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Perspectivas de integração para o ensino das 

teorias da adaptação em cursos de Educação Física

Perspectivas de integración para la enseñanza de las teorías de adaptación en cursos de Educación Física

Prospects of integration for teaching theories of adaptation in Physical Education

 

*Professor Doutor da Faculdade de Educação Física

Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP

**Doutor em Biologia Funcional e Molecular

Departamento de Bioquímica, Instituto de Biologia

Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP

Roberto Vilarta*

Joaquim Maria Ferreira Antunes Neto**

joaquim_netho@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Os cursos de graduação em Educação Física são caracterizados pela condição multidisciplinar. A tentativa de um currículo interdisciplinar é desejável, sobretudo, para o ensino das disciplinas básicas biológicas. As teorias sobre adaptação biológica podem contribuir no avanço de propostas transdisciplinares, sendo o aluno o foco maior de importância no processo ensino-aprendizagem.

          Unitermos: Teorias de adaptação. Transdisciplinaridade. Educação Física.

 

Abstract

          The Physical Education courses are characterized by the multidisciplinary condition. The attempt of an interdisciplinary curriculum is desirable, specially for the teaching of basic biological disciplines. Theories about biological adaptation can contribute to the advancement of transdisciplinary proposals, enabling the student to be the main focus of the teaching-learning process.

          Uniterms: Theories of adaptation. Transdiciplinarity. Physical Education.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 17 - Nº 168 - Mayo de 2012. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A realização curricular de conteúdos básicos e aplicados em Cursos de Educação Física tem gerado críticas contundentes por parte da comunidade acadêmica, principalmente em relação às bases teóricas fundamentadas em conhecimentos originados das Ciências Biológicas. As críticas, por vezes, referem-se à divulgação de um conhecimento “estranho” à Educação Física com tendência reducionista, resultando em uma formação de caráter biologizante (Castellani Filho, 1988), distante, portanto, de uma formação interdisciplinar, desejável para os profissionais desta área, e de caráter humanista apropriada para o educador que não apenas vai lidar com o corpo biológico, mas com o SER integral (Moreira, 1992; Betti, 1994).

    Deve-se reconhecer a veracidade desta situação para a maioria dos currículos de Educação Física, área de conhecimento nem sempre tratada como prioritária em instituições universitárias, sendo os conteúdos biológicos ministrados com carga horária inferior àquela vinculada a cursos de Medicina e outros da área da saúde, e sem a especificidade adequada às reais necessidades de uma área de caráter essencialmente interdisciplinar (Passos, 1988). O quadro de ensino do conhecimento básico biológico é ainda agravado pelo “tempo de maturação” pelo qual devem passar os alunos antes de experimentar os principais recursos de que eles dispõem para interferir no ambiente social: a atividade física como agente modificador. Os alunos mostram-se ansiosos, já no primeiro semestre, em ver uma aplicação de conteúdos básicos relacionados à atividade física, objetivo que geralmente direciona a escolha da área e do curso à época do vestibular. No entanto, raras vezes o corpo docente tem vivência prática, pedagógica e mesmo clínica que favoreça uma adequação dos conteúdos básicos à futura vinculação em disciplinas práticas e específicas. Quase sempre vê-se o professor “biólogo” que “imagina” a importância de determinado conhecimento para a aplicação futura. Tal responsabilidade passa-se ao docente das disciplinas aplicadas dos semestres subseqüentes, para que estes façam a “ponte”, a ligação entre o básico e o aplicado (Figura 1).

Figura 1. Base curricular dos cursos tradicionais de Educação Física.

    A Figura 1 apresenta um modelo que se estende em cursos de Educação Física de Universidades tradicionais quanto ao ensino das bases biológicas e aplicativas da atividade física. Percebe-se que o aluno tem metade de sua formação (2 anos) dedicada a estudos fora da própria unidade de origem, de forma que o primeiro contato com o conhecimento biológico é caracterizado pela falta de especificidade prática e até mesmo de interesses docentes que não condizem com as propostas de formação deste aluno. O mais difícil nesta situação é que a dita “multidisciplinaridade” surge de forma compartimentalizada, desorganizada e sem comprometimento de ensino específico para alunos de Educação Física. Ao chegarem nos módulos específicos sobre atividade física, treinamento esportivo, qualidade de vida e saúde, o tempo parece tornar-se escasso, não atendendo os anseios dos alunos e também não propiciando ao docente da área de Educação Física as condições metodológicas ideais de desenvolvimento de procedimentos voltados ao processo ensino-aprendizagem.

    A esta falta de especificidade soma-se o desinteresse pelas questões de ensino por parte do corpo docente dos Institutos de Ciências Biológicas, quase sempre seduzidos pelos recursos financeiros provenientes das atividades de pesquisa e extensão. O resultado desta somatória de objetivos não atingidos, pelo corpo docente e discente, é o desinteresse dos alunos pelas disciplinas e o afastamento da prática do estudo, culminando em um elevado número de desistências e mudanças de cursos nos primeiros semestres. Este quadro e geral em nosso país (ainda), não havendo discussão e muito menos consenso acerca do que fazer para identificar as causas e os procedimentos a serem aplicados (Passos, 1988).

    Nossa proposta resume-se na definição de conteúdos biológicos específicos para o ensino em cursos de graduação em Educação Física onde se faz necessário, além de uma visão clássica dos conteúdos biológicos, também o estudo dos mecanismos de controle das modificações adaptativas ligadas à aplicação da atividade física.

A proposta transdisciplinar: desafios do ensino contemporâneo

    Curso básicos desenvolvidos na Faculdade de Educação Física da UNICAMP têm-se voltado para a aplicação da filosofia descrita acima na definição dos conteúdos e na sua realização curricular. A experiência tem demonstrado a exigência de um constante diálogo interdisciplinar, nas relações entre os docentes, para a discussão dos conteúdos. Geralmente, essa interação dá-se no nível departamental ou institucional. Concorrem para essa discussão docentes com formação em Ciências Biológicas, Médicas e Humanas, o que, em princípio, favorece um intercâmbio desejável na definição das expectativas geradas pela realização de conteúdos básicos e as futuras necessidades para a aplicação desse conhecimento.

    No transcorrer do curso, podemos reconhecer a importância da incorporação, por parte dos alunos, dos conteúdos específicos com reflexos na participação, interesse e discussão das temáticas básicas em disciplinas adiantadas da grade curricular. O curso de Educação Física da UNICAMP tem aplicado esta metodologia de integração dos conteúdos da área biológica nos últimos anos. Percebemos variadas respostas dos alunos durante o desenvolvimento das disciplinas e acreditamos estar atuando de forma objetiva, para atingirmos resultados satisfatórios. No entanto, apesar da experiência adquirida, não se tem um referencial teórico específico para a área da Educação Física, o que gera confusão e insatisfação de alunos e professores tendo em vista as dificuldades de acesso ao livro didático.

    Na área biológica a informação é farta e específica para os biólogos e médicos. Para o professor de Educação Física instala-se, já no contato com o livro básico, o sentimento da inespecificidade dos conteúdos, uma vez que pouco ou nada se discute nesta bibliografia, sobre o significado das mudanças adaptativas decorrentes da atividade física. Acreditamos com esta proposta poder favorecer o interesse do graduando durante sua fase formativa e direcionar uma atuação profissional mais eficiente fundamentada em conhecimento básico e específico.

    Vale ressaltar que as necessidades de mudanças no processo de ensino-aprendizagem das ciências básicas no curso de Educação Física da UNICAMP tiveram um início dos mais importantes agregando ainda valores de pesquisa e extensão. É o caso da disciplina Bioquímica Básica, da grade do segundo semestre curricular, ministrada pela Profa. Dra. Denise Vaz de Macedo no Instituto de Biologia. Em 1998, os estudos de seu laboratório estavam voltados para análises que buscavam compreender mecanismos básicos de regulação do processo de respiração mitocondrial. Um ano após, o laboratório tem seu nome alterado e passa a ser chamado de “Laboratório de Bioquímica do Exercício – LABEX”, precursor no país em desenvolvimento de pesquisas que pudessem determinar qual seria o “limiar de estresse” ao qual atletas de alto rendimento teriam condições de permanecer em níveis elevados de esforço físico, porém com respaldo de uma metodologia científica identificadora do início de um quadro de estresse oxidativo. Os alunos da Faculdade de Educação Física tiveram abertura para as atividades de iniciação científica em um laboratório bem equipado; os alunos que desejavam pós-graduação passaram a ser aceitos no programa do Departamento de Bioquímica. Hoje, já há uma geração de mestres, doutores e pós-doutorandos que imprimem qualidade de investigação científica sobre a temática do esporte, com quase totalidade instituídos da formação da Educação Física em suas graduações. O que tinha característica multidisciplinar passa a ter o enfoque da transdisciplinaridade. Um exemplo para este enfoque é o surgimento de bibliografia na área de bioquímica realizada por autores de renomes internacionais, como Marzzoco e Torres (2007). O livro intitulado “Bioquímica Básica” encontra-se na sua terceira edição, com um capítulo final que aborda “Contração Muscular”. Um exemplo ainda raro, pos livros adotados na graduação em Educação Física nas áreas da Biologia Molecular, Histologia, Anatomia Humana e Fisiologia Humana têm suas edições atualizadas sem dar enfoque às questões ligadas ao exercício físico.

    Quando falamos de transdisciplinaridade estamos colocando em evidência uma visão emergente, que é uma nova atitude perante o saber, um novo modo de ser. Respeitando a atitude transdisciplinar este centro está aberto à infinita criatividade, e procura cultivar a lucidez, a prudência e a ousadia em seus trabalhos, sejam eles de curto, médio ou longo prazo, visando contribuir para o desenvolvimento sustentável da sociedade e do ser humano.

    A pluridisciplinaridade diz respeito ao estudo de um objeto de uma mesma e única disciplina por várias disciplinas ao mesmo tempo (Nicolescu, 2003). Por exemplo, uma dada adaptação orgânica frente ao exercício físico pode ser estudada pela ótica da Fisiologia, em conjunto com a da Química, da Biologia, da Medicina. Com isso, o objeto sairá assim enriquecido pelo cruzamento de várias disciplinas. O conhecimento do objeto em sua própria disciplina é aprofundado por uma fecunda contribuição pluridisciplinar. A pesquisa pluridisciplinar traz um algo a mais à disciplina em questão (a Fisiologia Humana ou Fisiologia do Exercício), porém este “algo a mais” está a serviço apenas destas mesmas disciplinas. Em outras palavras, a abordagem pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade continua inscrita na estrutura da pesquisa disciplinar.

    A interdisciplinaridade tem uma ambição diferente daquela da pluridisciplinaridade. Ela diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina para outra. Podemos distinguir três graus de interdisciplinaridade: a) um grau de aplicação. Por exemplo, os métodos da biologia molecular transferidos para a medicina levam ao aparecimento de novos procedimentos de investigação sobre estresse; b) um grau epistemológico. Por exemplo, a transferência de métodos da lógica formal para o campo do movimento humano produz análises interessantes na epistemologia da motricidade humana; c) um grau de geração de novas disciplinas. Por exemplo, a transferência dos métodos da bioquímica para o campo da educação física gerou a bioquímica do exercício; os da física para a educação física, a biomecânica; os da matemática para os fenômenos meteorológicos ou para os da bolsa, a teoria do caos; os da informática para a arte, a arte informática. Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar. Pelo seu terceiro grau, a interdisciplinaridade chega a contribuir para o big-bang disciplinar. A transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo presente, para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento (Nicolescu, 2001).

    O contexto de delimitar objetos de estudos para a biologia da atividade física é, pois, pautado pela complexidade. Está transversalizado pelas construções de cada disciplina e de cada saber – seja popular ou acadêmico – e pela idéia persistente da dificuldade de diálogo entre os diferentes atores envolvidos no processo (Severo, Seminotti, 2010).

    Para Morin (2002), existem sete princípios que nos auxiliam a compreender a complexidade: (1) princípio da recursividade organizacional, que liga o conhecimento das partes ao conhecimento do todo; (2) princípio “hologrâmico”, em que a parte está no todo, assim como o todo está inscrito nas partes; (3) princípio do circuito retroativo, em que a causa age sobre o efeito e o efeito age sobre a causa, modificando-a, gerando um novo efeito (retroação autorreguladora); (4) princípio do circuito recursivo, em que os produtos e os efeitos são produtores e causadores daquilo que os produz; (5) princípio da autonomia/dependência entre sujeito/indivíduo/ambiente (autoeco-organização); (6) princípio dialógico – união entre ordem e desordem gera novas organizações (pela convivência entre idéias e ações antagônicas, complementares ou concorrentes, podem- se formar novas sínteses); (7) princípio da reintrodução do conhecimento em todo conhecimento, revelando o problema cognitivo central: da percepção à teoria científica, todo conhecimento é uma reconstrução/tradução feita por uma mente/cérebro em uma cultura e época determinadas. Compreendemos que, para pensar a complexidade, é necessária uma mudança do olhar sobre o nosso próprio entendimento pela “inteligência da complexidade” na religação dos saberes. Uma inteligência que integre dificuldades empíricas e lógicas e compreenda que o que “nos circunda está inscrito em nós” e que não podemos “separar o mundo que conhecemos das estruturas de nosso conhecimento”.

    Assim, o paradigma da complexidade que une ordem, desordem e autoeco-organização, na divergência com o paradigma cartesiano e da subseqüente fragmentação disciplinar, orienta-nos à transdisciplinaridade (Severo, Seminotti, 2010). Esta foi considerada um novo campo de saber, distinto da multidisciplinaridade e da interdisciplinaridade, primeiramente, por Jean Piaget, em 1970, no encontro “Interdisciplinaridade – Ensino e Pesquisa nas Universidades”, na Universidade de Nice, na França.

    Nicolescu (2003) afirma que Piaget manteve somente o significado “através” e “entre” do prefixo latino trans, devido ao fato de que, na época, o significado “além” representaria um impacto no clima intelectual. Então, em 1985, ele propôs a inclusão de “além das disciplinas”. Esse autor, ancorado nos estudos da física quântica, pensa que “além das disciplinas” expressa a inclusão do sujeito e a interação sujeito-objeto. Assim, a transdisciplinaridade supõe a possibilidade de não haver prevalência de uma única lógica, mas sim a integração dos saberes, a partir de três axiomas:

  • Axioma ontológico: há, na natureza e em nosso conhecimento da natureza, diferentes níveis de realidade do objeto e, correspondentemente, diferentes níveis de percepção do sujeito (Figura 2);

  • Axioma lógico: a passagem de um nível de realidade para outro é verificada pela lógica do terceiro termo (T) incluído (a dialógica), que se distingue da lógica clássica (Tabela 1);

  • Axioma da complexidade: a estrutura da totalidade dos níveis de realidade ou percepção é uma estrutura complexa; cada nível é o que é, por que todos existem ao mesmo tempo. A partir desse entendimento, há, conseqüentemente, uma distinção entre o conhecimento disciplinar e o transdisciplinar (Tabela 2).

Figura 2. Representação dos níveis de realidade

    Na complexidade e no conhecimento transdisciplinar, a compreensão humana transcende a explicação. A explicação responde às questões intelectuais e objetivas das coisas anônimas ou materiais. A compreensão humana comporta um conhecimento de sujeito a sujeito, em que há uma identificação com o outro – ego alter e que se torna alter ego. Sendo intersubjetiva, inclui, necessariamente, um processo de empatia, de identificação e de projeção. Assim, no estudo dos processos complexos, a compreensão que une o saber e as contradições do pensamento humano, no enfrentamento de dificuldades empíricas e lógicas, transcende as explicações a partir da unidimensionalidade científica e da separação sujeito e objeto (Severo, Seminotti, 2010).

Tabela 1. Comparação entre lógica clássica e lógica transdisciplinar. Adaptado de Severo e Seminotti (2010)

 

Tabela 2. Comparação entre conhecimento disciplinar e conhecimento transdisciplinar. Adaptado de Severo e Seminotti (2010)

    Nessa discussão, a partir de um processo dialógico, observamos que a contribuição da transdisciplinaridade na questão dos conteúdos biológicos da Educação Física e no princípio da integralidade é paradigmática. É necessário que a os conteúdos adaptativos sejam entendidos como sistemas abertos, complexos e autoeco-organizados. O sistema aberto, desde a ótica tanto do sujeito observador/conceptor/ator quanto do sujeito observado/concebido, é caracterizado por diferentes níveis de realidade, percepções, idéias e conceitos. Como decorrência, emerge a concepção da integração sujeito-objeto e o entendimento de que o sujeito não pode ser capturado por uma única disciplina.

    O desenvolvimento da temática “adaptação” no início de disciplina básica permite ao aluno criar uma concepção sistêmica sobre o provável encadeamento dos fatos que resultaram na vida em seu estágio atual. O conhecimento das teorias evolutivas também inicia o aluno ao estudo crítico transdisciplinar sobre os princípios, conceitos e fatos relativos à adaptação biológica, comportamental e cultural. Dentre os variados enfoques concernentes às teorias vigentes que explicam a evolução e a relação entre organismos e espécies, o docente pode eleger aqueles aspectos que mais favorecem o entendimento dos processos adaptativos e contribuem para a construção de uma concepção sistêmica integradora. A discussão desta temática facilitará ao aluno a criação de uma visão epistemológica do conhecimento em Educação Física que, no decorrer da realização curricular, sempre será resgatada para oferecer subsídios às discussões transdisciplinares.

    Essa visão, obviamente, pode ser relativizada quanto a determinado aspecto de uma teoria utilizado dentro de um contexto específico, seja ele considerado no nível molecular, tecidual ou orgânico da vida. Tal abordagem torna-se ainda mais enriquecedora se considerada no âmbito das interfaces de conhecimento envolvidas pela Educação Física. Historicamente a disciplina “Bases Biológicas” é caracterizada como básica para a realização curricular, o que prenuncia conteúdos unicamente fundamentados no corpo do conhecimento biológico, identificado pelo aluno como pouco integrado e conservador. Tradicionalmente o docente vê-se impossibilitado, devido às “amarras” ortodoxas de reprodução de uma visão conservadora, de exercer uma discussão vinculada também aos aspectos comportamentais e culturais. Assim, partido de pressupostos integradores interdisciplinares, o docente tem, na abordagem das teorias evolutivas, a chance de escapar do preconceito que ronda as disciplinas de caráter básico em Educação Física.

    É nossa experiência que estimular a construção desta visão crítica, baseados em fundamentação teórica consistente, pode conduzir a uma independência intelectual do aluno determinante de uma autonomia perceptiva direcionada para a análise e interpretação dos fatos, de acordo com uma ótica integradora não reducionista. Esta postura também desvincula o docente da imagem de proprietário incontestável e eterno do saber à medida que os próprios alunos demonstram experiência de vida, capaz de enriquecer o universo das discussões sobre fatos e idéias integradoras destes conteúdos sobre a lógica da vida (Cunha, 1988).

A Teoria Conciliadora Neo-Darwinista

    O aluno ingressante na universidade, geralmente, tende a associar ao termo “darwinismo” à difundida teoria evolutiva que explica a sobrevivência do mais forte frente às pressões geradas pelo meio ambiente. Os livros didáticos reforçam os primeiros pressupostos da teoria de Darwin, não trazendo à luz as inovações científicas sobre os novos rumos da teoria evolutiva (Tabela 3). Esta visão simplificada sobre os fatores determinantes do processo evolutivo merece ser ampliada ao considerar, além das limitações e restrições impostas pela religião e filosofia presentes à época da elaboração da teoria da evolução, também o recente avanço do conhecimento sobre as bases moleculares genéticas que orientam os processos celulares e teciduais: o DNA.

Tabela 3. Principais tópicos, conceitos e figuras da teoria de Darwin nos livros didáticos de Biologia. Adaptado de Almeida e Falcão (2010)

    O principal conceito referenciado pelos autores é a teoria da seleção natural (Tabela 3), sendo uma unanimidade entre os autores (100%), dos mais antigos aos mais atuais. Entretanto, o conceito de variações, intimamente associado por Darwin à seleção natural, é citado apenas por 75% dos autores. O tópico sobre a viagem do Beagle é citado por 60% dos autores, quase sempre associado ao período de coletas e observações de Darwin para a elaboração da sua teoria. Nos livros didáticos de Biologia, Darwin é compreendido como modelo de cientista que teria coletado seus dados e observações, teria realizado os seus repetidos experimentos com espécies domésticas, através do conceito de seleção artificial, e, depois de acumular uma enorme quantidade de dados, teria feito suas hipóteses e elaborado a sua teoria (Almeida, Falcão, 2010).

    Em nosso século tem-se uma nova visão sobre a teoria darwinista calcada nas contribuições da biologia molecular e a paleontologia, favorecendo uma reconciliação entre os dados recentes da genética e os pressupostos darwinianos. Trata-se da “Teoria da Síntese Moderna”, que explica a variação genética de populações ao considerar a influência da flutuação da ocorrência de genes em sucessivas gerações determinadas pelo acaso, a pressão desencadeada na população pela ocorrência de uma mutação e, principalmente, a própria seleção natural proposta por Darwin (Medawar, Medawar, 1989). A estes fatores, geradores de variação gênica, são aduzidos aqueles resultantes do processo de recombinação dos genes ocasionado pela união de gametas no momento da concepção e pela troca de material genético entre cromossomos homólogos (crossing-over) (Futuyma, 1992).

    Portanto, a teoria da síntese evolutiva, antes de apresentar uma visão simplificada sobre os fatores que influenciam as variações individuais e da espécie, mostra ao aluno a relativa complexidade que envolve este tema para a área biológica. O aluno passa a conviver com um novo universo de interrelações moleculares, celulares, orgânicas e populacionais, abandonando aquela idéia de que a sobrevivência do indivíduo no ambiente depende exclusivamente da força. A incorporação dos pressupostos da Teoria da Síntese Moderna facilitará a realização curricular das disciplinas com conteúdo relacionado ao campo do conhecimento biológico como a Fisiologia, Bioquímica, Antropologia Física e Desenvolvimento Neuromotor.

A visão Neo-Lamarckista, o comportamento e a mudança morfológica

    Mais recentemente, tem sido resgatada pelo ambiente acadêmico a visão lamarckista sobre a evolução, principalmente os aspectos desta teoria que evidenciam a importância das alterações comportamentais dos indivíduos como fatores desencadeadores das mudanças orgânicas (Gould, 1989). Lamarck, infelizmente, é mais conhecido por um pequeno aspecto de seu trabalho, traduzido pelo famoso jargão da “herança dos caracteres adquiridos” (Tabela 4), do que por uma interpretação que tem sido considerada uma peça chave para a explicação da mudança comportamental como fator desencadeador da adaptação funcional e morfológica. O tratamento das propostas teóricas de Lamarck e Darwin nos livros didáticos brasileiros elege este último como modelo na aplicação do método científico, relegando aquele à condição de um teórico especulador. Evidência disso pode ser obtida empiricamente a partir da comparação de alocação de área, nos livros didáticos (Almeida, Falcão, 2010). Observa-se que, quando são comparadas as áreas totais de citações, exposições e imagens de 20 livros didáticos brasileiros sobre biologia evolutiva, a extensão das áreas se torna mais evidente, sendo a média da teoria de Darwin de 721,32 cm2 e a de Lamarck de 292,62 cm2.

Tabela 4. Principais tópicos, conceitos e figuras da teoria de Lamarck nos livros didáticos de Biologia. Adaptado de Almeida e Falcão (2010)

    Uma nova visão sobre a teoria de Lamarck compreende que uma mudança no ambiente deve resultar em um modo de vida alterado para o organismo. A mudança de hábito desse organismo sempre vai preceder uma adaptação da função de um determinado órgão (observe que o conceito de adaptação é o último a ser relacionado aos pressupostos de Lamarck – Tabela 4) exercendo uma reação criativa estrutural que resultará numa mudança da forma desse órgão. Assim, a inovação comportamental estabelece uma discordância entre função nova e forma herdada – um ímpeto para a mudança (Gould, 1990). Mesmo que os aspectos morfológicos, funcionais e comportamentais configurem o centro da teoria neo-lamarckista, uma nova interpretação das idéias de Lamarck tende a fortalecer a construção de uma teoria da evolução cultural humana, onde o aprendizado de uma geração pode ser rapidamente acumulado e incorporado pela geração seguinte pelo processo de ensino-aprendizagem.

    A discussão desta teoria que explica as adaptações orgânicas pode ser utilizada de forma apropriada em disciplinas aplicadas para as áreas de educação motora, recreação e lazer, onde os componentes culturais, sociais e comportamentais são evidenciados e relacionados com os aspectos biológicos.

Considerações finais

    O contexto histórico do ensino dos conteúdos biológicos em cursos de graduação de Educação Física acompanha as diretrizes das ciências básicas, geradas nos tradicionais Institutos presentes nas Universidades. Outro fator agravante é a falta de literatura que insira os conteúdos aplicados relativos à atividade física nos livros didáticos de informação introdutória. Por meio deste estudo, espera-se que a visão compartimentalizada dos conteúdos primários biológicos seja reconstruída na perspectiva transdisciplinar, de forma que o protagonista do processo ensino-aprendizagem seja o aluno.

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