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A relação entre os problemas, os piores momentos, as crises 

e os momentos de ruptura profissional sentidos no decurso 

da carreira de professores de Educação Física escolar

La relación entre los problemas, los peores momentos, las crisis y los momentos de ruptura 

profesional en el devenir de la carrera de los profesores de Educación Física escolar

 

*Especialista em Ciência do Movimento Humano (UNICRUZ)

Especialista em Educação Física Escolar (UFSM)

Mestrando em Ciências do Movimento Humano (UDESC)

Professor Pesquisador Associado do Grupo

de Estudos e Pesquisas em Educação Física (UFSM)

*Doutor em Educação (UNICAMP/UFSM)

Doutor em Ciência do Movimento Humano (UFSM)

Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (UFSM)

Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Física (UFSM)

Rodrigo de Rosso Krug*

rodkrug@bol.com.br

Hugo Norberto Krug**

hnkrug@bol.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este estudo qualitativo auto(biográfico) objetivou analisar a relação entre problemas, piores momentos, crises e momentos de ruptura profissional sentidos no decurso da carreira por dez professoras de Educação Física Escolar de Santa Maria. Concluiu-se: 1) Os ‘problemas’ relacionam-se à diversos fatores, principalmente às ‘péssimas condições de trabalho’; 2) Os ‘piores momentos’ relacionam-se à ‘entrada na carreira’, aos ‘alunos difíceis’ e às ‘péssimas condições de trabalho’; 3) As ‘crises’ relacionam-se à diversos fatores, relacionando-se aos ‘circunstancialismos das professoras’ em ‘épocas variadas’ da carreira; 4) Os ‘momentos de ruptura profissional’ relacionam-se à diversos fatores, predominantemente às ‘péssimas condições de trabalho’; 5) Os problemas, piores momentos, crises e momentos de ruptura profissional relacionam-se ‘através das péssimas condições de trabalho’ e ‘alunos difíceis’.

          Unitermos: Educação Física Escolar. Carreira docente. Problemas. Piores momentos. Ruptura profissional.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 160, Septiembre de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    De acordo com Fontoura (1992) existem várias maneiras possíveis de considerar a vida profissional dos professores e a perspectiva clássica da ‘carreira’ é uma delas.

    Tardif (2003) compreende ‘carreira’ docente como uma prática e rotina institucionalizada no campo do trabalho, identificada com o processo de socialização profissional.

    Já Hüberman (1992) destaca que o conceito ‘carreira’ apresenta vantagens diversas. Em primeiro lugar, permite comparar pessoas no exercício de diferentes profissões. Depois, é mais localizado, mais restrito que ao estudo da vida de uma série de indivíduos. Por outro lado, comporta uma abordagem psicológica e sociológica. Trata-se de estudar o percurso de uma pessoa numa organização e de compreender como as características dessa pessoa exercem influência sobre a organização e são, ao mesmo tempo, influenciada por ela.

    Neste direcionamento, Gonçalves (1992) aponta que os estudos sobre a ‘carreira’ docente inserem-se no quadro mais vasto das teorizações sobre os ciclos de vida humana, em geral, e do adulto em particular. O autor salienta que estes estudos têm procurado desvendar o universo profissional dos professores, por referência a um contexto social, em que se entrelaçam as vertentes pessoais e interpessoal.

    Ainda Gonçalves (1992) destaca que a ‘carreira’ dos professores desenvolvem-se por referência a duas dimensões complementares: 1) A individual – centrada na natureza do seu eu, construído à nível consciente e inconsciente; e, 2) A grupal ou coletiva – construída sobre as representações do campo escolar, influenciando e determinando aquelas.

    Entretanto, Hüberman (1992) afirma que o desenvolvimento de uma ‘carreira’ é um processo e não uma série de acontecimentos. Ressalta que para alguns, este processo pode ser linear, mas, para outros, há patamares, regressões, becos sem saída, momentos de arranque e descontinuidades.

    Assim, nesta perspectiva de ‘carreira’ como um processo, alguns estudos (GONçALVES, 1992; MOITA, 1992) verificaram que existem fatos e acontecimentos da atividade docente, que se tornaram marcantes e que são e serão lembrados por muito tempo, como boas e más lembranças. Conforme Holly (1992) há muitos fatos e acontecimentos que influenciam o modo de pensar, de sentir e de atuar dos professores ao longo de suas ‘carreiras’: o que são como pessoas, os seus diferentes contextos biológicos e experenciais, isto é, as suas histórias de vida e os contextos sociais em que crescem, aprendem e ensinam.

    Desta forma, para se compreender e descrever todas estas variadas influências, os estudos sobre a ‘carreira’ docente tem se utilizado de narrativas históricas do tipo (auto) biográfica (GONçALVES, 1992; FONTOURA, 1992).

    Segundo Goodson (1992) ao ouvir a voz do professor, quando este fala de seu trabalho, ensina-nos que o (auto) biográfico, isto é, a vida, é de grande interesse para compreender o seu ensino.

    Assim, considerando a ‘carreira’ como um percurso, simultaneamente, de desenvolvimento e de formação, este estudo, centrou-se na percepção do vivido profissional de professores. E nesta direção, centralizamos o nosso interesse nos professores de Educação Física em particular, valorizando as peculiaridades diferenciadas destes profissionais na escola. Desta maneira, fundamentados neste contexto, surgiu a questão problemática norteadora desta investigação: Qual é a relação entre os problemas, os piores momentos, as crises e os momentos de ruptura profissional sentidos no decurso da carreira de professores de Educação Física Escolar da cidade de Santa Maria (RS)?

    Neste sentido, o objetivo geral deste estudo foi analisar a relação entre os problemas, os piores momentos, as crises e os momentos de ruptura profissional sentidos no decurso da carreira de professores de Educação Física Escolar da cidade de Santa Maria (RS).

    Para o atingimento do objetivo geral este foi desmembrado nos seguintes objetivos específicos: 1) Identificar os problemas sentidos pelos professores no decurso da carreira; 2) Identificar os piores momentos sentidos pelos professores no decurso da carreira; 3) Identificar as crises sentidas pelos professores no decurso da carreira; 4) Identificar os momentos de ruptura profissional sentidos pelos professores no decurso da carreira; 5) Identificar a relação entre os problemas, os piores momentos, as crises e os momentos de ruptura profissional sentidos pelos professores no decurso da carreira.

    Estes objetivos específicos foram elaborados fundamentados e adaptados do estudo de Gonçalves (1992) intitulado “A carreira das professoras do ensino primário” o qual elencou como temas, traços ou momentos significativos caracterizadores da carreira os seguintes: melhores anos, piores anos, problemas sentidos, momentos de crise, momentos de ruptura, idade crítica, importância da formação, motivação e etapas da carreira.

    A argumentação sobre a importância da realização deste estudo está baseada em Goodson (1992) que afirma que os dados sobre as vidas dos professores são um fator importante para os estudos de investigação educacional. A razão principal para mostrar esta importância está no fato de que os professores sempre ao falarem sobre os seus problemas educacionais trazem à tona dados sobre as suas próprias vidas. E isto, pode ser tomado como uma prova razoável de que os próprios professores consideram estes problemas pessoais da maior relevância, pois chegam, quase sempre, a influenciar a sua atividade docente.

Metodologia

    Para a realização deste estudo optamos pela abordagem biográfica que, segundo Moita (1992), é uma expressão genérica ligada a histórias de vida.

    Para Nóvoa (1992a; 1992b) a utilização de abordagens biográficas no campo educacional vem crescendo consideravelmente nos últimos anos, como resultado de uma insatisfação com o tipo de saber produzido nas investigações das ciências sociais.

    De acordo com Josso (apud MOITA, 1992) na abordagem biográfica existem potencialidades de diálogo entre o individual e o sócio-cultural. Esse diálogo introduz necessariamente uma reflexão sobre a articulação entre essas duas realidades e a tomada de consciência de co-habitações de significados múltiplos num mesmo vivido.

    Moita (1992) destaca que essa abordagem permite compreender de um modo global e dinâmico as interações que vão acontecendo entre as diversas dimensões de uma vida. Só uma história de vida permite captar o modo como cada pessoa, permanecendo ela própria, se transforma. Só uma história de vida põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma a sua identidade, num diálogo com os seus contextos. Numa história de vida podem identificar-se as continuidades e as rupturas, as coincidências no tempo e no espaço, as transferências de preocupações e de interesses, os quadros de referências presentes nos vários espaços do cotidiano.

    No caso deste estudo nos utilizamos da pesquisa (auto) biográfica que, segundo Abrahão (2004, p.202) “é uma forma de história auto-referente, portanto plena de significado, em que o sujeito se desvela para si, e se desvela para os demais”.

    As (auto) biografias são construídas por narrativas onde se desvelam trajetórias de vida com a qualidade de possibilitar a auto-compreensão, o conhecimento de si, em que as pessoas estão em constante processo de auto-conhecimento (ABRAHÃO, 2004).

    Na visão de Cunha (1997) as narrativas têm sido utilizadas na pesquisa qualitativa como instrumento de construção de dados e também são consideradas como procedimento de formação, porque ao mesmo tempo em que o individuo organiza as suas idéias para fazer determinado relato, quer por escrito ou oral, reconstrói suas experiências para a re-orientação do presente. Dessa maneira, as narrativas são utilizadas tanto como procedimento de pesquisa quanto de formação, pois permitem a produção de novos conhecimentos.

    Em nosso estudo utilizaremos a narrativa oral como instrumento metodológico. Para tal, utilizamos temas relacionados aos objetivos específicos do estudo. Após a gravação e transcrição das narrativas, elas foram transcritas e analisadas à identificação dos significados (OLIVEIRA, 2006; ANDRé, 2005; JOSSO, 2002; MOLINA, 1999).

    Para tanto, participaram deste estudo dez (10) professoras de Educação Física Escolar da cidade de Santa Maria (RS). A participação das professoras se deu por adesão espontânea, após recebimento de convite dos pesquisadores. As professoras foram identificadas por ‘números’ para preservar suas identidades. Ao justificar a participação somente de professoras citamos o estudo de Conceição et al. (2004) que comprovou que em Santa Maria (RS) existe a superioridade do número de docentes de Educação Física do sexo feminino (mais de 80%) atuantes nesta área, tanto no magistério público estadual quanto no municipal.

    Convém esclarecer que decidimos por escolher somente professoras para participarem do estudo porque as mulheres são a grande maioria do professorado de uma forma geral, bem como também especificamente na Educação Física. Também decidimos ter professoras em nosso estudo representantes de cinco agrupamentos conforme o tempo de experiência docente. São eles: 1º) Até 5 anos (Professoras 5 e 9); 2º) De 6 até 10 anos (Professoras 2 e 4); 3º) De 11 até 15 anos (Professoras 3 e 8); 4º) De 16 até 20 anos (Professoras 7 e 10); e, 5º) De 21 até 25 anos (Professoras 1 e 6).

Análise das informações

    O quadro de análise interpretativo das narrativas orais das professoras sobre as suas histórias de vida foi elaborado de acordo com os objetivos desta pesquisa. E, neste sentido, procuramos, de acordo com Ferraroti (apud MOITA, 1992, p.117): “ordenar, compreender sem desnaturar, sem violentar, sem sobre-impor um esquema pré-estabelecido”.

    Desta forma, considerando os objetivos do estudo, as análises das narrativas de vida foram feitas a partir de quatro (4) grandes eixos: os problemas; os piores momentos; as crises; e, os momentos de ruptura.

Os problemas sentidos no decurso da carreira

    Para Gonçalves (1992) a função do professor subentende-se ensinar, isto é, transmitir conhecimentos específicos e diversificados aos alunos, organizar o trabalho em aula, manter disciplina, estabelecer relações com as pessoas, ter um papel de educador junto aos alunos, e, ainda, promover a animação de atividades, o que implica desgaste, fadiga, eventualmente problemas, e, sobretudo, capacidade de integração.

    Vejamos pelas falas das professoras sobre os problemas que surgiram ao longo de suas carreiras: “A falta de espaço físico é um problema grande na maioria das escolas, os locais não são adequados, são próximos as salas de aulas onde não podemos fazer barulho” (Professora 1); “Considero um grande problema a falta de recursos físicos e materiais na escola. A indisciplina de alguns alunos também é um problema” (Professora 2); “Atualmente o tempo para buscar e trocar experiências tornou-se quase imperceptível” (Professora 3); “Os problemas mais comuns enfrentados são referentes aos alunos, como falta de acompanhamento da família, desinteresse, falta de limites. Também a falta de materiais e local adequado para trabalhar nas aulas de Educação Física” (Professora 4); “Um dos maiores problemas é a falta de espaço físico. Este descaso reflete como a escola, a comunidade, os colegas vêem nossa área. Não temos local e materiais adequados o que inviabiliza/mina cotidianamente nossa vida profissional” (Professora 5); “Na nossa disciplina acredito, são comuns à maioria, são eles: em 1o lugar sistema educacional, espaço físico, material, horários, etc.” (Professora 6); “Desestrutura familiar, refletindo no comportamento do aluno. Dificuldade de fazer cursos ou aperfeiçoamento nos dias que tem aula. Falta de material, espaço físico, número muito grande de alunos na mesma turma, dias de chuva. Implantação de um novo método perante os alunos” (Professora 7); “A Educação Física não é vista como uma disciplina importante para outros colegas. Ela serve como tapa-furo quando um professor falta, a Educação Física pode assumir porque não tem planejamento prévio. No horário regular, causa agitação dos alunos, atrapalhando outras aulas. Inclusive, escutei em uma reunião que a escola é lugar de conteúdo e não deveria dar espaço para outras manifestações (projetos de teatro, dança). Então o professor de Educação Física tem um grande desafio que é romper com a visão que em muitos momentos prevalece da disciplina, que parece não ter finalidades educacionais claras. Assim, os professores precisam buscar práticas que valorizem a Educação Física” (Professor 8); “Meus maiores problemas foram, no início, a total ignorância na parte burocrática do sistema; trabalhar no tempo em climas terríveis; a ausência de encontros com colegas da área e da mesma escola, assim como boa vontade” (Professora 9); e, “Meu maior problema é a falta de local e de material para as aulas de Educação Física” (Professora 10).

    Pela análise das falas constatamos que os problemas sentidos pelas professoras no decurso de suas carreiras são relacionados a diversos fatores (causas), entretanto, existe a predominância de problemas causados pelas ‘condições de trabalho’, caracterizada pela falta de condições em termos físicos e materiais para o desenvolvimento das aulas de Educação Física (Professoras 1; 2; 4; 5; 6; 7; 9 e 10). Também podemos constatar outros problemas, tais como: ‘Organização do ensino’, caracterizado pelas dificuldades em organizar o processo de ensino-aprendizagem, pelo número excessivo de alunos em aula, pelo desajustamento dos programas, pela atitude de passividade e/ou de não colaboração dos colegas, pela inexistência de medidas adequadas ao controle do insucesso escolar (Professoras 3; 7; 8 e 9); ‘Alunos difíceis’, caracterizados pelos alunos indisciplinados (Professoras 2 e 4); ‘As condições culturais e socioeconômicas dos alunos e as condições de aprendizagem’, caracterizadas na incidência da falta de interesse e/ou concentração dos alunos e no afastamento do acompanhamento da família (Professora 4); e, ‘Imagem do professor’, caracterizado pela não valorização do professor (Professora 8).

    Estas causas dos problemas encontrados pelas professoras estão em concordância com as citadas por Gonçalves (1992) que são as seguintes: 1) A localização distante da escola; 2) As condições de trabalho; 3) Os alunos difíceis; 4) As condições culturais e socioeconômicas dos alunos e as condições de aprendizagem; 5) A organização do ensino; 6) Desadequação da escola aos tempos atuais; 7) A formação; e, 8) A imagem do professor.

    Também destacamos que, na verdade, as falas das professoras remetem-nos para a constatação de problemas relacionados a fatores externos às suas ações pedagógicas, fato este também salientado por Giesta (1996) em seu estudo intitulado “Tomada de decisões pedagógicas no cotidiano escolar” ao observar que os professores apontam como problemas sentidos, em sua grande maioria, fatores externos à sua ação pedagógica. Segundo a mesma autora, isto gera insatisfação e falta de entusiasmo pelo trabalho, contribuindo no aprofundamento de uma crise de identidade profissional.

Os piores momentos sentidos no decurso da carreira

    Para Fuller e Bown (apud Gonçalves, 1992) os piores anos da carreira ocorrem no início da vida profissional, ou quando o fim desta começa a se perspectivar.

    Realmente, no início da carreira foi quando ocorreram os piores momentos para seis (6) professoras (1; 3; 5; 8; 9 e 10). E isto pode ser constatado nas falas das professoras a seguir: “Quando me deparei no primeiro ano depois de graduada com a imposição de treinar uma equipe de basquetebol de uma escola, a qual tinha sido campeã municipal no ano anterior. Foi tão difícil, mas consegui sobreviver. Busquei livros, ex-professores, etc.” (Professora 1); “No primeiro ano de docência trabalhava em uma escola que tinha somente duas bolas furadas e um espaço físico inadequado para as aulas e havia pouca valorização das aulas de Educação Física pela comunidade escolar. No segundo e terceiro anos foi à luta pela melhoria salarial sem grandes conquistas. No quarto ano foi o afastamento – transferência - de alguns colegas de escola devido à intransigência de direções” (Professora 3); “O pior momento foi uma briga entre alunos (...) no inicio da carreira. Tinha uma turma difícil de futsal masculino e um aluno desta turma agrediu verbal e fisicamente outro aluno que teria aula na seqüência. Foi ruim porque me senti totalmente vulnerável, desprotegida e sem apoio” (Professora 5); “O pior momento de minha carreira foi ao ingressar na rede municipal, me faltavam conhecimentos para trabalhar com os alunos, me preocupei se era a pessoa adequada para a função. Também o não entendimento inicial da minha proposta de trabalho na rede particular criou algumas manifestações de pais (passei a incluir aulas teóricas, as quais os alunos-atletas não estavam interessados). Também nessa escola, a interferência dos pais dos pequenos (séries iniciais) nas aulas (...)” (Professora 8); “O pior momento foi iniciar a trabalhar longe de casa, em outro município com sobrecarga de trabalho e tomar consciência de como o professor de Educação Física é desvalorizado dentro das escolas” (Professora 9); e, “Sem dúvida nenhuma foi o primeiro ano de escola (...). Acho que isto foi resultado da péssima formação na graduação (...)” (Professora 10).

    De fato, as falas destas professoras não diferem, no essencial, do destacado por Gonçalves (1992) de que os primeiros anos de serviço são aqueles evocados pelos professores como onde ocorrem os piores momentos da carreira.

    No entanto, em nosso estudo, estes piores momentos ocorridos nos primeiros anos de docência foram caracterizados também pela ‘deficiência de formação’ (Professoras 1; 8 e 10), pelas ‘deficientes condições de trabalho’ (Professora 3), pelos ‘alunos difíceis’ (Professora 5) e pela localização distante da escola’ (Professora 9).

    Já outras duas (2) professoras (6 e 7) manifestaram em suas falas que os piores momentos de suas carreiras estão ligados às diversas deficiências das ‘condições de trabalho’. As falas foram: “São todos aqueles momentos que não consigo realizar meus propósitos em função do ranço do sistema” (Professora 6); e, “Os piores momentos são aqueles relacionados com a desvalorização financeira o que acarreta um desânimo; as turmas mistas com alunos de diferença enorme de idade e interesses completamente diferentes; a falta de respeito por parte dos alunos; a falta de apoio da direção, supervisão e orientação da escola; a ausência de autoridade dos pais sobre os filhos refletindo no seu comportamento” (Professora 7).

    Entretanto, outras duas (2) professoras (2 e 4) afirmaram que ainda não tiveram piores momentos em suas carreiras. Eis as falas das professoras: “Não houveram piores momentos” (Professora 2); e, “Como professora de Educação Física não houveram piores momentos” (Professora 4).

    Desta forma, pelas falas de todas as professoras podemos destacar que, sem dúvida nenhuma, os piores momentos de suas carreiras, se estabelecem, principalmente, na entrada na profissão na escola, caracterizado no estágio denominado por Hüberman (1992) de “choque com a realidade”, bem como na interação com os alunos difíceis e nas péssimas condições de trabalho, o que provoca um fracasso pedagógico.

    Estas conclusões estão de acordo com Gonçalves (1992) que destaca que as razões que determinam à ocorrência dos piores momentos da carreira do professor são fundamentalmente de sete ordens: 1) A localização distante da escola; 2) As condições de trabalho; 3) Os primeiros anos de serviço; 4) Os alunos difíceis; 5) O meio sócio-econômico de origem dos alunos; 6) A vida particular do professor; e, 7) A formação do professor.

As crises sentidas no decurso da carreira

    De acordo com Gonçalves (1992) o desenvolvimento profissional é um processo que, como todos os processos de crescimento, se faz de forma não-linear, em que os momentos de crises surgem como necessários, antecedendo e preparando os momentos de progresso.

    Ainda Gonçalves (1992) destaca que a grande maioria dos professores admite ter passado por períodos de crises. E isto pode ser constatado nas falas a seguir: “Quando me dei conta que tinha que transferir a formação tecnicista que recebi para uma prática mais humanista já que lidamos com seres humanos e não com robôs. (...) foi um momento para parar e pensar” (Professora 1); “As crises são várias, pois estamos num trabalho que envolve relações entre as pessoas. Mas a mais delicada acontece no momento de trocas de direções, secretários de educação, prefeitura (...)” (Professora 3); “As principais crises são referentes à desvalorização profissional, muitas vezes o desencanto da comunidade escolar, a falta de apoio da sociedade e principalmente o baixo salário” (Professora 4); “Penso que as crises estão presentes, em nós, em nossos colegas, na escola e seus papéis. Sempre entro em crise quando observo colegas mais experientes quando mostram cansaço, desmotivação, falta de interesse” (Professora 5); “No início da minha vida profissional tive uma dificuldade muito grande, me cobrava muito. Tinha que ser perfeita. Tinha uma certa fobia por diretor de escola e isso resultava num sofrimento enorme com pouco resultado profissional positivo. A partir de então, procurei ajuda terapêutica e consegui resolver essa questão. Hoje, após muitos anos dou minhas aulas em primeiro lugar para minha realização, em conseqüência, o resultado profissional é positivo” (Professora 6); “Tive medo e insegurança no início da carreira. Também fico em crise ao saber que os alunos passaram por minha mão e não mudaram de atitudes” (Professora 7); “Quando entrei na rede estadual, fui para uma escola em uma região pobre. Os alunos tinham fome, sofriam abusos em casa e não tinham perspectiva de vida. Me questionei sobre a validade da escola para uma sociedade tão injusta. Ela colabora para a emancipação ou legitima as diferenças. Porque tão poucos alunos conseguem através da escola sair da pobreza? Em outro momento, questionei a questão salarial. Será que a profissão que eu escolhi iria dar conta das minhas necessidades financeiras e eu teria uma vida adequada?” (Professora 8); “Tive várias crises: a auto-avaliação muito severa; adaptações inadequadas; a intolerância entre direção e professor; quando busquei colegas para reunirmos em função do ensino da Educação Física na escola, o que envolvia mais trabalho, qual a minha decepção quando nem resposta tive” (Professora 9); e, “Eu estou sempre em crise (...)” (Professora 10).

    Entretanto, Gonçalves (1992) coloca que existem professores que declaram nunca ter passado por crises, e justificam tal fato pelo gosto que sentem pela profissão.

    Isto, também, podemos constatar na fala de uma professora: “Não houveram crises” (Professora 2).

    Pela análise das falas das professoras podemos constatar que crises podem ocorrer em épocas ou momentos variados da carreira. Conforme Gonçalves (1992) as crises revelam um determinado cunho de intemporalidade, pois podem ocorrer em qualquer momento da carreira docente, fruto, eventualmente, de fatores ou circunstancialismos específicos de cada professor, isto é, esses períodos situam-se em épocas ou momentos variáveis da carreira.

Os momentos de ruptura profissional sentidos no decurso da carreira

    A ruptura profissional é entendida como o corte com a profissão, traduzido no seu abandono, ou, ainda, no desejo veemente de tal se realizar, mesmo que não concretizado, por razões diversas, designadamente a falta de uma alternativa profissional (Gonçalves, 1992).

    Sobre ruptura profissional as falas de algumas professoras foram as seguintes: “Nunca tive vontade de abandonar minha profissão. Gosto muito do que faço” (Professora 1); “Nunca pensei em abandonar minha profissão, porque gosto do que faço” (Professora 2); “Não tive nenhum momento em minha carreira em que desejasse abandonar a profissão” (Professora 4); “Nunca senti esse desejo de abandonar a profissão. Quanto mais tempo tenho na minha profissão, mais gosto, mais me identifico. O universo escolar é minha identidade” (Professora 6); “Nunca ocorreu de desejar abandonar a profissão” (Professora 9); e, “Ainda não tive, em nenhum momento, vontade de abandonar a profissão” (Professora 10).

    Por estas falas podemos verificar que seis (6) professoras (1; 2; 4; 6; 9 e 10) recusaram categoricamente a idéia de abandono da profissão e alegaram que sempre gostaram e se dedicaram a Educação Física. Gonçalves (1992) destaca que existem muitos professores que recusam a idéia de abandono da profissão e, para tal, invocando o gosto pelo ensino e a vocação.

    Outras quatro (4) professoras (3; 5; 7 e 8) tiveram as seguintes manifestações: “Inicialmente, sim. O inicio foi muito difícil, pois estava saindo de uma instituição de ensino, a UFSM, com toda a riqueza de espaço e materiais e entrando na escola com total falta de recursos. O impacto de entrar na instituição escola, com outro funcionamento foi marcante, pois durante os três anos de UFSM eu tive apenas um contato com a escola, no Estágio” (Professora 3); “Tive e tenho, ainda hoje, estes momentos de ruptura profissional. Eles se devem basicamente ao fato de me sentir sem perspectiva, por não ver ou perceber mudanças na direção e compreensão da educação no âmbito escolar” (Professora 5); “Vários foram os momentos em que pensei e penso em abandonar a profissão: as escolas de difícil acesso; passar muito tempo no sol, frio, umidade, esta exposição ao tempo; falta de recursos financeiros, materiais específicos para as atividades; local apropriado para a Educação Física; o contra-cheque no final do mês; o difícil acesso a mestrado, bolsa de estudos” (Professora 7); e, “Em um espaço de tempo que tive apenas 20 horas de trabalho, o salário era pouco. Me questionei se não deveria buscar uma área com melhores possibilidades. Inclusive fiz cursinho e vestibular, mas não fui aprovada. Também tive uma certa pressão de pessoas conhecidas (não da família) que diziam: uma moça tão inteligente vai ser professora? Porque não procura outra profissão?” (Professora 8).

    Nestas falas podemos constatar que também existem professoras que admitem terem pensado em abandonar a docência. Segundo Gonçalves (1992) a maioria dos professores admitem a hipótese de abandonar o ensino, podendo ser este fato sintomático de um certo mal-estar profissional. Realmente este fato ocorreu, pois vários fatores para a ruptura profissional foram citados pelas professoras: 1) ‘Condições de trabalho’, caracterizada pela falta de material e locais para o desenvolvimento das aulas (Professoras 3 e 7); 2) ‘A localização distante da escola’, caracterizada pela dificuldade de acesso (Professora 7); 3) ‘A atitude profissional’, caracterizada pela decisão de trabalhar em uma profissão com baixo salário ou pela falta de reconhecimento profissional (Professoras 5; 7 e 8); 4) ‘A formação’, caracterizada pelas deficiências de preparação para enfrentar a realidade escolar (Professora 3). Desta forma, estes achados estão em concordância com Gonçalves (1992) que destaca que os fatores de ruptura profissional são os seguintes: 1) A atitude profissional – determinada, sobretudo, por ‘cansaço’ e ‘saturação’ resultante de uma profissão considerada ‘desgastante’. Também sendo colocada a ‘não realização profissional’; 2) As condições de trabalho – em que a ‘aspiração a um melhor vencimento’ traduz um desejo de revalorização profissional, econômica e social, bem como as deficiências de estrutura para desenvolver a docência; 3) A localização distante da escola – em que o ‘afastamento da família’ e/ou da ‘residência’ surge como problemático; 4) A vida particular – por razões que se prendem a ‘tratar dos filhos pequenos’ e o ‘acompanhar o marido’ por motivos profissionais; e, 5) A formação – cuja necessidade não satisfeita se traduz em falar de ruptura da carreira.

    Kiriacon (apud GONÇALVES, 1992) salienta que os momentos de ruptura traduzem, geralmente, o agudizar de “sentimentos de desconforto” profissional, tais como tensão, frustração, ansiedade, raiva e depressão, que, prolongando-se no tempo, podem transformar-se numa autêntica síndrome, caracterizada pela exaustão física, emocional e atitudinal.

Conclusão

    Este estudo sobre a ‘carreira’ docente na Educação Física Escolar permitiu-nos, a partir da análise das dez (10) narrativas orais de vida, definir ‘alguns traços caracterizadores’ sobre os modos singulares com que cada professora percebeu os diversos momentos de seu percurso profissional abordados.

    Entretanto, salientamos que cada história de vida, cada percurso, cada processo de formação é único. Tentar elaborar conclusões generalizáveis seria um absurdo, pois, segundo Dominicé (apud MOITA, 1992, p.117): “Existe uma singularidade em cada história de vida, que não permite que se considere como verdadeira toda a generalização que não tenha essa singularidade”.

    Assim, considerando as singularidades das histórias de vida das professoras estudadas conseguimos definir alguns traços caracterizadores similares em suas carreiras docentes sobre os diversos momentos abordados. São eles: 1) Os ‘problemas’ sentidos pelas professoras no decurso da carreira estão relacionados a diversos fatores, entretanto, existe a predominância de problemas causados pelas ‘péssimas condições de trabalho’; 2) Os ‘piores momentos’ sentidos pelas professoras no decurso da carreira estão relacionados com a ‘entrada na carreira’, caracterizada pelo choque com a realidade escolar, bem como na ‘interação com os alunos difíceis’ e nas ‘péssimas condições de trabalho’, o que provoca um fracasso pedagógico; 3) As ‘crises’ sentidas pelas professoras no decurso da carreira estão relacionadas à diversos fatores, mas são fruto de ‘circunstancialismos específicos de cada professora’ e em ‘épocas ou momentos variados’ da carreira; 4) Os ‘momentos de ruptura profissional’ sentidos pelas professoras no decurso da carreira estão relacionados à diversos fatores, entretanto, existe a predominância da influência das ‘péssimas condições de trabalho’; e, 5) Os problemas, os piores momentos, as crises e os momentos de ruptura profissional sentidos pelos professores estudados se relacionam, principalmente, ‘através das péssimas condições de trabalho’, mas também, em considerável parcela, aos ‘alunos difíceis’.

    Com estes traços caracterizadores dos problemas, dos piores momentos, das crises e dos momentos de ruptura profissional sentidos no decurso da carreira de professores de Educação Física Escolar da cidade de Santa Maria estudados podemos delinear um perfil de carreira que, mesmo não se construindo de forma linear entre as pessoas, deixaram uma marca de um percurso de carreira cheio de sucessivos e permanentes obstáculos a vencer. Estes obstáculos são, de forma geral, atribuídos, ao sistema escolar, aos colegas, ao meio em que estão inseridos, mas principalmente às péssimas condições de trabalho e aos alunos difíceis. Neste perfil ainda podemos destacar que a carreira pode ser marcada de forma negativa, de modo significativo, pelos problemas e piores momentos originando talvez crises e momentos de ruptura profissional. Mas, fundamentalmente, acreditamos que um adequado enfrentamento dos problemas da prática pedagógica aliado a uma boa preparação profissional, bem como a um trabalho coletivo na escola são fatores que podem ser considerados como uma peça essencial para evitar o surgimento de crises que levem a uma ruptura profissional. Assim, também acreditamos que a carreira pode ser marcada de forma positiva, igualmente de modo significativo, pelos melhores momentos que detonam a motivação para o desenvolvimento da carreira docente.

    Para finalizar, considerando a natureza interpretativa desta investigação, gostaríamos de esclarecer que estas conclusões aqui descritas não são fechadas, mas, sim, pistas para reflexões que possam originar novos questionamentos sobre o professorado e sua carreira. Assim, como ponto final deste estudo está à constatação de que ao ‘ler’ histórias de vida de dez professoras podemos destacar que estas suscitam uma reflexão sobre a formação dos professores porque esta é normalmente concebida como algo que se ‘tem’ ou que se ‘recebe’ deixando de lado a sua complexidade.

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