Considerações didático-metodológicas para a realização de aulas de capoeira com crianças hemofílicas a partir da experiência conduzida em ambiente hospitalar Consideraciones didáctico-metodológicas para la realización de clases de capoeira con niños hemofílicos a partir de una experiencia llevada a cabo en un ámbito hospitalario Teaching-methodological considerations for conducting capoeira classes for children with hemophilia from experience conducted in a hospital environment |
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*Professor Assistente no Curso de Licenciatura em Educação Física da Universidade Federal do Amazonas, Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia, Campus do Baixo Amazonas, Parintins, AM **Licenciatura Plena em Educação Física pela Faculdade Alvorada de Educação Física e Desporto. Especialização em esporte escolar (CEAD/UnB) Mestrando do Curso de Pós Graduação em Educação Física da Universidade Católica de Brasília (UCB) Professor/coordenador do Centro Internacional de Treinamento em Hemofilia |
Marcelo Rocha Radicchi* Luís Gustavo Normanton Beltrame** (Brasil) |
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Resumo A partir de uma experiência prática com aulas de capoeira para 60 crianças e jovens hemofílicos em ambiente hospitalar, buscamos fornecer reflexões e direcionamentos práticos para realização de trabalhos com a capoeira para crianças e jovens com hemofilia. A capoeira foi trabalhada em suas diversas possibilidades de movimentação considerando-se as especificidades associadas à própria condição que a hemofilia acarretava nos alunos, devendo, inicialmente vencermos algumas barreiras como a própria idéia de que o sujeito hemofílico não poderia praticar a capoeira. O trabalho com a capoeira para crianças e jovens hemofílicos sugere modificações didáticas e metodológicas que devem ser levadas em consideração pelo professor. Cuidados como priorização de trabalhos de força próximos à isometria, diminuição do impacto nos movimentos por meio de colchões e manipulações pelo professor visaram reduzir o risco de situações que acarretem lesões e acidentes. Deve-se principalmente partir de um trabalho que considere o aluno em sua individualidade psicológica, social e afetiva. Unitermos: Hemofilia. Capoeira. Educação Física. Equipe multidisciplinar.
Resumen Palabras clave: Hemofilia. Capoeira. Educación Física. Equipo multidisciplinario.
Abstract Keywords: Hemophilia. Capoeira. Physical Education. Multidisciplinary team.
Este artigo foi baseado em trabalho de conclusão do Curso de Especialização em Esporte Escolar da Universidade de Brasília, Centro de Educação à Distância (UnB/CEAD), no ano de 2007
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 16 - Nº 156 - Mayo de 2011. http://www.efdeportes.com/ |
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Um pouco sobre hemofilia e o que propomos no trabalho
Sabe-se da importância da atividade física e das vivências motoras diversificadas no desenvolvimento do ser humano (BARELA, 1999; ANTUNES, 2005), seja este, portador ou não de alguma condição que exija considerações especiais para a sua prática, como é o caso da hemofilia.
Hemofilia é uma condição de origem hereditária que afeta o normal processo de coagulação sanguínea, resultando em episódios de sangramento prolongados, que quando não tratados da maneira correta, além do risco imediato (seja por prolongada hemorragia interna ou externa) – de morte inclusive – podem em longo prazo, levar a deformações articulares e perdas de mobilidade, resultando em decréscimo na qualidade de vida (BUTLER et al., s/d). A falta ou presença reduzida de determinadas proteínas sanguíneas (chamadas de “fatores de coagulação”) no sujeito com hemofilia determina estes episódios anormais de sangramento, que podem ser espontâneos (hemofilia classificada como grave) ou como resultado de grandes traumatismos ou cirurgias (hemofilia leve) (BUTLER et al., s/d). O tratamento da hemofilia consiste na reposição da proteína sanguínea que o indivíduo não possui ou que possui em pouca quantidade (estas proteínas são chamadas de fator VIII ou IX, correspondendo respectivamente, a sua falta às classificações da hemofilia em A ou B).
Embora estejam ocorrendo mudanças no tratamento, seja pela criação de novos medicamentos e técnicas terapêuticas (cada vez mais avançados, propiciando maior autonomia e qualidade de vida para o sujeito), seja no enfoque do próprio tratamento, que tem se deslocado cada vez mais da doença em si para o sujeito com a doença (JONES et al., 2003, BUTLER et al., s/d), ainda é bastante difundida a idéia que portadores de hemofilia não devam praticar atividades físicas devido aos riscos que esta acarreta de lesões, cortes e traumatismos (CAIO et al., 2001; PINTO et al., 2001). Essa idéia, que vem progressivamente sendo questionada, influenciou negativamente o desenvolvimento em seus domínios psicomotor, cognitivo, afetivo e social de muitas crianças, jovens e adultos, negando-lhes as experiências e vivências motoras essenciais ao seu pleno desenvolvimento (GALANTE et. al, 2006; SARMIENTO et al., 2006).
Dada esta impossibilidade, que muitas vezes parte desta própria concepção tradicional de tratamento da hemofilia, reduzindo as possibilidades de movimentação e experiência motora nas crianças e jovens com hemofilia, encontra-se aumentados os riscos psicossociais a que crianças hemofílicas estão expostas, sendo maior a incidência de casos de depressão, ansiedade, insegurança, sensação de injustiça, raiva e medo (CAIO et al., 2001). Associa-se também à condição uma relatada pequena adesão dos sujeitos hemofílicos às práticas de atividades físicas regulares (CAIO et al., 2001) e, portanto, menor nível de aptidão física observado em crianças com esta condição (GALANTE et al., 2006).
Embora vários trabalhos citem a utilização da capoeira como um recurso educativo (REAL, 2004; REIS, 2006), suas possibilidades pedagógicas (CASTRO Jr. & ABIB, 1999; NORONHA & NUNES, 2004; FARIA & GALATTI, 2007), e construção da identidade sócio-cultural dos alunos (NORONHA & NUNES, 2004), os estudos que se aprofundam na relação entre esta atividade física (e espiritual, corporal, expressiva etc.) e hemofilia são escassos.
Sendo assim, buscamos relatar um trabalho exploratório realizado no Hospital de Apoio do Distrito Federal (HADF) com aulas de capoeira para crianças portadoras de hemofilia. Tal trabalho encontrou-se inserido no tratamento oferecido aos pacientes hemofílicos pela equipe multidisciplinar do HADF. Buscamos, através da realidade vivenciada, formular sugestões didático-metodológicas para o ensino da capoeira para crianças portadoras de hemofilia.
Como construímos nossas observações
Entre maio de 2005 a maio de 2006, foram atendidos aproximadamente 60 alunos (crianças e jovens) hemofílicos regularmente inscritos no Programa de Atendimento Multidisciplinar (PAM) oferecido pelo Hospital. Estes alunos freqüentavam o HADF três dias na semana, participando, além das consultas médicas de rotina (acompanhamento por hematologista, ortopedista, fisioterapeuta etc., aplicação de fator de coagulação, conversa com os pais ou acompanhantes dos alunos etc.), das atividades físicas propostas, que eram conduzidas pelos professores de Educação Física nas seguintes modalidades: natação, futebol, capoeira e musculação. As atividades físicas eram oferecidas por professores e estagiários em Educação Física, sob a coordenação de um professor de Educação Física que respondia à equipe médica. Estas atividades físicas eram entendidas como parte do tratamento e estavam associadas ao convênio que o HADF mantinha, na época, com o Programa Segundo Tempo (Ministério dos Esportes).
As observações aqui relatadas foram realizadas no decorrer das aulas pelo próprio professor de capoeira, sendo algumas observações e reflexões aqui presentes, fruto de discussões e debates ocorridos na ocasião de reuniões conjuntas com a equipe de professores de Educação Física e/ou com a equipe médica envolvida no tratamento oferecido às crianças e jovens portadores de hemofilia que participavam das aulas. Com base no observado nas aulas com os alunos e com base também na literatura (embora escassa) existente na área, foram propostas algumas considerações didático-metodológicas com orientações práticas para a realização de aulas de capoeira com sujeitos (jovens e crianças) possuidores desta condição em especial.
Ressalta-se a particularidade deste trabalho pelo fato de ter acontecido dentro de um ambiente hospitalar, com um grupo muito selecionado (crianças hemofílicas inscritas em um PAM), além da realidade de tratamento apresentada pelo HADF ser bastante avançada quando comparada a outras realidades no Brasil e mesmo na América Latina (o HADF é um Centro de Referência Internacional no tratamento da hemofilia).
Sobre os alunos e algumas reflexões pertinentes
Os alunos que participavam das aulas de capoeira eram provenientes de diferentes localidades do Distrito Federal e mesmo de fora, no estado de Goiás, como foi o caso de alunos provenientes de Valparaíso (GO). As idades variavam entre crianças de 4 até jovens de 17 anos, participando das atividades em grupos separados (dentro das possibilidades) em dois grandes grupos pelo critério de faixa etária.
Como relatado anteriormente, o tratamento da hemofilia, quando não realizado de maneira adequada e a depender também, da própria gravidade da hemofilia de cada sujeito, pode determinar severas limitações de mobilidade, com restrições articulares graves. Tal realidade fora observada para os alunos mais velhos (principalmente após os 10 anos de idade), porém fora menos constatada nas crianças mais jovens (3 a 9 anos de idade), concordando com Galante et al. (2006). Esse fato pode ser explicado pela sucessiva ocorrência de hemorragias intra-articulares (também chamadas hemartroses) nos alunos mais velhos – uma ocorrência bastante freqüente na hemofilia mal-tratada – que pode levar à deformidade, enrijecimento e diminuição da amplitude articular (PINTO et al., 2001).
Talvez esse fato possa elucidar o motivo pelo qual as crianças mais jovens (3 a 9 anos) terem se demonstrado maior disposição à realização das aulas de capoeira. Por não ter ainda (ou em menor grau) contato com as dores e limitações advindas da hemofilia mal-tratada, demonstram maior desprendimento e interesse em participar das aulas e experimentar novos movimentos.
Notou-se em algumas crianças certa resistência à atividade física e aceitação de novas atividades (influenciados talvez pela antiga convenção terapêutica de afastamento da atividade física ou por medo realmente de se machucar e vir a necessitar de internação); outras encaravam as aulas como desafios que muitas vezes eram levados muito a sério, ocasionando até mesmo riscos imediatos de traumatismos. Nesses casos, a intervenção do professor foi necessária para que estes alunos para que não se machucassem. Relato o caso de um aluno, portador de hemofilia grave e com seqüelas na articulação do joelho (a característica de uma articulação que já sofreu sucessivos processos de hemartroses é que esta tende a inchar, podendo ficar com a aparência de uma “bola de futsal”, prejudicando a movimentação, sendo bastante dolorosa) que queria demonstrar que tinha aprendido o movimento do “aú” da capoeira (ou “roda” na Ginástica Olímpica) e realizava o movimento sem supervisão do professor e sem o auxílio de colchões para o amortecimento das quedas, terminando o movimento invariavelmente com um impacto do calcanhar no chão.
Um caso que pode ilustrar da internalização desse ideário de proibição da realização de atividades físicas por hemofílicos é o de um aluno de 8 anos de idade, hemofílico. Tratava-se de um aluno extremamente motivado e participante ativo das atividades propostas nas aulas. Ao conversar informalmente com a mãe deste (a família era proveniente do interior do estado do Paraná) sobre a enorme vontade de aprender por ele demonstrada durante as aulas, soube-se que a vontade de envolvimento em atividades físicas encontrava-se anteriormente reprimida, pois à criança era imposta a proibição pela equipe médica local – ciente das fracas condições de atendimento médico que eram apresentadas na cidade – quanto à realização de qualquer atividade física (inclusive brincadeiras com outros colegas). A mãe citou que nesta época, a proibição gerava sentimentos e questionamentos bastante negativos na criança, que chegou um dia a afirmar que “queria morrer, por ser diferente das outras crianças e não poder brincar como elas”. Com o seguimento do novo tratamento e estímulo à prática de atividades físicas, oferecido pelo PAM no HADF, percebemos como se ele desejasse resgatar todas as experiências motoras e o desenvolvimento que a ele foram negadas anteriormente. Segundo as palavras da própria mãe: “parece que ele quer agora recuperar o tempo perdido” e ainda: “se deixar ele quer brincar e aprender coisas novas o dia todo”.
Um cuidado nesse caso específico diz respeito à criação exagerada de expectativas por parte da criança que, se não correspondidas (ou no caso de serem frustradas), pode levar a uma atitude de rejeição e abandono da atividade (MAGILL, 1998). Acreditamos que não se deva “frear” a criança, mas encontrar alguma forma de canalizar todas essas expectativas e energias do aluno para a construção de um hábito e vivências motoras saudáveis e equilibradas, evitando-se assim, a decepção e o abandono da atividade física.
Citaremos dois casos onde a doença (hemofilia) parece ter influenciado negativamente a formação do autoconceito e equilíbrio psicossocial nos alunos, conforme constatado por Caio et al. (2001):
O primeiro se trata de um menino, hemofílico, portador de limitação articular nos joelhos e tornozelos, com 10 anos de idade. Durante as aulas de capoeira essa criança se demonstrava bastante motivada e ansiosa, de modo que a vontade de fazer movimentos sem o devido cuidado e sem supervisão gerava o perigo de lesões sérias, e muitas vezes atrapalhando o andamento da aula (era comum essa criança demandar mais atenção, desejando demonstrar movimentos que estava aprendendo: “olha só o que eu sei fazer!”), interrompendo as explicações e a proposição das atividades. Essa criança parecia avessa à ajuda dos outros, inclusive do professor (“pode deixar que eu sei fazer sozinho”) e a percepção relacionada à capacidade para realização de alguns movimentos às vezes ultrapassava suas reais possibilidades de movimentação percebidas pelo professor. Ao conversar com a equipe multidisciplinar sobre esse aluno em especial, soube-se que, devido aos cuidados que os pais da criança tinham com relação ao filho por este ser hemofílico, acabou-se por superproteger a criança, fato bastante comum em pais com filhos hemofílicos, já citado por Butler et al. (s/d). Foi relatado que em determinada época já na fase escolar da criança, os pais, preocupados com a segurança do filho pediam a esta que usasse um capacete para freqüentar a escola (os sangramentos intracranianos provocados por traumas são de extrema gravidade e fatais). Talvez esse fato possa ajudar a compreender a tendência à auto-afirmação por parte do aluno, provando para os outros (e para si mesmo) que é capaz de realizar algo sozinho, sem a proteção dos pais, o que não deixa de ser uma forma de a criança buscar seu sentimento de autonomia, mas que deve ser observada com atenção pelo professor durante as aulas para que este possa auxiliá-la no desenvolvimento deste auto-conceito.
O segundo caso é de um menino hemofílico de 7 anos. A criança constantemente se demonstrava agressiva (ex: fazia movimentos com os braços para machucar os colegas durante as atividades; ao ver um dia ovos de pássaro no gramado do HADF, pisou em todos), dispersa (necessitava ser chamado a atenção diversas vezes para realizar a atividade proposta, dificultando muitas vezes, o andamento da tarefa) e resistente às atividades propostas (pelo fato de não realizar as atividades parecia estimular os outros alunos a também não realizarem). Com o passar das aulas de capoeira e das demais modalidades esses sentimentos e atitudes negativas foram sendo trabalhados (por meio de conversas com os pais, com a criança, atitudes de reforço positivo nas atividades dentre outras), de forma que ao término das atividades da capoeira no PAM, a criança já se encontrava bem mais “sociável” (palavras da mãe da criança) e cooperativa, fato notado por ambos os “responsáveis” desta: a equipe de atendimento que lidava com a criança (professores, médicos etc.) e a própria família da criança. Ao conversar com a mãe da criança, soube-se da história que antecedeu sua vinda para o Distrito Federal (DF): a condição de atendimento do sistema de saúde do local onde moravam (região Nordeste) não proporcionou o diagnóstico da hemofilia na criança desde seu nascimento, até o dia em que houve um episódio de hemorragia severa, onde a criança perdia sangue sem saber-se como parar o sangramento. Após perder boa parte do sangue pela hemorragia, “branquinho, quase morto” (como relatou a mãe), conseguiu atendimento (após viagem de urgência em ambulância da cidade) em um hospital da cidade vizinha e foi então que se soube que a criança era hemofílica. Não se sabe até que ponto essa experiência possa ter estimulado seus comportamentos observados de agressividade e isolamento social, há de se considerar a idade em que isso tenha ocorrido e, é claro, fatores subjetivos tais como personalidade e a forma como cada indivíduo lida com acontecimentos traumáticos (NEVES, 2006).
Caracterização das aulas de capoeira
As aulas de capoeira eram ministradas 3 vezes na semana, possuindo a duração de 1 hora e meia para cada turma. As crianças eram divididas em duas grandes turmas com base na faixa etária (3 a 10 e 11 a 18 anos).
Utilizamo-nos de muitos jogos e brincadeiras para o aprendizado dos conteúdos da capoeira, com ênfase maior nos jogos para a turma das crianças de 3 a 10 anos de idade. Em todas as turmas um aspecto importante que foi trabalhado, geralmente no início das aulas, foram os exercícios de alongamento e estímulo à flexibilidade, muito importantes não só para a capoeira, mas também como medida preventiva nos encurtamentos musculares e deformidades músculo-articulares associadas à hemofilia mal-tratada. Com a turma dos alunos entre 11 e 18 anos, foi dada ênfase nos exercícios de fortalecimento muscular, tendo em vista a possibilidade de redução na gravidade e a freqüência dos sangramentos em pacientes hemofílicos (RIBEIRO & OLIVEIRA, 2005).
O objetivo almejado pelas aulas não era a formação de “mestres” de capoeira, mas a promoção de vivências e experiências com a capoeira para a conscientização e estímulo à auto-suficiência e à qualidade de vida nestes alunos. O próprio caráter de resistência cultural da capoeira (ABIB, 2007) foi trazido nas aulas com a intenção pedagógica de criação de uma consciência de contestação da condição socialmente imposta de “deficientes” ao portador de hemofilia, vistos como incapazes de produzir algo, através da compreensão das limitações existentes, porém as estratégias para superá-las a partir da valorização de características da individualidade de cada aluno.
Sugestões didático-metodológicas nas aulas de capoeira com alunos hemofílicos
Considerações sócio-psicológicas
Pensamos ser necessário partir de uma consideração em especial sobre os próprios condicionantes sociais e psicológicos que o aluno poderá trazer à aula, como nos alertava Caio et al. (2001), ou seja, é necessário conhecer um pouco mais das condições e da “história” individual dos alunos com esta condição, pois parece “marcar” em alguns casos, a própria forma destes relacionarem-se com o mundo.
Como foi relatado, o professor de capoeira poderá enfrentar situações de descrença por alguns alunos, convencidos de que nunca poderão praticar a capoeira normalmente devido às suas limitações sejam de ordem física (encurtamentos e limitações articulares, fraqueza muscular) ou psicológica (medo de se machucar, falta de confiança em si e no professor etc.), inicialmente não externadas, mas, muito mais, “sentidas” pelo professor no decorrer das aulas. Deve-se buscar a causa de tal comportamento, desvendá-la por meio de conversas e dinâmicas (individuais e em grupo) para então serem trabalhadas. É necessário paciência e sensibilidade da parte do professor, sem obrigar a criança a fazer o que não deseja e ao mesmo tempo procurando trabalhar com ela o gosto pela atividade e procurar alternativas que ela aceite e que sinta prazer em praticar. Não seria também interessante assumir a postura de detentor único do saber ou tentar impressionar as crianças com movimentos de difícil execução a fim de se evitar a transformação do aluno em expectador “admirado” e “envergonhado” de sua performance, obviamente que caberá ao professor avaliar de maneira criteriosa cada caso.
A sugestão por atividades iniciais de familiarização com os movimentos básicos da capoeira, progressão na dificuldade dos conteúdos de aprendizagem e dinâmicas de caráter lúdico associadas às atividades de conhecimento dos gestos técnico relativos à capoeira, além de explanações teóricas e dinâmicas que promovam a familiarização com os conceitos culturais, personagens, mitos e lendas relacionados à capoeira favorecem o gosto e permanência do aluno na aula. Há de se considerar o peso que a hemofilia, quando mal tratada e mal compreendida, pode carregar na formação da noção de corporeidade dos indivíduos (CAIO et al., 2001). Portanto, o professor deve estar preparado a vencer de maneira positiva as barreiras apresentadas pelo aluno, sejam elas de ordem física ou emocional, social etc., procurando não reforçar a limitação do aluno, mas procurar explorar ao máximo as qualidades de cada um.
Proporcionar aos alunos o conhecimento teórico-prático do vasto leque de opções que a capoeira tem a oferecer para o desenvolvimento pessoal do aluno é uma boa opção a fim de vencer “barreiras”; um aluno pode buscar seu caminho de desenvolvimento seja nos cantos, nos instrumentos, na realização dos movimentos, na confecção dos materiais etc. Variadas são as opções a serem oferecida aos alunos, tendo o professor sempre o cuidado de oferecer a oportunidade de conhecerem e valorizarem todos os aspectos que integram a capoeira, sem hierarquizá-los, já que todos são fundamentais para a sua prática.
Outra situação possível de ser encontrada são crianças que, ao invés de encontrarem-se reprimidas em suas práticas motoras, apresentam-se excessivamente ansiosas durante as aulas de capoeira, de forma que, se não bem-orientadas, podem vir a agravarem seu prognóstico1 da hemofilia (lesões articulares por traumatismos que levam a perda de qualidade de vida, por exemplo) ou até mesmo a perda pelo interesse pela prática, caso as expectativas individuais por algum motivo sejam frustradas. Nesse caso, há de se considerar o que leva a criança a se comportar de tal maneira. Como no caso já citado da criança que queria provar para si e para os outros que sabia fazer tudo sozinha agindo de tal maneira, provavelmente, a fim de superar/negar a superproteção com que os pais sempre a trataram. Conversas com os pais e esclarecimentos para estes sobre o tratamento da hemofilia, que hoje em dia enfoca o estímulo à prática das atividades físicas para obtenção de um desenvolvimento harmônico, podem auxiliar na forma como estes cuidam de seus filhos. Atividades que enfatizem a noção de socialização e atividades que estimulem a cooperação podem ajudar o desenvolvimento nessas crianças de um senso de pertencimento ao grupo (REIS, 2006) e socialização sem, ao mesmo tempo, negar a necessidade de auto-afirmação da criança.
Um cuidado especial para identificação das expectativas e estabelecimento claro de metas com a criança deve ser tomado a fim de não desestimulá-la, além de evitar-se que as expectativas se transformem em ansiedade e sentimentos que possam adquirir aspectos negativos para esta criança (MAGILL, 1998).
Considerações metodológicas e práticas
Hemofilia é uma condição que, quando mal-tratada está relacionada ao aparecimento de limitações articulares e limitações na mobilidade severas (PINTO et al., 2001). É uma condição relacionada a um alto risco de morte associada a traumatismos e cortes (CAIO et al., 2001). Sendo assim, alguns cuidados quando na condução de aulas de práticas motoras com estes alunos devem ser tomados. Note-se que as observações e sugestões aqui contidas são baseadas na experiência pessoal do professor, inserido em uma equipe de atendimento multidisciplinar especializada no tratamento da hemofilia, dentro de um ambiente hospitalar, capacitado para o pronto-atendimento do sujeito hemofílico caso fosse necessário.
O primeiro passo, pensamos, é a necessidade de conhecimentos básicos relacionados à condição de ser hemofílico, sejam a nível de fisiologia humana, do exercício e da fisiopatologia da condição, além, do aspecto principal da própria consciência e os conhecimentos relacionados à hemofilia por parte do próprio paciente (ou seus responsáveis). Tal contexto fora possibilitado pelo fato de serem todos os alunos, pacientes que já vinham recebendo atendimento junto à equipe médica multidisciplinar no HADF, onde recebiam, juntamente com seus pais e responsáveis, instruções sobre hemofilia e seus cuidados.
Com relação à capoeira, pensamos que o principal aspecto que deva ser levantado ao iniciar-se um trabalho para portadores de hemofilia seria o questionamento a ser conduzido pelo próprio professor na idéia de capoeira que se deseja adotar? Qual concepção e para quê a capoeira para aqueles alunos? E, principalmente, como ela será aplicada?
Consideramos válidos os enfoques da capoeira enquanto arte, dança, esporte e até mesmo luta (a depender dos objetivos traçados conjuntamente entre professor e alunos e a realidade de que se dispõe), considerando que cada aspecto possibilitado pela capoeira poderá vir a auxiliar ao menos um sujeito (inserido no grupo de participantes) que a pratica. Por não sermos iguais, possuímos vontades e expectativas diferentes, caminhos de desenvolvimento que devem ser trilhados junto a outros, mas determinados individualmente. Os objetivos que unem um grupo podem ser únicos, mas as razões que levam os sujeitos a fazerem ou não parte desse grupo são individualmente determinadas (REIS, 2006).
Na prática realizada no HADF o enfoque dado não era o da competição, mas sim a utilização da capoeira para o desenvolvimento integral do indivíduo. Sendo assim, não importava a perfeição técnica nos movimentos, mas sim a intencionalidade presente e o significado deste para o sujeito. Um aluno cadeirante, por exemplo, embora não pudesse realizar os movimentos de perna (golpes) tais como “armada” ou “queixada”, auxiliava na organização da roda e no toque dos instrumentos.
Sabe-se que a maior parte das lesões com comprometimento na mobilidade articular relatadas para a hemofilia ocorre nas articulações dos tornozelos, joelhos, coxas e ombros (PINTO et al., 2001), procuraram-se evitar, sempre que possível, a utilização de movimentos que solicitassem o movimento de agachar, como por exemplo, a “negativa”, “esquiva frontal”, “cocorinha” (com agachamento profundo) nos alunos que apresentassem mobilidade articular mais comprometida. Tal realidade sugere a necessidade de uma criteriosa avaliação do professor para a utilização da capoeira em sua vertente da Angola, que, tradicionalmente constitui-se de um jogo mais próximo ao chão (já que no jogo de Angola os jogadores encontram-se geralmente de cócoras ou em posição de “negativa”, em quatro ou três apoios), o que não inviabiliza, entretanto, uma adaptação de movimentos e criação a partir da idéia de movimento e de dinâmica de jogo da capoeira Angola, adaptados à realidade apresentada (alunos, situação, materiais disponíveis, tratamento etc.).
Com vistas ao melhoramento da flexibilidade articular, manutenção e recuperação das amplitudes articulares nos alunos (funções protetoras da atividade física no hemofílico segundo Say et al., [s/d]), atenção especial deve ser dada nas aulas aos exercícios de alongamento e fortalecimento muscular. Ressalta-se a importância também do alongamento para o desenvolvimento da consciência corporal (MARTINS, 2004), muitas vezes, pouco desenvolvida nos sujeitos hemofílicos (devido a já citada idéia de incompatibilidade entre hemofilia e atividade física que pode levar a um fraco desenvolvimento do repertório motor).
Uma modalidade de trabalho da força e resistência musculares que se mostrou bastante benéfica e com baixos riscos para o hemofílico foram as modalidades de treinamento que priorizam a força isométrica, tais como o treinamento de golpes da capoeira com menor velocidade mas com maior controle muscular (baixa velocidade de membros, mas alto controle cinético do movimento no membro).
Um recurso bastante útil a fim de se evitar maiores impactos é a utilização de colchões para amortecimento das possíveis quedas durante o aprendizado de alguns movimentos nas aulas tais como “aú”, “bananeira”, “macaco” e “S dobrado”. Estes movimentos podem ser vivenciados, porém o cuidado do professor deve ser no sentido de evitar ao máximo o impacto associado a uma aterrissagem mal-sucedida, utilizando-se, sempre que possível, colchões e realizando a segurança do aluno durante a execução do movimento para aqueles que ainda não o dominam (a exemplo da segurança que é oferecida durante a aprendizagem das técnicas de ginástica olímpica)2.
Embora não seja uma realidade acessível em muitos locais, o treinamento da capoeira em meio aquático foi um recurso utilizado para a experimentação de movimentos mais acrobáticos e que causariam maior impacto nas articulações tais como o “mortal”, “palhaço”, “martelo rodado”, entre outros. A vivência do movimento dentro d’água proporciona além do prazer de estar em meio aquático, a satisfação de ter realizado um movimento que talvez a pessoa achasse que nunca fosse capaz de fazer, proporcionando assim, experiências inovadoras ao sujeito. Ressalta-se que os movimentos nesta ocasião foram feitos dentro da água, com uma boa profundidade e sob supervisão direta do professor (que também entrava na piscina para ensinar os movimentos).
Cabe lembrar que um fator primordial que determinará o grau de esforço a que um sujeito hemofílico pode ser submetido poderá variar, devendo-se observar seu grau de hemofilia, se há limitações motoras e comprometimento articular, o estágio do tratamento em que se encontra (ex: pós-operatório ou episódios agudos como inflamação na articulação podem contra-indicar a prática de exercícios físicos mais vigorosos), a familiarização e o passado de vivências motoras do sujeito com a atividade, além, é claro, do acompanhamento e adesão ao tratamento médico recomendado (SAY et al., [s/d]).
Um caso interessante, que demonstra essa diversidade de aptidões que os sujeitos podem apresentar e da própria importância de um tratamento bem-acompanhado na hemofilia para o desenvolvimento “normal” do sujeito, é o de um aluno, portador de hemofilia grave e praticante de capoeira desde a infância (na época da participação no PAM do HADF ele estava com 18 anos de idade) que “jogava” capoeira de uma forma extraordinária, realizando movimentos mais complicados como salto “mortal”, “martelo-rodado”, “macaco”, impressionando até mesmo a equipe médica que o orientava. Ressalta-se que neste caso em especial, a criança recebeu desde pequena o tratamento de forma adequada, tanto do ponto de vista clínico, quanto do ponto de vista social e psicológica, de forma que pôde se desenvolver como as outras crianças “ditas normais”, estimulando suas vivências diárias de brincadeiras, jogos, enfim, das práticas de movimento que devem ser oportunizadas a todas as crianças para seu pleno desenvolvimento.
Para concluir
A capoeira nesse contexto hospitalar e de reabilitação, que não prioriza a capoeira de maneira “performática”, ou tecnicamente “perfeita”, mas antes a experimentação motora e a vivência da dinâmica de movimentos corporais, da musicalidade, do contexto sócio-cultural e histórico associados à capoeira podem constituir uma atividade complementar no “tratamento” oferecido ao sujeito com hemofilia. “Tratamento” no sentido de transcender os benefícios no plano motor e a melhoria nas capacidades físicas, alcançando o domínio do “sentir-se capaz de”. Diz respeito, então, ao sujeito conseguir vencer obstáculos, socialmente, psicologicamente (e terapeuticamente) impostos, ligados à idéia de “incapacidade” e “fragilidade” do sujeito portador de hemofilia. Penso estar aí uma grande possibilidade no trabalho com a capoeira para crianças e jovens com hemofilia, partilhando, desta forma com a idéia de resistência (ABIB, 2007) associada à capoeira, resistência a esta identidade de “frágil” e “incapaz” associada ao sujeito portador de hemofilia.
No entanto, cabe colocar que cuidados práticos tais como a priorização de trabalhos com movimentos próximos à isometria ou com baixa velocidade de realização, diminuição do impacto na realização dos movimentos por meio de colchões e manipulações por parte do professor devem visar reduzir ao máximo o risco de situações não previstas que possam vir a causar lesões e acidentes, que possam levar à redução na qualidade de vida do paciente/aluno, ou até mesmo à sua morte. É importante também a consideração da individualidade psicológica, social e afetiva do aluno portador de hemofilia, sendo necessária uma maior consideração do professor nestes aspectos que o aluno traz consigo de maneira “corporificada” (o já citado “peso” psico-social da hemofilia para o sujeito).
Notas
Predição do curso futuro de uma doença, após sua instalação.
O professor permanece junto ao aluno, atento a possíveis quedas, manipulando e proporcionando firmeza ao movimento quando necessário.
Referências
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ANTUNES, AC. Formação esportiva: privilégio de alguns ou oportunidade para todos. EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires. Ano X, n 83, abr., 2005. http://www.efdeportes.com/efd83/esport.htm
BARELA, JA. Aquisição de habilidades motoras: do inexperiente ao habilidoso. Motriz. v 5, n 1, jun., 1999.
BUTLER, RB; CRUDDER, SO.; RISKE, B; TOAL, S. Basic Concepts of Hemophilia: A self-study and planning workbook for families with a new diagnosis of hemophilia. Centers for Disease Control and Prevention. [s/d].
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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 16 · N° 156 | Buenos Aires,
Mayo de 2011 |