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Aspectos éticos em pesquisa em ciências sociais: um debate necessário

Aspectos éticos en la investigación en ciencias sociales: un debate necesario

 

Professor de Educação Física. Mestre em Educação. Doutorando do Programa

de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano/UFRGS; Professor do Curso

de Educação Física da Universidade do Extremo Sul Catarinense, UNESC

Victor Julierme Santos da Conceição

victorjulierme@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente texto trata de apresentar uma compreensão sobre os aspectos éticos em pesquisas desenvolvidas dentro da abordagem qualitativa. Para isso, são utilizados como campo de debate, estudos etnográficos, cujo foco, é a utilização de narrativas como forma de obtenção dos dados. A crítica é construída, na compreensão de que os princípios da ética, utilizados para avaliar os estudos acadêmicos, são compreendidos através de um referencial biomédico.

          Unitermos: Pesquisa. Ciências sociais. Aspectos éticos. Abordagem qualitativa.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 171, Agosto de 2012. http://www.efdeportes.com

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A ética em pesquisa em ciências sociais: primeiras aproximações

    As diretrizes brasileiras para análise dos aspectos éticos em pesquisas com seres humanos, referimos a Resolução 196/96 e suas complementares aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde - CNS. Tais documentos apresentam como referência, para sua construção, publicações legais internacionais sobre o tema. Incluindo o Código de Nuremberg, Declaração de Helsinki e as diretrizes propostas pelo Council for International Organizations of Medical Sciences - CIOMS. Que foram elaborados por associações médicas e dirigidos a pesquisas biomédicas, comportamentais ou epidemiológicas.

    A resolução brasileira adota a definição de pesquisa do documento CIOMS (1993), mas amplia sua abrangência para as pesquisas em todas as áreas do conhecimento. Surge nesta construção as primeiras limitações, pois a aplicação destes procedimentos às pesquisas qualitativas, principalmente nas ciências sociais e humanas, confrontam as perspectivas positivistas a partir de paradigmas interpretativos e críticos.

    A matriz disciplinar para a regulação da ética em pesquisa no Brasil foram as Ciências Biomédicas. Muito embora a Resolução CNS 196/1996 tenha a pretensão de ser um documento válido para todas as áreas disciplinares, sua inspiração normativa e metodológica foram pesquisas no campo médico, o que imprime características disciplinares muito específicas e até mesmo estranhas à prática investigativa das Ciências Humanas. (DINIZ, 2008)

    A resolução 196/96 foi desenvolvida dentro de uma visão biomédica, previstas nas declarações de Helsink e o código de Nuremberg. No Brasil os parâmetros éticos destes documentos são ampliados para outras áreas de conhecimento. Contudo sua particularidade continua sendo na área das ciências exatas com temas de pesquisa destinados á ciências da saúde.

    Ao ampliar os parâmetros de conduta ética o documento fica falho em relação às expressões e fundamentos que embasam as ciências sociais e humanas em diferentes temas de investigação. Isto é aclamado nos comitês de ética e pesquisa no momento em que os avaliadores expõem dificuldades em analisar projetos. Autores relatam que estas dificuldades têm sido evidenciadas nos trabalhos de pesquisadores e pelo sistema formado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa- CONEP e pelos vários Comitês de Ética em Pesquisa - CEPs. A dificuldade de análise e revisão tem resultado em atrasos ou mesmo impedimento da realização de projetos.

    Estas dificuldades são conseqüência de uma visão positivistas de encarar o formato das intenções de pesquisa. Visto que em ciências sociais e humanas o pesquisador se permite mais. No entanto não pode deixar de lado o rigor metodológico para ir em busca das informações.

    Como a matriz de avaliação dos aspectos éticos em pesquisa com seres humanos é predominantemente biomédica, conceitos como riscos e benefícios, devolução dos resultados de pesquisa, benefícios compartilhados, termo de consentimento livre e esclarecido ou reparação por danos compõem o vocabulário compartilhado dos comitês de ética para avaliar projetos de pesquisa. Desta forma, o objetivo deste texto é discutir as questões éticas da pesquisa científica, reportando o processo de avaliação e construção dos mecanismos de investigação sobre a ótica do paradigma qualitativo com ênfase na pesquisa etnográfica.

    Consideramos que a diversidade de métodos, técnicas, paradigmas, referenciais, enfim, de diferentes olhares e saberes é essencial à produção de conhecimento sobre um objeto tão complexo como a “saúde”. É fundamental que os comitês de ética estejam capacitados para revisar e apoiar a realização de pesquisas que atendam aos interesses sociais e respeitem seus pesquisados. Ao mesmo tempo para que isto seja possível os comitês se apropriam de um movimento de ampliação das áreas que o compõe. Buscando uma troca de conhecimentos e inovações nos formatos e formas de ver o processo de construir e fazer ciência. (GUERRIERO; ZICKER, 2008).

    Segundo Dall’Agnol (2004), a ética em pesquisa buscou uma aproximação maior com o lado humano e social a partir do processo de entendimentos de problemas vitais incluindo a visão global de relacionamentos com a vida.

    A partir do relatório de Belmont, os fundamentos éticos são conhecidos como “principialismo”. Estes fundamentos estão pautados em quatro princípios básicos: respeito à autonomia, não-maleficiência, beneficiência e justiça.

    A resolução 196/96 do conselho nacional de saúde centra suas discussões ética sobre pesquisa, nestes princípios. Neste documento, mais precisamente no artigo 3º, é exposto que:

  1. o consentimento livre e esclarecido visa aos indivíduos-alvo à proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade. O princípio da autonomia diz respeito à relação entre investigador e investigado. Busca criar condições para que seja respeitada a autonomia do sujeito principalmente quando este seja incapacitado de tomar sua próprias decisões.

  2. ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos. Parte-se da idéia que este princípio remete o investigador a prática irremediavelmente do bem. Ou seja, a pesquisa deve gerar algum benefício dentro das circunferências morais para os sujeitos que estão sendo investigados.

  3. garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência). Para Dall’Agnol (2004), em termos simples, podemos formular este princípio com as seguintes palavras: não cause danos aos outros. Este princípio é ilustrado na relação de profissionalismo que o profissional da área da saúde tem para o seu paciente. Mais uma vez é uma relação de princípios éticos em pesquisa estão direcionados as atividades médicas.

  4. relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça).

    A partir disto, é evidente que diretrizes para compreender a ética em pesquisa sejam discutidas. Operar com pesquisas dentro da abordagem qualitativa remete ao pesquisador, em primeiro plano redimensionar a neutralidade científica. A discussão sobre os aspectos éticos em pesquisa e principalmente sobre os comitês de ética frente á diferentes paradigmas de pesquisas, é necessário e atualmente obrigatório. A evolução dos processos de pesquisa e a constante construção e formulação de métodos de pesquisa, traz á tona uma forma ampliada e atual de avaliar a pesquisa. Portanto, a questão central que está em discussão é a necessidade de diretrizes específicas para analisar aspectos éticos de pesquisas que operam no paradigma qualitativo.

    Para trabalhar com esta temática, foi escolhido um processo argumentativo sobre o tema exposto. Busca-se uma compreensão da abordagem qualitativa a partir da pesquisa etnográfica, principalmente através das narrativas como forma de obtenção dos dados. Também é desenvolvida uma discussão sobre os aspectos éticos na pesquisa etnográfica a partir do referencial biomédico de avaliação dos projetos pelos comitês de ética.

Ênfase nos aspectos éticos na pesquisa etnográfica: a narrativa como processo de formação e investigação

    A antropologia intrinsecamente está envolvida com o estudo da diversidade cultural, acumulando um rico acervo sobre os modos de produção da vida social em diferentes contextos. Esse acervo compreende o resultado de pesquisas em sociedades indígenas, populações camponesas e contingentes de imigrantes europeus e de outras partes do mundo, mas não se restringe à análise de grupos étnicos e nacionais claramente delimitados. (DEBERT, 2003). A mesma autora coloca que o papel desta área de conhecimento é estudar a biodiversidade cultural, principalmente em relação às questões de gênero, classes sociais, grupos profissionais e gerações.

    Segundo Vidich; Lyman (2006), a sociologia assumiu a missão de compreender a conduta padronizada e dos processos sociais da sociedade. Para alcançar tal missão os autores apontam que o sociólogo/pesquisador deve apresentar as seguintes características: habilidade para perceber e contextualizar o mundo de sua própria experiência; habilidade de se desligar dos valores particulares e dos interesses especiais de grupos organizados a fim de adquirir um nível de compreensão que não dependa de compromissos a priori; e, o grau de distanciamento social e pessoal das normas e dos valores predominantes para assim poder analisá-los com objetividade.

    Da Silva; Daólio (2007) citam que Geertz (1989) procurou desenvolver um conceito de cultura, colocando que é um sistema simbólico que orienta e dá sentido á existência humana.

    Se a constituição da antropologia foi permeada por inúmeras mudanças de concepção, isso também ocorreu em seus métodos de análise. A etnografia, um dos principais instrumentos de análise utilizados pelos antropólogos, foi se modificando, assim como a própria antropologia. (DA SILVA e DAOLIO, 2007).

    Geertz (1989) caracteriza a etnografia como uma descrição densa de uma determinada realidade. Neste movimento é necessário que o pesquisador compreenda que irá se deparar com uma:

    Multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas ás outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (p 20).

    Ainda para Geertz (1989) o pesquisador realiza uma leitura de um texto sobre os ombros de seus informantes, no qual após este exercício o leva a escrever seu próprio texto. As anotações estão nos significados que determinadas ações têm para os atores pesquisados.

    É, portanto, gerada uma discussão necessária sobre o uso da ciência, em suas diferentes formas de serem entendidas e aceitas. Principalmente no que se refere ao seu uso para pregar a modernidade e ampliar a civilidade em povos tidos como atrasados. “Em nome do desenvolvimento, populações indígenas, por exemplo, foram e ainda são destruídas, deslocadas de seus territórios e estão assistindo ao roubo de suas riquezas em biodiversidade e propriedade intelectual”. (DEBERT, 2003, p 31).

    Este movimento é alimentado pelo distanciamento entre os interesses da pesquisa e as necessidades dos pesquisados. Estes interesses são alimentados pelos órgãos de fomento que elaboram idéias de aprofundamento dos conhecimentos sobre estes povos, que são culturalmente explorados.

    Os códigos de ética têm, por isso mesmo, se constituído não apenas em uma defesa de direitos das populações pesquisadas, mas também precisam ser compreendidos como uma forma de defesa do pesquisador e da comunidade científica e, nesse sentido, seu interesse e suas características requerem avaliações com um cuidado redobrado. (DEBERT, 2003, p 31).

    A pesquisa acadêmica, atualmente apresenta características que podem influenciar em demasia a realidade estudada. Este fato é visto nas relações que se fazem nos estudos sobre determinado cotidiano. Ser responsável pelas informações coletadas é dever do pesquisador, no entanto, a presente tarefa deve ser exercida já no momento da escolha pelo tema e o público envolvido. Para Debert (2003, 31), “Estamos muito distantes do modelo de uma ciência feita em torres de marfim, em que o fosso entre seus operadores e o público leigo era praticamente intransponível”. O fato se torna mais fácil de ser entendido no momento que compreendemos que as pesquisas e seus resultados estão cada vez mais próximas dos leigos. Ou seja, os resultados chegam cada vez mais próximos aos olhos e ouvidos da população, e junto a isto mais dúvidas e crenças cegas sobre informações produzidas de diferentes formas. A relevância democrática das ciências humanas exige que possamos realizar estudos minuciosos dos significados de práticas que podem ser nefastas ao destino e à dignidade humana.

    A pesquisa qualitativa, que neste texto está centrada na etnografia, pode ser formadora e transformadora tanto do sujeito como do pesquisador. No momento do relato dos fatos vividos, o narrador percorre sua trajetória podendo dar-lhe novos significados. “Assim a narrativa não é a verdade literal dos fatos, mas antes é a representação que deles faz o sujeito e, dessa forma, pode ser transformadora da própria realidade”. (CUNHA, 1998, p 39). A utilização de um método qualitativo deve ir ao encontro do objeto que se quer investigar, por isto as narrativas se tornam uma forma de expressão, que no formato de escrita possibilita maior liberdade de compreender as determinações e limites.

    O ser humano constrói sua história no seu mundo vivido. Portanto contá-la é algo natural, reflexivo e reformulador de realidades. Neste sentido a narrativa é tanto o fenômeno que se investiga como um método de investigação. Para Goodson (1988, citado por CONNELLY E CLANDININ, 1995), as pesquisas sobre histórias de vida são socialmente orientadas tanto na sociologia como antropologia. O objetivo da narrativa da história de vida é localizar no próprio relato do sujeito o marco de análise contextual mais amplo. (GOODSON, 2004).

    Em pesquisa com narrativas, existe uma desconfiança por parte do sujeito em relação à importância dos seus atos para a construção da pesquisa. Para romper com esta imagem é necessário criar um ambiente de cuidado e atenção mútua. Unindo o pesquisador com o campo de investigação e os sujeitos da pesquisa. Quando se estabelece esta relação de colaboração, ambos têm voz e interpretam com mais importância sua participação.

    Na investigação narrativa é importante que o investigador estude primeiro a história do praticante e é o praticante que primeiro escuta sua história. Porém isto não quer dizer que o investigador permaneça em silêncio durante o processo de investigação. (CONNELLY; CLANDININ, 1995, p 21)

    A construção da aproximação entre os sujeitos está na troca de informações entre as narrativas. Tanto o pesquisador como aquele que faz a ação são sujeitos e devem contar suas histórias.

    Portanto operar com narrativas possibilita a construção e desconstrução tanto do sujeito como do pesquisador. Surge uma cumplicidade de dupla descoberta. As narrativas mostram ao sujeito uma teorização da sua história de vida pessoal e profissional. Ao mesmo tempo a narrativa assume um caráter formativo, podendo causar mudanças na forma como as pessoas compreendem a si próprias e aos outros. (CUNHA, 1998).

    É preciso que o sujeito no momento da narrativa esteja preparado a se analisar criticamente para melhor poder se compreender. “Ela permite o desvendar de elementos quase misteriosos por parte do próprio sujeito da narração que, muitas vezes, nunca havia sido estimulado a expressar organizadamente seus pensamentos”. (CUNHA, 1998, p. 41).

    Esta maneira de encarar as narrativas demonstra que este instrumento não pode mais ser visto como uma “simples” forma de operar com dizeres dos sujeitos, com descrições de histórias, fatos e fazeres. As narrativas são vistas como maneiras de despertar o interesse por si mesmo, por revisar conceitos e buscar as mudanças, ou seja, produtoras de conhecimento. Por tanto exerce um papel formador.

    A narrativa como processo de investigação e formação, apresenta sua face refletida no uso didático das memórias pedagógicas e/ou histórias de vida. Para não ser compreendida como um processo de terapêutico os fatos relatados devem ser canalizados para os objetivos que se propõem como fonte de conhecimento. No processo de coleta dos dados através da narrativa o pesquisador apresenta uma grande interferência, e este está presente na re-interpretação dos significados. Para Cunha (1998, p. 45). “[...] a narrativa acaba sempre sendo um processo cultural, pois tanto depende de quem a produz como depende de para quem ela se destina”.

    A explicação desta complexa simbiose, acoplada ao necessário distanciamento reflexivo do objeto próprio da pesquisa, requer do pesquisador de narrativas uma certa desenvoltura intelectual que lhe garanta o rigor, sem deixar de perceber o entrelaçado de relações. (CUNHA, 1998, p. 45)

    Na discussão acima, é importante entender que as narrativas podem exercer dois papeis. Se refere à fonte de conhecimento e formação tanto do sujeito que narra como daquele que ouve. Pode ser entendidas na perspectiva de história de vida e/ou memória pedagógica. Nesta perspectiva, o que interessa não é apenas o produto das narrativas mas como elas foram construídas, o processo de produção pela qual vive o sujeito.

    É importante não cercar, a priori, as narrativas em categorias pré-definidas. A interpretação do conhecimento contido nas narrativas é determinada pelo referencial do investigador. No momento que as narrativas são vistas como procedimentos de coleta de informações de uma pesquisa, estas no processo de interpretação são fatalmente interferidas pelos significados dados pelo investigador. Neste sentido a narrativa tanto depende de quem produz como a quem se destina.

Desafios éticos da etnografia: possíveis sínteses

    Para Diniz (2008) o tema da ética em pesquisa nas Ciências Humanas foi intensamente discutido na década de 1980 nos Estados Unidos. Esse era um momento de efervescência das pesquisas urbanas com grupos alternativos aos estudos clássicos de Sociologia ou Antropologia. Entre estes estudos, são encontrados observações com usuários de drogas, traficantes, presos e adolescentes, e de surgimento de novas questões de pesquisa, como a violência e a sexualidade. Além disso, foi nesse período que as primeiras regulamentações nacionais de ética em pesquisa com seres humanos surgiram internacionalmente, provocando uma controvérsia sobre sua legitimidade para campos que não as Ciências Biomédicas ou mesmo sobre sua pertinência para as metodologias qualitativas.

    Diniz (2008) afirma que uma das questões mais discutidas, é a exigência de apresentar no projeto de pesquisa, mais necessariamente no termo de consentimento, dados pré-determinados, como hipóteses, objetivos e encaminhamentos metodológicos. Contudo, na pesquisa etnográfica tais informações são definidas durante o processo de investigação. E em alguns casos estas definições são revistas no andamento da aquisição e interpretação dos dados.

    Neste sentido, o principal desafio da avaliação, no campo ético de um projeto de pesquisa em Ciências Sociais, não deve ser o de enquadrá-lo na matriz de análise já existente, mas entender que cada desenho metodológico pressupõe uma nova sensibilidade ética. É preciso reconhecer que não há uma fórmula de julgamento da ética em pesquisa que seja metadisciplinar. Se a matriz de análise disponível se mostrou eficaz nas ciências biomédicas a adequação, às Ciências Humanas ainda, está por ser elaborada, até mesmo porque risco e benefício não são as únicas razões que justificam a apresentação de um termo de consentimento livre e esclarecido, ou mesmo, a reflexão sobre ética em pesquisa antes da condução de um projeto de investigação.

    Diniz (2008), aponta algumas sugestões, para que os aspectos éticos sejam preservados durante o desenvolvimento da pesquisa etnográfica. Em seu texto, relata uma pesquisa realizada com Severina, uma mulher analfabeta onde sua história de vida versava sobre a gestação de um feto anencéfalo.1 A técnica de coleta de informações foi o documentário etnográfico. Neste o roteiro etnográfico é delineado à medida que os fenômenos ocorrem, e sua elaboração definitiva se dá após a gravação das cenas e análise das imagens e das falas.

    No que se refere aos aspectos éticos, um dos casos está relacionada ao próprio analfabetismo, o termo de consentimento, demonstrou de pouca valia, pois a vulnerabilidade não permitia o sujeito ser plenamente esclarecido para autorizar a pesquisa-filmagem. Uma técnica apresentada pela autora foi a explanação diária dos objetivos do estudo, assim como, os meios para obtenção das informações. Esta técnica permitiu o consentimento pré-coleta das informações. No caso de filmagem é importante que seja solicitado um consentimento pós-coleta, quando os sujeitos participantes da pesquisa assistem as imagens concordando ou não com o que foi exposto.

    A história do filme etnográfico acompanha as mudanças das tecnologias de filmagem e à medida que os instrumentos ficaram mais leves e portáteis, com a possibilidade de captação do som sincrônico, os filmes tornaram-se mais próximos da linguagem do cinema e saíram dos muros do debate acadêmico. (DINIZ, 2008, p 418).

    No exemplo, exposto acima, havia na pesquisa a possibilidade do filme ser reconhecido como uma produção cultural e não como pesquisa. Desta forma, abriram possibilidades de premiações e venda de direitos autorais para o cinema. As discussões sobre benefício compartilhado tornaram-se uma constante no cenário investigativo mundial, principalmente no que se refere a direitos autorais. Na pesquisa relatada, foi decidido que haveria no termo de consentimento, pós-edição, um compartilhamento de todas os benefícios financeiros que a pesquisa pudesse obter, entre os sujeitos da pesquisa e as pesquisadoras. A autora deixa bem claro que este termo só foi discutido com os sujeitos após o término das filmagens, justamente para não caracterizar como beneficiamento financeiro dos sujeitos para participar da pesquisa.

    Pesquisa qualitativa não é uma variação da investigação quantitativa, como parecem sugerir alguns argumentos que assistimos em nossa prática diária como investigadores e professores da metodologia de investigação. Não é possível compreender a pesquisa qualitativa como outra forma de atingir os mesmos objetivos de investigação quantitativa. Como é possível para um investigador para rever estratégias de amostragem qualitativa sem processos de compreensão analíticos qualitativos e metas quantitativas?

    A complexidade da pesquisa qualitativa é refletida da forma como certos temas éticos devem ser considerados e analisados corretamente, pois essa complexidade não permite a aplicação dos protocolos éticos construído para pesquisas quantitativas.

    O equilíbrio adequado entre a confidencialidade, a autonomia e a proteção recíproca não é uma questão simples, e estes problemas quando surgem não são facilmente resolvidos. Estes aspectos constituem momentos na condução da investigação que devem ser considerados desde o início do planejamento de projeto a investigação. O projeto deve refletir a transparência das ações do investigador em relação a essas questões.

    Um exemplo disso, é que em algumas situações, participantes de investigação poderiam optar por serem identificados, como no estudo que usam a história oral ou quando a pessoa tem interesse em personalizar a própria voz e a sua mensagem das experiências vividas. Mesmo que os estudos sobre história de vida exijam a descrição completa dos sujeitos, é de extrema importância que o pesquisador saiba operar com a “liberdade” que lhe foi dada no momento da assinatura do termo de consentimento. Contudo o tipo de pesquisa etnográfica e história de vida, dados do campo de investigação são trabalhados com os fatos recolhidos dos sujeitos, estes dados são delicados para não colocar em um situação de exposição às pessoas que também fazem parte do campo de investigação mas diretamente não fazem parte com sujeitos, da pesquisa.

    O foco de preocupação ética na investigação, é sempre sobre os participantes do estudo. No entanto, para determinar a possibilidade de danos, aos participantes, os cuidados éticos na pesquisa qualitativa necessitam de conhecimentos sobre as experiências anteriores de um conjunto de pessoas, de circunstâncias, de tempo. (BORMAN e JEVNE 2000, apud ANGELO, 2008).

    Esse tema leva ao consentimento informado que garante todas as informações necessárias em livre consentimento para participar na investigação, e ele também garante a ausência de danos emocionais, físicos e financeiros. Consentimento informado em pesquisa qualitativa, é um processo e os pontos que, eventualmente, aparecem na coleta dos dados e informações dependem das circunstâncias que são identificadas através de um diálogo cuidadosamente conduzido com sensibilidade e respeito. Isto se refere ao processo de condução da entrevista. O pesquisador deve saber interpretar o momento de fazer determinado questionamento, e buscar interpretar quando este diálogo não irá “prejudicar” o entrevistado. Por isto, o processo de construção do instrumento de pesquisa deve ser bastante discutido, buscando antecipar certas questões controversas. Isto só é possível no momento em que o pesquisador já conhece a rotina dos sujeitos e as possibilidades de informar determinados fatos.

    É importante que durante a construção do instrumento seja levado em conta o principialismo (autonomia, beneficência, não maleficência). Estas são qualidades que não podem ser prescritas, controladas ou intelectualmente aplicadas. Elas surgem em um contato entre o investigador e colaborador, de forma mutuamente respeitoso. Tais qualidades refletem, talvez sempre, princípios que regem e orientam a vida. Eles são eticamente imperativos, mesmo se não forem prescritos eticamente, são aprendidos no nível mais fundamental da experiência humana.

    Como é possível considerar todas estas peculiaridades inerentes à investigação qualitativa se projetos são apresentados aos critérios de rigor e ética, construídos de acordo com a lógica da investigação quantitativa? (ANGELO, 2008). Na verdade, comitês de ética precisam aderir aos seus princípios de procedimentos de revisão que orientam a pesquisa qualitativa. Como investigador qualitativo, precisamos usar nossa voz para se comunicar de uma melhor forma os métodos e o papel da metodologia qualitativa para os outros investigadores. A capacidade de argumentação é a principal ferramenta do processo de construção do conhecimento através da pesquisa qualitativa. No entanto, a argumentação deve ter cuidado para não conduzir o leitor a interpretações induzidas pelo escritor. Ao mesmo tempo, temos de encontrar maneiras de tornar público mais profundamente nossas experiências em matéria de investigação e os dilemas éticos decorrentes. O Investigador em ciências sociais precisa conhecer mais densamente metodologias qualitativas e seus dilemas éticos e metodológicos que irão contribuir para o controle do rigor da investigação.

Nota

1.     A anencefalia é uma má-formação fetal incompatível com a vida extra-uterina, o que torna a sobrevida do feto de horas ou dias após o parto.

Referencias

  • ANGELO, Margareth. Rigor e Ética: desafios na pesquisa qualitativa. In: Revista Ciência e saúde coletiva. Rio de Janeiro mar./abr, v.13, n.2, 2008.

  • BRASIL. Conselho Nacional De Saúde. Resolução nº 196/1996.

  • CONNELLY, F. Michael; CLANDINI, D. Jean. Relatos de Experiencia e Investigación Narrativa. In: LARROSA, Jorge. Ensaios Sobre Narrativas e Educação. Barcelona: Laertes, 1995, p. 11-59.

  • CUNHA, MARIA ISABEL DA. As Narrativas Como Explicitadoras e Como Produtoras de Conhecimento. In: CUNHA, MARIA ISABEL DA. O Professor Universitário na Transição de Paradigmas. 1ª edição. Araraquara, JM editora, 1998. p 37-46.

  • DA SILVA, Alan Marques, DAOLIO, Jocimar. Análise Etnográfica das Relações de Gênero em Brincadeiras Realizadas por um Grupo de Crianças De Pré-Escola: Contribuições Para Uma Pesquisa Em Busca De Significados. In: Revista Movimento, Porto Alegre, v. 13, n. 01, p. 13-37, jan/abr, 2007.

  • DALL’ AGNOL, Darlei. Bioética: princípios morais e aplicações. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

  • DEBERT, Guita Grin. Poder e Ética na Pesquisa Social. In: Revista Ciência e Cultura vol.55 no.3 São Paulo Jul/Set. 2003

  • DINIZ, Débora. Ética na Pesquisa em Ciências Humanas: novos desafios. In: Revista Ciência e Saúde Coletiva. 13(2): 417-426, 2008.

  • GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Guanabara, 1989.

  • GOODSON, Ivor. Historia de vida del profesorado. Barcelona, Octaedro EUB. 2004.

  • GUERREIRO, Iara Coelho Zito; ZICKER, Fabio. Repensando Ética na Pesquisa Qualitativa em Saúde. In: Revista Ciência e Saúde Coletiva. v.13 n. 2 Rio de Janeiro Mar/Apr. 2008.

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