Educação Física: livro didático e ensino Educación Física: libro didáctico y enseñanza Physical Education: textbook and teaching |
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Graduado em Educação Física e especialização em Educação Física Escolar pela Universidade Federal de Goiás Mestre em Educação: políticas públicas e gestão da educação básica pela Universidade de Brasília |
Fernando Garcez (Brasil) |
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Resumo A Educação Física como prática pedagógica e prática científica busca constantemente o seu aperfeiçoamento, para tanto realiza pesquisas com diversos matizes, bem como elabora e produz métodos de ensino e realiza análises críticas de seus conteúdos. Neste trabalho investigamos um novo recurso didático na Educação Física – o livro didático. O estudo de caráter exploratório analisou o livro didático de Educação Física da Secretaria de Estado da Educação do Paraná e objetivou compreender esse objeto estranho: o livro didático; analisar a interface da Educação Física com o livro didático e apontar perspectivas de intervenção e pesquisa. Unitermos: Educação Física. Livro didático. Ensino. Pesquisa.
Resumen La Educación Física como práctica pedagógica y práctica científica, busca constantemente su perfeccionamiento. Para eso realiza investigaciones con distintos matices, así como elabora y produce métodos de enseñanza y realiza análisis críticos de sus contenidos. En este trabajo investigamos un nuevo recurso didáctico en la Educación Física – el libro didáctico. El estudio de carácter exploratorio, analizó el libro didáctico de Educación Física de la Secretaría de Estado de Educación de Paraná y tuvo como objetivo comprender ese objeto extraño: el libro didáctico; analizar la relación de la Educación Física con el libro didáctico y describir perspectivas de intervención e investigación. Palabras clave: Educación Física. Libro didáctico. Enseñanza. Investigación.
Abstract The Physical Education as a pedagogic practice and scientific practice looks constantly for its improvement, for that makes researches with several shades, as well prepares and produces methods of teaching and prepares critical analysis of its contents. In this study we investigate a new educational resource on the Physical Education- the didactic book. The study of scout character analyzed the didactic book of Physical Education of Secretary of State of Education of Parana and aimed to understand this strange object: the didactic book; to analyze the interface of the Physical Education with the didactic book and point perspectives of intervention and research. Keywords: Physical Education. Textbook. Teaching. Research.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 17 - Nº 170 - Julio de 2012. http://www.efdeportes.com/ |
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Apresentação
A constante busca em superar visões reducionistas fez com que a área ampliasse o seu campo de estudo e também aprimorasse as suas teorias. O quanto isso modificou ou transformou a prática pedagógica dos professores nas escolas é de difícil precisão. O que pretendemos aqui é apresentar e refletir sobre a possibilidade de contribuirmos para o trabalho do professor na escola a partir da análise do livro didático.
Abordagens como a Desenvolvimentista (GO TANI et al, 1988) e o paradigma da aptidão física, ao se restringirem a investigar sob o enfoque biológico e ciências do treinamento, não permitem compreender as práticas corporais sob suas múltiplas determinações. O que, na prática pedagógica, pode resultar em limitar a Educação Física a saber fazer os exercícios ou atividades orientadas pelo professor1. Em contraposição ao modelo acima, e no embalo dos estudos críticos da educação, teve início, notadamente no início da década de 1980, estudos que ampliavam a visão sobre as práticas corporais. Pesquisas de cunho filosófico, histórico, sociológico ganharam grande repercussão no meio acadêmico e, quiçá, na comunidade escolar. Desde então, pesquisas sobre políticas públicas, a relação entre corpo e mídia, formação de professores, currículo entre vários outros são objetos de estudo constante em artigos, dissertações, teses e livros. Contudo, para Bracht et al (2005, p.49):
De uma certa forma o discurso pedagógico crítico disseminou-se e se tornou hegemônico sob o manto um tanto modista, o que deu margem não apenas a vários mal-entendidos, como também a uma atitude pedagógica propositiva bastante tímida e circunscrita aos muros acadêmicos. Criou-se um abismo entre os fundamentos da educação e o âmbito do que fazer da prática educativa.
A mediação ou um esforço teórico que problematizasse a tradução e a relação dessas reflexões com o seu agir diário como professor não tem nenhuma resposta simples, visto que as problemáticas em torno dessa questão perpassam os âmbitos das políticas públicas e relações de trabalho até espaço e materiais (equipamentos e instalações adequadas) para realização das aulas (BRACHT et al, 2005).
A Educação Física vem passando por um período, diríamos, ambíguo. Se por um lado temos uma crescente produção de conhecimento e prática pedagógica numa linha crítica que busca demonstrar justamente a importância da compreensão sobre a corporalidade para uma formação ampla e comprometida com a superação das atuais relações dominadoras de poder, por outro lado, e concomitantemente, as práticas corporais são valorizadas como mercadorias, são utilizadas como valor de troca sob o pano de fundo de que proporciona saúde, educação e beleza, isto é, modela os corpos conforme os padrões estabelecidos pela mídia. Isto resulta no crescente aparecimento de escolinhas de futebol, voleibol, academias de ginástica e os vários tipos de dança. Este processo é ambíguo, pois ela é valorizada justamente pelo mesmo motivo em que é criticada, isto é, pelo seu fazer por fazer ou limitando-se ao âmbito da genericidade em-si (DUARTE, 1993). Após o Pan-Americano 2007 no Rio de Janeiro e as Olimpíadas 2008 em Pequim, é visível o grande incentivo da mídia – principalmente a televisiva – para a realização de práticas esportivas sob a argumentação de que promove a saúde e a ascensão social. Com a cidade do Rio de Janeiro sendo sede das Olimpíadas de 2016 vemos novamente o desejo das autoridades (e mesmo parte dos professores) de transformar as aulas de Educação Física em um palco para seleiros de atletas. Se, de fato, este desejo não se concretizar, é, pelo menos, concreto o fato de o governo investir em programas que busquem a formação de atletas (BRACHT e ALMEIDA, 2003) em detrimento de melhores condições para as aulas de Educação Física com vistas à compreensão da cultura corporal/esportiva. Não existe resposta simples, nem uma única solução para este grave problema, mas para este processo ser superado é necessário ressignificar as aulas de Educação Física.
Então, como a Educação Física pode superar o atual estágio em que se encontra? Neste artigo, apresentamos nossa investigação sobre um recurso didático disponibilizado aos professores de Educação Física do ensino médio com o intuito de contribuir para o processo de ensino-aprendizagem. Longe de ser pretensioso de indicar sua solução definitiva, queremos instigar a reflexão sobre novas formas de intervenção e de pesquisa. Acreditamos poder contribuir mais, especificamente, para o professor que atua na escola. É ele que, sendo o ponto mais sensível no processo de ensino- aprendizagem sofre mais com todas as mazelas pelas quais a Educação Física no Brasil vêm passando.
Este estudo se fez necessário, por ser a primeira iniciativa no Brasil de uma rede estadual construir um livro didático para a Educação Física. De início, já podemos destacar que é um marco histórico para a área o esforço e a dedicação de seus professores de sistematizar o conhecimento produzido em décadas, de forma didática, contribuindo para o ensino dessa disciplina escolar.
Livro didático: prolegômenos
O livro é um objeto que já foi alvo de grandes polêmicas na história da humanidade. Durante o Iluminismo, chegou a ser visto como um dos “salvadores” da humanidade, nele os homens podia ter acesso ao conhecimento e assim desfrutar das maravilhas do mundo. Mas o livro também foi alvo de opositores, como no período da Inquisição, em que o livro era tido como maligno, pois deturpava a natureza “boa” do ser humano, devendo então ser censurado, isto para não dizer quando fora literalmente jogados às chamas.
Sobre o livro, faremos o percurso de ir de suas acepções mais simples até entendimentos mais complexos. O livro é um objeto que serve para registrar o conhecimento, científico ou não, histórias, mitos, imagens. Neste conceito, destacamos apenas seu caráter material. Entretanto, não é preciso muito esforço para perceber as limitações de um conceito assim. Ele, o livro, não nasce do nada, ele é produzido por um ser humano que teve que se apropriar: i) de conhecimento técnico: para fabricar o livro e grafar as letras em suas folhas, por exemplo, e ii) de saberes: científicos, cotidianos, etc.; apreendidos com outros indivíduos ou com sua relação com a natureza. Esse último que irá compor o conteúdo e forma do livro. Enfim, o homem teve que se apropriar dos saberes sócio-históricos. Sendo construído historicamente, o livro irá registrar intenções, desejos, fatos de um determinado tempo histórico influenciado por uma série de variáveis. Compreender essa construção histórica é necessário, pois não pretendemos compreender o livro em si, mas a complexa teia social e histórica que faz com que o livro seja desta ou daquela forma, com esse ou aquele conteúdo e formato, expressando determinados interesses de classes e grupos ou mesmo o grau de evolução de um determinado campo de conhecimento. Daí o livro ser alvo, ora como um objeto de grande valor, ora como algo depreciativo.
Como já mencionado, os livros servem para registrar os mais variados tipos de conhecimento. Aqui vamos discutir um caso específico, o livro didático. Quer dizer: um livro que busca deixar um determinado conteúdo ou saber assimilável por quem o lê ou usa. Mas não por sua simples leitura, e sim mediado por outra pessoa, geralmente o professor. Para Lajolo (1996, p.5):
Dentre a variedade de livros existentes, todos podem ter – e efetivamente têm – papel importante na escola.
Didático, então, é o livro que vai ser utilizado em aulas e cursos, que provavelmente foi escrito, editado, vendido e comprado, tendo em vista essa utilização escolar e sistemática.
Percebemos que o livro didático tem dois leitores: o professor e o aluno. Para Munakata (2007), essa é uma característica, pode-se dizer, “estrutural”. A ausência de um daqueles dois leitores pode até mesmo significar que o livro não seja didático. Além do mais, esses leitores “[...] mantém entre si certa relação de poder: mesmo que o leitor final seja o aluno, não cabe a este escolher o livro” (MUNAKATA, 2007, p.579).
Percebemos também que o livro didático é um tema acadêmico de baixo prestígio. Como apontado por Batista (2007, p.530):
[...] embora esses livros tendam a despertar o interesse acalorado de órgãos governamentais, da imprensa e das editoras, assim como de professores do ensino fundamental e médio e de formadores de professores, esse interesse parece não ser compartilhado, permanentemente, pela pesquisa educacional, assim como pela investigação histórica e sociológica sobre o livro brasileiro.
O baixo prestígio acadêmico não reflete a importância da sua discussão, mesmo para a Educação Física tradicionalmente conhecida por suas atividades práticas, em outras palavras, que exigem correr, andar, pular, mas também, pensar, comunicar e abstrair. Todas essas atividades práticas são realizadas tendo por referencia um determinado conhecimento ou pelo menos deveria ser.
Esse desprestígio não justifica a pouca atenção dada ao livro didático. Para Batista (2007, p.531), um dos motivos que explicam esse fato:
Em primeiro lugar, vem-se constatando (Silva 1997, Melo 1997 e MEC 1997) que – ainda que lamentavelmente – os livros didáticos são a principal fonte de informação impressa utilizada por parte significativa de alunos e professores brasileiros e que essa utilização intensiva ocorre quanto mais às populações escolares (docentes e discentes) têm menor acesso a bens econômicos e culturais (Dias 1999).
O caso da Educação Física é ainda mais alarmante, pois no Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) e o Plano Nacional do Livro Didático para o Ensino Médio (PNLEM) ela não está incluída. Fica a pergunta: quais seriam as fontes de leitura utilizadas pelos professores de Educação Física para ministrarem suas aulas?
Outra justificativa, segundo Batista (2007, p.533), é que
Investigações têm mostrado que o livro didático e a escola estabelecem relações complexas com o mundo da cultura. Ao contrário da idéia difundida de que os saberes escolares e, particularmente os livros didáticos, consistiriam apenas numa adaptação simplificada, para fins escolares, de conteúdos produzidos no campo da cultura e da ciência, essas investigações vêm evidenciando que a origem desses saberes e objetos é bem mais complexa (cf., por exemplo, Chervel 1990 e Bittencourt 1993) e que, muitas vezes, é à escola e a seus livros que se deve atribuir à origem de conhecimentos e saberes posteriormente apropriados pelas esferas do conhecimento erudito e científico.
Bem, apesar do desprestígio acadêmico, consideramos o livro didático como um material escolar2 importante para o desenvolvimento do processo ensino-aprendizagem. Entretanto, as concepções predominantes de educação que balizaram a sua construção, o plano de políticas públicas para o desenvolvimento da educação no Brasil e a forma de utilização desse material pelos professores geraram, e ainda gera, inúmeros problemas na educação escolar.
É de se destacar ainda que os livros escolares assumem múltiplas funções. Para Choppin (2004, p.553), os estudos históricos mostram que o livro didático exerce quatro funções essenciais, que podem variar consideravelmente segundo o ambiente sociocultural, a época, as disciplinas, os níveis de ensino, os métodos e as formas de utilização. Sendo elas: i) Função referencial, ii) Função instrumental, iii) Função ideológica e cultural e iv) Função documental.
As pesquisas utilizando a análise de conteúdo, tanto a que se refere à crítica ideológico-cultural como em uma perspectiva epistemológica, contribuíram para compreender os interesses dos autores de livros didáticos e mesmo qual a compreensão da sociedade em geral.
Com essas investigações, Choppin (2004, p.557) chega a uma conclusão mister:
Conclui-se que a imagem da sociedade apresentada pelos livros didáticos corresponde a uma reconstrução que obedece a motivações diversas, segundo época e local, e possui como característica comum apresentar a sociedade mais do modo como aqueles que, em seu sentido amplo, conceberam o livro didático gostariam que ela fosse, do que como ela realmente é. Os autores de livros didáticos não são simples espectadores de seu tempo: eles reivindicam um outro status, o de agente.
Sobre Educação Física
A Educação Física ao longo de sua história foi amiúde ressignificada e recortada, contextualizada e descontextualizada, proeminências da sua complexidade e contradições; tendo proposições teórico-metodológicas e/ou paradigmas se tornado hegemônicos, todavia não sem contraposições.
De uma Educação Física subordinada a outras ciências ou áreas de estudos científicos, tais como, inicialmente, biologia, fisiologia, cinesiologia, biomecânica – enfoques de cunho positivista –; mas também, posteriormente, sociologia, filosofia, antropologia entre outros; chegando, ela mesma, a se constituir como área de estudo científico, isto é, não subordinada a outras áreas, e sim se valendo delas para o seu aprimoramento. Disto, um rico debate tornou possível melhor compreensão sobre os diferentes campos de atuação da Educação Física.
Não é nosso objetivo retomar esse debate, apenas vamos nos valer de alguns aspectos e conceitos que julgamos terem contribuído para a compreensão da Educação Física e são pertinentes para a nossa reflexão. Inicialmente, destacamos o conceito de Educação Física e a delimitação do seu objeto de estudo. Corroboramos Betti (2009, p.156) ao defini-lá como: “área de conhecimento e intervenção profissional-pedagógica, que lida com a cultura corporal de movimento, objetivando a melhoria qualitativa das práticas constitutivas daquela cultura, mediante referenciais científicos, filosóficos e estéticos”.
E entendendo por cultura corporal de movimento “[...] aquela parcela da cultura geral que abrange as formas culturais que se vêm historicamente produzindo, nos planos material e simbólico, mediante o exercício da motricidade humana” (BETTI, 2005, p.187). Notadamente, brincadeiras e jogos, danças, esportes, lutas e ginásticas.
A Educação Física na escola tem o papel de selecionar, sistematizar e problematizar temas e saberes da cultura corporal de movimento a fim de os alunos se apropriarem criticamente dela e, desta forma, terem condições de agir e intervir na sociedade de forma consciente. Em outros termos, está seria a parcela de contribuição da Educação Física para a formação da individualidade para-si (DUARTE, 1993, p. 185) que é a
Formação da relação consciente com a genericidade, isto é, da capacidade de escolha livre e consciente daquilo que nas objetivações genéricas se torna necessário para que a objetivação individual se realize de forma cada vez mais plena e rica mas, por outro lado, é justamente a relação com as objetivações genéricas que vai criando a necessidade subjetiva delas para a objetivação individual.
No que tange a apropriação crítica da cultura corporal de movimento, nos valemos de outro conceito de Betti (1994), o de saber orgânico – para constituí-lo deve-se associar organicamente o “saber movimentar-se”, o “sentir movimentar-se” e o “saber sobre” esse movimentar-se. Consideramos esse conceito importante, pois nos possibilita superar as concepções da Educação Física que limitam-se ao saber fazer, reduzindo sua prática ao mero fazer, ou pior, simples reprodução de movimentos em determinados casos.
A Educação Física para superar perspectivas reducionistas se empenhou para melhor compreender suas práticas corporais estudou-as relacionadas à sociedade, à cultura, à política, à estética e, também, historicizando-as3. Disto resultou em várias investigações e temáticas, tais como: o corpo como objeto de consumo, relação entre atividade física e saúde: mitos e verdades, a ideologia subjacente ao esporte, lazer: entre o ócio e o negócio entre outros. Poderíamos continuar listando uma série de exemplos, entretanto, estes bastam para demonstrar que no ensino da Educação Física há uma exigência da mediação de conceitos, isto é, “saber sobre” esse movimentar-se/corpo.
Ora, isto pode até parecer óbvio, mas como levar esse saber para a escola? Neste caso também já temos apontamentos. Os professores podem realizar essa “transmissão” oralmente, de preferência articulada com uma atividade prática; podem selecionar textos que consideram adequados as capacidades sócio-cognitiva dos alunos; podem se utilizar de vídeos, jornais, produção de textos, debates, desenhos etc. Todos esses elementos são validos. O que indagamos é por que o uso do livro didático? Quais são suas possibilidades e limites para o ensino da Educação Física?
No próximo tópico procuraremos responder a tais indagações. Para tanto realizamos uma análise crítica sobre o livro didático de Educação Física (LDEF) produzido no Paraná.
Livro didático de Educação Física – do Programa Nacional do Livro Didático ao Projeto Folhas
Após apresentar as características do livro didático e da Educação Física, passamos a apresentar os resultados da investigação de uma ação concreta desenvolvida no Paraná: a produção de um LDEF. Neste tópico, buscamos, pois, evidenciar como se constitui esse livro e as condições que permitiram o seu desenvolvimento.
O PNLD é o responsável pela regulamentação sobre o livro didático no Brasil. Entre suas atribuições está à avaliação dos livros didáticos, a produção do Guia do Livro Didático a partir dos pareceres dos avaliadores, a negociação e a aquisição das obras junto às editoras.
Um dos pontos que, atualmente, gera mais repercussão sobre o PNLD é a avaliação sobre os livros didáticos, instituída em 1996. O mercado de livros didáticos no Brasil movimenta milhões de reais por ano, sendo a principal fonte de recursos financeiros de algumas editoras. Com a avaliação feita por instituições federais de ensino superior e em sistema de rodízio foi possível traçar um primeiro panorama sobre a qualidade do livro didático no Brasil.
Em estudo avaliando o PNLD de 1996–2004, as autoras Bezerra e Luca (2006, p.45) apresentam os pontos positivos que mostram o avanço desse programa:
[...] houve demarcação de referências de qualidade para os livros didáticos; ocorreu melhoria efetiva da qualidade de algumas coleções presentes no mercado; retirou-se do rol de livros distribuídos pelo MEC às escolas públicas uma série considerável de obras com graves problemas de conteúdo e concepções danosas ao ensino e à aprendizagem; incentivaram-se debates sobre o tema, seja nos meios de comunicação de massa, seja em eventos de cunho acadêmico; nota-se, nas últimas décadas, certo crescimento de pesquisas que têm como objeto os livros didáticos e que também se beneficiam das discussões em torno da história do livro e da leitura.
Por outro lado, existem falhas no programa que devem ser destacadas a fim de serem sanadas. Para as autoras (ibidem, p.46): há “[...] três momentos cruciais da política sobre as questões relacionadas aos materiais didáticos para o sistema educacional: os processos de avaliação, de escolha e de uso dos livros.” O problema é que no processo de escolha os professores dificilmente levam em consideração o processo de avaliação. Constatou-se que o Guia é, em geral, desconhecido dos professores. E as pesquisas sobre o uso do livro didático em sala de aula ainda é incipiente4. Além do problema de distribuição dessas obras Brasil afora. Dada as dimensões territoriais, a logística exigida é complexa e quando essa falha faz com que os livros didáticos não cheguem às mãos dos professores antes do início do ano letivo.
Já o Projeto Folhas nos apresenta novos horizontes, pois:
É um Programa de Formação Continuada dos Profissionais da Educação que propõe uma metodologia específica de produção de material didático, como forma de viabilizar a pesquisa dos saberes e fundamentos teórico-metodológicos das disciplinas que compõem a matriz curricular da Educação Básica da escola pública paranaense (PARANÁ, 2009).
O resultado desse processo são os livros didáticos públicos, tendo publicado sua 1° e 2° edição em 2006, e a 3° edição estando em processo de construção. O primeiro ponto que merece ser destacado, e que difere do PNLD, é a presença da Educação Física.
Um outro dado, de suma importância, e que o difere fundamentalmente do PNLD, é o fato de ser um Livro Didático Público. A diferença central entre o PNLD e o Projeto Folhas é que neste os textos didático-pedagógicos são produzidos pelos próprios professores, com consultoria de Instituições Federais de Ensino Superior, sendo autorizada a reprodução total ou parcial das obras. Os livros didáticos encontram-se, inclusive, disponível na internet para ser “baixado” no sítio da Secretaria de Estado da Educação do Paraná.5
Como demonstrado por Gimeno Sacristán (apud CASSIANO, 2007, p.8) os editores de livros didáticos são ao mesmo tempo agentes culturais e empresários, mas a “complexidade e a concentração do capital inclinam a balança para o lado do papel do empresário em detrimento do lado do papel do agente cultural”. Disto investigamos a possibilidade dessa balança pender para o lado do agente cultural, dito de outra forma: se a obra visa oferecer uma compreensão rica da totalidade social e suas diversas relações.
O livro didático de Educação Física
Nesse tópico iremos analisar especificamente o Livro Didático de Educação Física (LDEF) no intuito de analisar a sua constituição por meio de seu conteúdo e sua forma de apresentação, bem como traçar a interface entre o livro didático e a Educação Física. Começaremos tentando demonstrar essa interface, pois sem ela não haveria a necessidade de um LDEF, o que nos remete à seguinte indagação: Por que um LDEF?
Retomaremos brevemente algumas características, tanto do livro didático como da Educação Física. Em seu conceito mais restrito, o livro didático tem o objetivo de organizar didaticamente um determinado conteúdo. Uma das razões disso é a imensa produção de conhecimento existente sobre os mais diversos objetos de estudo e, também, quiçá, servir como um convite a aprofundar os estudos nas obras de referência.
Para Forquin (apud VAGO, 1996, p.32), que aponta ainda a necessidade de a educação escolar se debruçar sobre a “problemática das relações entre escola e cultural”, com o objetivo de organizar o saber escolar:
A educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre os saberes e os materiais culturais disponíveis num momento dado numa sociedade. Ela deve também, a fim de os tornar efetivamente transmissíveis, efetivamente assimiláveis para as jovens gerações, se entregar a um imenso trabalho de reorganização, de reestruturação, de “transposição didática”. É que a ciência do erudito não é diretamente comunicável ao aluno, tanto quanto a obra do escritor ou o pensamento do teórico. É preciso a intercessão de dispositivos mediadores, a longa paciência de aprendizagens metódicas e que não deixam nunca de dispensar as muletas do didatismo. “Toda prática de ensino de um objeto pressupõe a transformação prévia deste objeto em objeto de ensino”.
A Educação Física há décadas produz saberes eruditos e científicos sobre os mais diversos temas: de jogos à dança, até a busca da excitação em jogos eletrônicos e o lazer como ócio ou negócio; com os mais diferentes vieses: biológico, psicológico, sociológico etc. Como organizar, de forma didática, esses saberes? Cada professor, individualmente, irá identificar isso na sua “realidade” e então produzir um texto didático-pedagógico? Ou mesmo não utilizar nenhum texto?
A transposição didática, a qual se refere Forquin, certamente não se limita ao livro didático. O professor deve ir além dele e utilizar outros recursos. Quando apresentamos que ao professor cabe propiciar o saber orgânico, mostramos que uma das suas dimensões é referente ao saber sobre, sendo neste ponto específico que o LDEF poderá trazer maiores contribuições, desde que tenha como horizonte chegar ao saber orgânico e nunca se limitar ao saber sobre.
A realidade, para ser compreendida na sua totalidade, deve ser analisada por meio de conceitos, abstrações. Não devemos confundir o conceito com a própria realidade, mas utilizá-lo como elemento mediador para sairmos de uma compreensão da prática social sincrética à prática social em suas múltiplas determinações. Quer dizer: o livro didático, ao fornecer saberes científicos, filosóficos e artísticos, pode contribuir para que o aluno tenha uma compreensão mais rica da sua realidade concreta, isto é, como instrumento possibilitador de aquisição de saberes.
Por uma questão de espaço para escrevermos o artigo, iremos apenas apresentar um exemplo de como isso aparece no LDEF analisado.
No Folhas – A relação entre a televisão e o voleibol no estabelecimento de suas regras, de Fabiano Antonio dos Santos, a problemática é em torno da influência da televisão sobre o voleibol e o papel central que ela teve para mudar suas regras e a configuração do jogo. Segundo o LDEF (2006, p.41): “O voleibol teve a oportunidade de ampliar sua ‘popularidade’ por meio da espetacularização efetuada pela televisão, e, com isso, divulgar os produtos dos novos patrocinadores que começavam a se interessar pelo esporte.”
Podemos extrair desse Folhas o trato do esporte como uma mercadoria, funcionando como valor de troca para as redes de televisão, pois com grande audiência maior é a comercialização de produtos e o valor cobrado pela propaganda.
O voleibol era lento e demorado. O sistema de pontuação utilizava um recurso popularmente conhecido como “vantagem”, isto é, só marcava pontos a equipe que estava sacando. No saque, a bola não poderia pegar na rede, o que desestimulava saques mais potentes. E, também, não existia a figura do libero: jogador que tem a função precípua de defender. Ao mudar o sistema de pontuação do jogo, este se tornou mais rápido, as partidas que facilmente duravam duas ou três horas – ou as lendárias que duravam até fatigantes quatro horas – acabam com uma hora e meia; quando muito chegam a duas horas e meia se forem disputados todos os cinco sets. Esta e outras mudanças nas regras tornaram o jogo mais atrativo, favorecendo sua transmissão pela televisão e, consequentemente, a publicidade de diversas mercadorias.
Este Folhas, que analisa a evolução do voleibol, é bastante claro no estabelecimento da relação da prática esportiva com a mídia. Nele é demonstrado que a mídia é um elemento importante na transição do voleibol com um formato voltado ao espetáculo. Entendemos que essa forma de tratar o voleibol contribui para superar as concepções fundadas nas lógicas instrumental, anátomo-funcional e esportivizada, pois possibilita ao aluno uma visão mais rica da realidade. É mister entender que essa superação ocorre por incorporação e não por exclusão.
Ao abordar o tema do livro didático, temos o receio de interpretações equivocadas que possam achar que estamos priorizando a aula teórica em detrimento da aula prática. Não é isso o que queremos. O saber orgânico só poderá ser realizado pelo professor, e nunca pelo livro didático. O motivo é simples: o saber orgânico é constituído por um saber fazer, um saber sentir e um saber sobre o movimentar-se/corpo, que quando devidamente articulados propiciam aquele. O livro didático seria um dos instrumentos do professor e do aluno para se alcançar um saber mais elaborado, objetivo fim da educação. E entendemos que sua contribuição seria mais especificamente para o saber sobre o movimentar-se/corpo e indiretamente sobre os demais: o saber sentir e o saber fazer.
Ilustrando: vamos ensinar futebol na escola. O livro didático pode explicar brevemente sua história, fazer relações com a mídia, mostrar as diferentes dimensões que ele assume: alto rendimento/espetáculo e de lazer. Ele pode até explicar como o aluno deve dar um chute na bola, mas esse só se efetivará com o aluno de fato chutando, e não apenas lendo. A emoção – prazerosa ou frustrante – de jogar futebol pode até ser relatado pelo livro, mas também não será a mesma sentida pelo aluno.
Considerações finais
Esperamos ter evidenciado como é essa contribuição do livro didático para o ensino de Educação Física, pois não queremos que ele seja visto como uma salvação. Lembramos que ele tem poder de influenciar os professores, mas consideramos pouco provável que ele venha a determinar toda a aula do professor. Mesmo que o livro didático seja carregado de princípios e valores de quem o escreveu, não podemos esquecer do seu aspecto material. Ou seja, ele é um objeto e só tomará “vida” na relação entre professor/aluno. Se, porventura, ele não seja utilizado de forma profícua, nossa hipótese é que isso está muito mais ligado a problemas na formação do professor do que no próprio livro didático. Daí reafirmarmos a necessidade de propiciar uma formação de qualidade aos professores, pois sem esta o livro didático pouco ou nada irá contribuir para o processo de ensino-aprendizagem.
Destacamos também que o contexto no qual foi produzido o LDEF nos aponta novos horizontes. Tendo em vista que o PNLD é comandado por um oligopólio, a Secretaria de Estado do Paraná ao desenvolver o Projeto Folhas que proporcionou a inclusão da Educação Física. Sendo que este projeto não se submete as leis do “livre mercado”, sendo seus próprios professores a produzirem os livros didáticos conforme as suas necessidades e as dos alunos.
Especificamente no LDEF, um ponto de suma importância a ser compreendido é a sua visão de mundo. No seu referencial teórico-metodológico está claro que o objetivo da produção de conhecimento é numa perspectiva crítica que visa compreender as práticas corporais no contexto das suas relações com a economia, a política, a sociedade. Objetivo alcançado pelo LDEF.
Ao fim e a cabo, realçamos a importância de considerar que esse trabalho realiza algumas primeiras aproximações entre a Educação Física e o livro didático, e que as investigações sob diversos matizes são imprescindíveis para a compreensão e produção de um livro didático que supere as suas problemáticas, desde questões pedagógicas e didáticas às políticas e econômicas.
Notas
Destacamos que a crítica a tais abordagens refere-se ao uso exclusivo de tal enfoque, não queremos dizer com isso que os aspectos biológicos e de ciências do treinamento devam ser extirpados das aulas de Educação Física.
Utilizamos o termo material escolar por entender que o livro didático seria apenas um desses materiais que podem contribuir para o trabalho educativo do professor. Exemplos de outros materiais escolares: a tabuada, o dicionário, os mapas, o globo terrestre etc. Não podemos desconsiderar que outros materiais, mesmo não sendo produzidos visando primariamente à escola, também poderão ser (e são) nela utilizados com fins didáticos, como é o caso do jornal, revistas, música, filme, livro literário e a televisão.
Aqui a história é entendida como sendo mais que um simples relato de fatos, a história é contada dentro de seu contexto social e cultural.
Sobre como são realizadas as leituras dos livros didáticos temos o interessante trabalho de Elicio Gomes Lima intitulado As múltiplas leituras e visões de mundo nos livros didáticos de história (2004).
Para download do Livro Didático Público: http://www.diaadia.pr.gov.br/projetofolhas/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=10
Referências
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BETTI, Mauro. Educação física como prática científica e prática pedagógica: uma reflexão à luz da filosofia da ciência. Revista brasileira de educação física (especial). São Paulo, v.19, n.3, p.183-97, Jun./set., 2005.
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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 17 · N° 170 | Buenos Aires,
Julio de 2012 |