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Do ensino do esporte na escola: um ensaio acerca de suas possibilidades

Acerca de la enseñanza del deporte en la escuela: un ensayo acerca de sus posibilidades

 

Especialista em Educação Física Escolar

pela Universidade Federal de Santa Maria

(Brasil)

Márcia Morschbacher

mm.edufisica@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          Este artigo problematiza e atualiza o debate referente ao ensino do esporte na escola. A partir do resgate de elementos da discussão engendrada a partir da década de 1980 no tocante a essa temática, procura-se atualizá-los à luz da análise do hodierno panorama.

          Unitermos: Educação Física. Escola. Esporte.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 165, Febrero de 2012. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    No meio acadêmico, alguns autores têm apontado, de modo relativamente consensual, que a Educação Física escolar, concebida como componente curricular escolar, se encontraria em um processo de ressignificação de sua identidade pedagógica no âmbito da escola (KUNZ, 2006a; GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009; 2010).

    Historicamente legitimada na escola a partir dos influxos de instituições externas, tais como a médica, a militar e a esportiva (CAPARROZ, 1997), a partir da década de 1980, essa disciplina escolar passa a ser problematizada mediante bases teóricas distintas. Tal processo concentra-se, entre outras questões, no debate em torno do papel social dessa disciplina escolar, dos conteúdos a serem ensinados e demais aspectos didático-pedagógicos - além dos conteúdos, objetivos e métodos de ensino e avaliação.

    No tocante às críticas dirigidas à Educação Física escolar, no período supracitado, o esporte, na condição de conteúdo de ensino preponderante (BRACHT, 2000), também é questionado, sobretudo, em relação aos valores e princípios que difunde, dado que o mesmo é ensinado na escola como cópia irrefletida do esporte de rendimento (BRACHT, 2000; KUNZ, 2003).

    Tendo em vista essas considerações, o presente artigo objetiva problematizar e atualizar algumas questões atinentes à tematização pedagógica do esporte na escola. Nesse sentido, o mesmo resgata elementos da discussão engendrada a partir da década de 1980 no tocante ao ensino e procura atualizá-los à luz da análise do hodierno panorama referente a essa temática.

Esporte na escola: atualizando o debate

    O esporte, concebido em sua diversidade de manifestações, é uma prática corporal (e social) dotada de proeminente expressividade e legitimidade que tomou para si a condição de elemento hegemônico da cultura corporal (ASSIS, 2001; BRACHT, 2003). Entretanto, embora se reconheça a sua diversidade (em alusão às diferentes formas e contextos em que o mesmo é praticado), essa condição emana de uma manifestação esportiva peculiar que, em geral, normatiza as demais: o esporte de rendimento (BRACHT, 2003; KUNZ, 2003).

    Um aspecto preliminar a ser suscitado e que emerge no debate travado no decurso da década de 1980, conforme menção no excerto introdutório deste artigo, se refere à seguinte questão: em que proporção o esporte de rendimento, ao constituir-se em parâmetro para as manifestações esportivas com finalidades diversas, inclusive no espaço escolar, estaria “contribuindo” ao processo de legitimação ideológica da organização social capitalista?

    O debate, no período histórico em questão, pauta-se no reconhecimento de que a unânime legitimidade social conferida ao esporte de rendimento acaba por dissimular os generalizados influxos deste em favor de uma lógica societal excludente. Tal argumento assenta-se em evidências concretas como: a utilização do esporte como instrumento de mobilização e de desmobilização das massas, a mistificação da realidade, a eficiente internalização de determinados valores e normas, a difusão de estereótipos, a limitação e padronização das experiências motoras de seus participantes ativos, a sua racionalização e mercantilização, acompanhadas pelo intenso consumo esportivo, entre outros aspectos.

    Assis (2001) em análise ao processo de desenvolvimento do esporte brasileiro, afirma que o mesmo “invade a área” da Educação Física após a Segunda Guerra Mundial, momento em que, no país, acentuam-se os processos de urbanização e industrialização e a ascensão dos meios de comunicação de massa. Nesse ínterim, intensifica-se o incentivo ao esporte de modo generalizado, visto que se encontram, subjacentes a esta ação, os objetivos de legitimar e manter o modelo de sociedade baseado na produtividade, na concorrência e na eficiência, além da formação de corpos dóceis, disciplinados, acríticos e alienados (ASSIS, 2001).

    A problemática central em questão, no âmbito da escola, refere-se ao fato de que, tendo em conta que a manifestação do esporte difundida e legitimada hegemonicamente é o esporte de rendimento, a sua estrutura organizacional, normas, valores e princípios acabam por servir de parâmetro à tematização pedagógica do esporte no espaço escolar (KUNZ, 2003).

    Bracht (2000) corrobora esse autor ao indicar que, a Educação Física escolar, por sua vez, é considerada pelo sistema esportivo como um meio potencial ao seu desenvolvimento e, desse modo, o esporte adentra a escola e torna-se o conteúdo de ensino preponderante sobre os demais elementos da cultura corporal (BRACHT, 2000). Cabe ressaltar que o processo de esportivização dessa disciplina ocorre de modo acrítico e unilateral, isto é, nas palavras de Bracht (2000, p. 15): “[...] o esporte se impõe à Educação Física, ou seja, instrumentaliza a Educação Física para o atingimento de objetivos que são definidos e próprios do sistema esportivo”.

    Em outra oportunidade, em alusão a esta questão, o mesmo autor esclarece que:

    A Educação Física ao fazer do esporte de rendimento seu objeto de ensino e mesmo abrindo o espaço escolar para o desenvolvimento desta forma de realizar o esporte, acabava por fomentar um tipo de educação que colaborava para que os indivíduos introjetassem valores, normas de comportamento conforme e não questionadores do sistema social (BRACHT, 2000, p. 15).

    As críticas dirigidas à Educação Física escolar e, consequentemente, ao seu conteúdo preponderante (o esporte), a partir da década de 1980, nesse sentido, recaem sobre as suas reais finalidades educativas. Nesta perspectiva, as denúncias e as críticas dirigem-se ao tradicional modelo de ensino dos esportes que, reitera-se, reflete em seu interior as nuances da sociedade capitalista. Por conseguinte, no decurso do debate da área, passa-se a apontar que uma das proposições para elucidar esse impasse situe-se na transformação do esporte que é conteúdo de ensino no espaço escolar.

    Nessa proposta, Kunz (2003) aponta que o esporte tematizado na escola, em uma acepção tradicional, constitui-se em uma cópia irrefletida do esporte de rendimento, o que, em linhas gerais, torna a aula de Educação Física e a escola, ambientes de treinamento e de competição com princípios, normas, objetivos e ações voltados à apropriação do esporte institucionalizado e à otimização das formas padronizadas e estereotipadas de movimento (KUNZ, 2001; 2003).

    Trata-se de um processo de ensino-aprendizagem fechado e diretivo, cujo desenvolvimento e produto somente são conhecidos e dominados pelo professor, que direciona seus objetivos e suas ações ao mero ato de instrumentalizar os educandos às expectativas requeridas pelo esporte de rendimento - otimização e especialização esportivo-motora, melhoria da aptidão física, busca pelo sucesso a qualquer preço, comparação de resultados, sobrepujança dos oponentes, inquestionabilidade das regras, normas e estrutura, dentre outros aspectos (KUNZ, 2001).

    Nessa perspectiva, Kunz (2003) posiciona-se em prol de que o esporte da escola seja transformado didático-pedagogicamente, o que demanda mudanças de decisões e ações que permeiam as instâncias pedagógicas, didáticas e metodológicas do processo de ensino-aprendizagem dos esportes. Segundo o autor: “O problema é descobrir que compromisso educacional a encenação pedagógica do esporte deve assumir quando da presença de um educador e no espaço escolar. [...] É, na prática, permitir apenas o desenvolvimento de formas de encenação do esporte que são pedagogicamente relevantes” (KUNZ, 2003, p. 73).

    Esclarece-se que não se postula que o esporte deixe de ser um dos conteúdos tematizados na e pela Educação Física escolar, mas de possibilitar nas práticas educativas que outros sentidos/significados sejam atribuídos e apropriados pelos sujeitos, isto é, delimitar “o que”, “como” e “com que finalidades” o esporte pode e deve ser tematizado tendo em vista. Para Assis (2001, p. 22), em caráter de complementaridade: “A escola, entendida como espaço de intervenção, é um local privilegiado de construção de um ‘novo esporte’, que surge das críticas ao ‘velho esporte’”.

    Dessa forma, há que se propiciar que o esporte seja tematizado e apropriado em sua diversidade pelos sujeitos envolvidos na situação de aprendizagem - no entendimento de Kunz (2003), compreendido em seu conceito amplo e não em seu conceito restrito (rendimento, competição sobrepujança, entre outros).

    Reitera-se, portanto, a necessidade de que, a partir do esporte escolar, os educandos tenham a possibilidade de, além dos aspectos técnico-objetivos, compreenderem e vivenciarem o fenômeno esportivo em relação à sua relevância e papel social, evolução histórica e condições e influxos sob os quais, principalmente o esporte de rendimento, desenvolve-se na sociedade capitalista contemporânea (KUNZ, 2003).

O necessário retorno às teorias de base: “Educação Física, para quê?”

    Ressalvadas as questões tratadas nas etapas anteriores desse artigo, pondera-se que, embora o debate em torno da tematização pedagógica do esporte tenha avançado e que existam proposições à transformação do estado de coisas anteriormente referido, é possível considerar que persistem certas dificuldades de efetivamente materializar tal desígnio. Alguns autores apontam para um suposto vácuo entre o debate travado pela área desde a década de 1980 e transformação efetiva da prática pedagógica do esporte na escola (KUNZ, 2003; 2006a; BRACHT et al., 2005).

    À superação desse impasse, Bracht e González (2005 apud GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009; 2010), sugerem que a Educação Física escolar se redimensione, no sentido de transformar-se de atividade de “exercitar-se para” (exercitar-se para a saúde, para a qualidade de vida, para o aprendizado motor, etc.) para a efetiva condição de componente curricular. Esse processo, para os autores, vem acompanhado de uma nova demanda, ainda não colocada no âmbito da concepção hegemônica de Educação Física: “[...] se coloca [...] um conjunto de questões que não faziam parte das preocupações da tradição desta área, e que balizam as teorias pedagógicas quando buscam legitimar um componente curricular num projeto educacional” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009, p. 11).

    Não obstante reconheçam-se significativos avanços tanto à produção de conhecimentos quanto à sua prática pedagógica no âmbito da Educação Física escolar, esses autores mencionam as dificuldades com que as requeridas transformações da prática pedagógica deste componente curricular vêm processualmente se consolidando. Para os autores: “Assim, na nossa compreensão, a EF se encontra ‘entre o ainda não e o não mais’, ou seja, entre uma prática docente na qual não se acredita mais, e outra que ainda se tem dificuldades de pensar e desenvolver” (GONZÁLEZ; FENSTERSEIFER, 2009, p.12).

    Ante essa problemática, pondera-se sobre a superação da dificuldade de efetivamente implementar a curto e, principalmente, a longo prazos, mudanças qualitativas no processo de ensino do esporte na escola - e, extensivamente, da Educação Física escolar - encontra-se relacionada com a necessidade de que essa problemática seja/esteja articulada a marcos teóricos mais amplos, situados na fundamentação das concepções de educação, homem e de sociedade.

    Desse modo, Kunz (2006) indica que a pergunta “Educação Física, para quê?” precede as questões “O que ensinar? (conteúdos) e “Como ensinar?” (métodos de ensino). Assim, as respostas ao “o quê” e o “como” da Educação Física escolar devem emergir a partir das possibilidades de respostas à seguinte questão: “Educação Física, para quê?”. O mesmo autor esclarece ainda que, precipuamente, há que se: “[...] preocupar com a questão do sentido/significado do ensino de Educação Física na escola e, em função desses sentidos, buscar sua legitimidade teórica” (KUNZ, 2006a, p. 18).

    Trata-se, entretanto, de uma tarefa consideravelmente complexa, na qual se coloca em jogo, para além de mudanças nas questões mais diretamente relacionadas ao trato pedagógico com conteúdos de ensino, perscrutar as concepções de base relativas à Educação Física e à educação. Nesse sentido, propõe-se que o caminho à superação do impasse relativo à tematização pedagógica do esporte na escola perpasse a busca de referências colocadas para além do “como ensinar”, “como avaliar”, entre outros aspectos.

Considerações finais

    Ressalvadas os propósitos elencados a este artigo, bem como as considerações que permearam a discussão em torno da problemática proposta, reitera-se o posicionamento de que mudanças substanciais no ensino do esporte na escola e, de modo mais amplo, na prática pedagógica da Educação Física escolar necessitam alicerçar-se em referências teóricas situadas para além dos aspectos mais diretamente aos mesmos. Em outras palavras, trata-se de estabelecer um incessante diálogo entre as teorias de base (filosóficas e educacionais, sobretudo) e o conhecimento produzido na área do ensino da Educação Física na escola.

    Sustenta-se, portanto, que o estabelecimento de parâmetros sólidos quanto à função social da educação, da escola, da Educação Física e do próprio conteúdo de ensino (nesse caso, o esporte) podem vir a contribuir para a superação de problemas constatáveis na prática pedagógica concreta dessa disciplina escolar. O constante debate em torno desse ponto (a função social) necessita, portanto, servir de ponto de partida e de chegada à prática pedagógica da Educação Física, considerada como disciplina que deve tematizar o conhecimento historicamente produzido e acumulado, em detrimento de um restrito discurso de promoção da saúde e de formação de atletas.

Referências

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