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A proposta curricular de Educação Física do SESI-SP:

um caminho que valoriza a voz dos professores

La propuesta curricular de Educación Física del SESI-SP: un camino que valoriza la voz de los profesores

The Physical Education curriculum in the SESI-SP: a way that values the voice of teachers

 

*Mestre em Educação Física pela Universidade São Judas Tadeu-SP, USJT

Graduado em Educação Física pelo Centro Universitário UNIFIEO

Pós Graduação Lato Sensu na área de Gestão Escolar UNIG (2006)

Cursando especialização (Lato Sensu) em Lutas e Artes Marciais (UGF)

**Graduada em Educação Física. Atualmente exerce o cargo de Especialista

em Esporte e Lazer no SESI-SP. Tem experiência na área de Educação Física

escolar, Gestão de Clubes e Organização de Eventos Esportivos

***Licenciatura plena em Educação Física. Faculdades Integradas de Guarulhos

Especialização em Educação Física escolar, FMU e em Gestão escolar, UnG

Mestre em Educação: Currículo - PUC-SP. Atualmente exerce o cargo

de Especialista em Esporte e Lazer no SESI-SP

Hugo Cesar Bueno Nunes*

hnunes@sesisp.org.br

Kátia Alves de Lima**

kalima@sesisp.org.br

Saulo Françoso***

sfrancoso@sesisp.org.br
(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente trabalho visa apresentar o percurso de construção da proposta curricular de Educação Física do SESI-SP (Serviço Social da Indústria de São Paulo). A escolha por um caminho democrático, que envolve a participação coletiva dos docentes na escrita do documento, traz indicações de que é possível a formulação de políticas educacionais que considerem os professores como intelectuais transformadores, principais responsáveis pela construção de propostas curriculares.

          Unitermos: Educação Física escolar. Currículo. Escola.

 

Abstract

          The present paper presents the course of construction of curriculum in Physical Education-SP SESI (Social Service of Industry of São Paulo). The choice of a democratic path, which involves the collective participation of teachers in the writing of the document gives indications that it is possible the formulation of educational policies that consider teachers as transformative intellectuals, primarily responsible for building the proposed curriculum.

          Keywords: School Physical Education. Curriculum. School.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 167, Abril de 2012. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    A rede escolar SESI-SP, conta hoje, com 177 escolas distribuídas em 50 municípios no estado de São Paulo. O quadro efetivo de Educação Física escolar, é composto por 250 professores.

    No ano de 2011, o SESI-SP, por meio da Divisão de Esporte e Lazer, teve a iniciativa de construir uma proposta curricular para a área de Educação Física. Tal empreendimento teve origem na constatação da miscelânea de produções e orientações que norteavam o trabalho docente e que gerava certa confusão conceitual em torno do que ensinar nas aulas do componente curricular educação física. Diversos relatos de professores em cursos de formação, dificuldades apontadas pelos profissionais que ocupam cargos de gestão e análises de especialistas técnicos da instituição sinalizavam tal problemática e expunham a necessidade de uma nova proposta para a área.

    Neste percurso um grupo de três especialistas na área de Educação Física escolar do SESI-SP, os quais são responsáveis pela coordenação do referido componente curricular em 177 escolas de ensino básico do estado de São Paulo, juntamente com um grupo de professores vislumbraram a oportunidade de desenvolver novos rumos para o ensino da Educação Física escolar na rede SESI-SP.

    Este artigo pretende apresentar, por meio do relato de três profissionais responsáveis pela coordenação do projeto, o caminho escolhido pelo SESI-SP para a construção da proposta curricular – que ainda não se encerrou - confrontando as estratégias utilizadas para a elaboração do documento com a teorização curricular crítica.

A fase preparatória do projeto

    O projeto, que compreende a construção de um documento que explicita os encaminhamentos pedagógicos para a área de Educação Física, foi elaborado pela equipe de Especialistas de Esporte e Lazer do SESI-SP. Desde o início, fica evidente a proposta de seus autores, em envolver a participação coletiva dos docentes na elaboração do documento. Na justificativa do projeto inicial, tal preocupação é explicitada:

    A DEL (Divisão de Esporte e Lazer) entende que tal documento poderá alinhar o trabalho de todos os profissionais envolvidos com a área de Educação Física escolar e consequentemente poderá contribuir na melhoria da qualidade do ensino. A partir das teorias críticas e pós-críticas do campo curricular sabemos, entretanto, que qualquer construção dessa natureza precisa contar com a participação efetiva dos sujeitos responsáveis pela sua consolidação na prática.

    Enquanto as teorias tradicionais do currículo reduzem a figura do professor à de um técnico competente, capaz de colocar em prática aquilo que os especialistas e teóricos (supostos intelectuais) produzem em seus gabinetes, as teorias críticas e pós-críticas rejeitam tal concepção e “depositam” no professor, o papel de intelectual transformador, principal responsável pela reflexão de sua prática e produtor de conhecimentos que contribuem para a elaboração de propostas educacionais.

    Utilizando o conceito de (Freire, 1987) de Educação Bancária, a qual é entendida como o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos aos alunos, nos negamos a transformar a formação docente em uma formação bancária, onde “deposita-se” no docente todo o conteúdo e a metodologia ideal para se trabalhar na escola. Parafraseando o autor, ninguém forma ninguém, ninguém forma a si mesmo, os educadores se formam entre si, mediatizados pelo diálogo.

    Após o projeto ter sido aprovado pela Superior Administração do SESI-SP, os coordenadores do projeto deveriam encontrar uma estratégia para comunicar e convidar os docentes que gostariam de fazer parte da construção. Durante o Treinamento Estadual de Professores, realizado em julho de 2011, onde estavam presentes todos os professores e professoras de Educação Física da rede SESI-SP, foi entregue uma carta-convite a cada docente. Segue abaixo um trecho da carta entregue aos docentes:

    [...] entendemos que qualquer construção de proposta curricular precisa contar necessariamente com a participação efetiva dos sujeitos responsáveis pela sua consolidação na prática. Desta forma, mais do que consultá-los para opinarem acerca do material produzido pelos especialistas, gostaríamos de convidá-los para fazer parte da equipe responsável pela construção do material. Em se tratando de um convite, frisamos que a participação é optativa, ou seja, o projeto acolherá apenas aqueles profissionais que tenham disponibilidade e desejo de participar.

    Em se tratando de uma ampla rede de ensino, que conta com um grande número de escolas e profissionais, tal estratégia eximiu a chance de algum professor não receber o convite para participar da elaboração da proposta. Do mesmo modo, o convite tira a obrigatoriedade de o professor participar da construção, deixando à sua disponibilidade e interesse a aceitação ou não do mesmo.

    O professor que demonstrava interesse em participar da construção do documento, deveria comprometer-se com os seguintes critérios explicitados na carta-convite: comprometer-se a participar dos encontros presenciais previstos pelo projeto; realizar as leituras (livros e textos) necessárias para o bom andamento do projeto; participar dos fóruns, chats, enquetes, organizados (à distância) pela DEL para discutir temas condizentes com a proposta; colocar em prática, nas aulas de Educação Física escolar, os encaminhamentos definidos nos encontros presenciais e à distância; e produzir registros (relatórios, filmagens, fotos, depoimentos) das aulas de Educação Física fundamentadas na concepção defendida pela equipe, apresentando-os quando necessário, nos encontros presenciais e/ou à distância.

    O projeto aprovado para a construção do documento contemplava ainda, a contratação de um consultor externo, da área da educação, com experiência na elaboração de propostas curriculares oficiais, e a compra de livros que serviriam de aporte teórico para a escrita do texto.

    Na primeira reunião dos coordenadores do projeto ficou decidido o papel futuro deste consultor que seria conduzir os encontros presenciais, atuando como mediador dos debates e discussões. Portanto, a proposta é que o consultor não participaria da escrita do documento, já que a inteira responsabilidade pela tarefa estaria depositada nas mãos dos professores. O referencial teórico que subsidiaria a construção da proposta deveria partir do documento preliminar “Orientações Didáticas de Educação Física escolar”, escrito em 2011 e que norteava o trabalho docente no SESI-SP.

    Neste documento preliminar, a Educação Física é concebida no campo da linguagem, onde a cultura corporal é interpretada a partir das teorias pós-críticas do currículo, especificamente utilizando as produções teóricas dos Estudos Culturais e do Multiculturalismo Crítico. Para subsidiar a elaboração da proposta, o SESI-SP disponibilizou para cada professor quatro livros, que “dialogam” com a concepção curricular pretendida: Documentos de identidade (Tomaz Tadeu da Silva), Compreender e transformar o ensino (Gimeno Sacristán e Pérez Gomez), Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas (Antonio Flávio Moreira e Vera Maria Candau) e Praticando Estudos Culturais na Educação Física (Marcos Neira e Mario Nunes).

O projeto em ação

    Após o convite realizado no “Treinamento de Professores”, 32 professores e professoras aceitaram participar do grupo responsável pela escrita do documento. Foram planejados para o ano de 2011, 4 encontros presenciais, que ocorreram nos meses de setembro, outubro, novembro e dezembro. Para embasar os trabalhos do primeiro encontro, foi solicitada a leitura prévia do artigo “Propostas pedagógicas ou curriculares: subsídios para uma leitura crítica”, de Sonia Kramer, professora do Departamento de Educação da PUC-Rio.

    Neste artigo, Kramer (1997) traz algumas contribuições para a análise crítica de propostas curriculares, levantando questionamentos que podem servir de base para a sua elaboração e/ou avaliação. No primeiro encontro, as discussões foram travadas em torno dos questionamentos levantados pela autora,1 do contexto da instituição em que atuam2 e acerca da concepção de Educação Física defendida no documento de “Orientações Didáticas” .3

    Nessa estratégia didática, foi possível observar posicionamentos polifônicos e ao mesmo tempo antagônicos, que caracterizam encontros dialógicos, onde todos têm direito à voz. Enquanto alguns professores defendiam o argumento de que o SESI-SP é uma instituição conservadora, com um público bem definido e uniforme (filhos e filhas de industriários), outros ressaltavam a diversidade cultural que predominava no interior de cada escola e entre escolas de regiões diferentes. Após as discussões, o grupo concluiu que é lícito concordar que a diversidade cultural predomina na instituição.

    O conservadorismo da instituição, ressaltado por alguns professores, de certa forma, gerou dúvidas quanto à possibilidade de construir uma proposta pedagógica coletivamente e que posteriormente seria implementada em toda a rede escolar SESI-SP. O consultor lembrou os professores, que Paulo Freire, grande expoente da teorização curricular crítica, desenvolveu sua pedagogia libertadora, justamente no SESI de Pernambuco. Isso demonstra que mesmo em instituições ou escolas que reproduzem os interesses da classe dominante, existe espaço para contestação e luta, já que como aponta (Giroux, 1983), a dominação não é um processo estático, pois o poder também não é unidimensional.

    Na discussão acerca das “Orientações Didáticas de Educação Física”, a maior parte dos professores demonstrou desconhecimento da concepção curricular defendida pelo documento preliminar. Nenhum dos grupos apontou a concepção cultural como norteadora do currículo. Esse fato evidencia a enorme distância que existe entre o currículo prescrito e a prática docente cotidiana, principalmente quando o primeiro é elaborado sem a participação efetiva dos professores.

    Para subsidiar as discussões do segundo encontro, foi solicitada a leitura do capítulo 1 dos livros “Compreender e transformar o ensino”, escrito por Pérez Gomez e “Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas”, elaborado por Vera Candau. Este encontro tinha como eixo central promover a discussão em torno da função social da escola contemporânea e o debate acerca das questões multiculturais.

    Discutir a função social da escola é fundamental em qualquer construção curricular. Uma escola não poderá cumprir sua função social a contento enquanto a Educação Física continuar construindo muros ao seu redor e repetindo slogans sobre a especificidade da sua ação (NEIRA, 2011, p. 10). Historicamente, a Educação Física buscou sua legitimação no currículo, a partir de referenciais teóricos (física mecânica, fisiologia, psicologia) alheios ao campo educacional. Entretanto, atualmente no Brasil, predomina a produção de propostas curriculares do componente que buscam aporte teórico nas Ciências Humanas, de tal forma que se torna imprescindível sua articulação com a função social delegada à escola.

    Pérez Gómez (1998) indica duas funções prioritárias da escola no mundo contemporâneo: a incorporação do/a cidadão/ã no mundo do trabalho e a formação do/a cidadão/ã para intervenção na vida pública. A partir do posicionamento do autor frente a essas funções, o grupo de professores defendeu que na sociedade atual pós-moderna, o mundo do trabalho requer atitudes e valores diferentes da assiduidade, submissão, disciplina e padronização, caraterísticas enaltecidas pela sociedade industrial moderna. Até porque grande parte dos trabalhadores na atualidade atua na informalidade, onde a capacidade de lidar com a imprevisibilidade é indispensável. Educar para a vida pública, para o grupo, significa formar um cidadão crítico, consciente de seus deveres e direitos, capaz de interferir politicamente na sociedade.

    Com base no texto de (Candau, 2010), foi elaborada uma estratégia na qual em pequenos grupos, os professores deveriam refletir sobre como o SESI-SP enfrenta a diversidade cultural a partir das seguintes questões: Dentre as vertentes de multiculturalismo apresentada pela autora, qual está presente no cotidiano das aulas? Cada grupo deveria posicionar-se em relação às vertentes apresentadas por Candau.

    A autora aponta três diferentes abordagens multiculturais que estão na base das diversas propostas curriculares: o multiculturalismo assimilacionista, o multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural e o multiculturalismo interativo ou intercultural.

    No multiculturalismo assimilacionista promove-se uma política de universalização da escolarização, onde todos são convidados a participar do sistema escolar, mas não se coloca em pauta o caráter monocultural e homogeneizador presente na sua dinâmica, tanto em relação ao currículo quanto, por exemplo, às estratégias utilizadas em sala de aula e os valores privilegiados e defendidos por determinados grupos. Nessa vertente, os grupos minoritários devem se incorporar à cultura hegemônica.

    O multiculturalismo diferencialista ou monoculturalismo plural caracteriza-se pela ênfase no reconhecimento das diferenças. Na luta pela liberdade de expressão e afirmação das diferenças, Candau explica que algumas das posições nessa linha terminam por ter uma visão estática e essencialista da formação das identidades culturais. Infelizmente, esta proposta culmina na formação de comunidades culturais homogêneas com suas próprias organizações, entre elas as escolas, os clubes, associações entre outros. Sousa Santos (2003) adverte que tal perspectiva pode levar a um desenvolvimento de um novo apartheid cultural e que podia ser realizado através de um radicalismo excessivo, porque permitiria criar igualdade, mas em separação.

    Já na perspectiva intercultural, uma das características básicas é a promoção deliberada da inter-relação entre os grupos culturais presentes em determinadas sociedades, rompendo assim tanto com a perspectiva diferencialista que favorece processos radicais de afirmação de identidades culturais especificas, como a perspectiva assimilacionista, que não valoriza a riqueza das diferentes culturas. Na perspectiva intercultural, as culturas estão em contínuo processo de elaboração, de construção e reconstrução, não fixando assim as pessoas a determinados padrões culturais engessados. Esta é a postura defendida por Candau (2010).

    Durante a exposição dos grupos ficou nítida a dificuldade de alguns professores situarem suas práticas em uma das abordagens e também, a confusão conceitual entre elas. Alguns grupos defenderam que trabalhavam na perspectiva intercultural, porém ao serem questionados sobre como colocavam em prática essa abordagem no cotidiano das aulas de Educação Física, constatamos a distância que estavam da mesma. Outros grupos defendiam uma perspectiva assimilacionista, gerando o conflito de opiniões entre os docentes.

    Podemos avaliar resumidamente este segundo encontro do seguinte modo: embora os posicionamentos dos professores apontem para uma aproximação do entendimento acerca da função social da escola, defendida por Pérez Gomez; as discussões em torno do multiculturalismo evidenciaram a necessidade de um maior aprofundamento da temática, principalmente na articulação das diferentes vertentes indicadas por Vera Candau com o currículo de Educação Física.

    Como tarefa para o terceiro encontro, definimos uma ferramenta eletrônica (Google Docs), onde os professores iniciariam o processo de escrita da proposta. Essa ferramenta possibilita que todos possam escrever simultaneamente, independentemente do tempo e espaço que cada um esteja ocupando, o que contribuiu para democratizar de maneira ampla a participação de todos na escrita do texto. A proposta era iniciar a escrita do capítulo “Função social da escola”, a partir das discussões e leituras realizadas. Para o próximo encontro, os professores ainda teriam que ler o livro “Documentos de identidade” de Tomaz Tadeu da Silva.

    O terceiro encontro teve início com a leitura coletiva do texto que estava postado no Google Docs (“A função social da escola”), onde a cada parágrafo realizávamos uma pausa, para que o grupo se posicionasse a respeito da coerência do mesmo com as discussões travadas nos encontros anteriores. Diante das dúvidas que ainda pairavam no imaginário dos docentes quanto à temática do multiculturalismo, foi combinado com o consultor que este encontro teria um caráter mais formativo. Assim, as diferentes propostas curriculares da Educação Física foram confrontadas com as teorias do currículo apresentadas no livro de Tomaz Tadeu da Silva.

    Três vídeos de aulas do componente curricular, pautadas nas teorias tradicionais, foram exibidos ao grupo, que provocaram a seguinte reflexão: Quais conteúdos estão sendo ensinados? O que o professor está priorizando? A partir disso, houve um intenso debate, onde foram esclarecidas muitas questões referentes às teorias curriculares, especialmente a teorização pós-crítica, que subsidia a construção do material.

    Essa estratégia foi fundamental para os professores tomarem consciência das teorias que subjazem suas práticas. O consultor também conseguiu descontruir algumas representações enviesadas do currículo pós-crítico. Segundo (Silva, 2011, p.148-149) as teorias pós-críticas ampliam e modificam aquilo que a teorias críticas nos ensinaram. As teorias pós-críticas também se preocupam com a análise das relações de poder que envolvem o currículo.

    Nas teorias pós-críticas, entretanto, o poder torna-se descentrado. O poder não tem mais um único centro, como o Estado, por exemplo. O poder está espalhado por toda a rede social [...] Em contraste com as teorias críticas, as teorias pós-críticas não limitam a análise do poder ao campo das relações econômicas do capitalismo. Com as teorias pós-críticas, o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, na etnia, no gênero e na sexualidade.

    Dentre as diversas teorias pós-críticas, o currículo cultural da Educação Física pauta-se prioritariamente em dois campos: os Estudos Culturais e o Multiculturalismo Crítico. Enquanto as produções dos Estudos Culturais ajudam a compreender as relações de poder e as questões de identidade e diferença que permeiam as manifestações da cultura corporal, o Multiculturalismo Crítico, além disso, ajuda na construção de estratégias de ação que visam o combate a todas as formas de preconceito. No currículo cultural da Educação Física, as aulas constituem-se em um espaço para análise, discussão, vivência, ressignificação e ampliação dos saberes relativos às manifestações corporais, tendo como objetivo a formação de cidadãos capazes de desconstruir as relações de poder que historicamente impediram o diálogo entre os diferentes representantes das práticas corporais (NEIRA, 2011).

    Para aprofundar o conhecimento dos professores quanto à concepção cultural da Educação Física, para o próximo encontro foi solicitada a leitura do livro “Praticando Estudos Culturais na Educação Física”. A obra, organizada pelos autores Marcos Neira e Mario Nunes, é dividida em duas partes: uma que aborda o currículo cultural da Educação Física, de forma conceitual e apontando caminhos para a prática pedagógica pautada nos Estudos Culturais; e outra, que reúne diversos relatos de experiências de professores que colocam o currículo cultural de Educação Física em ação.

    Essa estratégia teve como objetivo oferecer condições para os docentes relacionar as temáticas estudadas no decorrer dos encontros (função social da escola, multiculturalismo, teorização curricular pós-crítica) com a área de Educação Física, de forma a contemplar na prática, os princípios e encaminhamentos pedagógicos do currículo cultural. No início do quarto encontro, os professores sinalizaram que sentiam grande dificuldade nessa conexão, e que com a leitura realizada, tal dificuldade foi em parte apaziguada.

    Novamente, foi realizada a leitura coletiva da produção do grupo referente à função social da escola, que provocou um intenso debate democrático. Neste encontro, o texto foi finalizado. O encontro também serviu para o grupo posicionar-se frente aos empecilhos enfrentados no processo. Embora o grupo tenha apontado que estavam dando conta das leituras recomendadas, muitos professores destacaram a dificuldade de colocar no papel as ideias discutidas nos encontros.

Considerações preliminares

    Em tempos onde predomina no cenário brasileiro a construção de propostas curriculares de cunho neoliberal, é de se exaltar a iniciativa do SESI-SP em considerar seriamente a inteligência e a capacidade dos professores, envolvendo-os efetivamente na elaboração do currículo de Educação Física da instituição. Certamente, são os professores os mais aptos a discutir as questões curriculares, já que cotidianamente são eles que estão na linha de frente da educação.

    Entendemos que este processo democrático e dialógico é de extrema importância na legitimação do currículo dentro das escolas. A participação dos professores na elaboração do currículo aponta para uma autêntica ação do currículo prescrito, ou seja, indica-nos que a probabilidade de o professor colocar em prática este currículo é muito maior, já que tal documento fora por eles escrito.

    Não podemos esquecer, entretanto, que qualquer processo democrático não está livre de conflitos. O diálogo, como na perspectiva defendida por Paulo Freire, exige conflito de ideias, de opiniões. Dessa forma, o processo de escrita coletiva e os próprios encontros presenciais foram marcados por discussões muitas vezes “acaloradas”, que nem sempre finalizaram em consenso.

    Quase que de forma unânime, os pesquisadores do campo do currículo, defendem que este é inexoravelmente envolvido em questões de poder. Na prática, a construção da proposta curricular de Educação Física do SESI-SP confirma tal tese. Questões de ordem administrativa, muitas vezes deixam este percurso mais difícil de ser alcançado. Nem sempre, os especialistas que conduzem o processo detém autonomia nas decisões estratégicas. Este projeto, ou esta aposta, como prefere Sonia Kramer, exige certo investimento financeiro. Reunir presencialmente os professores, por exemplo, requer destinar verba para pagamento de horas extras, transporte, alimentação, hospedagem, etc. Portanto, esses encontros precisam ser programados diante do orçamento aprovado. Algo que muitas vezes limita e atrapalha o processo.

    Embora enaltecemos a relevância deste processo, temos também que ressaltar, que após o currículo prescrito estiver concluído, ele precisa “ganhar vida” nas escolas. Para tanto, cabe ao SESI-SP o desafio de pensar em uma política de formação permanente dos professores, tanto dos que fazem parte do grupo de elaboração, como os outros professores da rede que por diversos motivos não estão participando. Caso isso não ocorra, o risco da proposta padecer na prática é iminente.

    De acordo com Moreira (2000), dominantemente têm sido estudadas as reformulações curriculares oficiais que se realizam segundo a ótica neoliberal. Para o autor, as propostas curriculares que procuram caminhar em direção contrária ao discurso hegemônico ainda têm sido pouco focalizadas no Brasil. Identificamos que a aposta do SESI-SP se encaixa nesse segundo grupo. Portanto, vale a pena investigar esse percurso de construção curricular, que está em plena fase de desenvolvimento, para que novas políticas educacionais sintam-se provocadas a considerar os professores como intelectuais transformadores, como defende Henry Giroux (1997).

Notas

  1. As seguintes questões foram problematizadas em pequenos grupos: “Entendemos que...”: Toda proposta é uma aposta? Uma proposta é construída no caminho? É uma promessa de algo melhor? Expressa valores que a constituem? Necessita de condições de elaboração? Precisa trabalhar com as especificidades? Precisa que os professores acessem conhecimentos? Necessita de condições de implementação?

  2. Em pequenos grupos: “Temos Clareza sobre...”: O percurso histórico da Educação Física Escolar no SESI? Da Trajetória dos professores? As realidades das escolas? Quem são as crianças e jovens? Os fundamentos teóricos?

  3. Trata-se do documento preliminar que norteava o trabalho pedagógico, citado anteriormente. Ainda em pequenos grupos, os professores discutiram as seguintes questões: Qual a concepção da Educação Física no documento? Qual é o cidadão projetado? O que ele precisa aprender? O que o professor precisa saber?

Referências bibliográficas

  • CANDAU V. M. In: MOREIRA A. F; CANDAU V. M. (orgs.) Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

  • GIROUX, H. A. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983.

  • ______. Professores como intelectuais transformadores. In: GIROUX, H. A. Os professores como intelectuais: rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Artes Médicas: Porto Alegre, p. 157-164, 1997.

  • KRAMER S. Propostas pedagógicas ou curriculares: subsídios para uma leitura crítica. Educação & Realidade, ano XVIII, n. 60, dezembro/1997.

  • NEIRA M. G. Educação Física. São Paulo: Blucher, 2011 (Coleção “A reflexão e a prática no ensino”).

  • PÉREZ GÓMEZ A. I. As funções sociais da escola: da reprodução à reconstrução crítica do conhecimento e da experiência. In: GIMENO SACRISTÁN J; PÉREZ GÓMEZ A. I. Compreender e transformar o ensino. 4. ed. Artmed, 2007.

  • SESI-SP. Orientações Didáticas de Educação Física. São Paulo: SESI, 2011.

  • SOUSA SANTOS, B. Dilemas do nosso tempo: globalização, multiculturalismo e conhecimento. Currículo sem fronteiras, v. 3, n. 2, p. 5-23, jul.-dez. 2003.

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