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Linguagens da educação do corpo na Educação Física brasileira

Los lenguajes de la educación del cuerpo en la Educación Física brasileña

 

Professora da Faculdade de Educação Física da Universidade Federal de Goiás.

Formada em Educação Física na UNESP/Rio Claro-SP

Doutorado em Enfermagem Psiquiátrica na USP/Ribeirão Preto-SP

Aline da Silva Nicolino

aline.nicolino@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este texto explora algumas produções teóricas do campo da Educação Física brasileira, por meio de passagens históricas expressas em valores e costumes direcionados à higiene, individual e coletiva, e à produtividade do corpo. Tais linguagens constituíram um movimento crescente, tanto dentro quanto fora das escolas, sustentadas por preceitos eugênicos, disciplina dos corpos e hábitos saudáveis, voltados para um corpo produtivo e utilitário.

          Unitermos: Educação Física. Educação do corpo. Corpo saudável.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 159, Agosto de 2011. http://www.efdeportes.com

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Introdução

    O que é Educação Física? É a pergunta e o título do livro de Vitor Marinho (1994) que faz um “passeio” histórico nas dimensões cultural, social, política e econômica desde a cultura primitiva (60.000 a.C.) até a idade moderna, resgatando alguns rituais, sentidos e significados da atividade física para esses povos, que em tempos e espaços distintos e distantes deste, vivenciavam e compreendiam a corrida, a dança, a quitação, as lutas, os jogos, entre outras formas de manifestação corporal, de forma diferente da nossa, bem como da representação da Educação Física na atualidade. Esse movimento, de resgatar elementos históricos pontuais, visa articular e compreender as possíveis representações do que somos hoje.

    Iniciar com o texto de Vitor Marinho visa demarcar cronologicamente, no âmbito nacional das produções teóricas, um dos estudos que incorporou as análises das ciências humanas/sociais, mesmo sob uma perspectiva histórica linear de causa e conseqüência, deixando sua marca no debate político e social brasileiro, por meio de questionamentos e apontamentos do papel da/o professora/r de Educação Física e da constituição de seu campo acadêmico, além de tentar problematizar a pergunta feita por ele e por outras/os estudiosas/os da época, “O que é Educação Física?”.

    Para dialogar sobre esta questão, apresento algumas reflexões de Carmen Lúcia Soares (2001) expressas no livro “Educação Física: raízes Européias e Brasil”, sobre a veiculação de valores e costumes direcionados a higiene individual e coletiva, bem como a produtividade do corpo promovida pela Educação Física. O incentivo e obrigação de se praticar exercícios físicos no âmbito escolar foi defendido por intelectuais da época (Rui Barbosa, Fernando de Azevedo), que acreditavam que esta prática traria benefícios sociais, políticos e econômicos à nova nação. Nesse sentido, a estudiosa escreve que antes mesmo da entrada de alguma prática corporal na escola (ginástica, esporte) os comportamentos, atitudes e hábitos das/os estudantes foram pedagogizados em prol de uma higiene corporal e moral, balizada pelas novas orientações médicas da época. Em conformidade com as linguagens científicas em voga, a naturalização dos discursos e intervenções da Educação Física constituiu um movimento crescente, tanto dentro, quanto fora das escolas, sustentada por preceitos eugênicos, de disciplina dos corpos e dos hábitos de higiene, voltado para um corpo produtivo e utilitário.

    As relações de poder expressas na associação entre ciência e sociedade, biologia e cultura, provenientes de um ideário burguês de civilidade, conta com a participação de eugenistas, políticos e educadores, para esta nova forma de pensar, sentir e vivenciar o corpo, pautado na busca individual do organismo sadio e da vontade disciplinadora de cuidar e interagir com o seu corpo e das outras pessoas. Essa forma “politicamente correta”, segundo Carmen Soares, aproxima o incivilizado do civilizado, que pode ser traduzido pelos novos ideais de utilidade e de consumo dos corpos.

    Com vistas a disciplinar os corpos, manter a ordem social da classe vigente e legitimar os conhecimentos científicos, os médicos propunham novas normas de higiene, polidez e obediência, sendo a ginástica uma prática utilizada nesta intervenção do disciplinamento do físico. A afirmação “O corpo como degenerado precisa ser recuperado!”, estava presente no discurso médico, mas também no exército, que se responsabilizava pelas técnicas, ou seja, por colocar em prática. Portanto, padronizar, ordenar, equilibrar e não cometer excessos eram alguns dos atributos defendidos pelo discurso higiênico para se ter um corpo saudável, sobretudo seguindo a moral dos bons costumes, casando e tendo filhas/os fortes e saudáveis capazes de trabalhar e impulsionar a indústria brasileira, bem como modificar sua imagem negativa para as nações civilizadas (Europa Ocidental).

    Para melhor compreendermos o teor das investidas científicas da época é preciso contextualizar os interesses político e econômico, mas também expor as condições materiais que o Brasil vivia naquele momento. Entre o final do século XIX e meados do século XX, o Brasil estava assolado por diversas moléstias (febre amarela, malária, tuberculose), pestes e doenças venéreas, que multiplicavam-se nas relações entre as pessoas e nos modos de vida urbano. Segundo dados da revista Brazil-Médico, publicada pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro da época, a vacinação não era aceita pelas pessoas, os costumes e hábitos higiênicos estavam distantes dos “europeus civilizados” e as doenças e suas seqüelas eram uma ameaça à raça e à economia da nação (MENDES; NÓBREGA, 2008). As ciências médicas, desenvolvida sob o modelo da racionalidade técnica, influenciaram e contribuíram para a construção das bases da Educação Física brasileira, bem como para a compreensão de saúde e corpo saudável (MELO, 2001).

    Em uma época em que as doenças assolavam o país, prevenir, promover a saúde, regenerar a raça, impor a ordem e a disciplina eram ações traduzidas como novas verdades, que em prol do progresso e do desenvolvimento da nação estavam apoiadas em conceitos de civilidade, que se de um lado trouxe benefícios à saúde da população urbana, por outro distanciou saberes científicos dos populares, hierarquizou/classificou conhecimentos, impôs um novo modelo de civilidade burguês e europeu, como os detentores de civilidade, força, robustez, trouxe novos códigos de se relacionar consigo e com os outros, responsabilizou e individualizou o conceito e o trato de saúde, privilegiou uma “educação do corpo” voltada para a exploração da força de trabalho, e legitimou classes sociais e suas desigualdades.

    Diante da divulgação de tais idéias, começa a se identificar no Brasil a difusão da Educação Física nas escolas, a partir de 1920. Nesse momento, percebe-se sua existência em diferentes níveis de ensino, com distintos formatos, em decorrência do surgimento de uma preocupação governamental com a disciplina, refletida inclusive nas tentativas de elaboração de uma legislação específica. Contudo, não foi de forma tranqüila sua entrada como disciplina nas escolas públicas, não só por problemas operacionais como a falta de espaços adequados, mas também por existirem resistências ao caráter e à natureza das atividades físicas, visto a supervalorização do “intelectual” e uma desvalorização das práticas “manuais”, encaradas de forma depreciativas (CASTELLANI FILHO, 2007).

    Alguns indícios de maior atenção por parte do governo com a educação corporal podem ser expressos por sua obrigatoriedade da Educação Física nas escolas como pela introdução do método francês como conteúdo. Tal debate não foi tranqüilo entre alguns intelectuais e uma pequena parcela da burguesia do ciclo da mineração que se formava, os quais repudiavam a prática e os valores do esporte, assim como a Educação Física para as mulheres. Em 1930, Rui Barbosa, um defensor do método e da obrigatoriedade da Educação Física nas escolas, emitiu pareceres sobre a Reforma Educacional da época, apresentando algumas recomendações sustentadas pelos preceitos científicos higienistas, como: a obrigatoriedade da Educação Física em todo o ensino básico; a realização durante quatro vezes por semana, no mínimo de 30’; a equiparação de salários e benéficos das/os professoras/es de Educação física com as/os outras disciplinas, bem como curso preparatório para habilitação, como apresenta Castellani Filho (2007). A disseminação de tais idéias e propostas contribuiu para dar maior visibilidade e legitimidade para o campo acadêmico e pedagógico da Educação Física, sob uma perspectiva eugênica e higiênica de educar o corpo, já que a compreensão estava em preparar o físico para estar a serviço da mente.

    No período do Estado Novo, com a ditadura da Era Vargas que se estende até 1945, há um reordenamento dos estímulos à Educação Física, por meio de uma construção de uma identidade moral e cívica brasileira, voltada aos princípios de Segurança Nacional, tanto para a temática da eugenia da raça, quanto à necessidade de adestramento físico, direcionado para uma educação patriota, em defesa da Pátria, ameaçada por um suposto confronto bélico com o sistema socialista. Concomitante ao processo de industrialização implantado no país, que necessitava de mão-de-obra barata e preparada fisicamente para suportar as exigências do maquinário e as extensas horas de trabalho, um importante intelectual e defensor da Educação Física, Fernando de Azevedo, justifica os méritos educativos e pedagógicos de sua prática nos currículos escolares, defendendo os hábitos higiênicos e a realização de exercícios físicos como elementos essenciais para modelar os novos indivíduos, como uma possibilidade de alcançar uma nação sem defeitos e doenças, forte e sadia, regenerada. Em conformidade com os novos padrões de conduta definidos pelos higienistas, Fernando de Azevedo contribui para a Educação Física dialogar com a ideologia e ordem social vigente (CASTELLANI FILHO, 2007). Nesse movimento de construção do campo científico e profissional da Educação Física, Inezil Penna Marinho marcou uma nova fase da história da Educação Física e Esporte no Brasil, por meio de produções e ações no campo, estruturando o pensamento pedagógico da Educação Física brasileira.

    A Educação Física moral, intelectual e sexual inspirada nos preceitos sanitários da época instalou-se, sob a influência militar, nas práticas pedagógicas nas escolas, por meio de exercícios sistematizados e resignificados pelo conhecimento médico, como forma de inculcar uma educação de disciplina da saúde física, ordenada pelos conhecimentos higienistas e de purificação da raça. Diante desse cenário, que em tons de crítica e reflexão, sobre o papel da Educação Física e do Esporte na escola, que Valter Bracht (1999) questiona a função da Educação Física na construção dos corpos saudáveis e dóceis, como sendo uma adequada adaptação ao processo produtivo ou a uma perspectiva política nacionalista, que se legitima pelo conhecimento médico-científico.

    E foi nesse clima, após um período marcado pelas violências simbólicas e físicas de uma ditadura militar no Brasil, que movimentos estudantil e acadêmico tencionaram um acalorado debate sobre a compreensão e problematização do campo da Educação Física e do Esporte, tendo seu auge no final dos anos de 1980 e início dos anos 1990. Neste período elucidaram distintas correntes teóricas apoiadas em diferentes matrizes filosóficas, as quais buscavam respostas e fundamentação nas ciências humanas/sociais para o campo da Educação Física. As discussões e os debates centravam-se na formulação de uma identidade para a área, na consolidação de um campo acadêmico-profissional, em que as contradições entre teoria e prática, a disputa de mercado de trabalho e suas finalidades, bem como as concepções de homem, sociedade e educação, estavam sendo reformuladas e questionadas.

    E é sob questionamentos que ainda não foram respondidos e um campo de conhecimento ainda difuso e antagônico que termino este texto expondo minha inquietação com a necessidade de discutir, problematizar e (re)construir os campos moral, intelectual e profissional da área, retomando a questão inicial, O que é Educação Física? E que me provoca a outros questionamentos: Para quê e a quem a Educação Física esta a serviço? Quais são as matrizes teóricas que guiaram e guiam sua identidade? Quais são os conteúdos e as formas de avaliação? Há interesses ideológicos e políticos no discurso de prevenção da saúde? Essas e muitas outras indagações podem ser reescritas de diversas formas, dialogando com novas fontes, percursos, discursos, tempos e espaços que não foram aqui contemplados, visto ser importante esclarecer que a história da Educação Física se faz pelas tensões e nuances do micro e do macro, pelas singularidades expressas na pluralidade coletiva, enfim... pelas histórias que ainda não foram contadas!

Referências

  • BRACHT, Valter. A constituição das teorias pedagógicas da Educação Física. Cadernos Cedes, ano XIX, n 48, p. 69-88, agosto de 1999.

  • CARVALHO, Yara. O Estado brasileiro e os direitos sociais: a saúde. In: GARCIA, Carla; HÚNGARO, Edson Marcelo; DAMASCENO, Luciano Galvão. Estado, política e emancipação humana: lazer, esporte e saúde como direitos sociais. Santo André/SP: Alpharrabio, 2008, p. 145-158.

  • CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. 14 ed. Campinas/SP: Papirus, 2007.

  • MARINHO, Vitor. O que é Educação Física. 11 ed. São Paulo: Editora Brasiliense/Coleção Primeiros Passos, 2006.

  • MELO, Victor Andrade de. Esporte é saúde: desde quando? Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 22, n. 2, p. 55-67, 2001.

  • SOARES, Carmen Lúcia. Educação Física: raízes Européias e Brasil. 2 ed. Campinas/SP: Autores Associados, 2001.

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