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Intervenção do educador físico no âmbito escolar: um olhar filosófico

Intervención del educador físico en el ámbito escolar: una mirada filosófica

 

Doutor em Filosofia. Docente da disciplina Sócio-antropologia

do Movimento Humano e Esportes do Instituto de Ciências Sociais,

Educação e Zootecnia da Universidade Federal do Amazonas

Dirceu Ribeiro Nogueira da Gama

paula.dirceu@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A partir de um olhar filosófico, o estudo que ora se apresenta busca refletir sobre a intervenção profissional do educador físico no âmbito da escola, tomando como foco a possibilidade dele descortinar rumos alternativos ao modo como essa sua intervenção tende convencionalmente a se dar. Para fundamentar tais colocações, as relações entre linguagem, arte e educação servem de ponto de apoio.

          Unitermos: Educação Física Escolar. Docência. Filosofia. Intervenção.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 16, Nº 155, Abril de 2011. http://www.efdeportes.com/

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    Durante as décadas de oitenta e noventa, uma série de significativos debates aconteceram no cômputo geral da educação física brasileira no tocante ao seu real sentido político-pedagógico no seio maior do universo escolar nacional. Nesse curto espaço de tempo, uma série de verdades teórico-metodológicas tidas até então como absolutas tornaram-se alvo de intensa revisão crítica, de modo que muitas questões que até então recebiam pouca ou quase nenhuma importância tornaram-se alvo de densas reflexões. Em decorrência, tal momento foi alcunhado por muitos estudiosos de “crise da educação física”. Dentre os temas mais enfocados nesse período de “crise”, a natureza da intervenção profissional do educador físico assumiu um papel de destaque.

    Os incipientes estudos levados a cabo sobre esse objeto específico (a intervenção profissional) pouco a pouco também mostraram a necessidade seminal de rever os processos vigentes de formação curricular dos professores de educação física. Afinal de contas, o exercício de qualquer profissão reúne, em maior ou menor grau, critérios definidores daquilo que pode ou não ser feito nela, que, por sua vez, remetem a conhecimentos, habilidades, princípios, saberes, teorias, crenças e metodologias construídos ao longo do tempo. Ou seja, toda intervenção caminha de mãos dadas com algum tipo de formação, e vice versa (Faria Júnior, 1993).

    Em se tratando do professor de educação física escolar, a análise do binômio intervenção-formação redundou na proliferação de inúmeras abordagens pedagógicas1 e epistemológicas preocupadas em demarcar de que forma o educador físico deveria atuar no efetivo contexto da sua prática. Consoante os estudos encaminhados por Darido (2003), pelo menos dez diferentes abordagens pedagógicas teorizando sobre os fins, meios e natureza da educação física escolar surgiram nos últimos vinte anos no meio acadêmico dessa área do conhecimento.

    É inegável que tamanha proliferação de propostas, por si só, já serve para denotar a complexidade do assunto. Sendo assim, não podemos deixar de reconhecer a pluralidade de formas com que tal fenômeno pode ser interpretado. Para os fins desse trabalho, adotaremos como hipótese norteadora das nossas reflexões a idéia de que a preocupação em se determinar os rumos da intervenção profissional do educador físico no campo escolar com base em modelos teóricos arraiga-se na crença do poder do saber abstrato enquanto instância propulsora da estruturação do mundo do fazer.

    Ora, quando o saber emerge na qualidade de legítimo guia do fazer, estamos diante de uma dicotomia, fundada na hipótese de que esse último carece do mínimo de condições que lhe permitem estabelecer para si mesmo seus rumos existenciais. No fundo, essa prerrogativa também esconde certa arbitrariedade ética, pois arroga como verdade que o existir, para ser bom, correto ou justo, precisa ser precedido do pensar.

    Por outro lado, a tese de que o fazer, enquanto contingência pertencente ao domínio do existir, necessita da prévia indexação de um pensar lhe garanta a mínima coesão estrutural, pressupõe que a realidade concreta, quando deixada ao livre sabor de seu dinamismo, permanece fonte de imprecisão ou ilusões. Isso leva-nos a uma singular aporia: o mesmo saber a fundar desigualdades mostra-se, ao mesmo tempo, como o principal, senão único, veículo redentor dessas tais desigualdades! Por conseguinte, se esse saber calcado em abstrações redimisse por completo os problemas que denuncia, deixaria de prevalecer; logo, conquanto continua a predominar propondo soluções, é porque está a eternizá-los afirmando que dirime-os!

    Dessa forma, retornando ao caso das muitas abordagens pedagógicas elencadas por Darido (2003) para a educação física escolar, percebemos, no esteio do argumento anterior, que elas naturalmente estabelecem um fosso entre o pensar a conjuntura do educador físico na escola e o seu fazer de fato. Assim tendem a mantê-lo dizendo os meios de eliminá-lo. Portanto, como então situar a intervenção do educador físico escapando desse fosso, cavado por tamanha contradição de termos? Eis o que tentaremos discutir nos próximos parágrafos.

II

    Em 1818, a Universidade de Louvain, nos Países Baixos, tinha um leitor de literatura francesa de nome Joseph Jacotot. Nesse mesmo ano, quis o destino que Jacotot passasse por uma aventura intelectual ímpar, cujas conseqüências se desdobrariam para muito além da esfera pessoal.

    Jacotot possuía uma longa e respeitável carreira docente, política e administrativa. Em 1789, ano em que a Revolução Francesa fervilhava, já era professor de Retórica em Dijon, sem olvidar que estudava para exercer a carreira de advogado. Três anos mais tarde, em 1792, serviria como artilheiro nas tropas da República. Em seguida, a Convenção o teve, sucessivamente, como instrutor da Seção de Pólvoras, Secretário do Ministro da Guerra e substituto do Diretor da Escola Politécnica. Ao retornar a Dijon, acabou designado para ensinar Análise, Ideologia e Línguas Antigas, Matemáticas Puras e Transcendentes e Direito. Em março de 1815, tamanha era a admiração de seus compatriotas que, mesmo à revelia, aceitou ocupar a cadeira de deputado. Todavia, com a Restauração, a volta da dinastia dos Bourbon ao poder obrigou-o a buscar o exílio nos Países-Baixos, onde assumiu o dito posto de professor de literatura francesa (Rancière, 2007).

    Com efeito, as lições do competente leitor ganharam fama e espraiaram-se para fora dos muros da Universidade. Até aqui nada demais, salvo um ingrediente atípico: a grande maioria de seus alunos não sabia falar francês, e muito menos Jacotot o holandês. Dessa feita, não existia uma língua comum na qual o mestre pudesse instruir seus discípulos! Contudo, isso não foi suficiente para esmorecer Jacotot. O mestre sabia que para atender as expectativas dos inúmeros homens e mulheres das mais variadas idades que a ele recorriam, era necessário estabelecer o mínimo laço através do encontro de alguma coisa em comum. Ora, naquela época, publicara-se em Bruxelas uma edição bilíngüe do livro Telêmaco: estava encontrada, para Jacotot, a coisa em comum.

    Recorrendo a um intérprete, indicou a obra aos estudantes e lhes solicitou que simplesmente aprendessem, amparados pela tradução, o texto francês. Assim que atingissem a metade do primeiro livro, deveriam recitar sem parar o que haviam aprendido; quanto ao resto, que se contentassem em lê-lo para poder narrá-lo a posteriori. A solução de Jacotot, em pequena escala, correspondia a uma daquelas experiências filosóficas tão apreciadas no Século das Luzes.

    A grata surpresa foi que o resultado superou as expectativas de todos. Mesmo Jacotot esperava encontrar alguns desatinos. Mas, à medida que as atividades desenvolviam-se, percebeu que os discípulos holandeses, abandonados a si mesmos, haviam se saído tão bem quanto o fariam muitos franceses! O empirismo de Jacotot, brotado ao sabor do acaso, trouxe consigo uma série de inquietações, porquanto parecia que qualquer homem achava-se em situação de virtualmente compreender o que muitos outros haviam realizado e compreendido.

    A constatação imediata parecia óbvia: para acontecer aprendizado, não é necessário haver explicação. Jacotot não havia dado aos seus alunos nenhuma informação sobre os elementos da língua, muito menos ortografia, conjugações ou tempos verbais. Sozinhos, eles arriscaram-se a combinar termos e escolher a melhor forma de articulá-los. O desenrolar dos fatos iluminou brutalmente o espírito de Jacotot, deixando nítido algo que até então jamais suspeitara: quando um aluno não compreende algo, nem por isso uma explicação resolverá esse impasse. Ou seja, a urgência da explicação, da didática, do método, da progressão racional dos conteúdos do mais simples para os mais complicados constituem uma grande ficção pedagógica. Portanto, é a pedagogia, encarnada na figura do mestre que explica e clarifica o entendimento do aluno que precisa a todo preço do incapaz, do não esclarecido, do inculto.

    A conseqüência óbvia da ficção explicadora não é outra senão a cisão do mundo em dois: antes e depois dela, assim como acontece com a inteligência. Até o momento inaugural consumado na explicação, a compreensão permanece inválida, porquanto repleta de ruídos; quando ela entra em cena, tem-se a esclarecedora instituição de um novo estado de coisas.

    Todavia, a inauguração desse percurso também acarreta consigo a oficialização do embrutecimento, na medida em que suspende a descoberta direta pela introdução do atravessador, que, como todo atravessador, termina por embotar a livre iniciativa pelo esmorecimento da curiosidade. Em outras palavras, o mestre explicador estabelece uma relação de dependência do discente para com ele, suspendendo a possibilidade daquele entregar-se abertamente à solução dos enigmas que por ventura venham bater à sua porta. Ele captura a atenção dos alunos e mantêm-na fixada em si na mesma proporção em que ventila junto aos mesmos, de forma bastante subliminar através do seu fazer, a idéia de que são impotentes para aventurarem-se rumo ao conhecimento.

    Consoante esse viés, a necessária explicação como fundamento do saber ocultava, para Jacotot, uma proposição muito mais profunda: ela era a forma de fazer os discentes compreenderem que nunca compreenderiam caso não recebessem uma explicação. Como corolário, o progresso das inteligências apenas vinha, em tese, no rastro das explicações fornecidas pelo docente.

    A experiência de Jacotot destoava completamente desse credo, pois diante dele inúmeros estudantes se ensinaram a falar e a escrever em francês sem o socorro da mediação explicadora de um mestre. Eis uma manifestação do espírito humano agindo e criando com segurança. A grosso modo, seus alunos re-escreveram na língua pátria uma codificação produzida em outra língua. Para falar de Telêmaco, eles tinham à sua disposição apenas as palavras de Telêmaco, assim como para escrever Telêmaco, o autor do livro, Fénelon, teve diante de si o grego de Homero, o latim de Virgílio, a língua de muitos outros textos que teve que consultar e o francês arcaico de sua época.

III

    Os pupilos de Jacotot tinham deliberadamente recriado, na língua holandesa, um sem número de verdades até então sedimentadas em francês. Em suma, atuaram como tradutores de um universo semântico em outro. O método empregado consistia em observar, comparar, repetir, verificar, trocar termos, enfim, pelo mais franco ensaio do tipo tentativa e erro. Todos sabemos que ensaio e erro presume uma certa ousadia, pois muitas vezes não resta alternativa senão transitar pelos caminhos da adivinhação.

    Tentar e errar (ou acertar) depende acima de tudo do mergulho exploratório nas tessituras do real. No fundo, isso nada mais é do que testá-lo em função das configurações com que se apresenta e daquilo que queremos achar nas mesmas. Contudo, para que tais testes redundem em um efetivo encontro de soluções, ou pelo menos ensejem novas buscas, urge organizarmos a realidade com um mínimo de proficiência. Em outras palavras, precisamos arrumar de alguma forma a realidade, por mais simplória que seja essa arrumação, para conseguirmos criar ou extrair algo dela. Esse duplo processo de arrumação e criação na realidade é função da linguagem. Linguagem é elaboração e modelação do mundo, através dos quais ele obtém alguma coerência, ainda que muitas vezes fugaz. Através da linguagem, o homem dá corpo aos aspectos do mundo que lhe insurgem ao acaso, adquirindo os meios para lidar com suas estruturas superficiais e profundas (Calefato, Petrilli & Ponzio, 2007).

    Pouco mais de um século após a revolucionária experiência educacional de Jacotot, o filósofo alemão Walter Benjamin debruçava-se exatamente sobre as mesmas questões exibidas do professor francês. Com notável capacidade de argumentação e grande erudição, Benjamin tece duas densas reflexões sobre o assunto nos ensaios A tarefa do tradutor e Sobre a Linguagem em Geral e sobre a Linguagem Humana.

    Em A tarefa do tradutor, as preocupações que norteiam Benjamin são as seguintes: do que consiste uma tradução? O que nela é realmente indispensável? Como efetivá-la, e a partir de quais pressupostos? No entendimento do filósofo, esta prática humana (traduzir alguma coisa em outra) possui inegável dificuldade metafísica.

    Benjamin penetra na discussão apresentando a tese de que traduzir remete, acima de tudo, a uma forma; por conseguinte, concebê-la por esse cânone requer o regresso até a situação originária da “traduzibilidade” de qualquer coisa em linguagens. Mas, com isso, vem a questão sobre até que ponto a natureza de algo, especialmente uma obra humana, permite uma tradução ou até mesmo exige e reclama-a. Assim, delinear os caminhos que levem até o encontro de respostas insurge como um imperativo.

    Tomando como exemplo a literatura, o filósofo assevera: se determinadas idéias literárias admitem tradução, é porque a sua própria essência admite isso. Entretanto, tal admissão presume uma abertura para exteriorizações que ultrapassam os arranjos iniciais responsáveis pela composição do original.

    Do mesmo modo que as exteriorizações vitais se mantêm intimamente relacionadas com os seres viventes, sem todavia os afetar, a tradução nasce também do original, procedendo não tanto da vida como antes da “sobrevivência” da obra. Isto porque a tradução é posterior ao original, e (...) indica, no caso das obras importantes, a fase em que se prolonga e continua a vida destas (Benjamin, 2008, p. 27).

    A tradução condiz então com um tipo de procedimento que tanto ratifica a vitalidade como assegura a continuidade de uma obra. Nota-se assim que traduzir situa-se muito além da mera re-apresentação mecânica do original em outro código lingüístico por meio do estabelecimento de equivalências entre significantes. “Ao contrário (...), a vida da obra original chega até as traduções constantemente renovadas e com um desenvolvimento cada vez mais amplo e recente.” (Ibid. p. 28). Depreende-se daí que sempre que tal atividade acontece, um novo momento na história do original acaba sendo inaugurado, o que faz a tradução um agente fundador de rupturas. Em outros termos, gerando novidades à medida que é efetivada, a tradução equipara-se a um processo desencadeador de vida, insiste Benjamin. Por causa dessa elevada atribuição, continua o autor, ela igualmente há que revestir-se de uma não menos elevada finalidade.

    O discernimento dessa finalidade mais profunda da tradução demanda que sejam colocados de lado os aspectos da vida onde transcorrem as contingências e motivações particulares. Para Benjamin, assim como os singelos acontecimentos do campo fenomênico tão só dizem respeito ao que a vida significa, idem em se tratando da tradução. Na verdade, o que o filósofo quer dizer é que uma fidedigna tradução exprime, à medida que acontece, o elemento íntimo comum a todas as línguas. Mas que elemento é essa? Na acepção do filósofo, as línguas humanas convergem quanto ao fato de não conseguirem chegar até a essência primeira das coisas, podendo apenas, quando muito, fazerem-lhe breves alusões. Estas últimas, por seu turno, requerem do tradutor um intenso trabalho sobre os símbolos, sinais e figuras de retórica ao seu dispor. Apenas dobrando e desdobrando a potência da língua sobre ela mesma, tarefa essa nada óbvia e muito menos fácil, que o tradutor dá conta de tangenciar algum infinitésimo do absoluto, o qual, tão logo vislumbrado, oculta-se novamente.

    Eis aí o núcleo comum a todas as línguas, segue Benjamin. Percebe-se que a tarefa do tradutor vai muito além da obrigação de achar, no seu idioma, sinônimos para vocábulos ou locuções alheias a ele.

    Em boa verdade, este parentesco e esta afinidade das línguas atestam-se de modo mais (...) preciso que qualquer semelhança superficial e indefinida que exista em dois poemas. Para se apreender devidamente a verdadeira relação entre o original e a tradução, cumpre empregar um critério cuja finalidade é (...) análoga àqueles processos e decursos do pensamento em que a crítica do conhecimento mostra a nulidade de uma (...) cópia ou reprodução do real. (...) Será então demonstrado que nenhum dado do conhecimento pode ser ou ter pretensões a ser objetivo quando se contenta em reproduzir o real, e do mesmo modo (...) nenhuma tradução será viável se aspirar (...) a ser uma reprodução parecida ou semelhante ao original. (Benjamin, 2008, p. 30).

    Conceber a tradução como simples transposição de um vernáculo em outro é um equívoco porque as palavras são produções históricas, modificáveis conforme o estado das tecnologias vigentes e das condições materiais que lhes sustentam. As palavras sofrem metamorfoses incessantes, sendo ora sepultadas, ora revividas em função do espírito do tempo. “Aquilo que em vida de um autor poderia ser uma tendência (...) de sua linguagem (...) pode mais tarde desaparecer (...) enquanto novas tendências de natureza imanente surgirão muito possivelmente (...). O que dantes era novo pode mais tarde parecer obsoleto, e o que era corrente pode soar arcaico.” (Ibid. p. 30).

    Deparamo-nos então com o desafio a ser suplantado por quem almeja fazer uma tradução, o qual aparece sintetizado no seguinte parecer: “Sim, (...) as traduções estão longe de constituírem equações estéreis entre duas línguas diferentes, porque, em todas as suas formas e partindo do amadurecimento (...) da palavra (...) que lhe serve de base, lhes cabe muito particularmente notar a dor e vida da sua própria língua.” (Ibid. p. 31). Percebe-se que a língua, na tripla circunstância de elemento de sustentação, matéria prima, e objetivo final do trabalho do tradutor, não é estéril; pelo contrário, ela comporta-se como uma totalidade dinâmica, parametrizada por movimentos de autodestruição interna cuja efetividade, por sua vez, também alavanca sua recriação. Isto quer dizer que faz parte da vida da língua negar-se, e negando-se ela renova seu raio de ação. Como conseqüência, as possibilidades do que ela consegue designar transmutam-se no fluxo da história.

    Quanto ao tradutor, cabe a ele adentrar esse complexo domínio e abraçá-lo, pois disso depende o encontro dos subsídios lingüísticos que lhe permitirão reescrever o texto original antes que ele se desintegre no curso do próprio movimento da língua. Pois é disto que trata a tradução, para Benjamin: ela é uma legítima reescrita do original, alocada numa conjuntura mais ampla de recuperação do que pode estar destinado a esvanecer no dinamismo intrínseco da língua. Todavia, à medida que inventa novamente o original, o tradutor acarreta algo muito mais precioso, a saber, a aproximação deste da esfera do absoluto, como consta detalhadamente no fragmento abaixo:

    Na tradução, o original pode ascender ao mesmo espaçoso círculo da Língua pura e elevada, em que certamente não conseguirá manter-se por muito tempo, e do mesmo modo não conseguirá também alcançá-lo em todos os aspectos da sua forma, mas apontá-los-á todavia duma maneira (...) penetrante, como domínio predestinado (...) onde as línguas se reconciliam e atingem toda a sua plenitude (...). No (...) original (...) a língua da tradução envolve o conteúdo (...) como um manto real com dobras e pregas mais amplas, pois a tradução implica uma linguagem mais elevada do que ela própria, permanecendo (...) estranha mesmo, e até desproporcionada ao seu conteúdo. (...) A tradução transplanta assim o original pelo menos para uma zona ou domínio mais válido e definitivo, conseguindo aqui renascer sempre de novo e em diferentes aspectos. (Ibid. p. 33-34).

    Eis então a missão do tradutor: encontrar na língua em que se está traduzindo todo um rol de intenções, desvios e reencontros onde o eco do original possa ser ressuscitado. Mas, ao movimentar-se no tenso encontro desses fluxos, ele momentaneamente permite-se vislumbrar aquilo que seria a pura língua das origens, porque o exercício da tradução leva-lhe a isso. “A verdadeira tradução (...) faz com que a Língua pura (...) incida com maior plenitude ainda sobre o original.” (Ibid. p. 38). Portanto, a tradução é um processo que, operando nos limites da junção arbitrária e objetiva entre significado e significante, ejeta para além dos seus cerceamentos aquilo que é nada mais, nada menos do que a supracitada língua pura das origens. É justamente a caracterização dessa língua pura que o filósofo nos apresenta no texto Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana.

    Nele, Benjamin parte do pressuposto que todos os entes do mundo, vivos e inanimados, partilham entre si a condição de serem dotados de linguagens. O cosmos adquire assim a possibilidade de ser pensado como totalidade cortada por fluxos lingüísticos com diferentes intensidades e relativa autonomia em relação ao elemento humano.2

    Todas as manifestações da vida (...) podem ser concebidas como uma espécie de linguagem, e esta concepção (...) perspectiva em geral outras questões. Pode falar-se de uma linguagem da música, da plástica, da justiça que, de uma forma imediata, não é idêntica à linguagem em que as sentenças judiciais são redigidas, sejam elas em alemão ou em inglês; pode falar-se de uma linguagem da técnica que não é idêntica à dos técnicos. Neste contexto (...) é (...) a comunicação através da palavra apenas um caso particular, subjacente a conteúdos humanos ou que nele se baseiam (justiça, poesia, etc.). Mas a existência da linguagem não se estende apenas por (...) domínios de manifestação espiritual do homem que (...) contêm sempre língua (...), mas acaba por estender-se (...) a tudo. Não há acontecimento ou coisa, seja na natureza animada, seja na inanimada que, de certa forma, não participe da linguagem. (Benjamin, 1992, p. 177).

    O que aguardar então do sem número de linguagens que cortam o cosmos? Quais conteúdos elas veiculam? Para Benjamin, toda linguagem, sem exceção, carreia a essência espiritual das coisas que lhe correspondem. Tal transmissão é proporcional à consistência interna de seus fundamentos estruturais, o que quer dizer que as potencialidades expressivas de cada uma, vistas comparativamente, variam entre si.

    No caso do gênero humano, um fator a mais precisa ser levado em conta: a fala. Ela constitui o elemento preponderante de sua linguagem, e é essa circunstância que leva o homem a ter uma existência única. A exclusividade desse recurso dá a ele, e a mais nenhuma outra espécie, a capacidade de designar objetos e representações. Portanto, apenas a linguagem do homem pode nomear. Aplicados às coisas, os nomes transmitem o teor das suas essências espirituais. Pelo lado do homem, denominar representa a atividade factual responsável pela comunicação de sua própria essência espiritual.

    Isto é, o homem comunica a sua (...) essência (...) na (...) linguagem (...) por palavras (...) denominando todas as outras coisas. (...) Não se objecte que não conhecemos outra linguagem (...) designadora além da do homem. (...) Designar para quê? A quem se comunica o homem? A quem se comunica o candeeiro? E a montanha? E a raposa? A resposta é a seguinte: ao homem Além disso: se o candeeiro, a montanha e a raposa não se transmitissem ao homem, como os denominaria ele? Mas denomina-os; ele comunica-se, denominando-os. (Benjamin, 1992, p. 180-181).

    A nomeação de objetos ocorre porque o universo e o elemento humano comungam de uma certa identidade lingüística. Essa comunhão, iniste Benjamin, exibe a singela posição metafísica do homem no cosmos, pois ao mesmo tempo em que pertence ao rol de seres criados pela demiurgia divina decantada no mito do Gênesis, apenas ele, dentre todos, obteve a graça para nomear. No Gênesis, Javé originou tudo pela profissão da palavra, exceto Adão, feito de terra. Ele constitui o único exemplo, na história da Criação, de uma entidade feita de insumo material, cuja compensação foi o dom da linguagem falada e escrita. Depois dessa outorga de competência, sabemos que Javé retirou-se para repousar.

    A descendência de Adão fica então confirmada como a continuadora do trabalho de Javé. “A criação empreendida por Deus atinge sua perfeição, na medida em que as coisas recebem o seu nome do homem, do qual, no nome, só a linguagem fala.” (Ibid. p. 182). Todavia, isso não quer dizer que a palavra humana substitua o Verbo divino. O filósofo explicita isso com base no que entende como a ´fórmula da criação`, dedutível do primeiro capítulo do Gênesis. Segundo ela, o advento das origens decompõe-se num esquema lingüístico de três termos: Seja – Ele fez (criou) – Ele chamou. Desencadeadas com um ´Seja`, as coisas vão paulatinamente surgindo no ritmo de uma processualidade criativa que agrega constituição e denominação. Daí, os nomes serem apenas compleições finais de objetos iniciados por meio de um ato de linguagem absoluto e sem esse viés, o ´Seja`. Vazio de características designadoras, o ‘Seja’, enquanto primeiro termo da equação da criação, pode ser qualificado como vocábulo mudo. Por outro lado, ao contrário do que se possa pensar, tal mudez denota onipotência criativa, porquanto determina entes em nomes (Merquior, 1969).

    Esse primeiro aspecto não denominador do Verbo retrata a coisa em si, e escapa a qualquer possibilidade de entendimento ou compreensão. A face delas reconhecível limita-se ao que obteve chancela nominal. Por que isso? Viu-se que a libertação do potencial da linguagem por parte de Javé, no homem, seguiu-se ao contingenciamento deste em terra. Logo, sublinha Benjamin, enraizada em restrições materiais, a linguagem humana não é incomensurável, mas mediatizada a priori. Longe de ser imagem direta e perfeita da realidade, a linguagem humana, quando nomeia, apenas reflete a face designatória do Verbo. “O nome (...) é a comunidade do homem com a palavra criadora de Deus. (Não é a única, e o homem conhece ainda outra identidade lingüística com a palavra de Deus.) (...) Porque Deus criou as coisas, a palavra criadora neles contida é o germe do (...) cognoscível.” (Benjamin, 1992, p. 188-189).

    Percebe-se então que a porção dos entes do mundo identificável pelo intelecto humano, igualmente receptível aos epítetos que confere, depende justamente da maior ou menor afinidade que ele nutre com a moldura nominativa que àqueles receberam no momento da criação divina. “O homem (...) dá à natureza (...) o nome depois da comunicação que dela recebe, porque também toda a natureza é percorrida por uma linguagem (...) resíduo da palavra criadora de Deus, que se manteve no homem como nome cognoscível e (...) juízo.” (Benjamin, 1992, p. 196). No fundo, declara Benjamin, o que o homem faz é simplesmente sobredenominar os objetos outrora criados pela palavra de Javé nos primórdios. Por mais que o Verbo e o homem tenham poderio mútuo para nomear, não há como, para o filósofo, essa similitude ser perfeita, porque o primeiro age liberto de cerceamentos, enquanto que o segundo, desde Adão, atua preso ao espaço e tempo, simbolicamente representados pelo contingenciamento em terra.3

    Encontramos mais alguns comentários esclarecedores de Benjamin sobre essa capacidade humana para denominar coisas em certos trechos da obra Passagens. Num deles, o filósofo deixa a entender que o poeta francês Charles Baudelaire foi alguém que soube usá-la com rara propriedade, reportando-se, para isso, ao prefácio que o crítico literário e amigo deste Théophile Gautier escreveu na edição de 1863 da coletânea de poemas As Flores do Mal:

    Sua maior glória, escreveu Théophile Gautier (prefácio à edição <das Fleurs du Mal > de 1863), “será ter feito entrar nas possibilidades do estilo séries de coisas, de sensações e de efeitos inominados por Adão, o grande nomeador.” Ele nomeia ... as esperanças e os pesares, as curiosidades e os temores que se agitam nas trevas do mundo interior. (Benjamin, 2006, p. 352).

    Baudelaire nomeava com sensibilidade e precisão porque deixava-se levar pela imaginação: é ela que lhe permitia detectar com estrema acuidade as semelhanças miméticas entre os acontecimentos e as palavras. “A imaginação é uma faculdade quase divina que percebe... as relações íntimas e secretas das coisas, as correspondances e as analogias.” (Benjamin, 2006, p. 330). Imaginando, Baudelaire reinventava as palavras e o raio de alcance de seus significados. “A imaginação... decompõe toda a criação e, com os materiais recolhidos, e dispostos segundo regras cuja origem não podemos encontrar senão no mais profundo da alma, ela cria um mundo novo, produz a sensação do novo.” (Ibid. p. 335).

    Em Imagens do pensamento, Benjamin fala novamente desse vínculo entre imaginação infantil, divindade e ludicidade ao se lembrar de um jogo comum entre as crianças da época Biedermeier,4 cujo ponto de partida eram as palavras “rosquinha”, “pena”, “pausa”, “queixa” e “futilidade”. A tarefa de cada jogador consistia de articulá-las em um texto conciso sem alterar essa ordem. Quanto mais curto o texto, tanto mais notável a solução.

    Esse jogo fomenta os mais belos achados, sobretudo junto às crianças. Ou seja, palavras (...) são como cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação (...) Isso se torna palpável, sobretudo, nos textos denominados religiosos (...) E, de fato, frases que no jogo uma criança forma com palavras têm mais afinidade com as dos textos sagrados que com as da linguagem corrente dos adultos. Eis um exemplo que uma criança (no seu décimo segundo ano de vida) forma ligando as palavras acima: “O tempo se lança através da natureza feito uma rosquinha. A pena colore a paisagem, e se forma uma pausa que é preenchida pela chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade.” (Benjamin, 1995, p. 272).

    Sumarizando, a situação do homem guarda uma característica paradoxal, pois, dentre todos os outros seres criados, apenas ele herdou o dom da nomeação, cujo aspecto formal é a pureza divina do Verbo de Javé, criador do cosmos. Nenhum outro consegue reproduzir a criação e perpetuação nominal de coisas. Por outro lado, o arsenal lingüístico que dispõe para conduzir tal empreendimento coincide com sua limitada condição existencial, o que, em comparação com a abrangência e a potência eterna do demiurgo, restringe o que pode alcançar. Depreende-se de tudo isso que as balizas que norteiam a processualidade do agir humano, guardadas as proporções, permitem-lhe tão somente imitar a palavra criadora: ele não vai além de providenciar a recuperação, no plano finito, de uma tarefa originariamente infinita. Tomando-se o poeta Baudelaire na qualidade de um nomeador de primeira grandeza, a riqueza estética de suas criações era proporcional ao modo com que se relacionava ludicamente com o teor das palavras e coisas, tal qual uma criança brincando.

    Essa conversão de um contexto em outro, de acordo com Benjamin, equipara-se a um procedimento de tradução. Contactar coisas, investigá-las e desvelá-las em (sobre) nome significa movê-las de suas linguagens singulares para a humana. Uma transposição desse tipo necessariamente agrega valor as primeiras, pois enriquece-as com qualificativos que não detinham e que apenas o homem pode lhes oferecer. “A tradução da linguagem das coisas na do homem (...) é (...) a tradução (...) do que não tem nome no nome. É (...) a tradução de uma língua imperfeita numa mais perfeita (...) nomeadamente o conhecimento. Porém, a objetividade desta tradução tem o aval de Deus.” (Benjamin, 1992, p. 189). Após o recolhimento em linguagem humana, as coisas saem do silêncio e acabam indexadas, no que tange à sua visibilidade, a uma situação existencial superior.

    Antes de prosseguirmos, urge esclarecer algumas questões sobre essa análise benjaminiana do teor das linguagens. Concordamos com Merquior (1969) que ela goza de uma inegável textura teológica, mas nem por isso a reflexão peca pela ingenuidade dos argumentos ou autoritarismo dogmático. O foco de Benjamin é a insistência na distância entre o Verbo e a faculdade humana de nomeação: em nenhum instante a palavra humana é exposta como nascida de epifania. A referida distância, ao invés de ser usada para justificar uma inegável fragilidade da linguagem do homem, serve de pretexto para o autor invocar justamente a inesgotabilidade do real e o movimento incessante do espírito humano para apreendê-lo e traduzi-lo. Sob esse ângulo, linguagem é energéia, ou, atividade dinâmica e autopoiética que estabelece horizontes e fronteiras para si na tradução que faz em si dos entes do mundo. Os nomes que efetivamente recebem, enquanto indicadores de potência lingüística consumada em ato, são os mediadores da ampliação dos universos conhecidos e da originação de novos.5

    A exercitação humana da linguagem remete, assim, a um movimento de produção incessante dela mesma. As inúmeras denominações científicas, maquínicas, ideográficas, artísticas, jurídicas, religiosas etc. dos fatos comprovam factualmente esse dinamismo. Embora todas incidam sobre domínios espirituais específicos, Benjamin dava especial atenção às linguagens artísticas, sugestionando sua superioridade sobre as demais para traduzir a natureza.

    Há uma linguagem plástica, da pintura, da poesia. Da mesma forma que a linguagem da poesia assenta na linguagem humana dos nomes, ainda que não apenas nela mas, de qualquer modo, também nela, assim também é pensável que a linguagem da plástica ou, talvez, da pintura, assentem em determinados gêneros das linguagens das coisas, de forma que nelas se encontra a tradução da linguagem das coisas, numa linguagem infinitamente mais elevada (...). (Benjamin, 1992, p. 195).

    Por que motivo o privilégio de Benjamin pelas linguagens artísticas? O que o artista possui de único? Consoante Gagnebin (2005), Benjamin enxergava no legítimo artista alguém que busca incessantemente e de maneira voluntária o novo. Esse novo nada tem a ver com substância material, e sim com uma constante metamorfose das maneiras de olhar o mundo. Os verdadeiros artistas, caso se prendessem a certezas estanques, bloqueariam a auto-renovação das estruturas perceptivas, mnemônicas e imaginativas das quais dependem a captação, gravação e figuração do real em obras de arte. Procurar a revisão consciente das doutrinas e conceitos orientadores de seu agir, com vistas à flexibilizá-los, ou até mesmo dissolvê-los, significa abertura para outras possibilidades de aprender e mobilizar o diferente. Sem isso, a tradução estética da realidade no formato mais engrandecido da obra de arte torna-se empreendimento com validade e fidedignidade questionáveis.

    O renascimento do mundo nesse mérito maior da arte dialoga assim com um duplo movimento de aquisição e desapego, pelo artista, de determinados valores, convicções e técnicas. A intensidade dessa troca revela-se fundamental para que o ato tradutivo avance em qualidade e sofisticação. As peças teatrais de Sófocles re-escritas por Hölderlin, frisa Benjamin, superaram as versões similares dos demais dramaturgos exatamente por serem muito mais do que transposição de vernáculos. Sua vitalidade incontestável derivava, acima de tudo, da complexa teia de comentários, asserções, interpretações e divagações depositados nas entrelinhas dos originais (Roberts, 1982).

    Benjamin cita Hölderlin não por acaso. Assim como Baudelaire, ele tipifica o artista que teve necessidade de reaprender a escrever, falar, avaliar e comparar sob pena de, caso em contrário, não conseguir dar conta de revisitar e criar obras. Hölderlin não furtou-se a desconcertar o patamar de estabilidade conceitual à sua disposição, onde achava-se relativamente estável, para ampliar o entendimento da visão que se tinha do autor grego. Parafraseando Gama (2010), pode-se dizer que Hölderlin aceitou renunciar a uma postura imóvel, engessada em certezas, em prol da aquisição de uma nova fala, um novo palavreado, enfim, um novo aparato de linguagem. Nesse sentido, o investimento de Hölderlin na assimilação de competências que até então não tinha exibe traços de um comportamento com certa dose de infantilidade, pois o marco fundador em que, pela primeira vez, sujeito e aprendizado da linguagem penetram-se e examinam-se aos extremos não é outro senão a infância.

    Na visão de Agamben (2005), filósofo comentador de Benjamin, o ser humano sem infância não passa de natureza inerte. Não há como os indivíduos viverem fora da história, porque todos têm de aprender a falar e tornarem-se falados numa infância que não pode ser universalizada ou antecipada. Interessa notar que essa infância não é apenas cronológica, pois experiência e infância não antecedem a linguagem, mas são suas condições originárias, fundantes. A humanidade (condição de ser humano) inexiste sem elas, e sem elas, não há sujeito que possa falar (ou ser falado). Em certo sentido, Agamben (2005) ainda nos lembra que estamos sempre aprendendo a falar (e a ser falados), nunca sabemos falar (ou somos ´sabidos` pela linguagem) de forma definitiva, jamais acaba nossa experiência na e da linguagem. Nessa medida, permanecemos fadados à infância. Quando acreditamos tudo dominar e perdemos a curiosidade de saber algo novo, convertemo-nos em natureza. Caso negligenciemos a experiência da infância, diz o autor, seremos repetição invariante, normalidade imodificável; assumindo-a, ratificamo-nos como interrupção e reinício, inventividade e versatilidade; enfim, historicidade plena.

IV

    A grosso modo, poderíamos dizer que Jacotot, visto segundo os elementos conceituais rigorosamente trabalhados pela aguda inteligência de Walter Benjamin, na medida em que fez com que seus alunos traduzissem por conta própria o texto francês de Telêmaco para o holandês sem nenhuma informação prévia, também acabou por levá-los a fruir de uma intenso retorno à infância. Como Baudelaire e Hölderlin, eles se viram obrigados a imaginar as correspondances entre os termos; com isso adquiriram novas competências, saberes e perspectivas conceituais. Como as crianças que se deparam com jogos de quebra-cabeças, tiveram que mergulhar num labirinto de sons, palavras e expressões e reordená-lo de acordo com os referenciais que possuíam, sempre ensaiando acertos e erros. Tal tarefa não lhes deu opção outra senão invocarem determinadas certezas e valores a título de se desapegarem deles ou então reforçarem as suas importâncias. Em outras palavras, puseram a memória em ação e dela filtraram os conteúdos que julgavam pertinentes segundo o crivo de suas experiências.

    O imperativo de decodificar o real e remodelá-lo conforme outras coordenadas circunstanciais subentende três consideráveis constatações.

    A primeira delas alude ao fato de que os alunos aprenderam sem explicação, porém não sem mestre ou autoridade. Antes não sabiam, e depois passaram a saber. O que precisa ser ressaltado é que lhes foi dada uma oportunidade de aprendizagem, mas que não foi preenchida pela sapiência do mestre. Portanto, não era o saber contido na sua inteligência que os discentes assimilavam, mas o do livro.

    Assim se haviam (...) separado, liberadas uma da outra, as duas faculdades que estão em jogo no ato de aprender: a inteligência e a vontade. Entre o mestre e o aluno se estabelecera uma relação de vontade a vontade: relação de dominação do mestre, que tivera por conseqüência uma relação inteiramente livre da inteligência do aluno com aquela do livro – inteligência do livro que era, também, (...) o laço intelectual igualitário entre o mestre e o aluno. Esse dispositivo permitia destrinchar as categorias misturadas do ato pedagógico e definir exatamente o embrutecimento explicador. Há embrutecimento quando uma inteligência é subordinada a outra inteligência. O homem – e a criança, em particular – pode ter necessidade de um mestre, quando sua vontade não é (...) forte para colocá-la e mantê-la em seu caminho. Mas a sujeição é (...) de vontade a vontade. Ela se torna embrutecedora quando liga uma inteligência a uma outra inteligência. No ato de ensinar e aprender, há duas vontades e duas inteligências. Chamar-se-á embrutecimento à sua coincidência. Na situação experimental criada por Jacotot, o aluno estava ligado a uma vontade, a de Jacotot, e a uma inteligência, a do livro, inteiramente distintas. Chamar-se-á emancipação à diferença conhecida e mantida entre as relações, o ato de uma inteligência que não obedece senão a ela mesma, ainda que a vontade obedeça a uma outra vontade. (Rancière, 2007, p. 30).

    Eis então a segunda constatação, em grande medida decorrente da primeira: não mais subordinados à inteligência do mestre, os alunos desenvolveram métodos particulares de aprender. No rastro do rompimento dos usuais paradigmas que até hoje estipulam o domínio de conteúdos como o único veículo de supressão da ignorância, emergiu a construção da verdadeira autonomia ou emancipação. O motivo é claro: a via da liberdade foi instituída.

    Sobre a terceira constatação, Jacotot revelou ser possível capitanear o ensino daquilo que se ignora quando o despertar da potência converte-se no foco da educação. Caso assumamos a definição que Aristóteles dava ao termo potência, a saber, o princípio ou a possibilidade de uma mudança qualquer, parece evidente que Jacotot conseguiu despertar nos seus alunos a capacidade de modificarem a si mesmos (Abbagnano, 2000). Todavia, ao contrário do que parece, Jacotot tão só recuperou, no plano da escola, aquilo que fazemos todos os dias desde que nascemos: descobrir as coisas dadas à percepção, com mais ou menos precisão, dependendo de como se mostram.

    Por que tal metodologia de trabalho alinha-se com uma proposta emancipadora? Simplesmente porque a emancipação pressupõe a consciência tanto das disposições intelectuais como daquilo que está além delas. Todos os homens, salvo os casos extremos, possuem o poderio de voltarem a atenção para si mesmos e recuperarem os caminhos que um dia trilharam para criar a mais frívola coisa. Dos poetas fabricantes de nuvens aos sapateiros fabricantes de calçados, inúmeras operações intelectuais tiveram que ser desencadeadas antes da obtenção do produto final. Em ambas os casos, as criações (o poema e o calçado) vieram das mesmas virtualidades intelectuais.

    Resumindo, emancipar alguém não significa conceder-lhe a chave do saber, mas deixá-lo ciente daquilo que uma inteligência é capaz de edificar quando se compreende igual a qualquer outra e considera qualquer outra como similar à si: de uma carroça a um avião; de um moinho a uma casa; de uma cidade a um microchip, tudo nasce da mesma faculdade de problematizar aspectos do mundo e engenhar soluções. A emancipação é a aceitação dessa reciprocidade que permite às inteligências se verificarem por descoberta uma da outra. Assim, o que tende a embrutecer as pessoas não é a falta de instrução ou conhecimentos, e sim a crença equivocada na suposta inferioridade de sua inteligência.

V

    Pois bem, o que extrair dessas colocações à vista de se pensar a efetiva situação do educador físico na escola? Conforme a exposição que viemos construindo, parece que diante das assimetrias, surpresas e aleatoriedades que o ser do microcosmo escolar lhe mostra a cada instante (e sempre mostrou a todos que ousaram mergulhar nele, como Jacotot), seria mais frutífero que ele ousasse se comportar com o mesmo ímpeto mostrado por Baudelaire e Hölderlin quando se depararam, respectivamente, com a caótica Paris do século XIX e as densas peças de Sófocles. Os dois artistas imaginaram novas palavras, expressões e orações para traduzirem com expressividade tudo aquilo que percebiam de enigmático ou surpreendente, em nenhum momento se dando por satisfeitos com as supostas certezas do conhecimento literário dos tempos em que viveram.

    Por outro lado, só arriscaram ir além, e de fato foram, porque conheciam a fundo a poesia lírica e as teorias da tragédia. Em outras palavras, escolheram o desvio porque sabiam exatamente que o convencional era precário; caso resolvessem segui-lo como um decálogo inquestionável, cedo ou tarde seriam engolidos pelas suas incongruências, o que inviabilizaria seus anseios. Procedendo dessa maneira, agiram de modo similar as crianças que ouvem e obedecem o chamado do mundo para nele interferirem da maneira que quiserem, seja convertendo uma pedra em automóvel ou um pedaço de pau em cavalo. Não custa lembrar a perspicaz observação de Walter Benjamin segundo a qual não passa de idiotice os pedagogos dedicarem horas a fim a pensar em jogos e brinquedos destinados a alavancar a fantasia infantil, porque o solo do mundo já está mais do que repleto deles. Segundo o filósofo, muito mais cúmplices da verdadeira educação da criança eram o eclesiástico medieval, o enciclopedista e o artesão das corporações de ofícios, pois, ao contrário do que viriam a defender o psicólogo comportamentalista, o diretor de escola e o apologeta da didática, simplesmente deixavam os infantes se perderem nos refugos de marcenaria, nas cartilhas barrocas e nos textos sacros ao seu bel prazer (Benjamin, 1984).

    Acreditamos que muito mais relevante para a ação do educador físico que intervém no campo escolar é deixar-se perder nas malhas daquilo que é dito e ocultado nesse complexo mundo pelos agentes que lhe dão vida (alunos, mestres, porteiros, pais, mães, cozinheiras, auxiliares de serviços gerais, etc.), pois é nos interstícios de tais fluxos que jazem dispersos os elementos que ele terá que traduzir em saber e capitalizar em intervenção pedagógica.

    A grosso modo, esse era o caminho justo e correto da theoria, tal qual entendida por Aristóteles. O legítimo conhecimento, dizia o sábio grego, vinha do exame das coisas num sentido contemplativo. Depois dessa etapa, deveria acontecer a articulação lingüística delas a fim de fazê-las inteligíveis. Assim, só podemos habitar o mundo nas tessituras da linguagem, o que de certo modo significa endossar a tese de que as coisas só são passíveis de compreensão a partir do momento em que lhes é dada uma simbolização (Zuben, 2006). Para Aristóteles, as definições, elucubrações e raciocínios só tinham validade caso espelhassem a totalidade da physis; todavia, para espelharem-na precisavam necessariamente ser simbólicos. Essa era a verdadeira dimensão do logos: não havia porque penetrar ou invadir a natureza, pois isso significava desprezar a sua cumplicidade. Assim, o argumento de Aristóteles apoiava-se na constatação de que o homem, para transitar no real com o sentido da felicidade, necessitava dar-lhe uma imagem coerente, sendo a linguagem o recurso capaz de tal.

    Uma proposta dessa estirpe subentende, da parte do indivíduo, não uma atitude de afastamento, mas de auto-entrega ao mundo com o intuito de absorvê-lo. Logo, um ato de íntima aproximação e, por isso, de devoção. A procura desmedida por objetivações era temerosa entre os gregos porque ameaçava a integridade vital dos objetos: todas as coisas gozavam de uma parcela indispensável de mistério, que precisava de preservação para continuarem a ser. Tentativas desmesuradas de esclarecimentos eram sintomas do que os gregos denominavam melancolia, ou doença do olhar: a ânsia de desvelar o lado oculto das coisas perigava cegar a consciência porque simplesmente retirava delas o contraste (Matos, 1990). Ora, a marca de um mundo sem contrates é a inexistência de nitidez; assim, ele muito mais desorientará do que propriamente guiará a visão.

    Posta a questão dessa forma, a conclusão para a qual ela encaminha soa um tanto quanto óbvia: para o professor de educação física educar com fundura, ele precisa “despedagogizar” boa parte da sua intervenção, porquanto a saída dessa engessamento é o que lhe proporcionará construir linhas de fuga para outros territórios existenciais, no âmago dos quais tanto ele como seus alunos ganharão reais oportunidades de emancipação. Para isso acontecer, seria necessário assumir, no rastro da surpreendente experiência de Monsieur Jacotot e das densas reflexões de Walter Benjamin, uma postura menos didática, científica e comportamentalista em prol de mediações mais criativas e artísticas. Poderíamos estabelecer como horizonte de um possível primeiro contato com esses referenciais o universo das artes cênicas, mímica, circo ou teatros mambembes. Não estaria de todo errado; contudo, eles podem estar muito mais perto do educador físico do que se imagina. Onde? Nos recônditos do recreio escolar, nas brincadeiras das horas de entrada e saída da escola, nos álbuns de figurinhas, nas gomas de mascar ou mesmo no despretensioso relacionamento dos infantes com suas borrachas, lapiseiras e caixas de lápis de cor. Dar linguagem a esses fragmentos que quase sempre passam despercebidos à atenção daqueles que militam no espaço da escola é o que ainda impera ser feito em escala multiplicadora.

Notas

  1. De acordo com a autora, essas abordagens são as seguintes: Desenvolvimentista; Construtivista-Interacionista; Crítico-Superadora; Sistêmica; Psicomotricista; Crítico-Emancipatória; Cultural; dos Jogos Cooperativos; da Saúde Renovada e dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Antes desse amplo movimento, Darido (2003) lembra que nos anos setenta a referência dominante era a educação física desportiva ensinada de maneira tecnicista.

  2. A pressuposição de que a natureza das coisas do mundo reduz-se a um ou mais códigos de linguagem antepara o pensamento de diversas correntes da tradição rabínica judaica. Isso é possível porque o princípio espiritual do universo, derivado no Verbo divino decantado no Livro do Gênesis, antecede a matéria.

  3. Scholem (1994) arvora que, perante essa restrição, a Queda do Paraiso tende a ser inevitável para a humanidade, pois sua constituição erige-se sobre determinações apriorísticas que, em algum momento, discernirão valorativamente o Bem e o Mal. Se, por um lado, o pecado original inaugurado pela ingestão do fruto proibido é conseqüência não contornável da condição humana, por outro, ele corrobora, para o autor, a inseparabilidade entre linguagem e ética.

  4. A época Biedermeier corresponde ao período da Restauração do Império Austríaco e Europa central durante a segunda metade do século XIX.

  5. Os primeiros esboços de uma teoria tratando a linguagem como energéia, ou atividade produtora ,remontam aos trabalhos do romântico Wilhelm Von Humboldt. Ao adaptá-la para os propósitos de seus estudos sobre digressões da palavra humana em analogia com o Verbo divino, Benjamin está tanto antecipando a revogação que mais tarde Jakobson fará da tese saussuriana do significante puramente arbitrário como apontando a possibilidade do pensamento humano formar-se em obediência à uma gramática generativa e transformacional, hipótese essa que é a coluna dorsal das correntes da lingüística contemporânea inspiradas em Chomsky.

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