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A utilização do karate como um meio de abordagem das lutas 

enquanto conteúdo da Educação Física escolar: um relato de experiência

La utilización del karate como un medio de abordaje de las luchas 

como contenido de la Educación Física escolar: un relato de la experiencia

 

*Especialista em Exercício físico aplicado à reabilitação cardíaca

e a grupos especiais - Universidade Gama Filho

Especialista em Ensino da Educação Física

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

** Mestre e Educação. Universidade Federal

do Rio Grande do Norte

Ana Kamily de Souza Sampaio Fonseca*

Allyson Carvalho de Araújo**

anakamily@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Este trabalho visa relatar uma experiência pedagógica que buscou oportunizar a vivência do conteúdo lutas em aulas de Educação Física escolar, bem como auxiliar o professor de Educação Física de uma escola particular de Natal/RN a elaborar estratégias para usar tal conteúdo em suas aulas. Foram realizadas três intervenções e duas aulas de karate para uma turma do 3º ano do Ensino Fundamental I, adotando a abordagem metodológica construtivista-interacionista, usando jogos de combate na elaboração das atividades. Os objetivos da proposta foram atingidos, pois obtivemos um excelente envolvimento dos alunos, bem como conseguimos que o professor se percebesse capaz de utilizar as lutas como conteúdo de suas aulas e inserir no seu planejamento aulas com esse conteúdo.

          Unitermos: Lutas. Karate. Educação Física.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires - Año 16 - Nº 156 - Mayo de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Pensando a Educação Física escolar. Qual o lugar das lutas neste cenário?

    Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN’s (BRASIL, 1997), durante parte do o século XIX, a Educação Física mantinha uma relação estreita com o militarismo, que pregava a educação do físico, tendo o objetivo de formar indivíduos fortes e saudáveis para atuar em possíveis conflitos, defendendo a pátria e seus ideais. Nesse mesmo período existia ainda um grande preconceito com a prática de atividade física por parte da elite imperial em função do esforço físico ser enxergado na época com inferioridade. Essa idéia por um longo tempo atuou como um empecilho para a inclusão de Educação Física no âmbito escolar.

    No entanto, ainda no início do século passado a Educação Física, com o nome de ginástica, foi incluída nos currículos escolares de alguns Estados e sua importância no desenvolvimento integral do ser humano passou a ser reconhecida (SOUZA JR, 2005). Com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961, a Educação Física passou a ser uma disciplina obrigatória em todo o território nacional para o ensino primário (atual ensino fundamental) e médio (BRASIL, 1997).

    A partir da década de 60 foi dado início ao processo de esportivização da Educação Física Escolar, que segundo os PCN’s (BRASIL, 1997)

    iniciou com a introdução do Método Desportivo Generalizado, que significou uma contraposição aos antigos métodos de ginástica tradicional e uma tentativa de incorporar esporte, que já era uma instituição bastante independente, adequando-o a objetivos e práticas pedagógicas (p.20).

    Após 1964 a educação em geral começou a ter influência da tendência tecnicista, tendência esta muito forte até os dias atuais na Educação Física. Na década de 70 a busca por talentos esportivos para representar o Brasil em competições internacionais fez com que a iniciação esportiva passasse a ser primordial a partir da 5ª série, que atualmente corresponde ao 6º ano do Ensino Fundamental.

    Nos anos 80 essa idéia de Educação Física voltada principalmente para o esporte-rendimento passou a ser contestada, o que fez com que a disciplina passasse por uma crise de identidade, que serviu como foco do debate do chamado movimento renovador da Educação Física. Para os PCN’s (BRASIL, 1997), a partir de então

    o enfoque passou a ser o desenvolvimento psicomotor do aluno, tirando da escola a função de promover os esportes de alto rendimento. (...) se ampliou a visão de uma área biológica, reavaliaram-se e enfatizaram-se as dimensões psicológicas, sociais, cognitivas e afetivas, concebendo o aluno como ser humano integral. (...) se abarcaram objetivos educacionais mais amplos (não apenas voltados para a formação de um físico que pudesse sustentar a atividade intelectual), conteúdos diversificados (não só exercícios e esportes) e pressupostos pedagógicos mais humanos (e não apenas adestramento) (p.21).

    O resulto desse fervilhar de intervenções ideológicas e políticas no território educacional foi a difusão de correntes de pensamento que, ora se convergem e ora se divergem, na compreensão da área de Educação Física com intervenção pedagógica. Atualmente existem algumas abordagens para a Educação Física escolar brasileira, resultantes das aderências de concepções psicológicas, sociológicas e filosóficas, influenciando na formação e na prática de muitos professores. Dentre essas tendências, para Darido (2003) destacam-se cinco: a desenvolvimentista, a construtivista-interacionista, a crítico-superadora, a sistêmica e a plural, conforme exposto no Quadro 1 (p.3).

Quadro 1. Características das Abordagens Pedagógicas da Educação Física

ABORDAGENS

DESENVOL-

VIMENTISTA

CONSTRUTIV.- INTERACION.

CRÍTICO-SUPERADORA

SISTÊMICA

EDUCAÇÃO FÍSICA PLURAL

Principais Autores

Go Tani

João Batista Freire

Coletivo de Autores

Mauro Betti

Jocimar Daiolio

Obras e publicações

Educação Física: uma Abordagem Desenvolvi-mentista

Educação Física de Corpo Inteiro

Metodologia do Ensino da Educação Física

Educação Física e Sociedade

Educação Física Escolar uma Abordagem Cultural

Área Base

Psicologia

Psicologia

Sociologia Política

Sociologia e Filosofia

Antropologia

Autores de Base

Gallahue

Jean Piaget; Michael Foucault

Saviani e Libâneo

Bertalanfy

Marcel Mauss

Finalidades

Objetivos

Adaptação

Construção do Conhecimento

Transformação Social

Transformação Social

Historicidade da Cultura Corporal

Temática Principal

Aprendizagem Motora

Cultura Popular Lúdica

Cultura Corporal

Cultura Corporal

Diversidade Pluralidade

Conteúdos

Habilidades Básicas, Jogo, Esporte, Dança

Brincadeiras Populares, Jogo Simbólico e de Regras

Conhecimento sobre o Jogo, esporte, dança, ginástica

Vivência Corporal: do Jogo, do Esporte, da Dança, da Ginástica

Ginástica, Lutas, Danças, Jogos, Esportes

Estratégia Metodológica

Aprendizagem do, sobre e através do Movimento

Resgatar o conhecimento do Aluno

Reflexão e Articulação com o Projeto Político Pedagógico

Tematização

Valorização das diversas formas de expressão da Cultura do Movimento

Avaliação

Privilegia a Habilidade, Observação Sistematizada

Não punitiva. Auto-avaliação

Avaliação baseada no fazer coletivo

Observação Sistematizada

Considera as diferenças individuais essenciais

Fonte: Adaptado de Azevedo & Shigunov (2000)

    Considerando-se estes enfoques a respeito das diversas abordagens, Azevedo & Shigunov (2000) afirmam que essas concepções isoladas possuem algumas limitações, acreditando que uma abordagem prescinde de elementos teóricos vinculados ao contexto sócio-educacional em que se faz inserida. Portanto, necessário se faz que um educador selecione de cada uma das tendências pedagógicas aspectos que se relacionem com a realidade do seu trabalho.

    A partir de 1997 foram criados e divulgados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) que, segundo Nascimento (2002), são documentos referenciais abrangentes de conteúdo humanista, propostos pelo Ministério da Educação (MEC) para a renovação e reelaboração da proposta curricular do Ensino Médio e Fundamental em todo o país, e se preocupa principalmente com as questões atuais da educação brasileira. Eles estão colocados como parâmetros até os dias atuais.

    Os PCN’s são formados por 10 volumes, cada um abrangendo uma das áreas de conhecimento pertencentes aos componentes curriculares indicados pela LDB 9.394/96 (BRASIL, 1996). Um deles é específico de Educação Física, que divide os conteúdos da área em três grandes blocos: em um estão os esportes, jogos, lutas e ginásticas; em outro, as atividades rítmicas e expressivas; e no último, os conhecimentos sobre o corpo.

    Em se tratando das lutas, os PCN´s (BRASIL, 1997) as definem como

    disputas em que o(s) oponente(s) deve(m) ser subjugado(s), mediante técnicas e estratégias de desequilíbrio, contusão, imobilização ou exclusão de um determinado espaço na combinação de ações de ataque e defesa. Caracterizam-se por uma regulamentação específica, a fim de punir atitudes de violência e de deslealdade (p.37).

    Para Oliver (2000), o ato de lutar é agir utilizando competências especiais. Ao relacionar as importantes contribuições das lutas para o desenvolvimento global das crianças, o autor destaca, no aspecto motor do desenvolvimento, as diversas formas de deslocamento, os apoios e as condutas motoras que a criança utiliza durante os combates, além da atenção profunda ao espaço das lutas como meio de obter benefícios de um determinado posicionamento. Assim, além de ampliar seu repertório motor, as crianças desenvolverão sua noção espacial.

    Em se tratando do Karate-Do,1 o autor acrescenta a percepção temporal existente na reação de defesas, contragolpes e, principalmente, nas técnicas de deai (antecipação de golpes utilizada quando ocorre a percepção da intenção de ataque do adversário). Quanto ao nível afetivo-social, o autor destaca o senso de responsabilidade que a criança passa a ter em relação à integridade física do seu colega oponente diante das possibilidades de contato físico oferecidas pelas lutas.

    Além disso, ele também se refere ao conhecimento das próprias possibilidades em relação ao adversário e à aceitação das regras como forma de controle de suas ações e emoções afloradas durante os combates. Em termo cognitivo, afirma que o raciocínio rápido exigido pelas diversas situações nas lutas é o ponto principal, uma vez que é necessário que a criança pense e aja de forma rápida para adaptar suas ações em função das ações de seu oponente. Ele afirma também que a compreensão dos caminhos que levaram a criança à vitória ou à derrota faz com que ela seja capaz de organizar as futuras ações, construindo uma sensação de confiança.

    Partindo do princípio de que o professor de Educação Física é responsável por ensinar a cultura corporal do movimento na escola, Santos (2009) aponta como essencial a compreensão das lutas por parte desses profissionais. O autor ressalta que “a Educação Física escolar ao tematizar as lutas, precisa necessariamente lidar com esse conhecimento de maneira particular e diferente do que ocorre nos espaços específicos dessa prática” (p.3).

    Nesse sentido, Carreiro (2005) destaca que ao longo da história as lutas têm sido desenvolvidas isoladas do contexto escolar, como formas de defesa pessoal ou esporte-rendimento, na maioria das vezes isoladas das aulas de Educação Física. Para o autor, “é necessário ressignificar as lutas para que elas possam contribuir com objetivos do componente escolar” (p.249). Ele aponta ainda, como principais resistências encontradas na implantação das lutas nas aulas de Educação Física a falta de espaços, de material e de roupa adequada, a associação do conteúdo às questões de violência e a idéia equivocada de que é preciso ter conhecimentos de um faixa preta para ensinar uma determinada luta na escola.

    Além disso, destacamos como outro fator que pode impedir a presença das lutas nas aulas de Educação Física a dificuldade que nós, profissionais de Educação Física, temos em encontrar estudos e metodologias próprias de ensino dessas práticas corporais. A literatura existente nessa área é, em geral, limitada aos seus aspectos históricos e técnicos, o que dificulta inclusive o trabalho de profissionais especializados na área que procuram ressignificar seus conhecimentos e fundamentar suas práticas pedagógicas.

    Segundo Lopes & Vieira (2009) a ausência deste tipo de aporte teórico metodológico oportunizam representações limitadas sobre os conteúdos de lutas, ocasionando o distanciamento deste conteúdo do cotidiano das aulas de Educação Física escolar. Segundo este mesmo autor esta lacuna pôde ser superada em seu relato pela partilha de saberes e a construção coletiva das práticas pedagógicas.

    Como praticante de karate desde a infância e na qualidade de professora da modalidade em uma escola particular de Natal, pude observar que nas aulas de Educação Física escolar dificilmente há uma abordagem do conteúdo lutas. A falta de conhecimento e experiência da maior parte dos professores em relação a esta prática corporal geralmente é uma das justificativas dadas para justificar esse problema. Mas será que é mesmo necessário um conhecimento específico de lutas para fazer uso deste conteúdo nas aulas de Educação Física?

    Em função desse questionamento, resolvi fazer um trabalho em conjunto com o professor de Educação Física da escola em que trabalho, me propondo a ministrar algumas aulas de karate para uma de suas turmas.

Experiência de inserção: efetivação do conteúdo de lutas no fazer pedagógico da Educação Física escolar

    O relato em questão tem como Cenário uma escola localizada em um bairro nobre da zona sul de Natal/RN e que possui excelente infra-estrutura. A aula foi realizada em uma sala climatizada com tatame especial para práticas de lutas. Os 24 alunos envolvidos nesta pesquisa são de ambos os sexos, sendo 11 meninos e 13 meninas, todos do 3º ano do Ensino Fundamental I, com idade entre 8 e 9 anos. A maioria dos alunos reside nas proximidades da escola e fazem parte de uma clientela de classe média alta, salvas algumas exceções.

    A intervenção pedagógica tem o objetivo de oportunizar a vivência do conteúdo lutas em aulas de Educação Física escolar, bem como auxiliar o professor de Educação Física da escola a elaborar estratégias de ensino e utilizar tal conteúdo nas suas aulas, mesmo que não conheça ou tenha aprofundamento em relação ao tema.

    Esta ultima intenção ancorada na compreensão de Lopes e Vieira (2009) de que a partilha de saberes pode oportunizar a concretizações de práticas pedagógicas ainda distantes dos interesses ou realidades dos professores de Educação Física, como no caso do conteúdo de lutas.

    O objetivo das aulas aplicadas foi que os alunos fossem capazes de conhecer e vivenciar o karate através de jogos de combate, aplicando seus princípios na aula e na vida.

    Adotamos como abordagem metodológica a construtivista-interacionista, que, segundo Darido (2003), é aquela em que o aluno constrói seu conhecimento a partir da interação com o meio, resolvendo problemas. Para a autora, nessa abordagem o movimento é utilizado como meio para atingir domínios cognitivos, onde são respeitadas as experiências vividas pelos alunos e as diferenças individuais. Nela o jogo é considerado o principal modo de ensinar, um instrumento pedagógico, um meio de ensino. Para a elaboração das aulas, utilizamos algumas propostas de Cartaxo (2008), que apresenta a aplicação de jogos de combate baseados em atividades recreativas e psicomotoras como proposta educacional.

    A experiência foi realizada em três momentos, sendo o primeiro nos últimos 5 minutos de uma aula de Educação Física ministrada pelo professor responsável pela disciplina, o segundo e terceiro momento nas aulas seguintes a esta primeira.

    No primeiro momento, para identificar os conhecimentos prévios dos alunos em relação às lutas e mais especificamente ao karate, realizamos, ao final da aula, uma conversa com os alunos, fazendo alguns questionamentos sobre o que eles conheciam da modalidade. Kunz (1998) ressalta que é necessário que os conhecimentos prévios dos alunos sejam valorizados e tratados como ponto de partida, resultando assim em um processo significativo de aprendizagem. Dessa forma, fazer um diagnóstico dos conhecimentos dos alunos é importante para que possamos identificar de que modo podemos contribuir para sua formação e desenvolvimento.

    Nesse instante, percebemos que os alunos percebem o karate como uma prática violenta e perigosa; alguns afirmaram ter medo de se machucar praticando a modalidade, enquanto outros demonstraram bastante interesse em conhecê-la e vivenciá-la. Além disso, algumas meninas apontaram as lutas como práticas exclusivas de meninos. Partindo dessa tempestade de idéias, considerando que Hildebrandt e Laging (1986) defendem que o aluno, no desenvolver das aulas de Educação Física, deve ser tratado como objeto da aula, e não como sujeito, percebemos a importância de fazer uma breve reflexão com eles sobre os princípios do karate, que sempre prezam pela não-violência e o respeito ao próximo.

    Nesse sentido, no primeiro momento da aula seguinte fizemos uma roda inicial para expor esse conteúdo. Os alunos se mostraram bastante interessados, curiosos e confusos, pois a princípio não conseguiam entender como uma luta preza pela integridade física do seu oponente. Após alguns minutos de conversa, conseguimos avançar e todos compreenderam que deveriam acima de tudo respeitar seus colegas e conter seus impulsos de agressão.

    No segundo momento dessa aula, demos início às atividades práticas. Cada aluno recebeu uma fita de tecido que foi presa na parte posterior da sua cintura, de forma que ficasse visível para o restante da turma. Todos eram, ao mesmo tempo, pegadores e fugitivos e, ao sinal da professora, deveriam tentar pegar as faixas dos colegas, além de tomar cuidado para que ninguém pegasse a sua. O objetivo do aluno nesta atividade era pegar o maior número de faixas e não deixar que os colegas pegassem a sua. Dessa forma, iniciamos situações de combate sem partir diretamente para as lutas propriamente ditas, e exploramos alguns dos benefícios que, segundo Oliver (2000), o karate pode oferecer aos alunos, tais como o raciocínio rápido provocado pela necessidade de tomada de decisão em alguns momentos onde os alunos se viam encurralados por um ou mais colegas, e a capacidade de adaptação das suas ações em função das ações dos seus colegas.

    No terceiro momento, considerando a abordagem metodológica escolhida, demos início aos jogos pré-desportivos que, de forma gradativa, se aproximavam dos gestos específicos do karate. A turma foi dividida em duplas e permaneceram assim até o final da aula. Cada aluno recebeu dois prendedores de roupa, devendo ser fixados na parte anterior do troco. Ao sinal da professora, os alunos deveriam tentar retirar os prendedores do colega da dupla, sem deixar que os seus fossem tomados.

    Nessa atividade já podem ser identificadas algumas características comuns às diversas manifestações de lutas, como por exemplo noções de ataque simultâneas à preocupação com a defesa. Os alunos precisavam realizar um ataque, mas ao mesmo tempo deveriam ter o cuidado de se defender; esse raciocínio por parte das crianças não foi muito observado no momento inicial da atividade, mas à medida que os combates se repetiam, elas passaram a perceber o cuidado que deveriam ter para não se expor ao ataque do colega.

    Na atividade seguinte, os alunos deveriam se posicionar um diante do outro, com um pé na frente e outro atrás, devendo os pés da frente ficar unidos durante toda a atividade. Um dos integrantes da dupla deveria tentar tocar o tronco e o rosto do colega enquanto este não deveria permitir o toque. Em seguida, deveriam realizar o mesmo gesto anterior, porém sem necessidade de fixar os pés, devendo ficar em movimento diante do colega da dupla. Pudemos observar durante o desenrolar dessa atividade que os alunos, de forma inconsciente, já realizavam movimentos muito semelhantes aos socos do karate. Em função disso, a partir dessa atividade, foi sugerida a realização do gesto dos socos, sem necessidade de padronização do movimento. A turma ficou livre para explorar as diversas formas que conhecia de socar.

    Pudemos trabalhar nessas atividades vários benefícios para o desenvolvimento global (motor, cognitivo, afetivo e social) dos alunos citados por Oliver (2000), tais como a noção espacial, percepção temporal, agilidade no raciocínio e adaptação das ações (atenção-percepção-tomada de decisão) e senso de responsabilidade quanto à integridade física do colega.

    Ao final dessa aula foi feita uma reflexão sobre as atividades realizadas, perguntamos aos alunos se eles se sentiram ameaçados ou agredidos em algum momento e se conseguiram identificar traços de violência nas atividades. Em geral, a turma não identificou violência ou agressões, percebendo que, até então, suas idéias iniciais estavam equivocadas. Por fim, solicitamos que a turma pesquisasse em casa um pouco sobre a história do karate, sugerindo que levassem para a aula seguinte as informações que encontrassem para compartilhar com os colegas.

    Na aula seguinte, começamos realizando um círculo onde os alunos expuseram as descobertas que fizeram sobre a história do karate. A maior parte demonstrou ter realizado a pesquisa de forma interessada, porém, houve um pouco de confusão entre a história do karate e a história do judô. Em função disso, fizemos uma breve contextualização histórica da modalidade, acrescentando algumas informações importantes que ainda não tinham sido apresentadas e enfatizando que o karate é uma prática criada com o objetivo de autodefesa, e jamais deve ser usada para agredir ou ameaçar alguém.

    No segundo momento desta aula, dividimos a turma em duplas. Um dos alunos da dupla deveria posicionar sua mão em diferentes alturas e o outro deveria tocar sua mão com os pés, da forma mais variada possível. Da mesma forma que em alguns momentos da aula anterior, observamos durante essa atividade a realização inconsciente de movimentos similares aos chutes socos do karate, mesmo sem definir que os alunos deveriam chutar. Nesse momento, realizamos uma demonstração de alguns tipos de chutes e permitimos que os alunos explorassem seus gestos, sempre tocando a mão do colega e mantendo o controle de sua força. Nessa atividade ficou bastante visível o cuidado dos alunos em controlar a intensidade dos seus gestos para não machucar os colegas.

    No momento seguinte, foi solicitado que os alunos iniciassem um combate utilizando os golpes realizados durante a aula, tendo sempre o cuidado de não ferir a integridade física do colega. Nessa atividade, observamos que as crianças apresentaram sempre um cuidado em realizar os golpes e, ao mesmo tempo, defender os ataques, além do cuidado para manter a integridade física dos colegas.

    No quarto momento, ainda em dupla, fixamos nas costas de cada aluno papel com um princípio do karate escrito. Cada um deveria tentar ler o que estava escrito nas costas do companheiro, que não deveria permitir. Ao final da aula, relembramos com os alunos os 5 princípios do karate (esforçar-se para a formação do caráter; fidelidade para com o verdadeiro caminho da razão; criar o intuito de esforço; respeito acima de tudo; conter o espírito de agressão) e refletimos um pouco mais sobre a importância das lutas e os cuidados que eles devem ter em não fazer uso do que apreenderam para sobrepor sua força em relação aos colegas.

    Essa reflexão conceitual e atitudinal dos conteúdos é muito importante, visto que acreditamos que valores como respeito, caráter, razão, esforço e autocontrole devem ser estimulados nas aulas de Educação Física, como meios de formação de cidadãos com responsabilidade social e capazes de conviver em sociedade de forma ética e honesta. Dessa forma, atingimos um dos objetivos das lutas, de acordo com os PCN´s (BRASIL, 1997), que é combater atitudes de violência e de deslealdade no cotidiano dos alunos.

    Ao término da intervenção, conversei com o professor responsável pela turma e percebi nele uma maior segurança para dar continuidade no conteúdo. Ele afirmou ter percebido que não há necessidade de ter conhecimentos específicos da modalidade para trabalhá-la nas aulas de Educação Física, pois seu objetivo não é a formação de atletas, mas sim oportunizar que os alunos vivenciem o máximo de possibilidades de movimentos e conheçam as práticas corporais.

    Posicionamentos como estes reforçam a compreensão que os conhecimentos e as possibilidades de intervenção pedagógicas são construídos e não ofertadas com apriorismos teórico-metodológicos e que o enriquecimento do trabalho docente pode-se operacionalizar-se pelo viés da troca de saberes.

    as possibilidades do ensino da luta nas aulas de educação física foram sendo percebidas na medida em que as aulas de ensino das técnicas eram trabalhadas em conjunto com o professor. Assim, a construção do saber ensinar a luta aos alunos foi se consolidando aos poucos, indo até o momento em que pôde perceber que havia elementos suficientes para planejar e experimentar o ensino com a própria turma. (LOPES & VIEIRA, p. 109, 2009)

    Fazendo uma análise das aulas, foi possível perceber que os alunos vivenciaram de forma ativa e interessada as atividades e as discussões propostas. Além disso, após o diálogo realizado com o professor, notamos que a partir da experiência ele se sente capaz de fazer uso das lutas como conteúdo das suas aulas, compreendendo que não precisa ser um mestre de alguma luta para ensinar essa prática corporal nas escolas. Isso foi comprovado pelo fato de ele já ter realizado, após as aulas, modificações no seu planejamento com o intuito de inserir aulas que abordem outras lutas além do karate no seu cronograma ainda deste ano. Diante disso, podemos constatar que os objetivos desta proposta foram atingidos de forma satisfatória.

Lutas na Educação Física escolar: por que e como abordar?

    No sentido de justificar o ensino das lutas nas aulas de Educação Física escolar, observamos vários aspectos importantes. Um deles é o fato de as lutas serem uma representação corporal de diversos aspectos da cultura humana, não só como um esporte.

    De acordo com os PCN´s (BRASIL, 1997), juntamente às danças, esportes, jogos e ginásticas, as lutas compõem um vasto patrimônio cultural que deve ser valorizado, conhecido e desfrutado, além de ser muito importante no desenvolvimento das capacidades físicas dos alunos. Outra característica dessa prática corporal é o grau elevado de excitação somática que o próprio movimento produz no corpo.

    Os PCN´s (BRASIL, 1998) ressaltam ainda a importância da Educação Física em realizar pesquisas e cultivar as lutas na escola para que essa manifestação cultural não seja esquecida ou marginalizada pela sociedade. Além disso,

    pesquisar informações sobre essas práticas na comunidade e incorporá-las ao cotidiano escolar, criando espaços de exercício, registro, divulgação e desenvolvimento dessas manifestações, possibilita ampliar o espectro de conhecimentos sobre a cultura corporal de movimento (IDEM, p.39).

    Outra forte justificativa para ensinar as lutas nas aulas de Educação Física está nos valores éticos e morais presentes nas diversas manifestações dessas práticas corporais. Segundo os PCN´s (BRASIL, 1998), os alunos podem, através desse conteúdo, ser capazes de adotar atitudes de respeito mútuo, dignidade e solidariedade, buscando encaminhar os conflitos de forma não-violenta, pelo diálogo. Dessa forma, as lutas podem auxiliar na formação de cidadãos justos, honestos e contribuir para o desenvolvimento do autocontrole das crianças.

    Mas, compreendendo a importância do ensino das lutas nas aulas de Educação Física na escola, ainda há outro aspecto de fundamental importância: compreender como ensinar essa prática corporal aos alunos, de modo a atingir os objetivos propostos.

    Nesse aspecto, compreendemos ser fundamental a presença do lúdico nas aulas, principalmente em se tratando das séries iniciais do ensino fundamental. Para tanto, propomos a utilização de jogos recreativos e jogos pré-desportivos no processo de ensino-aprendizagem, concordando com Freire (1997), que aponta os jogos como principais meios de ensino de habilidades motoras. Dessa forma, os alunos desenvolverão as habilidades básicas e específicas das lutas, partindo de movimentos básicos para os mais específicos, uma vez que os jogos devem se aproximar das lutas propriamente ditas de forma gradual. Além disso, as crianças sentirão prazer na prática, uma vez que a aprendizagem através dos jogos se torna muito mais atrativa e prazerosa.

    Igualmente importante é a possibilidade de recriação das ações motoras como fonte de aprendizado significativo aos alunos, por construções próprias dos gestos e suas significações, conforme foi relatado em diversas partes deste relato e que remetem a outras constatações (LOPES & VIEIRA, 2009) donde as intervenções pedagógicas seguem a lógica de apresentação do conteúdo, experimentação, aprendizado e reelaboração.

Nota

  1. O significado da modalidade aponta para a compreensão de caminho de mãos vazias, ou antes, luta que não faz uso de armas.

Referências

  • AZEVEDO, E. S. de; SHIGUNOV, V. Reflexões sobre as abordagens pedagógicas em educação física. Revista de estudos do movimento humano. Vol.1, nº1, 2000.

  • BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF, 1996.

  • ________. Parâmetros curriculares nacionais: Educação Física (1ª a 4ª série). Brasília: MEC/SEF, 1997.

  • ________. Parâmetros curriculares nacionais: Educação Física (5ª a 8ª série). Brasília: MEC/SEF, 1998.

  • CARREIRO, E A. Lutas. In: Educação Física na Escola: implicações para a prática pedagógica. Orgs. DARIDO, S C e RANGEL, I C A. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2005.

  • CARTAXO, C. A. Jogos de combate: atividades recreativas e psicomotoras – teoria e prática – no âmbito das universidades, escolas e academias de lutas, visando uma proposta educacional. Fortaleza: Expressão Gráfica, 2008.

  • DARIDO, S. C. Educação Física na escola: questões e reflexões. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2003.

  • FALCÃO, D. F. Karate – o esporte. Disponível em: http://karaterj.hpg.ig.com.br. Acessado em: 20 Fev. 2007.

  • FREIRE, J. B. Educação de corpo inteiro: teoria e prática da educação física. São Paulo: Scipione, 1997.

  • HILDEBRANDT, R. e LAGING, R. Concepções abertas de ensino da educação física. Rio de Janeiro: Ao livro técnico, 1986.

  • KUNZ, E. Transformação didático-pedagógica do esporte. Ijuí: Unijuí, 1998.

  • LOPES, Y. S. & VIEIRA, A. O. A construção do Saber ensinar caratê nas aulas de educação física: enfrentamentos e possibilidades na prática pedagógica da EMEF “Centro de Jacareípe”, Serra-SE. In: Cadernos de formação RBCE, p.100 – 110. V. 1 n. 1. Set. 2009.

  • NASCIMENTO, T. M. A iniciação do Judô em Natal, a realidade escolar. 2002. 50 f. Monografia de Graduação – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2002.

  • OLIVER, J. C. Das brigas aos jogos com regras: enfrentando a disciplina na escola. Porto Alegre: Artmed, 2000.

  • SANTOS, G. O. Sobre o paradoxo das lutas na educação física escolar. Disponível em: http://www.efescolar.pro.br/Arquivos/arq_2009_32.pdf. Acessado em: 05 Out. 2009.

  • SOUZA JR. Marcílio. História da Educação Física escola no Brasil. In: NOBREGA, Terezinha Petrucia (Org.). O ensino de Educação Física de 5ª a 8ª séries. Natal: Paidéia, 2005.

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