Ensaio sobre a organização capitalista do esporte: resgate Ensayo sobre la organización capitalista del deporte: un rescate de los aportes de Jean Marie Brohm a la comprensión del sistema deportivo actual Essay on the capitalist organization of sport: redemption of the contributions of Jean Marie Brohm for understanding the current sports system |
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*Professor Assistente II. Universidade Federal de Itajubá Mestre em Educação Física . Universidade Estadual de Campinas **Mestrando em Saúde Coletiva. Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estadual de Campinas (Brasil) |
Paulo Cezar Nunes Junior* Janir Coutinho Batista** |
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Resumo Este ensaio tem por objetivo discutir a questão da organização capitalista do esporte com base no modelo proposto pelo francês Jean Marie Brohm na década de 1970. A partir da leitura de suas obras e do diálogo com autores que embasaram suas teorias, faremos reflexões sobre a dinâmica atual do esporte em nossa sociedade, apontando novas interpretações para o tema. Unitermos: Esporte. Política. Sociologia.
Resumen Este ensayo tiene por objetivo debatir sobre la cuestión de la organización capitalista del deporte partiendo del modelo propuesto por el francés Jean Marie Brohm en la década de 1970. A partir de la lectura de sus obras y del diálogo con autores que apoyan sus teorías, haremos reflexiones sobre la dinámica actual del deporte en nuestra sociedad, apuntando nuevas interpretaciones sobre el tema. Palabras clave: Deporte. Política. Sociología.
Abstract
This essay aims to discuss the question of the capitalist
organization of sports on the model proposed by Jean Marie Brohm in the
1970s. From the reading of his work and dialogue with the authors who had
based their theories, we will make reflections about the current dynamics
of the sport in our society, offering new interpretations of the theme.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 17, Nº 167, Abril de 2012. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
Este texto teve início há alguns anos atrás, a partir de discussões travadas durante a elaboração de um seminário para uma disciplina de graduação sobre marketing em educação física, esporte e lazer. A proposta inicial seria fazer uma leitura crítica de um capítulo de livro publicado pelo professor Marcelo Weishaupt Proni em 2002, intitulado “Brohm e a organização capitalista do esporte” (PRONI, 2002). Naquela ocasião, o trabalho ganhou dimensões que extrapolaram a leitura deste texto, e partimos para o diálogo com outros autores que abordaram assuntos referentes a este tema, inclusive com a leitura de textos do próprio Brohm (1975, 1975, 1982, 2002).
O objetivo aqui será fazer uma análise do modelo de esporte institucionalizado no século XIX a partir de um ponto de vista que se aproxima do modo marxista de análise, com referência na crítica ao esporte do educador físico e filósofo francês Jean Marie Brohm, que há quase quarenta anos atrás, já nos apresenta indicativos para uma análise sólida do sistema esportivo, pensando uma funcionalidade semelhante a do sistema capitalista.
Algumas de suas idéias foram revistas mais recentemente pelo economista Marcelo Weishaupt Proni (2002), as quais apresentam o contexto de crise dos valores esportivos na década de 1970: escravidão do atleta, obsessão pela vitória a qualquer preço, utilização política do esporte, prioridade à formação de campeões, comercialização predatória, além da influência da publicidade em todo o sistema esportivo. Remetendo estes valores para a contemporaneidade, não nos parece distante dizer que permanecem cada vez mais presentes nas instâncias e realidades esportivas de diferentes lugares da sociedade.
Intitulado no original em francês Sociologie politique du Sport 1 mais tarde esta obra foi traduzida para o inglês e o espanhol. Compila a teoria de Brohm sobre a organização capitalista do esporte, baseada principalmente em críticos alemães que escreveram sobre o tema, como Bero Rigauer, Gerhard Vinnai e Hans Lenk.
As idéias a serem desenvolvidas neste ensaio são recortes e impressões iniciais que reunimos com o objetivo de desenvolver algumas argumentações, estabelecendo diálogo com autores que fundamentaram a teoria de Brohm, além de outros referenciais que podem auxiliar na compreensão do esporte segundo esta perspectiva.
Buscaremos ainda estabelecer uma relação das idéias desenvolvidas por Brohm (1982) naquele período, tentando encontrar canais diretos de aplicabilidade para o funcionamento do sistema atual. Além disso, evidenciaremos possíveis brechas deixadas pelo autor para a compreensão do fenômeno esportivo, que apesar de ter sua construção pautada sobre ideais capitalistas clássicos, não segue linearmente o molde mercantil, devido a idiossincrasias próprias de seu desenvolvimento. A partir disso, estabeleceremos uma análise sobre os possíveis rumos do esporte perante a crise do sistema capitalista e o afunilamento dos mercados consumidores, tratando a questão do futuro do consumo no sistema esportivo.
O sistema esportivo na teoria de Brohm: diálogos com o capitalismo
Em sua obra mais conhecida no Brasil, Brohm (1982) tem por objetivo central hierarquizar e examinar as categorias centrais do sistema esportivo, conhecendo sua estrutura de funcionamento e seu desenvolvimento histórico contraditório. Baseia-se sobretudo em três referenciais teóricos: o modelo marxista, entendendo que o esporte só é possível por compreender uma síntese de abstrações assim como acontece no capitalismo; o modelo do estruturalismo de Lévy-Strauss, como sistema que coloca o Esporte em funcionamento; e o modelo psicanalítico de Freud, na discussão do fenômeno enquanto função psicossocial para a sublimação do instinto de violência agressiva. Por meio destes três grandes eixos de análise, Brohm (1982) esforça-se para compreender o sistema esportivo de forma abrangente, sem perder-se em ecletismos que muitas vezes descaracterizam as grandes construções teóricas.
Se no capitalismo, a categoria elementar de funcionamento do sistema é a mercadoria, no sistema esportivo, a funcionalidade gira em torno da categoria “esporte”, como cerne do processo de produção esportivo, cujos produtos finais estão sob a forma de campeões, espetáculos, recordes, vitórias, quadro de medalhas, entre outros produtos.
Para que este sistema funcione, é preciso que haja um processo de abstração, tal qual ocorre ao redor da mercadoria no capitalismo. Cria-se uma espécie de dependência e necessidade natural pelo modelo de esporte moderno através do fetiche pela mercadoria, provocado entre outros fatores pelo “rendimento, como centro de gravidade, motor do sistema esportivo e modelo a ser alcançado” (PRONI, 2002 p. 35).
A grande diferença entre o esporte e o modelo de mercadoria clássica do capitalismo gira em torno as construção ocorrida entre o valor de uso e o valor de troca.2 No capitalismo a mercadoria é originalmente provida de um valor real, produto da matéria prima pelo tempo do trabalhador, que gera ao final do processo produtivo um preço final. O mecanismo de abstração ocorre pela criação da necessidade de algo que não acaba em sua concretude, pois está concatenado com outras idéias e potencialidades de alcance em sua execução. No esporte, a significação do valor dos produtos ocorre já em sua essência sobre valores abstratos, não estabelecendo relação necessária com o valor de uso das mercadorias.
Desta maneira, o modelo estrutural originalmente incompatível com a realidade concreta torna-se correspondente ao meio em que se manifesta exteriormente, tendo os clubes-empresas como sua célula básica (PRONI, 2002). É a partir desse construto que o princípio da expansão se reflete obedecendo à universalização do sistema capitalista: a mercadoria não existe sem mercado.
Brohm propõe uma ruptura histórica na aparição do esporte moderno em relação às outras formas de práticas esportivas de períodos anteriores à Revolução Industrial na Inglaterra, quando ocorre a introdução do conceito de recorde e a consagração dos chamados cimentos sociais, a divisão de classes. O sistema nasce com a sociedade industrial e é inseparável de sua estrutura e funcionamento – daí a gênese das similitudes com o modelo capitalista. O processo toma grandeza e expansão internacional com as organizações institucionais das modalidades entre o final do século XIX e início do século XX3, principalmente na Inglaterra, na Alemanha e nos Estados Unidos, estruturando definitivamente o chamado esporte moderno”.
O surgimento deste modelo só apareceu em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, pois o Estado nacional-democrático era um pressuposto para que ocorresse o sucesso do sistema esportivo. Pelo livre intercâmbio de idéias e pela liberdade jurídica dos indivíduos, era possível a funcionalidade democrática da instituição esportiva: reduzindo a distância entre classes, multiplicando os contatos entre os indivíduos, prometendo mobilidade social e abolindo as discriminações sociais. A ideologia democrática, construída sob os pilares dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade formaram o cerne do esporte, possibilitando que as estruturas de classe e os mecanismos de dominação permanecessem velados (PRONI, 2002).
Em outro ponto de sua obra, Brohm deixa claro que não se deve tratar o Esporte como algo polissêmico; embora haja a idéia de uma possível abrangência de áreas como a ginástica e os jogos infantis, estes não fazem parte de seu domínio: o esporte não é uma instituição unitária, é uma unidade diferenciada. Sustentando esta idéia, oferece uma definição do tema explicitando as relações sociais e englobando quatro dimensões:
Sistema institucionalizado de práticas competitivas delimitadas, reguladas, codificadas e regulamentadas convencionalmente, cujo objetivo é designar o melhor concorrente ou registrar o melhor desempenho;
Sistema de competições físicas universalizadas, aberto a todos, que se estende no espaço e tempos sociais, cujo objetivo é medir e comparar o rendimento corporal humano;
Sistema cultural dedicado a registrar o progresso corporal humano (o positivismo institucionalizado do corpo), a instituição derivada à progressão física continuada e à ininterrupta busca de superação de façanhas.
Campo de relações sociais no qual impera o espírito novo, industrial, a mentalidade do rendimento e do êxito. (BROHM, 1982 pp.42-43).
A lógica capitalista burguesa de organização do Sistema esportivo surge a partir da tomada desses referenciais dentro de uma estrutura simbólica e aparato ideológico do Estado – a Instituição Esportiva. Nela ocorre o entrecruzamento de instâncias de uma formação social, ponto de encontro de todos os níveis sociais: econômico, político, ideológico, pedagógico, cultural. No caso do esporte, a estrutura não é diferente, e estas instâncias variam em sua dominação, de acordo com as diferentes vertentes que a instituição segue: Esporte profissional – dominação do aspecto econômico, Esporte escolar/participativo – dominação do aspecto pedagógico. Em uma análise geral, o Sistema Esportivo seria uma totalidade articulada das instâncias dominantes, as quais funcionam obedecendo aos interesses de mercado.
A idéia de que uma democracia promove direitos jurídicos (BROHM, 1982) iguais no esporte e no capitalismo na verdade acaba funcionando como uma justificativa para uma “concorrência equivalentes”. Neste tipo de sistema coexistem a hierarquia de poder aceita livremente e a possibilidade de mobilidade para todos, pelo menos em tese. Esta questão da categoria de sujeitos jurídicos formalmente iguais perante o mercado é que coloca em funcionamento o mecanismo da competição, do sucesso pelo esforço individual em detrimento da ajuda mútua, compreendendo assim uma questão insolúvel: a contradição entre democracia e vitória.
Da necessidade do esporte
É fato que o sistema esportivo cada vez mais se consolida nos moldes atuais, seja pelo discurso da qualidade de vida - que o prega como prática física necessária, seja pela compatibilidade de interesses com o modo de produção capitalista, conforme apresentamos anteriormente.
Neste sentido, o papel desenvolvido por Brohm (1975, 1976, 1982, 2002) foi fazer a crítica a este sistema, pois segundo ele trata-se de um mecanismo destoante do modelo socialista utópico. Para ele, a transformação social marxista não seria possível com a presença do esporte.
Ligado a esta idéia da concorrência e da vitória, é preciso também entender como ocorre a relação de dominação e a produção do denominado “mecanismo da servidão voluntária” (LA BOÉTIE, 1982). Nosso modelo social funciona a partir de um modelo piramidal, no qual o objetivo é atingir seu último degrau, como no pódio esportivo. Segundo La Boétie (1982), a idéia natural da liberdade é trocada por uma força maior que gera obediência, pela promessa do poder. Nesta pirâmide, as relações são sempre biunívocas: há sempre alguém que domina e alguém que é dominado ao mesmo tempo, sendo impossível outro tipo de relação.
Este modelo está presente em diversos Estados ainda hoje, e estabelece relação direta com os princípios esportivos lavados a cabo por algumas políticas públicas. Advém daí a primeira contribuição de Brohm deste ensaio resgata, levantada logo no início do texto: o sistema esportivo nada mais é do que uma representação do nosso modelo social piramidal, no qual há vencedores e perdedores segundo a lógica da competição individual.
A presença do Esporte é fundamental também para garantir a satisfação de desejos e necessidades socialmente compartilhadas, exercendo função de objeto de “terapêutica social”, após estabelecer um mecanismo de simbiose entre público e atleta.
Retomando a idéia da função pssicosocial do esporte, defendida por Brohm a partir das idéias freudianas, é preciso entender e apoiar o esporte como meio de canalização da energia social das massas, de catarse e sublimação da energia instintiva agressiva.
Freud na sua fase final de construção de pensamento expande o entendimento da psiquê do indivíduo para um meio social, do qual está indissociável. Em O Mal-estar na civilização (FREUD, 1930), trabalha a questão da incompatibilidade da relação entre os indivíduos, por conta de seus impulsos naturais sexuais, de morte e de agressividade. Segundo ele, a vida só é possível na civilização por conta de uma sublimação desses impulsos, oriundos do Id, pela ação do Superego e do ego. Em síntese, o Esporte seria uma fábrica de sentimentos massivos, funcionando como uma válvula de segurança, reprimindo as agressões e compensando as atividades perante o trabalho industrial.
Além disso, o Esporte tem a função de manter a ordem estabelecida, como um aparato privado da hegemonia civil como aparelho ideológico do Estado, de acordo com as idéias de Althusser (1996). Sobre este ponto, Brohm (2002) diz ainda que o sistema esportivo funciona como um:
“[...] procès de production idéologique ininterrompu de propositions discursives de sense commum, d'opinions 'populaires' et de representations collectives étroitement subordonées aux impératifs de la reproduction élargie du système général qui lê porte et le “suporte” le capitalisme. (BROHM, 2002, p.43).
Nesse caso, a junção entre Estado e esporte obtém sucesso pois consegue dissimular e encobrir as relações de produção, gerando uma falsa consciência nas relações sociais e estruturando a visão do mundo cotidiano das massas. A ideologia esportiva funciona como uma capa superestrutural importante do modo capitalista de Estado, ordenando uma série de representações sobre o corpo (BROHM, 1975) e estabelecendo parâmetros para o rendimento físico das massas.
Ao analisarmos a função do esporte como meio de construção dos papéis sociais, podemos perceber ainda que ele sempre assumiu uma função de formador de caráter, da moralidade, a partir de uma consciência constituída, entre outras, pelas leis do Estado.
A imagem do esportivo não raramente assume um papel social de status a ser alcançado e de modelo a ser seguido, justificando a expressão “levar na esportiva” e primando por valores como cortesia, lealdade e educação (TERRA; PIZANI, 2009). Basta pensarmos nos gentlemen ingleses, praticantes de cricket e de remo, até os ícones do esporte atual: o empresário, empreendedor e ex-atleta de natação Gustavo Borges e o fenômeno do futebol, Ronaldinho – jogador de sucesso no mundo todo. Tratam-se de estereótipos criados pelas forças circulantes nos mecanismos políticos e imaginários de cada época, de acordo com o conjunto estruturante da instituição esportiva.
Uma análise marxista
Brohm (1982) desenvolve uma forte base marxista em sua análise do sistema esportivo, e estabelece relações importantes durante sua construção teórica, conforme apresenta Proni (2002), fazendo pontes entre as estruturas do sistema capitalista e o sistema esportivo, traçando ao final de sua teoria a idéia de que não há diferença do esporte praticado no sistema capitalista daquele praticado no meio socialista.
Há alguns pontos centrais levantados por Brohm para distanciar o esporte dos objetivos socialistas. A questão da luta de classes, por exemplo - pilar para a sustentação do marxismo – em sua visão tende a desaparecer no sistema esportivo, visto que se apresenta como uma luta de átomos individuais: “assim, os conflitos de classe convertem-se em conflitos individuais ou intraindividuais, os antagonismos sociais e políticos convertem-se em conflitos psicológicos” (PRONI, 2002 p. 46).
Nos estudos marxistas, a questão central dá-se em torno dos estudos sobre a dinâmica do capital. Este só existe no sistema se houver circulação, para gerar crescimento, rentabilidade. Se não cresce não é capital e caso fique estagnado, na verdade estará se desvalorizando. Para que o sistema funcione, é preciso que haja rendimento o tempo todo. Tratando de girar rápido o capital com fim à acumulação. Neste processo, o capital rouba a e energia do trabalhador, pelo mecanismo da mais valia, tempo do trabalho abstrato, o que segundo Marx dá valor ao produto (BOTTOMORE, 1988).
O corpo humano é ao mesmo tempo a máquina funcionante e a matéria prima a ser lapidada, emoldurada pela mídia; dotado de capacidades biomotoras que poderá render conforme a qualidade e eficácia do trabalho de treinamento e periodização produzido em cima do atleta.
Desse modo, a finalidade e a execução do gesto deve obedecer ao dispêndio correto de energia. Preconizados pela influência dos métodos ginásticos europeus (SOARES, 2001) e mais tarde ressignificados pela lógica taylorista da divisão do trabalho - sobre a teoria de um estudo ergonômico do trabalho com fim a economia do tempo, organização cientifica da produção e racionalidade vigente do conjunto técnico -, o princípio da autodeterminação dos gestos são acontecimentos que em essência não estão separados da funcionalidade do esporte, e em certa medida possibilitaram que o sistema vingasse. Estes discursos se encontraram no câmbio das práticas corporais, e travam atualmente um diálogo de complementaridade de ações: de compensação e direção da energética corporal para o objetivo de se destacar no mercado.
O processo de industrialização e padronização dos gestos humanos só foi possível pela idéia da recompensa, pela troca do gesto pelo salário. Ponto central para essa situação foi a construção da disciplina, reguladora da produção no capitalismo, pela docilidade e controle dos corpos.
Inserida na idéia da disciplina está a questão do tempo. Se no processo de produção capitalista há abstração e acumulação de capital sobre o tempo do trabalhador, logo pressupõe-se que tempo é dinheiro. Assim, além de influenciar na eficácia dos gestos, o Esporte constrói seus valores humanistas e morais criminalizando a vagabundagem e combatendo o ócio como inimigo da acumulação. O tempo do ócio é obscuro e improdutivo, destrutivo do caráter social do indivíduo. O que deve existir é um tempo livre, como parcela compensadora para o esforço do trabalhador. Esse tempo livre, de lazer, é necessário e deve ser controlado para que se tenham atividades orientadas, esportivizadas e complementares às ações das instituições escolares e estatais.
O colapso da modernização e o futuro do esporte
A análise crítica feita por Proni (2002) ao final de seu trabalho de interpretação sobre a obra de Brohm estabelece alguns pontos de discordância em relação aos aspectos generalistas construídos para enquadrar o sistema esportivo junto ao capitalismo. De modo geral, entende o modelo de Brohm como uma teoria geral do esporte, com embasamento teórico consistente e argumentação concatenada. Porém, segundo ele, o modelo não atende as especificidades dos modelos esportivos de todas as realidades sociais, condicionando e limitando a pesquisa histórica e unidirecionando a análise para uma única determinação problemática.
Aponta também algumas limitações para o modelo proposto por Brohm, argumentando que encontra dificuldades para examinar práticas esportivas que não se baseiam nos mesmos princípios e não seguem necessariamente o mesmo tipo de organização proposta pelo autor (como por exemplo, o surf, a capoeira e o skate – práticas esportivas que enfatizam a relação com o meio ambiente ou que contestam o estilo de vida imperante).
Entendemos que o Esporte é um sistema complexo, que só pôde ser explicado por Brohm pela condição de produção e visão do autor na época da produção da teoria. Com certeza, hoje essa teoria não é aplicável a todos os casos e nem generalizável a ponto de ser concebida como verdades e alcances predispostos do esporte.
Ampliando esta idéia, achamos necessário traçar diálogo com algum autor que estabelecesse uma análise mais atual dos impactos do capitalismo na sociedade contemporânea, afim de uma tentativa de ensaiar considerações acerca do papel do esporte nesta dinâmica social e possíveis desdobramentos deste com a evolução do capitalismo.
No final da década de 1980 um sociólogo alemão, chamado Robert Kurz chamou a atenção dos economistas ao pregar um colapso do capitalismo e da sociedade do trabalho. Suas idéias repercutiram no mundo, e durante muito tempo foram desacreditadas pelos mercados e indústrias de ponta. Kurz traça um perfil da evolução da sociedade de trabalho, apontando questões sobre a apropriação da força de trabalho por parte da burguesia, segundo os estudos marxistas. Tece um estudo sobre a derrocada do regime socialista na antiga União Soviética e localiza o erro na manutenção da relação entre tempo e trabalho.
Segundo Kurz (1992), de nada adiantou ter-se eliminado a concorrência interna no socialismo soviético, visto que a apropriação do trabalho continuou seguindo a mesma lógica capitalista. “O erro do movimento operário marxista foi nunca ter compreendido que ele mesmo liberou os trabalhadores assalariados não da concorrência, mas para ela”. (KURZ, 1992 p. 82). Brohm nos indica algumas pistas desta contradição quando diz que não há diferenças entre o esporte socialista e o comunista, sendo um paradoxo o sistema esportivo funcionar numa sociedade dita socialista igualitária.
Kurz consegue identificar que o problema da sociedade se encontra na produção da mais-valia. O importante então seria perceber o modo como se constrói a relação entre força de trabalho e meios de produção, tentando entender o processo de aceleração da produtividade e participação do trabalhador neste processo tomando-o também como consumidor de produtos. Para posicionar os homens na sociedade, Kurz(1992) se utiliza da expressão “sujeitos monetários sem dinheiro”, concebendo-os como ativos que flutuam na superfície da situação de socialização em que se encontram e que se apresenta a eles nos fenômenos materiais de forma estranha e extrínseca, ou seja: participam do processo da circulação de capital de forma marginal.
Soma-se a esta situação um quadro de abstração social, como encarnação do trabalho por excelência, desvinculado do conteúdo concreto da produção num mercado onde se configura cada vez mais a idéia do “valor mais valor”. O empreendedorismo transformou o homem em ativos de negócio, que precisa constantemente estabelecer um processo de valorização frente a um mercado de ações simbólicas. O gosto pelo esporte, e a prática física direcionada para a qualidade de vida são imprescindíveis para a valorização de ações rumo a uma ascensão social pela assimilação dos valores das classes dominantes, consagrados no mercado dos bens simbólicos.
Estado e mercado condicionan-se mutuamente, não como complementação idealmente equilibrável de elementos sociais civilizatórios, mas sim como institucionalização de um antagonismo violento, hostil até o ponto de aniquilar o adversário e provocar catástrofes. Presos na cegueira da determinação da própria forma, os sujeitos trabalham em sua autodestruição. (KURZ, 1992, p. 43).
Nesta análise de Kurz o Estado é apenas uma fase do capitalismo, e a autonomia dos processos no mercado nunca esteve sujeita completamente ao comando estatal. Desse modo, a crise pela qual perpassam as instituições construídas na modernidade pode ser entendida partindo do pressuposto de que elas não acompanham mais a velocidade da mudança das transações monetárias.4 Neste processo têm força as instituições que trabalham segundo esta estratégia de aceleração dos mercados, e é exatamente neste ponto que ganha destaque a instituição esportiva. Assim, fazemos aqui uma tentativa de expandir os paralelos traçados por Brohm entre a identidade do modelo esportivo e capitalista para suscitar possíveis diálogos da instituição esportiva com a sociedade para os próximos anos.
Considerações finais
Não é difícil ensaiar que o sistema esportivo terá seu espaço garantido nos próximos anos de capitalismo, principalmente por dotar-se de dois aspectos imprescindíveis para sua existência nessa fase de mercado: tem seus produtos construídos primariamente sobre valores abstratos e está em consonância com a aceleração e mundialização pela qual perpassa a economia e a sociedade como um todo. Além disso, é uma arma imprescindível para que a civilização permaneça em equilíbrio contra o mal-estar apontado por Freud, mesmo havendo tensões e contradições no seu mecanismo de funcionamento.
A ascensão exponencial do sistema esportivo e da indústria do esporte espetáculo ilustram a adequação do esporte ao nosso sistema. Mesmo em tempos de colapso do sistema, consegue se manter em pé, firme e vigoroso, mostrando o alto fator de competitividade que compreende é fator essencial na luta pelos mercados.
Em tempos de planejamento e gastos públicos com os megaeventos esportivos que estão por vir, pensar sobre estas questões mais amplas de entendimento do sistema a ideologias operantes por traz das grandes instituições é extremamente importantes. Mesmo que não sejamos marxistas, mesmo que sejamos meros executores de funções, mesmo que não compartilhemos opiniões políticas comuns.
Notas
BROHM, Jean. Marie. Sociologie politique du sport. Paris: J. P. Delarge, 1976. 1ª Edição.
Segundo Marx, o valor de um bem é determinado pela quantidade de trabalho socialmente necessário para sua produção. Advém daí o valor de uso da mercadoria, representando a utilidade que o bem proporciona à pessoa que o possui. O valor de troca exige um valor de uso, mas não depende dele para significar o valor da mercadoria. Nascia assim o conceito da mais-valia, diferença entre o valor incorporado a um bem e a remuneração do trabalho que foi necessário para sua produção. Para Marx a característica essencial do sistema capitalista era a apropriação privada dessa mais-valia (
É neste intervalo de tempo que são institucionalizadas as principais modalidades esportivas, a exemplo do basquetebol - Estados Unidos, 1906 - e do voleibol - Estados Unidos, 1910.
Exemplo desta situação é a crise pela qual passa o Estado brasileiro em campos como a segurança social (o crime organizado surge cada vez mais forte para controlar a população da periferia), ensino público (cresce cada vez mais o número de instituições de nível superior particulares) e a saúde (os convênios particulares ganham força em detrimento de um sistema público sucateado).
Referências bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. In ZIZK, Slavoj (Org). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BOTTOMORE, Tales. Dicionário do pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.
BROHM, Jean Marie. Corps et politique. Paris: J. P. Dilarge, 1975.
______. Critiques du Sport. Paris: J. P. Dilarge, 1976.
______. Sociología Política del Deporte. México: Fondo de Cultura Económica, 1982.
______. La Machinerie Sportive. Essais d´analyse institutionelle. Paris: Anthropos, 2002.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Tradução de Octavio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 2002
KURZ, Robert. O colapso da modernização - Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Tradução de Karen Elsabe Barbosa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
LA BOÉTIE, Etienne de. O discurso da servidão voluntária. Tradução de Laymert Garcia dos Santos. São Paulo: Brasiliense, 1982.
PRONI, Marcelo Weishaupt. Brohm e a organização capitalista do esporte. In PRONI, Marcelo Weishaupt e LUCENA, Ricardo de Figueiredo (Orgs.). Esporte: história e sociedade. Campinas: Autores Associados, 2002.
TERRA, Vinicius: PIZANI, Rafael. Esporte Moderno e Educação: imagens do caráter esportivo no filme Carruagens de Fogo. Recorde: Revista de História do Esporte. V. 2, n. 1. Junho de 2009.
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