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A influência inglesa na formação da cultura e da cultura 

corporal do carioca através da ligação entre estrada férrea, fábricas

inglesas no Rio de Janeiro e a primeira ‘pelada’ de futebol no Brasil

La influencia inglesa en la formación de la cultura y de la cultura corporal del carioca mediante la 

vinculación entre el ferrocarril, las fábricas inglesas en Río de Janeiro y el primer 'picado' de fútbol en Brasil

 

*Pós Graduando em Elaboração e Gestão em Projetos

Socioesportivos e Vilas Olímpicas (UCB/RJ)

Bacharel em Administração pelas Faculdades Integradas Simonsen

Discente da Graduação em Educação Física da Universidade Castelo Branco (UCB/RJ)

Pesquisador do Grupo de Cultura Corporal da Universidade Castelo Branco (UCB/RJ)

**Co-orientador. Graduado em Educação Física pela UCB/RJ
Pós-graduado em elaboração e Gestão de Projetos Sócio-esportivos pela UCB/RJ
Integrante do Grupo de Cultura Corporal da UCB/RJ

Integrante do LAPEM da UCB/RJ

***Orientador. Mestre em Ciência da Motricidade Humana pela UCB/RJ

Licenciado em Educação Física pela UCB/RJ

Professor responsável pelo Grupo de Cultura Corporal da UCB/RJ

Subsecretário de esporte e lazer do município Rio de Janeiro SMEL

Ramdel Caldas*

ramdelcaldas@hotmail.com

Prof. Esp. Maurício Fidelis**

sergiof.tavares@hotmail.com

Prof. Ms. Sérgio Tavares***

mauriciofidelis@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Com a necessidade de escoamento rápido dos produtos como o café, surge no Brasil o transporte ferroviário, através de um projeto feito por um inglês a mando de Irineu Evangelista. Simultaneamente a este fato ocorre a revolução industrial e começam a vir para o Brasil Fábricas têxteis de origem inglesa, com estas, chegam ao país operários ingleses que trouxeram, inscritos em seus corpos, os símbolos e códigos sociais de seu país. A socialização destes imigrantes, no Rio de Janeiro, com os outros que aqui viviam gerou uma re-significação de culturas, influenciando fortemente a construção da cultura corporal do carioca. Outra prática importante trazida por eles foi o esporte moderno, inclusive o que hoje é sinônimo do nosso país, o futebol. Este desporto teve sua primeira “pelada”, partidas de futebol não oficiais, realizada em Bangu seis meses antes de Charles Muller voltar da Inglaterra. Estas “peladas” praticadas nas fábricas formaram times oficiais, que posteriormente se tornariam clubes. Desta forma, o artigo mostra a influência inglesa na cultura corporal do carioca através do trinômio linha férrea, fábricas inglesas e futebol.

          Unitermos: Ferrovia. Fábrica Bangu. Futebol.

 

Abstract

          The need to flow products such as coffee brought to Brazil the railroad transport. The project, developed by an English company, was under Irineu Evangelista’s demand. During the same time the industrial revolution started to bring to Brazil english textile factories, which also brought english workers. As consequences, workers introduced symbols and social codes from their country. The immigrant’s socialization process in Rio de Janeiro, with the local people, generated a new meaning of culture, which strongly influenced the body culture in Rio. Another important practice brought by the English immigrants was the modern Sport that became a symbol of Brazil as a country, the soccer. The first informal game, called “pelada”, was played in Bangu six months before Charles Muller came back from England. Those “peladas” played in the factories generated the official teams, that afterwards became the clubs. In this matter, this paper demonstrates the English influence over the body culture of Rio de Janeiro through the trinomial railroad, english factory and soccer.

          Keywords: Railroad. Factory Bangu. Soccer.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 159, Agosto de 2011. http://www.efdeportes.com

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Introdução

    A construção da cultura corporal do carioca recebeu as primeiras influências inglesas com a vinda da Família Real Portuguesa para o Brasil. Porém, a influência da Inglaterra na cultura do carioca possui também uma forte ligação com as linhas férreas e as fábricas têxteis instaladas no Rio de Janeiro.

    Com a chegada da família Real ao Brasil, que veio escoltada pela marinha inglesa, foi decretada a abertura dos portos a nações amigas. O relacionamento comercial com outros países gerou a necessidade do escoamento das produções da cidade até os portos. No início, eram apenas a cana de açúcar e o ouro, onde o transporte acontecia através das tropas de mulas, pois a produção lenta não necessitava maior rapidez. Com o início do cultivo de café no Vale do Paraíba e a grande aceitação do produto, tanto no mercado interno quanto no externo, gerou a necessidade de um meio de escoamento mais rápido e eficaz deste grão até os portos. (RODRIGUES, 2004)

    Neste momento, sob influência do que ocorria na Inglaterra, entra em ação um grande e importante homem, que contribuiu para o desenvolvimento e progressão do transporte em terras brasileiras, Irineu Evangelista Souza, futuramente Barão de Mauá.

    De acordo com Medina (2009), os avanços e mudanças existentes na história não acontecem só com a abstração, o corpo precisa estar e se fazer presente no processo junto com a prática social, absorvendo e refletindo as vivências experimentadas.

    Não há história sem o corpo, e é isto que será apresentado no decorrer deste estudo, que tem por objetivo mostrar a influência inglesa na cultura corporal do carioca através das vivências sociais do corpo durante a construção da linha férrea e o crescimento populacional gerado por ela, a implantação das fábricas têxteis, na maioria sediadas nos arredores da Estrada de Ferro D. Pedro II (E.F.D. P. II), e o convívio social do seu proletariado, juntamente com a importância destas no processo histórico da difusão do futebol por todo o estado do Rio de Janeiro.

1.     Linha férrea no Rio de Janeiro

    Com a Revolução Industrial, a forma de pensar e agir do mundo começou a mudar e Irineu Evangelista Souza, ao entender e assimilar isto, objetivou trazer seus benefícios para o país, tendo em vista fazer com que o Brasil participasse efetivamente de todo este processo de industrialização que ocorria no mundo. (RODRIGUEZ, 2004)

    Pensando neste processo, Irineu solicitou a concessão para a construção de uma estrada de ferro (E.F.) ligando o Porto de Mauá à Raiz da Serra de Petrópolis. Ao obter a concessão, ele já tinha tudo pronto e não dependia do Governo, foi então que em um curto período de tempo conseguiu reunir 26 interessados no projeto. O grupo reunia negociantes ingleses, políticos importantes e vários comerciantes portugueses e brasileiros. (RODRIGUEZ, 2004)

    O engenheiro inglês Willian Bragge foi contratado para realizar os estudos e o projeto. Em 29 de agosto de 1852, começaram os trabalhos de construção, no dia 06 de setembro de 1953, aconteceu à primeira viagem de trem noticiada na história do Brasil. No ano seguinte foi inaugurada a estrada de ferro que ligava o Porto Mauá até Fragoso, e no dia 16 de dezembro de 1856, a estrada foi estendida do Fragoso até a Raiz da Serra de Petrópolis. (RODRIGUEZ, 2004)

    No entanto, após alguns anos, o governo brasileiro decidiu construir outra estrada de ferro, pois a E. F. Mauá não atingia diretamente a região produtora de café no Vale do Paraíba e sua estação inicial não chegava à capital. Com isso, foi inaugurada, no dia 29 de março de 1858, a E. F. D. Pedro II, compreendendo as seguintes estações: Corte (campo da Aclamação), Venda Grande (Engenho Novo), Cascadura, Maxambomba (Nova Iguaçu) e Pouso dos Queimados (Queimados). No dia 08 de novembro do mesmo ano, a E. F. D. Pedro II ganhou mais 13 km, passando agora também pelas Freguesias de Irajá e Inhaúma. (RODRIGUEZ, 2004)

    O período de 1870 a 1903 representou para a história do Rio de Janeiro não só a primeira fase da expansão acelerada da malha urbana, como também um processo em que esta expansão passou a ser influenciada tanto pelo capital como pelo estrangeiro. Este período começou em 1858 com a inauguração da primeira seção da D. Pedro II, que permitiu, a partir de 1861, a ocupação acelerada das freguesias suburbanas por elas atravessadas. (RODRIGUEZ, 2004, p. 22).

2.     Ocupação populacional nos arredores da E. F. D. Pedro II

    A existência de uma linha de subúrbios até Cascadura incentivou, de imediato, a ocupação do espaço intermediário entre esta estação e o centro. Antigas olarias, curtumes, ou mesmo núcleos rurais passaram então a se transformar em pequenos vilarejos e a atrair pessoas em busca de uma moradia barata, resultando daí uma elevação considerável da demanda por transporte e a conseguinte necessidade de aumentar o número de composições e de estações. (ABREU, 2007)

    Esta expansão populacional, além de mudar o desenho territorial e ocupacional das freguesias, gerou a socialização de pessoas oriundas de diferentes regiões, que neste momento passaram a residir próximas a E.F.D. P. II. Esta socialização contribuiu para a formação da cultura corporal do carioca, não permitindo o surgimento de um corpo marginal, que segundo Medina (2009 p. 84) é o corpo excluído ou afastado dos bens e benefícios materiais e culturais gerados pelo modo de produção capitalista, e que não consegue o mínimo necessário a uma sobrevivência humana honrada.

    O processo de ocupação dos subúrbios tomou, a princípio, uma forma tipicamente linear, localizando-se as casas ao longo da ferrovia e, com maior concentração, em torno das estações. Aos poucos, entretanto, ruas secundárias, perpendiculares à via férrea, foram sendo abertas pelos proprietários de terras ou por pequenas companhias loteadoras. Deu-se assim início a um processo de crescimento radial, que se intensificaria cada vez mais com o passar dos anos. (ABREU, 2007)

    Outro acontecimento fundamental para o crescimento dos subúrbios foi a inauguração, na década de 1880, de duas novas ferrovias. Em 1883, foi aberta ao tráfego, em caráter provisório, a Estrada de Ferro Rio D'Ouro, ligando a Quinta Imperial do Caju à represa do Rio D'Ouro na Baixada Fluminense. Atravessando as freguesias de São Cristóvão, Engenho Novo, Inhaúma e Irajá, essa ferrovia foi construída com a finalidade de transportar material para as obras de construção da nova rede de abastecimento de água da cidade do Rio de Janeiro captada nos mananciais da Serra do Mar, em Tinguá e Xerém. Por acompanhar os encanamentos que traziam a água do Rio D'Ouro até São Cristóvão, a ferrovia foi, inicialmente, utilizada apenas para os trabalhos de conservação do sistema (adutor e distribuidor). Posteriormente ela passou a ter um serviço regular de passageiros, embora jamais tenha tido o mesmo papel indutor da D. Pedro II, já que seu ponto terminal era distante do centro, na Ponta do Caju. (ABREU, 2007)

    A continuidade da cidade propriamente dita é tal que, em grande parte, se torna impossível estabelecer limites entre as paróquias urbanas e as chamadas suburbanas. Todo o percurso da Estrada de Ferro Central do Brasil, até além da Estação de Cascadura, é marginado de habitações, formando, sem quebra de continuidade, inúmeras ruas, que a freqüência e a rapidez de transporte incorporam naturalmente à cidade. O mesmo se dá com relação à vasta planície servida pelas linhas suburbanas do Norte, da Melhoramentos do Brasil e da Rio D’Ouro. Esses subúrbios não têm existência própria, independente do Centro da cidade; pelo contrario, a sua vida é comum e as relações íntimas freqüentes; e a mesma população que moureja, no centro comercial da cidade, com a que reside neste, sendo naturalmente impossível separá-las” conforme descrevia Aureliano Portugal no início do século XX. (ABREU, 2007, pág.1).

3.     A linha férrea, as fábricas inglesas e suas relações com futebol e com o corpo carioca

    A ocupação territorial em Santa Cruz e Campo Grande, cujas Terras compreendiam as regiões onde hoje se localizam Bangu e Jacarepaguá, começaram a se adensar no final do séc. XIX, em 1878, com a implantação de uma estação da E. F. D. Pedro II em Campo Grande, sendo o vetor principal da transformação da área tipicamente rural em urbana. (WIKIPEDIA, s/ data)

    A região começou a progredir em 1878, quando da inauguração da estação de Campo Grande, da Estrada de Ferro Central do Brasil. A partir de então a comunicação tornou-se mais rápida para o centro da cidade e a região começou sua marcha rumo ao vertiginoso desenvolvimento. (WIKIPEDIA, s/ data)

    Como Bangu fazia parte dessa região da cidade, não ficou de fora do desenvolvimento motivado pela E. F. D. Pedro II, e grandes mudanças ocorreram no local onde hoje se encontra esse bairro.

    As fábricas tinham o atrativo do escoamento rápido de seus produtos através do transporte ferroviário, logo todas as instalações das fábricas eram construídas próximas às linhas férreas. Neste momento da história, a grande maioria dessas instalações era de fábricas têxteis de origem inglesa.

    No dia 06 de Fevereiro de 1889, foi constituída a Fábrica de Tecidos Bangu com o nome de Companhia Progresso Industrial do Brasil, mas somente no dia 08 de março de 1893, a Fábrica foi inaugurada e a partir de então o espaço rural existente foi se modernizando rapidamente, trazendo desenvolvimento para a região. (BANGUSHOPPING, s/ data)

    O futebol chegou ao Brasil como um esporte elitista nos últimos anos do século XIX. Aos poucos se popularizou, fazendo adeptos por todas as camadas sociais, mas entre a classe operária, nas fábricas e nos terrenos descampados dos bairros fabris e nas várzeas dos rios, conquistou uma posição de destaque. (ANTUNES, s/data)

    Assim como em São Paulo, na Capital da República, Rio de Janeiro, também iniciou-se a prática de jogar futebol no século XIX, obra dos ingleses contratados pelas fábricas de tecidos e pelos setores de ferrovias e energia elétrica. Em Bangu, os primeiros técnicos têxteis britânicos chegaram no ano de 1891, neste ano a fábrica ainda estava em fase de construção, e eles vieram apenas para a instalação das primeiras máquinas. (MOLINARI. 2004)

    O segundo grupo chegou no final do ano de 1892 vindos de Manchester, Oldham, Yorkshire e Southampton, lugares onde havia fábricas têxteis nos moldes desejados para a fábrica Bangu, esses técnicos passaram a fazer parte do desenvolvimento da região. Segundo consta, foram estes ingleses que introduziram as atividades esportivas no bairro, pois eles organizaram uma forma de trabalho na fábrica que era utilizada na Inglaterra e é utilizada até hoje por algumas empresas, que é trabalhar seis dias na semana e folgar no domingo. Cada imigrante utilizava esta folga como desejava, os italianos realizavam festas com cantorias após o almoço, os portugueses cultivavam a religião e os ingleses voltavam-se para os esportes. (MOLINARI, 2004)

    Além de diferenças ou semelhanças culturais destes imigrantes, existem as físicas, trazendo os signos sociais, que são as “marcas” adquiridas e inscritas nos corpos ao longo da vida social. (GEERTZ, apud MEDINA 1990 – 2009, p. 35). Estes possuem significados e definem o que é corpo de maneiras variadas. Com a convivência do dia-a-dia destes operários as diferentes culturas, mas de maioria inglesa, começaram a se fundir em uma, gerando re-significados sociais e culturais através das relações interpessoais durante o lazer ou labor no pátio das fábricas ou nas ruas.

    O homem por meio do seu corpo vai assimilando e se apropriando dos valores, normas e costumes sociais... Mais do que aprendizado intelectual, o indivíduo adquire um conteúdo cultural, que se instala no seu corpo, no conjunto de suas expressões. Em outros termos, o homem aprende a cultura por meio do seu corpo. (DAOLIO, 2007 p. 39-40)

    Como os imigrantes ingleses que trabalhariam na Fábrica Bangu começaram a chegar antes de sua inauguração, há uma suspeita, ainda não comprovada, que a primeira “pelada” em Terras brasileiras possa ter acontecido em Bangu, seis meses antes que Charles Miller trouxesse bolas da Inglaterra e iniciasse a prática do futebol em São Paulo. Roberto. Assaf (2001) em seu livro, Bangu, reforça esta tese, que também é mencionada por Gracilda de Azevedo (1989) e Carlos Molinare (2004) em Bangu 100 anos – A fábrica e o Bairro e em É nós que somos banguense, respectivamente. (MALUF, 2008)

    No ano de 1893, foram contratados quatro técnicos da firma inglesa Platt Brothers and Co., de Southampton, eram eles: Thomas Hellowell, Andrew Procter, William French e Thomas Donohoe, todos com passagens pelo Southampton Football Club. O que mais amava o esporte era o escocês Thomas Donohoe, que tinha quase dois metros de altura, era um sportman (esportista) nato. (MOLINARI. 2004)

    Football era algo desconhecido para os brasileiros. Os técnicos ingleses mais antigos o conheciam, porém nunca o haviam praticado em terras tropicais. Foi neste momento que o Sr Donohoe se deu conta do engano que cometera. Achou desnecessário trazer uma bola de futebol para o Brasil, pois acreditava que o esporte já era popular por aqui. Na viagem de navio, Donohoe dizia que iria jogar com os estudantes das escolas superiores de Bangu e que logo ao chegar iria se associar a um clube local. O Sr French, mais moderado, questionou Donohoe da existência do football em terras brasileiras e obteve a seguinte resposta: “Ora, se até mesmo os franceses, que nunca tiveram a mínima intimidade com a pelota, conseguiram praticá-lo, é porque em todo o mundo já o fazem muito bem.” (MOLINARI. 2004)

    Para a decepção de Donohoe o football não era praticado no Brasil, mas esta frustração chegaria ao fim ainda no ano de 1893. O Sr. Henry Bennet iria à Inglaterra adquirir peças de reposição, máquinas e outros equipamentos industriais, era a chance que Thomas pedira para fazer uma encomenda especial ao importador. Precisava de uma bola urgentemente, com agulha e bomba para enchê-la e um livro de regras para ensinar aos brasileiros. Feita a encomenda, Donohoe esperou longos meses até o regresso do Sr. Bennet, mas ao chegar o amigo lhe deu a notícia que esquecera a encomenda no quarto do hotel onde ficara hospedado em Londres. (MOLINARI. 2004)

    No ano seguinte, em 1894, Thomas Donohoe tanto insistiu com os grandes diretores da Fábrica, que estes permitiram sua ida, a trabalho, para a compra de material na Inglaterra. De volta à Inglaterra, Donohoe pôde, finalmente, comprar a sua pelota de couro. Todo o equipamento industrial comprado vinha em enormes caixas de madeira, dentro de uma dessas o Sr. Donohoe colocou bem camuflado um pacote contendo uma bola de couro novinha, uma bomba para enchê-la e alguns pares de chuteiras. (MOLINARI. 2004)

Fotos: Primeiras chuteiras e bola que chegaram a Bangu. Fonte: www.bangu.org.br

    Ao regressar, em abril de 1894, o audaz futebolista falou de sua nova aquisição e marcou para o próximo dia de folga uma partida entre todos os técnicos ingleses que trabalhavam na fábrica. Donohoe distribuiu algumas chuteiras para os amigos mais próximos e mostrou a sua preciosidade, que estava guardada na cristaleira de sua casa, a bola. Sem dúvida era a primeira existente no Brasil, um verdadeiro troféu que ele precisou suar muito para conquistar. (MOLINARI. 2004)

    No domingo pela manhã, já era possível ver o Sr Donohoe arrumando uma área livre e fincando quatro estacas, duas de cada lado da várzea, formando assim as traves. Quem passasse pelo local naquela manhã poderia imaginar que o escocês estivesse tentando construir alguma coisa, à tarde, porém, devem ter pensado que todos os técnicos britânicos enlouqueceram. Donohoe chamou de casa em casa todos os seus companheiros dos tempos de Southampton, e um grupo composto de aproximadamente dez homens apareceu nas proximidades do terreno para estrearem a bola nova e matarem a saudade do tão salutar jogo que eles haviam deixado para trás na Inglaterra. (MOLINARI. 2004)

    Cada time jogou com apenas cinco players, mas foi o suficiente para garantirem a diversão. Para Donohoe isso pouco importava, pois o fato principal é que ele havia matado as suas saudades do football e conseguido realizar a sua primeira partida. Não houve preocupação com o uniforme, com as anotações dos gols marcados, com a cronometragem e tão pouco se pensou em anotar o nome dos jogadores, o importante era matar a fome de bola. Por esta falta de dados palpáveis é que se prefere creditar a Charles Miller a introdução do futebol no Brasil em outubro de 1894 e a realização da primeira partida em abril de 1895, um ano após o jogo do Sr Donohoe. Nem mesmo no Rio de Janeiro, a "paternidade" de Donohoe é reconhecida. Concede-se a honra de trazer a primeira bola para o Estado ao descendente de suíços Oscar Cox, no ano de 1897, três anos depois do verdadeiro pioneiro. (MOLINARI. 2004)

    No Rio de Janeiro, em 1897, concede-se a honra de trazer a primeira bola para o Estado ao descendente de suíços Oscar Cox. Mas enquanto o Sr. Cox desfilava do bairro das Laranjeiras ao Centro exibindo sua bola, em Bangu a paixão pelo jogo já era tanta que mais duas outras já haviam sido trazidas da Inglaterra em mais uma encomenda do Sr Donohoe. (MOLINARI. 2004)

    Em 17 de abril de 1904, era fundado o primeiro clube de futebol proletário do Brasil: o Bangu Atlético Clube. Pioneiro na inserção de operários e negros no futebol brasileiro, o Bangu sofreu fortes pressões dos clubes aristocráticos da cidade do Rio de Janeiro, mas resistiu a todas as forças coercivas. (FLOR, 2010)

    Assim como o Bangu surgiram simultaneamente outros clubes pelo Rio de Janeiro e por todo Brasil, sempre por iniciativa de engenheiros e técnicos ingleses de fábricas, em sua maioria, têxteis, e, no Rio de Janeiro, localizadas no entorno das linhas férreas. Os clubes nasciam de jogos improvisados na rua ou no pátio da fábrica, durante o intervalo para o almoço. A divisão entre os interessados não cobria todos os custos que a prática do futebol exigia, então os operários recorriam à direção da fábrica para este financiamento, fundamental para a manutenção da atividade. (ANTUNES, s/data)

    As “peladas” que aconteciam entre os operários das fábricas iniciam a construção do estilo e características de como jogar o futebol, de como o corpo iria se comunicar através das gesticulações e posturas durante o divertimento e os jogos oficiais entre os times. Estas técnicas corporais vivenciadas com o futebol no Rio de Janeiro e posteriormente em todo país, viriam construir o comportamento do corpo durante os jogos. Para reforçar este ponto de vista, Daolio (2007) afirma que no corpo estão gravadas todas as regras, normas e valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio primário de contato do homem com o meio ambiente e social em que vive.

    Esta vivência foi e é tão importante para a formação da cultura corporal do carioca e do brasileiro, que, de acordo com DAOLIO (2007), apenas assistindo a um jogo de Copa do Mundo e futebol pode-se perceber nitidamente as diferenças entre as seleções, que mesmo utilizando o mesmo esquema tático e seguindo as mesmas regras é notória a diferença da expressão corporal entre a seleção brasileira e a alemã, por exemplo.

    Segundo Mauss (1974), os movimentos e gestos corporais são criados pela cultura que é formada através da socialização, daí vem esta diferença que em alguns casos são altamente acentuadas.

    Com o surgimento dos primeiros clubes de futebol, começam a nascer características de gestão e controle que dariam origem ao que hoje são clubes profissionais.

    Exemplo disso é que, como incentivo ao futebol, a direção da fábrica costumava ceder um terreno de propriedade da empresa para a instalação do campo de futebol e a construção da sede social, ou então, ajudava no pagamento de aluguéis. Oferecia uma quantia mensal em dinheiro para as despesas com energia elétrica, limpeza dos uniformes, transporte de jogadores e outras, mas cobrava relatórios e balancetes para saber como os recursos eram aplicados, esboçando-se, assim, uma primeira forma de controle sobre o clube. (ANTUNES, s/data)

    Com vistas ao sucesso do clube e, por extensão, da fábrica, passou-se a fazer uma seleção rigorosa entre os jogadores, apenas os melhores integrariam a equipe. Os empresários acreditavam e apostavam “marketing” através dos clubes, que, em geral, ostentavam o nome da fábrica. O prestígio da empresa não dependia do desempenho da equipe de futebol, mas podia, em parte, ser favorecido por ele, funcionando como um cartão de visitas e um divulgador de seus produtos. (ANTUNES, s/data)

    Os times de fábrica como Andaraí, Bangu, Carioca e Mavílis eram consideradas, como as mais temidas do Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX (PEREIRA, 2000). Isso porque, naquela época (embate amadorismo x profissionalismo), enquanto que os times tradicionais (Fluminense, Botafogo, América e Flamengo) representavam a camada mais rica da nossa população, com o futebol sendo encarado como um passatempo praticado por moços de boas famílias, os times de fábrica e de subúrbio (incluídos aí Vasco da Gama e São Cristóvão) marcavam uma nova realidade, na qual o jogo, praticado por membros das camadas menos favorecidas, serviria como uma chance de vencer a miséria a partir da adoção de um profissionalismo disfarçado ou "amadorismo marrom", uma possibilidade de ascensão social. A bola passou a ser encarada como um verdadeiro prato de comida. A disputa no campo de jogo passou a representar também uma luta pela própria sobrevivência. Os simpatizantes dos times de fábrica não iam aos campos para gritar o nome da empresa e sim para torcer pelos companheiros operários com os quais eles se identificavam. (FERREIRA, 2005, p.1)

    Muitos jogadores revelados pelas fábricas projetaram-se para o futebol dos grandes clubes, mas poucos atingiram o sucesso financeiro, sorte reservada aos craques, jogadores de alto nível técnico. A maioria deles, embora melhorando seu padrão de vida, teria um futuro incerto após o encerramento da carreira. Como exemplo de operário-jogador bem sucedido como profissional nos grandes clubes do país temos o Garrincha, o gênio de pernas tortas. No time do Sport Club Pau Grande, organizado pelos operários da tecelagem Cia. América Fabril de Pau Grande, Rio de Janeiro, onde trabalhava desde menino, começou sua carreira como operário-jogador em 1949; o goleiro Barbosa, do Vasco da Gama e da Seleção Brasileira na Copa de 1950, despontou para o futebol no time de uma indústria química em São Paulo, Bauer; Leônidas da Silva, o Diamante Negro, atuou num time de funcionários da Light & Power do Rio de Janeiro. (ANTUNES, s/data p.1)

    Logo com toda essa força, as fábricas contribuíram para a difusão, evolução e organização do futebol e todo o esporte moderno no Brasil, partindo dos modelos e das práticas efetuadas na Inglaterra trazidas pelos operários e pelos filhos das famílias burguesas que estudavam na Europa e praticavam quando retornavam ao Brasil.

Conclusão

    A pesquisa mostra que a influência inglesa está presente em toda construção da sociedade e da cultura corporal carioca e que as instalações das fábricas inglesas estão intimamente relacionadas com a construção e ampliação das estradas férreas no Rio de Janeiro, pois era o meio de escoamento de seus produtos mais eficaz. Sendo assim, há alguns casos que as estações foram construídas como estratégia para as fábricas. O melhor exemplo disso é a estação de Bangu, que foi construída para atender com mais eficácia a Fábrica Bangu.

    Já a difusão e a organização do futebol no Rio de Janeiro estão ligadas com as Fábricas inglesas pela prática da modalidade como lazer por seu proletariado e pelos times fundados por elas, chegando, em alguns casos, até se tornarem clubes profissionais.

    Conforme o estudo mostrou em certo momento, é preciso o aprofundamento histórico referente à primeira partida de futebol, pois há indícios de ter acontecido antes de Charles Miller retornar ao Brasil, com Thomas Donohoe, um dos técnicos britânicos contratados pela fábrica Bangu, numa área livre que existia nos jardins da Fábrica.

    Com certeza os costumes destes ingleses com as “peladas” aos domingos e os times das Fábricas não só influenciaram como também formaram o comportamento social e a cultura corporal do carioca, que seria outra se o futebol houvesse sido inserido na sociedade do Rio de Janeiro em outro momento ou de outra forma.

    Como comprovação da influência inglesa na cultura e na cultura corporal do carioca basta apenas imaginarmos o Rio de janeiro sem a vivência corporal incluídas pelos ingleses nas fábricas, através do futebol. E de forma mais enfática é pensar no Rio de Janeiro sem a existência das “peladas” de fim de semana e o próprio desporto em si.

Referencias

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