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Tanatologia: o cuidado perante a morte

Tanatología: la atención antes de la muerte

 

Licenciado em Letras-Português pela Universidade de Brasília

Licenciado em Educação Física pela Universidade Católica de Brasília

Especialista em Docência do Ensino Superior

Mestrando em Educação Física pela UnB

Marcos Paulo de Oliveira Santos

marcospauloeducador@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A questão do cuidado tem sido a tônica das discussões referentes a pacientes terminais. Nesse sentido, esse ensaio, com traços de protocolo de pesquisa, constitui um nicho profícuo de reflexão, porque busca triangular o trabalho, o afeto e a cultura, tendo por pano de fundo o fenômeno da morte. Assim, calcado nos apontamentos de Elias (2001), Rodrigues (2006) e Kübler-Ross (1998), intenta-se analisar as unidades afetivas que subjazem a tríade supracitada no fenômeno da morte. À guisa de conclusão pode-se salientar que a morte é um tabu e que o (a) cuidador (a) encontra dificuldades em lidar com o fenômeno.

          Unitermos: Morte. Cuidado. Tanatologia.

 

Abstract

          The issue of care has been the tone of the discussions relating to terminal patients. Thus, this test, with traces of the research protocol, is a useful niche for reflection, because it seeks to triangulate the work, the affection and culture, with the backdrop of the phenomenon of death. Thus, based on notes by Elias (2001), Roberts (2006) and Kübler-Ross (1998), attempts to analyze the affective units that underlie the triad above the phenomenon of death. In conclusion it may be noted that death is a taboo and that (a) caretaker (a) encounter difficulties in dealing with the phenomenon.
          Keywords: Death, Caring, Thanatology.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 159, Agosto de 2011. http://www.efdeportes.com

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Afinal, o que é a morte?

"A morte talvez não tenha mais segredos a nos revelar que a vida."

Gustave Flaubert

    O ínclito escritor norte-americano Francis Scott Fitzgerald (1896-1940), em sua magistral obra Tales of Jazz Age, traz a lume o conto O curioso caso de Benjamin Button. Trata-se de uma narrativa sobre as etapas da vida experienciadas pelo personagem principal, Benjamin Button.

    O extraordinário está no modo como se passa a vida de Benjamin, uma vez que ele nasceu com a compleição de um idoso e, nessa inversão cronológica e biológica, à medida que os anos foram se passando ele rejuvenesceu, até o momento em que deixou de existir, ou em outros termos, morreu.

    Essa enigmática obra é aqui evocada para situar a problemática da morte. Independente do ponto de partida, se jovem ou idoso, (ao menos no mundo literário de Fitzgerald), as pessoas estão fadadas a realizarem a viagem à barca de Caronte1...

    Mas, afinal, o que é a morte?

    Sob o ponto de vista médico-legal, considera-se uma pessoa morta quando não há mais atividade no encéfalo e, para tal detecção, aparelhos sofisticados são utilizados em condições e tempos específicos conforme o quadro do paciente2. Entretanto, est modus in rebus. E essa aferição restringe-se somente ao complexo organismo humano. É relevante analisar a questão sob outro prisma a fim de se compreender que existem outros tipos de morte, que se poderiam denominar simbólicas.

    Segundo Rodrigues (2006) a morte é um constructo social, apresenta-se de modo diferente nas variadas culturas e, portanto, configura-se como um tabu devido aos múltiplos significados e significantes que a caracterizam. Além da abordagem biológica supracitada, o autor estabelece que a morte pode ser compreendida como um rito de passagem. Assim, uma etapa da existência humana só pode ser plena se a anterior tiver morrido. Por exemplo, um indivíduo pode se tornar adulto, se o adolescente morrer. E só poderá ser idoso, se o adulto morrer. É da ontologia da nova etapa a morte da anterior.

    Ainda com base no autor, no que concerne a cultura brasileira, o gênero de morte também é bastante representativo, já que uma pessoa pode morrer de “morte matada; morte violenta; morte morrida; morrer de nó-nas-tripas etc.” (Op. cit., 2006: 26). Ora, nesse rol de vocábulos adrede construídos para designar um fenômeno universal, percebe-se a tentativa de se atribuir um plano ético ao evento, porque se o sujeito é probo e bondoso, diz-se que ele morreu em paz. Se maldoso e violento, comenta-se que já foi tarde (Op. cit., 2006).

    Alguns autores – Rodrigues (2006), Mauss (2003) Elias (2001) –, apontam ainda a morte social. Que designa aquele evento peculiar em determinados contextos sociais em que grupos eliminam alguns membros por um sem-número de motivos, que podem ser interditos que foram quebrados, ou a velhice que chegou e, por essa razão, o sujeito deixa de ser produtivo a coletividade, etc. Aliás, na história da humanidade é freqüente alijar os sujeitos. Não é difícil constatar o isolamento de pessoas portadoras do vírus HIV, pessoas leprosas, idosos etc.

    No período contemporâneo, caracterizado pelo desenvolvimento científico e tecnológico, esse processo de alijamento social ainda se faz presente. Isso porque a morte é por sua natureza caótica; desagregadora. Nos tempos líquidos, para utilizar-se de um termo cunhado por Bauman (2007), há antíteses da ordem, quais sejam a insegurança, o medo, o terrorismo. Nessa perspectiva, tenta-se a todo momento controlá-los, porque o vetor resultante é o fim; a incerteza; a liquidez; o caos; e, a vida denota a certeza; o concreto; a ordem.

    Deve-se repelir a incerteza da morte, porque ela se encontra no ponto de interstício e pode guindar para o negativo, ou seja, para a extinção.

    Nessa perspectiva, podemos entender por que no Brasil se considera que a madrugada (tempo que se situa entre um dia e outro) é o tempo conveniente para a prática de certos delitos e para a vida de certas pessoas (boêmios, prostitutas, bêbados, vagabundos...); por que as esquinas (que se situam entre uma rua e outra) são lugares adequados para a prática de ritos mágicos, de certo tipo de comércio (camelôs, bares...) e para a permanência de certos tipos de pessoas (adolescentes, ‘paqueradores’...); podemos entender por que as estações ferroviárias e rodoviárias (que simbolicamente são portas e limites das cidades), bem como as zonas de transição entre os diferentes bairros, no Brasil, são campos onde germinam aqueles tipos de pessoas e atividades que alguns integrantes da escola sociológica de Chicago chamaram de ‘parasitas sociais’; por que a ‘meia-noite’ desempenha funções importantes nos filmes de terror; por que se celebra ritualmente a passagem do ano-novo; por que se preservam os orifícios do corpo (que são uma espécie de ‘abertura’) em alguns procedimentos rituais que tratam de ‘fechar’ o corpo (Op. cit., 2006: 60).

    Afunilando a questão, é por esse motivo, segundo Rodrigues (2006), que o isolamento de pacientes ocorre. Porque são perigosos à vida, são nauseabundos, liberam líquidos e excrementos, entre outros, encontram-se, portanto, no interstício, nem estão vivos, tão pouco mortos.

    Para Elias (2001) esse comportamento tem uma explicação psicanalítica. Trata-se de um recalque individual. Que diz respeito aos postulados freudianos de que o indivíduo cria “mecanismos psicológicos de defesa” para lidar com as experiências dolorosas ocorridas principalmente na fase infantil (2001: 16). Desta maneira, a morte é disfarçada, ocultada. E para além da dimensão individual, ele também estabelece que há um recalque social, porque o isolamento dos moribundos é a materialização da incapacidade humana em lidar com tal fenômeno, já que o caminhar do outro para a morte é a constante recordação de que o eu também passará pela mesma experiência. E como a carga semântica é demasiada nas sociedades ocidentais (especialmente), acontece o isolamento. Para além dessas questões, o autor diz que o terror e o temor imprimem na consciência dos vivos uma imagem nada agradável. E estabelece que se a dor não causasse um terror, talvez, as pessoas não temessem tanto a morte (Op.cit., 2001).

    Ele aponta ainda que o interdito perpetua-se nas sociedades onde a expectativa de vida seja maior. Assim, em sociedades onde a expectativa de vida seja de 80 anos, por exemplo, uma pessoa de 30 anos não pensará tanto na morte porque ela está distante do fenômeno, pelo menos teoricamente. Ao passo que em sociedades onde a expectativa de vida seja menor, por exemplo, de 40 anos o temor é mais intenso nas consciências. E por essa razão, práticas mágicas são reforçadas para lidar com a angústia, “embora oculta, pela integridade da vida e do corpo, práticas que andam de mãos dadas com a maior insegurança, são amplamente difundidas” (Op.cit., 2001: 55).

    No momento contemporâneo, as pessoas utilizam determinados subterfúgios para manterem a morte distante; terem uma longevidade. Assim, é comum os procedimentos cirúrgicos, o balanceamento nutricional, as práticas de atividades físicas, as visitas periódicas aos médicos, como meio de prevenção.

    Em contextos mais tradicionais os mecanismos são outros. Os recursos utilizados são mágicos. E Marcel Mauss (2003) pôde analisá-los e catalogá-los entre as culturas australianas, notadamente, os Maoris. O poder enfeitiçante das palavras tem uma carga energética e semântica tamanha que aquele que a recebe, nessas sociedades, imediatamente ou poucos dias depois vai a óbito. Assim, inúmeros casos de magias, encantamentos, vendetas existentes podem causar a morte das pessoas naqueles grupos e quase todas vinculadas a situações morais e religiosas. Deste modo, para se protegerem, os sujeitos fecham o corpo; evitam quebrar os interditos culturais; respeitam e fazem oferendas aos deuses, etc. Em síntese, naquele contexto, segundo Mauss: “Um homem que se crê enfeitiçado morre, eis aí o fato brutal e inumerável” (2003: 354).

    No ocidente hodierno esses casos pincelados por Mauss não são tão prementes. Contudo, um grupo em particular experimenta as aflições da próxima etapa. Esse grupo é dos idosos, que são representados como improdutivos, pedantes, etc., e por esse motivo, para alguns, devem ser isolados. Somente aos poucos os idosos têm tido os seus direitos respeitados, mormente com o advento do Estatuto do Idoso3 no Brasil. Noutra direção têm-se as crianças, que embora não estejam próximas a morte como os idosos, podem ser acometidas por ela. Assim, analisa-se a seguir a velhice e, posteriormente, a criança. Essa inversão não é fortuita, motiva-se pelo raciocínio posto no início desse ensaio calcado no conto extraordinário de Fitzgerald. Antes, porém, faz-se necessária uma digressão, apontar a questão do cuidado e do cuidador.

O dilema do cuidador

    O cuidador, aqui compreendido como as múltiplas profissões – mormente da área da saúde – que visam ao equilíbrio do indivíduo, enfrenta um dilema. Isso porque tal profissional deve utilizar vários mecanismos tecnológicos e científicos para lidar com a morte. Além disso, deve também administrar as tensões sociais existentes com pontos de vistas diferenciados entre a equipe multidisciplinar, bem como o estresse e a dor familiar, o sofrimento do moribundo e, por fim, as pressões que minam as suas próprias energias.

    O cuidar não se restringe apenas a cura, mas também ao processo de morrer.

    No entanto, a formação acadêmica pode deixar lacunas e o profissional é impulsionado a acreditar que somente a cura e o restabelecimento são características de um bom cuidado. Os hospitais e sua tecnologia, a dinâmica da luta incessante pela vida não permitem nem abrem espaços para questionar, conversar e pensar na morte.

    A morte perturba a paz hospitalar e os profissionais acabam por comentarem os êxitos e os cuidados com bons resultados. Para eles, frutos de uma formação que ressalta a onipotência e eficiência, encarar a morte é aceitar o fracasso e perder para a doença, é algo difícil de ser vivenciado (Aguiar et. al., 2005 : 132).

    Essa dicotomia posta nas entrelinhas é importante de ser realçada, para se compreender a sociedade de um modo geral. Daí a afirmação que foi feita anteriormente, a morte denotando o caos, o insucesso. E a vida, a ordem e a vitória.

    O cuidador não está preparado para lidar com os “insucessos”. Pode-se arriscar a afirmar, que quando da formação acadêmica, ele é forjado um demiurgo. Lidar com a morte não faz parte do seu rol de conhecimento. E quando acometido por ela, sente-se incompetente. Ora, tal pensamento decorre, sobretudo, das idiossincrasias que são forjadas no processo de formação acadêmica e pela própria sociedade. Comentar, discutir, filosofar, refletir sobre a morte ainda é um interdito, por esse motivo ela ainda perturba a paz do nosocômio como reforça Aguiar et.al. (2005).

A velhice e a morte

    O vocábulo envelhecer carrega no seu bojo, mormente na cultura brasileira, uma conotação negativa, porque caracteriza o caminhar para o outro extremo, que é a morte. Usualmente está vinculado "à perda de papéis sociais e à precariedade das condições de vida" (Maia, 2008: 706), como se o idoso não pudesse sonhar, planejar, estudar, enfim, viver a vida. Mutatis mutandis, a autora (2008) defende que tal visão não mais se sustenta, haja vista que "a juventude aparece (...) não mais como uma categoria específica, mas como um estilo de vida, que deve ser perseguido pelos indivíduos de diferentes idades" (Op. cit., 2008: 706). Ora, por essa razão, os idosos têm ressignificado as suas práticas corporais e têm tornado suas atividades diárias mais dinâmicas, concretizando-se assim uma maior autonomia desse segmento; uma melhor qualidade de vida, a despeito dos preconceitos (ainda existentes) e das mobilidades funcionais reduzidas.

    O que se esquece ou pouco se comenta é que o idoso pode assumir a função de cuidador, quando possui um parente em condição terminal ou com grave doença crônica. Não é difícil encontrar um idoso cuidando do cônjuge, por exemplo.

    Durante essa fase podem aparecer sentimentos ambivalentes no cuidador: o desejo de que o outro sobreviva e ao mesmo tempo o da morte para acabar com o sofrimento. Isto desperta o sentimento de culpa, pois de qualquer forma se está desejando algo que não é bom para aquele que se ama e que está sofrendo (Oliveira; Lopes; 2008: 219).

    Nos processos de luto os problemas se redimensionam e os autores (2008) preconizam que o luto é

    (...) a fase da expressão dos sentimentos decorrentes da perda, a qual se demonstra por choque, desejo, desorganização e organização; é a fase de aprender que a morte deve ser tornada real, a partir do que se torna possível estabelecer novas concepções sobre o mundo, favorecendo investimentos pessoais (Op. cit., 2008: 218).

    Esse processo pode durar horas, meses ou anos, não é, portanto, linear. Varia de indivíduo para indivíduo. É considerado patológico quando o tempo é bastante longo e há manifestações obsessivas por parte do sujeito. Grosso modo, podem-se estabelecer três momentos de luto, a saber: o estado de choque, manifestado pelo isolamento, a raiva, o desespero; o estado de desejo, quando se manifestam a busca pelo ser perdido, a ida aos lugares onde ele ou ela freqüentava, o chamamento ou evocação etc.; por fim, o estado de reorganização, que é quando o sujeito compreende a necessidade de seguir a vida, embora não tenha esquecido o ser querido. Tais processos de luto envolvem ainda outras componentes interessantes, tais como a cor, que em nossa sociedade caracteriza-se pelo preto. Além disso, os ritos religiosos utilizados são bastante freqüentes, em particular a missa, já que o Brasil é um país predominantemente católico (Op.cit., 2008).

    Quanto aos idosos os autores constataram que além dos estigmas sociais que essa população já sofre, a perda do ente querido (filho ou cônjuge) causa profundos impactos nesse grupo em particular.

    No idoso em processo de luto podem ocorrer alguns distúrbios, como os do sono e da alimentação, ou ainda manifestações somáticas, sendo comum falta de ar, aperto no peito, falta de energia, insônia, passividade, alucinações e ansiedade [e tantas outras sintomatologias que são acentuadas, especialmente, em aniversários de morte ou nascimento] (Op. cit., 2008: 219).

    Esse quadro, para esse autor (2008), faz com que o idoso seja tratado com muito carinho, respeito e amor. E uma melhor reflexão por parte dos cuidadores (em suas variadas instâncias de atuação) deve ser feita, assim como uma revisão curricular no processo de formação acadêmica nas universidades, especialmente, para se criar uma cultura de respeito às pessoas provectas, bem como ao fenômeno de morte e luto.

E o oposto? O caso das crianças

    Não é fortuita a citação do extraordinário caso de Benjamin Button no início desse artigo. Aqui, são discutidos dois extremos que estão postos na sociedade (a velhice e a juventude), com o desiderato de se compreender o cuidado no momento da morte. Para tanto, analisar-se-á o tratamento dispensado no hospital, por ser o lócus de excelência, onde a categoria cuidado é bastante evidente4.

    Garros (2003), calcado nos postulados dos Direitos das Crianças das Nações Unidas5, questiona-se até que ponto é possível a existência de uma boa morte6 nas unidades de terapia intensiva pediátricas. Por método, ele utiliza-se da revisão de literatura e das próprias experiências, já que é pediatra no Canadá.

    Os estudos apontam que uma elucidação conceitual é relevante. Assim, conceituar a Unidade de Terapia Intensiva e o seu funcionamento auxiliam os familiares nas decisões e nos processos de luto (Azoulay E. et.al., 2002: 438-42 apud Garros, 2003). Bem como o tratamento verbal dispensado aos familiares, as palavras de candura e respeito são relevantes e os eufemismos não devem ser utilizados, já que ocultam a realidade.

    Palavras vagas como “pode ser que ele não vá melhorar mais” levam à confusão e a falsas esperanças. Se a família capta claramente a mensagem de que sua criança está morrendo, ela terá maior tempo para dedicar às despedidas, para contatar parentes distantes, perguntar coisas mais apropriadas aos cuidados necessários nessa fase, enfim, preparar-se para a morte (Ellershaw J, Ward C, 2003: 30-4 apud Garros, 2003: S247).

    Outro aspecto não menos importante diz respeito ao processo decisório, ou seja, o momento em que os familiares e os médicos decidem ou não pela continuação da vida. Não é uma tarefa simples. Tais processos perpassam por um sem-número de fatores, notadamente, princípios morais, éticos e religiosos dos familiares e, também dos médicos, já que eles temem punições legais. Outrora a decisão estava centrada no médico, que tal como um demiurgo, decidia o destino da criança.

    Crianças com doenças graves e de mau prognóstico provocam intensos dilemas éticos nas equipes. É extremamente difícil estabelecer fronteiras entre o que é cuidar e aliviar o sofrimento, fornecendo conforto e morte digna e usar medidas invasivas e dolorosas decorrentes dos avanços tecnológicos, que só prolongam o sofrimento por algum tempo (Poles & Bousso, 2009: 216).

    Com o tempo e o desenvolvimento de algumas disciplinas no processo de formação acadêmica, as equipes multidisciplinares perceberam que era importante levar em consideração os apontamentos ou considerações da criança e, também, dos familiares. Dos temas mais vultosos apontados pelos familiares na revisão de Garros (2003) destacam-se:

  • se sentir incluído no processo decisório;

  • evitar o prolongamento da morte;

  • receber explicações claras sobre o papel familiar;

  • receber ajuda para que a família chegue a um consenso; e

  • receber informação de qualidade, em boa quantidade e no momento adequado (Heyland DK et.al., 2002: 1413-18 apud Garros, 2003: S246).

    Constatam-se ainda em suas reflexões que não há surpresa por parte da equipe médica o óbito de uma criança. Isso decorre porque algumas medidas são utilizadas constantemente nos mais variados países, a saber: (i) a morte após a tentativa de ressuscitação; (ii) a determinação para não ressuscitar; (iii) a remoção ou a restrição de medidas de suporte a vida (MSV); (iv) e, por fim, a morte cerebral.

    Tais quadros são forjados conforme os múltiplos contextos sociais e culturais, mas, segundo o autor, existe uma predominância considerável das remoções ou restrições de MSV por parte da equipe médica e/ou dos familiares, porque há uma componente decisiva no processo que é a dor. Para não se prolongar o sofrimento da criança, opta-se pela remoção dos equipamentos e/ou a administração de medicamentos que suprimem ou minimizem a dor. É imperioso frisar que tais casos de medicação perpassam por uma criteriosa especificação legislativa, de modo que não se pode ministrá-los aleatoriamente; somente em casos específicos.

    A dimensão do cuidado deve levar em consideração o agente primeiro, ou seja, a criança. Por volta dos 9 e 10 anos ela já é consciente da definição de morte e deve ter o ensejo de participar do processo, manifestar as suas emoções e sentimentos, ter a chance de se expressar sobre fatos ocorridos, enfim, ter a oportunidade de se despedir. As ferramentas utilizadas usualmente são a própria fala ou discurso, bem como o desenho que pode ser bastante representativo nesses momentos. Ademais, uma equipe multidisciplinar deve acompanhar o processo; assim como os amigos de escola podem ser convidados para uma visita. Os familiares devem ter o tempo que desejarem para a última e especial despedida, podem, deste modo, segurar no colo a criança, deitar ao lado do adolescente e propiciar afagos, propiciar os rituais conforme suas crenças. O que se deve evitar e se policiar são os discursos dos circundantes.

    O que nunca deve ser dito nesses momentos é: “infelizmente não há nada mais que possamos fazer pelo seu (sua) filho (a)”. Pelo contrário, existe muita coisa a se fazer! A pergunta mais apropriada que o médico deve fazer nessa hora é: “o que mais eu posso fazer para ajudar vocês durante esses momentos difíceis?” (Garros, 2003: S250).

    Por fim, o autor assevera que, para a criança, o ideal seria poder morrer em um ambiente menos estressante. Segundo ele, o hospital, com todos os equipamentos e pessoas estranhas, causa desconforto na criança e nos familiares. O ideal seria poder morrer em um ambiente menos impactante, porém, devido aos múltiplos problemas como transporte, o contexto social, a infra-estrutura, a falta de apoio da comunidade, entre outros, inviabilizam a faina. Porém, ele conclui que é possível uma morte digna, para tanto é imprescindível a quebra de paradigmas, com o advento de equipes multidisciplinares competentes e qualificadas, um ambiente hospitalar diferenciado, mais humanizado e ético e o total apoio aos familiares e ao moribundo naquilo que for possível (Op.cit., 2003).

Breves palavras sobre a Tanatologia

    A Tanatologia surgiu e se consolidou com o escopo de se humanizar as relações no momento da morte. Isso porque o hospital historicamente tem sido um espaço de relações frias e impessoais. Aquela disciplina, portanto, tende a romper isso ao dialogar bastante com a Psicologia e se compreender os significados intrínsecos do ser humano. Ela surgiu notadamente sob os auspícios da doutora Elisabeth Kübler-Ross. Ela, médica suíça já falecida, abalou a figura onipotente do médico, ao compreender que a morte é a condição inexorável de todas as pessoas e por essa razão as pessoas devem ter seus sofrimentos minorados.

    A maneira encontrada pela médica foi doando amor, ouvindo os conflitos interiores dos seus pacientes, em síntese, criando mecanismos ou métodos de cuidado, que culminaram na disciplina ou ciência Tanatologia. Deve-se compreender que tais procedimentos hoje em dia parecem óbvios, mas não se pode fazer uma leitura anacrônica do momento vivido por Kübler-Ross. Naquele período, essas práticas de cuidado eram bastante reprocháveis. E por seu comportamento humano e ético com pessoas aidéticas, numa época em que ainda pouco se conhecia sobre essa patologia; por tratar de pessoas idosas; negros enfermos; pessoas com necessidades especiais, entre outros, ela chegou a ser perseguida por grupos radicais e teve sua residência inúmeras vezes danificada.

    Em suas memórias registrou:

    (...) Quando ia fazer compras na cidade, era chamada de ‘amiga dos negros’. Recebia telefonemas ameaçadores diariamente. ‘Você vai morrer igual às crianças aidéticas que tanto ama.’ A Ku Klux Klan queimava cruzes em meu gramado. Outros disparavam tiros através de minhas janelas. Tudo isso eu aguentava; o que me aborrecia mais eram os pneus furados todas as vezes que saía de minha propriedade. Morando no meio do mato, aquilo era um problema (Idem, 1998: 280).

    A despeito dessas perseguições, ela foi responsável por levar e difundir nos hospitais norte-americanos o cuidado como condição sine qua non para uma boa morte. Analisou e estabeleceu parâmetros no que tange a essa categoria (cuidado), que se consubstanciaram em meios práticos aos múltiplos cuidadores dos hospitais e também propiciou legados teóricos importantes. Assim, destaca-se o Modelo de Kübler-Ross, que diz respeito às suas conclusões sobre as experiências de quase-morte e/ou a morte, e suas reflexões sobre o processo de luto.

Considerações finais: sepultando o assunto

    A temática da morte é emblemática para o ser humano. Atormenta-o desde os períodos mais prístinos. Aqui foi trazida ao debate por se considerá-la fulcral às reflexões das ciências humanas, notadamente à sociologia.

    É óbvio que pelo tema caudaloso não se pretendeu esgotá-lo. Ao contrário, serviu como um breve roteiro que pode ser explorado em estudos vindouros. Em outros termos, serviu como a antecipação de um protocolo de pesquisas dirigido à conciliação da tríade trabalho, afeto e cultura. Sem pender demasiado para uma ou outra vertente, a proposta da pesquisa é encontrar um prumo para a tríade supracitada, sem desconsiderar as unidades afetivas inerentes e implícitas aos três aspectos, tais como a dor, a alegria, o medo, o ódio etc.

    A morte, portanto, constitui um profícuo objeto de estudo. Porque as unidades afetivas estão evidenciadas nos mínimos detalhes do grande momento. E o cuidado, nesse sentido, adéqua-se ao evento conforme o contexto. Ele é revestido de uma série de práticas humanas que, ao fim e ao cabo, visam à boa morte. O cuidado, (esse cerceamento, atenção e amor), é metamorfoseado no fenômeno da morte e o habitus – esse sistema gerativo de práticas – parece convergir para o mesmo objetivo, ou seja, minimizar o sofrimento alheio.

    Acrescenta-se à guisa de conclusão, que alguns estudos apontaram a deficiência curricular no processo de formação profissional para lidar com a morte. O cuidador (e aqui não há nenhuma redundância) deve ter cuidado consigo mesmo, para não tornar o envolvimento afetivo prejudicial.

    Nesse sentido, esse ensaio, com traços de protocolo de pesquisa, constitui um nicho profícuo que poderá ser utilizado para desdobramentos vindouros nas diversas disciplinas que compõem a área da saúde.

Notas

  1. Ser da mitologia grega responsável por carregar os mortos em sua barca através do Aqueronte.

  2. Resolução 1480/1997. Disponível em http://www.saude.df.gov.br/003/00301009.asp?ttCD_CHAVE=22504. Acesso em 09/09/2010.

  3. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/2003/L10.741.htm. Acesso em 09/09/2010.

  4. A título de exemplificação, só no Sudão, país africano, por ano, morrem aproximadamente 300 mil crianças com menos de cinco anos, por doenças evitáveis (ver: http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u644023.shtml); Na América Latina, cerca de 40 mil crianças falecem devido a problemas respiratórios (ver: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,cerca-de-40-mil-criancas-morrem-por-ano-na-america-latina-com-doencas-respiratorias,608154,0.htm); No mundo 1,5 milhão de crianças morrem por falta de água potável e saneamento básico (ver: http://www.gazetadopovo.com.br/mundo/conteudo.phtml?tl=1&id=983207&tit=15-milhao-de-criancas-morrem-por-ano-no-mundo-por-falta-de-acesso-a-agua-potavel-e-ao-saneamento-diz-OMS). São exemplos que saltam aos olhos e tornam a análise do cuidado bastante complexa, daí o foco do ensaio recair sobre a categoria cuidado no hospital.

  5. Ver: http://www.onu-brasil.org.br/doc_crianca.php

  6. Boa morte é compreendida como aquela livre de sofrimento e eivada de compaixão, dignidade e humanismo. No que concerne aos adultos, além desses pontos, a boa morte seria também o momento de se colocar os documentos em dias (testamentos, venda de propriedades etc.); preparação para os ritos religiosos, entre outros. Para maior elucidação sobre o debate conceitual de boa morte, ver Poles & Bousso (2009).

Referências Bibliográficas

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