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Educação Física higienista: discursos historiográficos

La Educación Física higienista: discursos historiográficos

 

Mestre em Educação Física pela Escola de Educação Física e Desportos

da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EEFD-UFRJ)

(Brasil)

Alan Camargo Silva

alan10@zipmail.com.br

 

 

 

 

Resumo

          No Brasil, desde o final do século XIX e início do século XX, a identidade da área de Educação Física escolar vem sendo debatida a partir de (e por) diversos referenciais teóricos. Destarte, o objetivo do presente trabalho é analisar e discutir alguns discursos historiográficos concernentes especificamente ao que foi denominado de Educação Física higienista. Tendo em vista as produções científicas que constituem a literatura da área, é possível destacar algumas (in)conclusões a serem (re)pensadas acerca dos aspectos histórico-contextuais referentes à origem da Educação Física escolar e a sua suposta função de promoção de corpos considerados saudáveis e aptos para o trabalho em uma época permeada de mazelas sociais e de desenvolvimento urbano-industrial.

          Unitermos: Educação Física. Higienismo. Historiografia. Corpo.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 171, Agosto de 2012. http://www.efdeportes.com

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Considerações iniciais: aspectos histórico-contextuais

    A tendência pedagógica de Educação Física escolar conhecida como “higienista” foi delineada de modo significativo no final do século XIX. Nas primeiras décadas do século XX, tal época histórica abrangeu o marco da Primeira Guerra Mundial e, no Brasil, o baixo nível de saneamento básico e as mazelas sociais. Para Ghiraldelli Júnior (1988), o desenvolvimento da Educação Física higienista estava ligado às preocupações das elites com os problemas advindos da crescente industrialização do período final do Império e de toda a Primeira República.

    As preocupações do pensamento liberal da elite brasileira com a saúde objetivavam distanciar as classes sociais mais altas das mazelas sociais que assolavam grande parte do país. Nesta época, houve um impulso significativo da industrialização e consequentemente um avanço incompatível da urbanização com a infraestrutura das grandes metrópoles. Este cenário derivou um surto de inúmeras doenças, altos índices de mortalidade infantil, bairros atravessados por uma série de problemas de saneamento básico, bem como uma suposta falta de reflexão da população, sobretudo da parcela referente aos trabalhadores operários, em relação às profilaxias e às condições de saúde.

    Parte do povo foi removida dos grandes centros das cidades por medidas autoritárias de remodelamento urbano com o intuito de evitar a proliferações de doenças, bem como a fim de arejar os espaços públicos. A população começava a ocupar o interior das capitais formando o que pode ser denominado de “favelas”. Soares (2004) explicita que houve um processo semelhante na Europa: “[...] o desenvolvimento urbano empurrava os pobres para as grandes concentrações de miséria dos centros de governo e das novas áreas residenciais da burguesia.” (p. 10).

    Alencar et al. (1996) mencionam que as grandes cidades eram os centros de desenvolvimento e as suas taxas de crescimento demográfico eram superiores às da população nacional como um todo. Oliveira (1987) acrescenta que “[...] a afluência de jovens aos grandes centros, iminência de sedentarismo provocada pela revolução nos meios de transporte e a influência da imigração fomentada após a abolição [...].” (p. 55) se configuravam como fatores determinantes para a alteração da expectativa de vida da sociedade brasileira. O país era regido pelo capitalismo crescente, agravando a diferença socioeconômica entre as classes sociais.

    Entretanto, Soares (2004) pondera que “O que tornava o povo miserável, doente, degenerado física e mentalmente eram as condições de vida e de trabalho impostas pelo capital.” (p. 103). Baseando-se em Ghiraldelli Júnior (1988), “A Educação Física Higienista é produto do pensamento liberal. [...] Os liberais não titubeavam em jogar às costas da ‘ignorância popular’ a culpa pelos problemas sociais que, em verdade, se originavam da perversidade do sistema capitalista.” (p. 22). Por gestos automatizados e disciplinados, a Educação Física se tornaria responsável em construir corpos considerados saudáveis (SOARES, 2004).

    Nesse contexto, em termos gerais, de acordo com Caparroz (2005), no caso específico da Educação Física escolar, emergia a noção de intervenção que serviria “[...] para imprimir a idéia liberal, de que a saúde, o bem-estar físico, o desenvolvimento do corpo forte, higiênico, é responsabilidade individual e não conseqüência das condições sociais determinadas pela estrutura econômica, política e social.” (p. 121).

    Sobre a historiografia da Educação Física, como pano de fundo teórico dos aspectos histórico-contextuais que atravessam a área, vale destacar a ideia de Caparroz (2005) que muitos autores desconsideram a trajetória histórica da incorporação das práticas corporais construída historicamente no âmbito educacional permeada de conflitos e contradições. Sendo assim, o objetivo do presente trabalho é analisar e discutir alguns discursos historiográficos concernentes especificamente ao que foi denominado de Educação Física higienista.

Educação Física higienista: da constituição da disciplina à suposta intervenção social no processo saúde-doença

    Admite-se tratar o impulso da área de Educação Física a partir da sua consolidação como disciplina obrigatória do currículo escolar nesse contexto da época denominada de higienista. Segundo Ghiraldelli Júnior (1988), o liberalismo brasileiro com o advogado baiano Rui Barbosa e seu Parecer no Projeto de número 224 caracterizando a Reforma do Ensino Primário, bem como a força de várias instituições complementares da Instrução Pública proferido em 1882 na Câmara dos Deputados, legitimaram legalmente a Educação Física nas escolas.

    O argumento central da relevância da Educação Física era o avanço da ciência e da função higienista divulgado em publicações, discursos e conferências (MENDES; NÓBREGA, 2008). Castellani Filho (2003) esclarece que tal cenário “[...] serviu de referencial a todos aqueles que – notadamente nos primórdios do período republicando e nas primeiras décadas do século XX – vieram a defender a presença da Educação Física no sistema escolar brasileiro.” (p. 54). De encontro à interpretação de Castellani Filho (1983), Caparroz (2005) afirma que a função da Educação Física higienista no sentido de que foi derivada da influência médica e biológica, na verdade, já datava desde o período do Império.

    Sabe-se que os aspectos histórico-contextuais foram determinantes para a Educação Física se inserir no âmbito educacional, no entanto, a consolidação de uma disciplina na escola depende de vários fatores em tensão para a sua consolidação na prática. De certo modo, a escola foi considerada um instrumento de reverter a situação social de mazelas sociais sendo classificada como redentora da humanidade e influenciada significativamente pelos médicos-higienistas no desenvolvimento dos conteúdos pedagógicos.

    Exemplarmente, Vago (1999) assinala que houve “[...] a construção de prédios próprios para as escolas, imponentes, majestosos, higiênicos e assépticos – os grupos escolares, considerados templos do saber.” (p. 32). Ainda tendo a escola como a saída da regeneração da sociedade, Soares (2004) registra que tanto médicos quanto pedagogos viabilizam, na prática, suas crenças na transformação social através da educação. O âmbito educacional se torna um instrumento capaz de formar, desde a infância, os hábitos de vida saudável, o amor ao trabalho, à ordem e à disciplina moral.

    Desse modo, “[...] atribuíam à Educação o poder sobrenatural de reformar a sociedade. Por extensão, advogam uma Educação Física que reeducasse toda a população, e principalmente os trabalhadores, no sentido de condicioná-los a hábitos higiênicos e saudáveis.” (GHIRALDELLI JÚNIOR, 1988, p. 36). Darido e Rangel (2005) mencionam que os instrumentos dessa disciplina escolar, que são o corpo e o movimento, são valorizados para “[...] o desenvolvimento do físico e da moral, a partir do exercício.” (p. 2). Os métodos ginásticos paulatinamente também se tornam importantes no desenvolvimento da área de Educação Física. Segundo Soares (2004), desde o ano de 1800 na Europa, formas distintas de exercícios físicos, denominados de métodos ginásticos, acabam sendo transmitidos para outros países, como o Brasil.

    Entretanto, questiona-se o discurso de que a escola seria responsável em educar as camadas socialmente (des)prestigiadas. Vale questionar tais noções acerca da incorporação acrítica de ideologias médico-higienistas da Educação Física pela escola, uma vez que para Caparroz (2005), “[...] o acesso à escola era praticamente restrito às elites, e mesmo nas escolas frequentadas pelos trabalhadores é preciso verificar se havia aulas de Educação Física.” (p. 88)

    Para Caparroz (2005), parece que a maioria dos autores não explorou a construção histórica da Educação Física buscando refletir sobre a real gênese da área educacional. De forma majoritária, determinista e reducionista, as análises se fundamentam na compreensão da ideia da Educação Física sendo incorporada pela instituição escolar unicamente pela via da determinação dominante. Os objetivos dos higienistas não possuíam a pretensão de atender somente aos interesses de determinada classe (GÓIS JUNIOR, 2000). Nesse sentido, transparece que não houve nenhum elemento de contradição/conflito e que os ditames dominantes sempre se sobrepuseram aos sentidos ideológicos da Educação Física escolar.

Educação Física higienista: direcionando para o trabalho?

    Além dos aspectos constitutivos relativos ao processo saúde-doença da maioria da população brasileira, a Educação Física escolar deveria se desdobrar para se empenhar com eficácia nas condições de trabalho. Alencar et al. (1996) mencionam que se tornou “[...] obrigatória a educação moral, cívica e esportiva nas escolas, etc. Tudo isso tinha um objetivo principal: tornar seus empregados mais satisfeitos (?!) mas, sobretudo, mais produtivos.” (p. 283). Nas palavras de Soares et al. (1992) surgiria um novo homem, este por sua vez mais centrado no seu corpo para o trabalho na época:

    [...] a energia física, transformava-se em força de trabalho e era vendida como mais uma mercadoria, pois era a única coisa que o trabalhador dispunha para oferecer no “mercado” dessa chamada “sociedade livre”. [...] é nesses cuidados físicos com o corpo – os quais incluíam a formação de hábitos como: tomar banho, escovar os dentes, lavar as mãos – que se faziam presentes, também, os exercícios físicos [...] (p. 51)

    Entretanto parece razoável ponderar que as explicações macroestruturais sobre a Educação Física escolar e os ditames do capitalismo sobre as condições de trabalho podem ser reducionistas (OLIVEIRA, 2002). Há generalizações sobre os processos de análise dos aspectos industriais ao assumir a Educação Física escolar como responsável pela preparação e especialização da mão-de-obra (CAPARROZ, 2005).

    Em especial, quando se alude a este homem da época higienista no crescente sistema capitalista, refere-se aos sujeitos do sexo masculino. Na época, havia a superioridade do gênero masculino e uma submissão da mulher, logo, teoricamente, o programa de exercícios físicos era diferente entre homens e mulheres. Castellani Filho (2003) afirma que “[...] mulheres fortes e sadias teriam mais condições de gerarem filhos saudáveis, [...] estariam mais aptos a defenderem e construírem a Pátria, no caso dos homens, e de se tornarem mães robustas, no caso das mulheres.” (p. 56).

    Além disso, Soares (2004) pondera que as crianças precisam ser educadas, disciplinadas pelas mulheres-mães ao dominar o conjunto de medidas e normas médicas, adotando, assim, um espaço particular – leia-se privado – na sociedade. Nesse sentido, a mulher se torna peça fundamental nas estratégias para a domesticação da classe operária. Nessa perspectiva, a Educação Física denominada higienista, portanto, visaria à instrumentação para o trabalho da população.

    Corpos robustos, viris, ágeis, fortes, dispostos a agir intensamente contra as mazelas sociais e para o trabalho eram constantemente divulgados na sociedade. Na visão de Soares et al. (1992), essa assepsia da população em geral possui raízes desde o início do século XIX, quando a Educação Física ministrada na escola “[...] começou a ser vista como importante instrumento de aprimoramento físico dos indivíduos que, ‘fortalecidos’ pelo exercício físico, que em si gera saúde, estariam mais aptos para contribuir com a grandeza da indústria nascente [...].” (p. 52)

    Na prática da Educação Física escolar, no sentido atribuído por Soares (2004), “O professor desempenha um papel secundário, digamos assim, um papel de auxiliar direto, um papel de executor de tarefas pensadas e fiscalizadas pelo médico.” (p. 130). Há a noção de que o professor de Educação Física munir-se-ia de conhecimentos anatomofisiológicos e higiênicos em sua formação profissional com o intuito de modelar os sujeitos para o trabalho (CAPARROZ, 2005). Dessa forma, o médico-higienista era responsável por interferir na prescrição de exercícios e nos conteúdos escolares, como Rocha (2003) destaca:

    [...] a revista de asseio do corpo e das roupas; a revista da escola pelos alunos, num exercício que [...] desenvolveria a capacidade de vigilância sobre o ambiente doméstico; a observação e correção por parte do professor das condutas contrárias às prescrições higiênicas; as mensurações de peso, estatura e força física; a indagação discreta e hábil sobre a vida doméstica do aluno, que orientaria o professor no trabalho de correção, ampliando a sua órbita de influência para o interior dos lares. (p. 48)

    Resumidamente, Bracht (1999) pondera que Educação Física era “Alvo das necessidades produtivas (corpo produtivo), das necessidades sanitárias (corpo “saudável”), das necessidades morais (corpo deserotizado), das necessidades de adaptação e controle social (corpo dócil).” (p. 71). Castellani Filho (2003) menciona que “[...] os higienistas lançaram mão da Educação Física, definindo-lhe um papel de substancial importância, qual seja, o de criar o corpo saudável, robusto e harmonioso organicamente [...] acabou contribuindo que [...] este corpo fosse eleito representante de uma classe e de uma raça [...]” (p. 43).

    Portanto, é possível perceber os reflexos dos ideais higienistas na sociedade da época. O avanço da ciência acabou proporcionando um incentivo à educação sexual, à proliferação e à manutenção de uma raça pura. Em especial, emergia a ideia da reprodução e multiplicação da camada dominante eminentemente branca (GÓIS JUNIOR; LOVISOLO, 2005; SOARES, 2004; SCHNEIDER; FERREIRA NETO, 2006). Entretanto, cabe pontuar que tais aspectos que compõem o discurso higienista ainda podem ser vistos na concepção de corpo dos futuros e atuais professores da área (SILVA et al., 2009) e nas noções de estilo de vida contemporâneo (GÓIS JUNIOR; LOVISOLO, 2003; BAGRICHEVSKY et al., 2006), porém reeditados ou modificados em seus sentidos e significados.

    Desse modo, em suma, tendo em vista os discursos historiográficos que permeiam a área de Educação Física escolar, mais precisamente na época denominada de higienismo, pode-se destacar a ideia de Caparroz (2005): mais do que analisar a concepção biologizante que originou os pressupostos iniciais da área, é necessário compreender os aspectos macro e microestruturais que demarcaram a Educação Física no âmbito educacional. As análises relativas às tendências pedagógicas que foram constituídas no passado da área de Educação Física devem ser relativizadas no tempo e no espaço, evitando ponderações unívocas, como acriticamente fizeram Chagas e Garcia (2011) ao destacarem que os ideais higienistas geraram uma visão de corpo mecânica e fragmentada.

    É mister rechaçar a ideia de que os referenciais provindos da instituição médico-higienista comprometeram a identidade da área de Educação Física. Caparroz (2005) comenta que ao “Afirmar que não ocorreu nenhuma ação teórico-prática no que se refere ao desenvolvimento de um volume de conhecimento científico que garantiria uma identidade pedagógica à educação física no âmbito escolar é, no mínimo, injustiça com certos autores daquele momento histórico.” (p. 98). Inegáveis foram os avanços das estratégias voltadas ao processo saúde-doença e ao trabalho, bem como a maior preocupação com o corpo no âmbito escolar por meio da Educação Física.

(In)conclusões a serem (re)pensadas

    Ao buscar analisar e discutir alguns discursos historiográficos concernentes especificamente ao que foi denominado de Educação Física higienista, mais do que tentar esgotar o debate sobre a temática, foi possível deslindar acerca de alguns aspectos constitutivos da área.

    Nota-se a relevância em relativizar os fatores que compuseram, teoricamente, os pressupostos da Educação Física higienista e seus ideais na sociedade contemporânea. O diálogo entre múltiplos referenciais teóricos acerca da constituição e do desenvolvimento da área em relação aos aspectos histórico-contextuais relativos ao processo saúde-doença e à formação para o trabalho se torna indelével.

    Portanto, tendo em vista as produções científicas que constituem a literatura da área, é possível destacar algumas (in)conclusões a serem (re)pensadas acerca da origem da Educação Física escolar e a sua suposta função de promoção de corpos considerados saudáveis e aptos para o trabalho em uma época permeada de mazelas sociais e de desenvolvimento urbano-industrial.

Referências

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