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A corrida de rua: aspectos históricos e culturais

Las carreras de calle: aspectos históricos y culturales

 

*Discente do Departamento de Educação Física

Ciências da Motricidade Humana – UNESP, Rio Claro

**Docente Dr. do Departamento de Educação Física

Ciências da Motricidade Humana – UNESP, Rio Claro

Marcelo Augusti*

Carmen Maria Aguiar**

marceloaugusti@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A corrida de rua é uma das modalidades esportivas que mais aumenta em número de adeptos e eventos na atualidade. De um recurso natural do ser humano, a corrida, submetida ao processo de transformação histórico-social conforme a época e lugar, adquiriu novos valores, usos e costumes. O artigo trata de alguns aspectos da culturalização da corrida no mundo moderno e contemporâneo, o seu entrelaçamento com a educação e a sua possibilidade de provocar o reencontro e a redescoberta da nossa ancestralidade.

          Unitermos: Corrida de rua. Transformação histórico-social. Valores.

 

Abstract

          Street run is one of those sports that most increases in number of participants and events today. A natural resource of the human being, the run, subject to the transformation process as the socio-historical time and place, acquired new values and customs. The article deals with some aspects of the enculturation of the run in the modern world and contemporary, its relationship with education ans its ability to cause the rediscovery of our ancestry.

          Keywords: Street run. Socio-historical process. Values.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 161, Octubre de 2011. http://www.efdeportes.com/

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    As inovações culturais são muitas vezes obra de pequenos grupos, 

mais do que indivíduos. Peter Burke (O que é História Cultural)

Introdução

    De acordo com as variações dos contextos socioculturais e em épocas distintas, a prática da corrida será convencionalizada de modos diversos.

    A prática da corrida como inovação cultural no mundo moderno e contemporâneo pode ser observada na Inglaterra do século XIX, nos Estados Unidos da década de 1970 e no Brasil atual. Em nenhum dos casos, entretanto, a corrida remonta à sua essência, ou seja, um recurso biológico destinado à interação do ser humano com a natureza.

    Ao se ensinar ou se aprender a correr, isso diz respeito à transmissão e aquisição de significados culturais que tanto podem se relacionar à dominação ou emancipação do indivíduo, ou seja, faz parte de uma herança cultural de um determinado contexto histórico-social, cujo legado é a matéria-prima da educação.

    Este artigo trata de alguns aspectos da culturalização da corrida no mundo moderno e contemporâneo, o seu entrelaçamento com a educação e a sua possibilidade de provocar o reencontro e a redescoberta da nossa ancestralidade.

Corrida e cultura

    Os seres humanos, ao se agruparem para a existência conjunta, buscam estabilizar a convivência por meio de usos, costumes, tradições e convenções que permitam significados que tenham sentido comum para a vida coletiva. Os arranjos inventados pelo ser humano, e que lhes confere sentido à vida em comum e proporciona relativo conforto material e psicológico em meio à hostilidade do ambiente natural, apresentam-se como modos diversos de organização da vida social, maneiras distintas de apropriação e utilização dos recursos da natureza e formas distintas de expressar as concepções da realidade. A esse conjunto de normas, valores, maneiras de ser e fazer, que diz respeito tanto à totalidade da humanidade quanto às suas particularidades, é que se denomina como cultura (Santos, 1987).

    Conforme as variações dos distintos contextos culturais de povos, nações, sociedades e grupos humanos, a corrida será apropriada como recurso técnico, ritual festivo, prática esportiva e / ou recreativa. Assim, enquanto para os Incas, nos séculos XIV-XV, correr era um recurso técnico fundamental para o sucesso do sistema de entrega de correspondência por todo o império1, para os índios brasileiros timbiras, a corrida faz parte de um ritual festivo.2 Cultura, portanto, como pode ser observado nesses dois exemplos, refere-se à criatividade. No ato de vivenciar a natureza, ou seja, de interrogá-la para descobrir novos modos de utilizar seus recursos, o ser humano cria e recria interpretações conscientes com o intuito de explicar e controlar o meio ambiente, tornando a cultura algo objetificado. Ao conceber outras maneiras de lidar com a realidade, cujo conhecimento e informação daí originados acumulam-se continuamente, a cultura estabelece os alicerces da vida social (Wagner, 2010).

    Cultura também pode ser entendida como um refinamento das criações humanas, que tem como consequência a domesticação do ser humano por ele mesmo. Viver, nesse sentido da cultura é uma sequência inventiva relacionada à articulação de contextos convencionalizados com particularidades distintas, o que confere a cultura o poder de controlar suas próprias criações. É assim que criamos a natureza e contamos a nós mesmos histórias sobre como a natureza nos cria (Wagner, 2010, p.214).

    De acordo com esse argumento, pode-se afirmar que da cultura emanam relações de poder. Aqueles que dela conscientemente se apropriam, seja do todo ou parte do conjunto de suas invenções que são traduzidas nas convenções de usos e costumes, estabelecem o domínio de seu alcance e influência na coletividade. É o caso das tradições inventadas, isto é, um conjunto de práticas sociais (rituais ou simbólicas), normatizadas por regras tácitas que são aceitas por toda coletividade, objetivadas para inculcar determinados valores e normas de comportamento por meio da recorrência a um suposto passado imemorial, heroico, sagrado (HOBSBAWN, 1997). Trata-se de uma tentativa de tornar imutáveis e invariáveis alguns aspectos da estrutura social, de modo a perpetuar as relações de dominação (político, econômico, cultural) entre as classes sociais.

    Fazer da cultura um modo para estabelecer controle social e dominação política e econômica, é um dos aspectos da contemporaneidade. O mundo contemporâneo é caracterizado pela expansão dos mercados, pela globalização do capital financeiro, pela tecnologia da informação, pelo individualismo e hiperconsumo (Lipovetsky; Serroy, 2011). O momento histórico-social é marcado por uma cultura-mundo, isto é, uma realidade que apresenta uma economia mundial ordenada conforme um único modelo de normas, valores e objetivos, uma universalização da cultura mercantil, apoderando-se das esferas da vida social, dos modos de existência da quase totalidade das atividades humanas (Lipovetsky; Serroy, 2011, p.9). Tal conceituação da modernidade faz cair por terra a tradição antropológica do sentido da cultura (conjunto de normas sociais herdadas do passado e da tradição), e também da cultura como algo relacionado ao saber erudito das artes e das letras. Cultura, em sua nova dimensão, é um setor econômico da vida social em plena expansão e altamente lucrativo.

    A industrialização e comercialização da cultura, com seus métodos de reprodução e mecanismos de longo alcance criam necessidades iguais em locais distintos e que são satisfeitas com produtos padronizados, manipulam as necessidades dos indivíduos, lhes entorpecem o discernimento, e fazem com que aceitem suas imposições sem qualquer oposição (Adorno, 2002). A espontaneidade deve ser absorvida, domesticada pelo convencional. A indústria cultural esquematiza, gera tendências, transforma a intencionalidade. Ela se apropria, captura as singularidades e as adequa aos interesses do mercado cultural3. Assim, o mundo inteiro é forçado a passar pelo crivo da indústria cultural (Adorno, 2002, p.10).

    Como exemplo dessa apropriação, observamos as mudanças no uso da corrida, uma prática sociocultural derivada de um mecanismo natural do ser humano, capturada para diversos fins em três momentos distintos do mundo moderno e contemporâneo. Primeiro, na Inglaterra, em fins do século XIX, quando a corrida foi elevada à categoria de esporte como parte indissociável do processo civilizador, apropriada pelas elites inglesas4. Nesse contexto, a corrida revela-se como uma forma de modelação do caráter e disputa atlética entre os jovens da alta sociedade. Depois, nos Estados Unidos, na década de 1970, onde a corrida passou a ser um exercício físico popular destinado ao aumento da resistência orgânica e, como consequência, da possibilidade de viver mais e melhor5. E, por último, o caso do Brasil, com o uso da corrida como espetáculo esportivo e mercadoria, onde ela emerge nas décadas de 1980-1990 e se estabelece definitivamente nesse início de século XXI, apropriada pelas classes médias altas como consumo destinado à saúde, lazer e estética.

    Interessante notar que, em todas as apropriações culturais, a corrida sempre esteve a serviço de interesses socioeconômicos de classes dirigentes, seja para inculcar nos jovens os elementos valorativos de distinção social (Inglaterra), como solução aos problemas relacionados aos gastos públicos com a saúde (Estados Unidos), ou produto mercadológico lucrativo para atender aos anseios narcísicos e hedonistas do exigente hiperconsumidor contemporâneo. Em nenhum dos casos a corrida remonta à sua essência, ou seja, um recurso natural destinado à interação do ser humano com a natureza.

    Percebe-se, assim, que a inserção da corrida no mundo moderno e contemporâneo, foi confirmada pelo interesse de pequenos grupos que vislumbraram na corrida-esporte, corrida-recreação e corrida-consumo um mecanismo efetivo para formação da personalidade, controle social e interesse de mercado. No entanto, pode-se observar que a popularização da corrida não provém, unicamente, da imposição de costumes ou normatizações econômicas ‘de cima para baixo’. Aqueles reduzidos grupos de abnegados corredores que percorriam as ruas de seus bairros e praças públicas, em uma época em que correr era esporte de excêntricos e uma forma de masoquismo e depois como uma doutrina de curandeiros marginalizados e um modismo,6 alvo de críticas e chacotas entre amigos e familiares, muito contribuíram para que a corrida se estabelecesse como uma ‘inovação cultural’ e, portanto, como elemento integrante da vida socioeconômica e cultural contemporânea.

    As concepções contemporâneas da corrida, a sua culturalização, entretanto, provocam o distanciamento do espontâneo, pois a ciência e a tecnologia, ao explicarem em pormenores seus movimentos extrínsecos e intrínsecos, fazem dela uma atividade de especialistas, que submete todos os praticantes aos conhecimentos e usos “legítimos”, aceitos socioculturalmente. Talvez, chegará o tempo em que não se poderá mais correr pelo simples correr. Afinal, correr é natural; mas correr de tênis, GPS, Ipod e com orientação técnica profissional especializada – pagar para correr – é cultural e faz parte da esfera da educação.

Corrida e educação

    Em todos os dias da nossa vida aprendemos ou ensinamos algo. Aprender e ensinar são atributos da educação. A educação, portanto, está em todos os lugares e atinge, inapelavelmente, a todos. Ela se difunde por toda a comunidade, se expande na sociedade. Ela alcança a todos, e não se detém com as distinções de classe, de crenças, religião, prestígio social ou poder político e econômico. A educação é algo peculiar, pois diz respeito a diferentes situações, lugares, épocas; pode ser liberdade ou imposição, ser explícita ou estar nas entrelinhas. A educação, enfim, representa um aspecto do modo de vida de comunidades e sociedades, uma forma de produzir e praticar, de ensinar e aprender, de reproduzir, inculcar ou ocultar as invenções de suas culturas - uma necessidade de ordenar a existência e de torná-la inteligível, de compartilhar experiências de vida, de controlar e domesticar o humano (Brandão, 2007).

    Quando se ensina ou se aprende a correr conforme determinados padrões, isso diz respeito à transmissão e aquisição de significados culturais que tanto podem se relacionar à dominação ou emancipação do indivíduo. As práticas corporais, como a corrida, expressam a cultura ao qual se inserem7, seus modos de fazer são ensinados e reproduzidos conforme as concepções socioculturais de um determinado contexto. A transmissão e manutenção dessa herança cultural se fazem pela educação (Aguiar, 2010). Tal processo educativo pressupõe que a realidade sociocultural tenha sido criada e conceituada por sujeitos pensantes, e disso emanam reflexões que servem para construir e reconstruir continuamente a própria realidade. A corrida, portanto, ao fazer parte do processo de transmissão / aquisição de conhecimentos de um determinado contexto sociocultural, se põe a serviço da sociedade ou comunidade ao qual se insere como instrumento de transformação de sujeitos e mundos.

    Relacionar a corrida com a educação permite possibilidades para a transmissão e aquisição de saberes ancestrais inerentes ao corpo, à natureza, à cultura. Correr pelas ruas da cidade ou em trilhas nas matas requer, antes de tudo, disposição física e mental para enfrentar os desafios encontrados nos percursos. Trata-se de ampliar os limites do corpo, significa ir mais longe (...) uma possibilidade de buscar novos conhecimentos, fazer descobertas (...) uma maneira de atentar para o mundo (...) buscando (...) novas explicações para a dureza do cotidiano e, quem sabe, resposta a tantas indagações que rodeiam as mentes (Aguiar, 2010, p. 41). De fato, ao correr, os problemas cotidianos são encarados de modo mais simples, menos preocupantes, e muitos deles são solucionados enquanto se corre. A corrida, no contexto da educação como apreensão da cultura, é uma possibilidade de conhecer e ser reconhecido no mundo, de estabelecer convivências, de descobrir a solidariedade, de retomar a natureza primeira daquilo que somos.

    O hábito de correr proporciona mudanças radicais, sejam físicas, psicológicas ou espirituais nos indivíduos. A relação da educação com a corrida, portanto, deve contemplar os aspectos mencionados. A corrida não deve ser tomada apenas como procedimento médico, lúdico-esportivo ou uma ciência arrolada em estatísticas; ela é, antes de tudo, uma atitude perante a vida. Praticar a corrida em parques, bosques, estradas e trilhas na mata proporciona novas percepções da natureza e, mesmo em meio ao mundo tenso e agitado da cidade uma nova consciência do “eu” e sua relação com o entorno aflora. Correr é vida, é uma compulsão interna que faz viver permanentemente no presente, pois o passado já se incorpora ao corredor. Trata-se de uma redescoberta em direção àquilo que se é, aquilo que sempre se foi e será.8

    Para que a corrida se constitua como prática corporal significativa – uma atividade simbólica eficaz – ela deve ser considerada em um contexto educacional lúdico e sem objetivos prescritos, onde ensino e aprendizagem devem envolver tanto quem ensina quanto quem aprende num processo intuitivo de novas descobertas, como se o mestre e o aprendiz percorressem uma mesma trilha quase invisível (AGUIAR, 1994, p. 64). Deve conduzir ambos, portanto, à redescoberta da nossa necessidade de interação com a natureza, à nossa ancestralidade.

    Nesse sentido, a educação deve ser entendida como um acontecimento que não segue necessariamente um único modelo e uma única forma (AGUIAR, 1994, p. 62), mas que proporciona, espontaneamente, a compreensão das interações necessárias entre o humano, a natureza e a cultura. E a corrida, como instrumento de uma educação capaz de superar as imposições do capital,9 será capaz de proporcionar experiências de vida significativas para a redescoberta da nossa ancestralidade, uma concepção de mundo que considere o equilíbrio entre natureza e cultura, tão caro àqueles que viveram em um passado imemorial e do qual ascendemos.

Considerações finais

    Os saberes e práticas humanas, que se manifestam no cotidiano histórico-social, são elementos forjados em contextos culturais que tendem à sua convencionalização. A culturalização da corrida, ou seja, o uso que dela se faz de acordo com épocas e contextos socioculturais distintos, pertence ao processo criativo característico do ser humano que, ao indagar a natureza, busca novas condições de existência material, renova sempre as suas possibilidades de viver.

    A corrida, na contemporaneidade, apreendida pelas modernas concepções da cultura, tende a convencionalizar-se como um produto a mais na economia de mercado capitalista. Entretanto, para que a corrida não se torne mera mercadoria, necessário se faz buscar a sua relação com uma educação que proporcione uma redescoberta da natureza primeira daquilo que somos.

    Nesse sentido, o entrelaçamento entre corrida, cultura e educação em uma perspectiva emancipatória aos imperativos da indústria cultural e do capitalismo, que faça do ato de correr um ato espontâneo, será capaz de provocar a retomada da nossa ancestralidade, pois a corrida é, antes de tudo, uma atitude perante a vida, a incorporação do passado na existência presente e uma possibilidade permanente de redescoberta de nossa existência imemorial.

Notas

  1. MACHADO, Mário. Os fantásticos corredores chasqui. Spiridon, nº152, jan/fev 2004, p.33-35.

  2. NIMUENDAJÚ, Curt. A corrida de toras dos timbiras. Mana 7(2), 151-194, 2001.

  3. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.5. São Paulo: ED.34, 1997.

  4. PROST, Antoine. Fronteiras e espaço do privado. In: ___; VINCENT, Gérard (orgs.). História da vida privada, 5. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

  5. COOPER, Kenneth H. Correndo sem medo. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985.

  6. SONNTAG, Werner. A alegria de correr: “cooper –jooging”. São Paulo: Ediouro, 1982.

  7. MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: ____.Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosaic Nayf, 2003.

  8. FERNANDES, José Luís. Atletismo: corridas. São Paulo: EPU, 1979.

  9. MÉSZÁROS, Istvan. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.

Referências bibliográficas

  • ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

  • AGUIAR, Carmen Maria. Educação e Saberes: correlação com a natureza e a cultura. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010.

  • ______. Educação, cultura e criança. Campinas: Papirus, 1994.

  • BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação? São Paulo: Brasiliense, 2007.

  • HOBSBAWN, Eric. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

  • LIPOVETSKY, Gilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

  • SANTOS, José Luiz dos. O que é cultura? 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987.

  • WAGNER, Roy. A invenção da Cultura. São Paulo: Cosaic Naify, 2010.

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