida, os novos tempos e as novas demandas da sociedade atual forçaram uma adaptação das artes marciais, sendo o Processo Civilizador um instrumento de suma importância para tal entendimento.

    Nota-se que a arte marcial Kung Fu, que é transmitida dentro de valores milenares sob os quais se fundamenta, pode ser instrumento precioso para a construção de um novo homem adaptado a estas novas realidades da sociedade atual. Com isso, o artista marcial segue seu caminho de forma segura, recebendo conhecimento estruturado sobre princípios filosóficos e culturais, que são transmitidos de geração em geração de mestres.

    O não praticante do Kung Fu consegue enxergar e entender um pouco da filosofia do Kung Fu, pois nota-se que o artista marcial não é uma pessoa violenta e/ou agressiva, de modo que a arte marcial só lhe proporciona benefícios físicos e mentais.

    O praticante do Kung Fu percebe ao longo da prática que os valores que fundamentam sua técnica são aplicáveis a diferentes aspectos da sua vida, o que proporciona uma vida de preservação de valores, preservação a sua vida e seus valores pessoais.

    Norbert Elias a partir do Processo Civilizador e do controle das emoções tem as atividades das artes marciais como o centro, o que nos leva a um processo de controle das emoções pela prática das artes marciais (BETTINE, 2009).

    À medida que o artista marcial aprende com seu mestre, ele não precisa provar nada para ninguém, independentemente dos argumentos do adversário, de modo que o artista marcial conhece sua imensa força. E jamais lutará com quem não merece a honra de um combate.

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