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A educação do corpo e as técnicas corporais: 

considerações a partir da educação infantil

La educación del cuerpo y las técnicas corporales: consideraciones a partir de la educación infantil

Body education and corporal techniques: considerations regarding childhood education

 

Licenciado e Mestre em Educação Física, UFSC

Professor DEF/UFS

Grupo de Estudos Observatório da Mídia Esportiva, UFS/UFSC

Cristiano Mezzaroba

cristiano_mezzaroba@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          Neste trabalho descritivo articulamos alguns elementos relacionados ao texto As técnicas corporais de Marcel Mauss, com dados empíricos observados numa creche, aproximando-nos do nosso objeto de análise, a educação do corpo. Assim, procuramos fazer algumas pontes desta discussão, bastante abrangente, complexa e também necessária à Educação Física, por esta ser um componente curricular presente nos mais variados níveis de ensino, e no caso da educação infantil, preocupada, centralmente, com as questões do “corpo”. Para a realização deste trabalho, fizemos uso de categorias de análise propostas por Richter e Vaz (2005), os quais propõem pensar, quando se imagina em espaços de instituições de educação infantil, na centralidade da educação do corpo a partir de categorias como: corpo-higiene, corpo-alimentação, corpo-sono, corpo-parque e corpo-atividade orientada. As observações participantes foram realizadas de maio a junho/2009, em uma instituição de educação infantil de Florianópolis/SC (localizada no centro da cidade). A instituição atende crianças das mais variadas faixas etárias (dos 4 meses de vida aos 6 anos de idade) e níveis sociais (há crianças oriundas de classes populares, média e média alta). Tais crianças são organizadas em grupos, de acordo com a faixa etária, com diferença entre 6 meses e 1 ano de idade cada grupo. Mauss (1974, p.401) entende que a expressão técnicas corporais seriam “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.” Assim é que podemos pensar o que foi constatado na creche e as possíveis ligações do olhar antropológico com as questões teóricas deste autor. Alguns aspectos relacionados à educação do corpo, como higiene, alimentação, sono, e as atividades orientadas (brincadeiras, por exemplo) vão seguindo uma orientação passada dos adultos às crianças, seja por imitação (linguagem corporal), seja pela transmissão oral. Tudo isso nos leva a pensar, conforme Mauss (1974, p.411) que a “educação da criança é repleta daquilo que chamam detalhes, mas que são essenciais.” Pensar em todos esses aspectos, não de forma isolada, mas interdependentes e em sua totalidade, permite-nos constatar que a educação do corpo, via técnicas corporais, ocorre das mais variadas formas, em todas suas sutilezas, e que isso deve ser um exercício aos profissionais que se preocupam com a transmissão do saber e mesmo com a construção/transmissão de uma dada cultura, visto que a tradição continua a ocorrer e que é por meio dela, de seus princípios, valores e ações que podemos pensar na sociedade da qual fazemos parte, fazendo o difícil exercício antropológico de olhar para nós mesmos e “estranharmo-nos”. O processo de educação do corpo, que começa desde muito cedo, e talvez por isso vai se naturalizando, mostra que se olharmos atentamente para este processo perceberemos traços de um objetivo mais geral: pelas mais variadas técnicas, corporalmente vamos incorporando valores, gestos e padrões que são gerais em nossa sociedade e são próprias de nossa cultura: a fala, o nosso andar, o nosso “gosto” pelas coisas, o nosso comportamento etc.

          Unitermos: Técnicas corporais. Educação infantil. Educação do corpo.

 

Abstract

          In this descriptive paper we have articulated some elements related to Marcel Mauss’ article “Techniques of the Body” with empirical data, observed in a childhood institution, approaching the object of our analysis: body education. That way, we seek to establish a few bridges in this extremely comprehensive, complex, and ultimately necessary to Physical Education discussion field, as it is a curricular component, which is present in various levels of education and, when it comes to childhood education, centrally concerned with “body” issues. To carry this paper out, we have dealt with the analytical categories proposed by Richter and Vaz (2005) that made the proposal of thinking – when imagining the childhood institutions space – about the centrality of body education from categories such as: body-hygiene, body-feeding, body-sleep, body-park, and oriented body-activity. The participant observations were conducted from may to june/2009, in a childhood institution in Florianopolis – Santa Catarina (located downtown). The institution receives children of various ages (from 4 months to 6 years old) and social levels (there are children who come from lower, middle and upper social classes). These children are organized into groups according to their age, with a difference of 6 months to one year between each group. Mauss (1974, p.401) understands that the term corporal expressions are “the ways in which men, in every society, in a traditional way, know how to serve themselves through their bodies.” And that is how we can reflect about the results found in the childhood educational institution and their possible connections with the anthropological eye along with this author. Some aspects concerning the body education, like hygiene, nutrition, sleep, and oriented activities (for example, games) follow an orientation given by adults to children, either through imitation (body language) or by oral transmission. All of these leads us to think, as Mauss (1974, p.411) that “childhood education is full of what they call details, but that are actually, essential.” To think about all these aspects, not in isolation, but interdependently and in its entirety, allows us to see that the education of the body via body techniques occurs in many different ways, in all its subtleties, and it must be enforced to the professionals who care and worry about the transmission of knowledge and also with the construction/transmission of a given culture, as tradition continues to occur and that is through it, its principles, values and actions that we may think about the society we are part of, exercising the difficult task of anthropologically looking at ourselves and going through "self estrangement". The process of body education, which starts very early, and perhaps therefore will be naturalized, shows that if we look at this process closely, we will realize traces of a more general goal: through various techniques, we bodily incorporate values, gestures and patterns that are general in our society and are unique to our culture: our way of talking, our walk, our "taste" for things, our behavior, etc.

          Keywords: Body techniques. Childhood education. Body education.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 154, Marzo de 2011. http://www.efdeportes.com/

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O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem.

Ou, mais exatamente, sem falar de instrumento:

o primeiro e o mais natural objeto técnico,

e ao mesmo tempo meio técnico,

do homem, é seu corpo.”

(MAUSS, 1974, p. 407)

Considerações iniciais

    Aventurar-se no universo antropológico não é uma tarefa fácil, apesar de que, à primeira vista, isso possa parecer ao senso comum. Pressupõe o exercício de aproximar-se e distanciar-se, procurando, sempre que possível, estabelecer relações entre os mais variados elementos que se apresentam, não com o intuito de formular “leis gerais”, tarefa tão cara às ciências naturais, mas com o propósito de buscar compreender a forma como lidamos com nosso próprio modo de viver, descrevendo-a e, a partir disso, tecendo reflexões sobre nós mesmos – o que torna as ciências sociais e humanas imprescindíveis em qualquer espaço da sociedade.

    Por considerar de suma importância à formação de qualquer cientista social, professor/pedagogo/educador a necessária articulação entre os elementos teóricos e os dados empíricos é que, neste trabalho, procuramos aproximar tais questões tendo como objeto de análise a educação do corpo que ocorre em uma instituição de educação infantil à luz das reflexões de As técnicas corporais de Marcel Mauss.

    Trata-se, portanto, do “olhar” e das “reflexões” de um professor de Educação Física, com experiências em Educação Infantil e que busca complementar sua formação (fazendo o curso de Ciências Sociais/UFSC), procurando ampliar o foco de discussão entre dois campos do conhecimento (Educação Física e Antropologia/Ciências Sociais) que, inicialmente e historicamente, foram e ainda são pensados de forma desarticuladas1 e que, na nossa visão, precisam ser aproximados. A Educação Física não só pode como deve aproximar-se cada vez mais das Ciências Sociais, e aqui mais particularmente da Antropologia.

    Para isso, mais do que nunca, será preciso seguir as recomendações de Oliveira (2000), que, em seu livro O trabalho do antropólogo (mais especificamente no primeiro capítulo intitulado O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever) procura passar ao leitor uma reflexão sobre o que, para ele, parecem ser as etapas mais estratégicas na produção do conhecimento antropológico: o olhar, o ouvir e o escrever como constantes do processo do fazer antropológico por meio da observação participante. Para este antropólogo, a função de escrever o texto, além de ser uma tentativa de exposição de um saber é também uma forma de se produzir conhecimento.2

    Segundo Oliveira (2000), o olhar talvez seja a primeira experiência do pesquisador de campo e daí a necessidade de domesticá-lo teoricamente, considerando que o objeto empírico a ser pesquisado já se modifica simplesmente quando decidimos estudá-lo, ou seja, passamos a vê-lo, desde já, de forma diferente. O mesmo autor escreve que “a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto, sobre o qual dirigimos nosso olhar, já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceitual da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade.” (OLIVEIRA, 2000, p.19)

    Mas não cabe apenas o exercício isolado do “olhar”. Este deve ser complementado com o exercício de “ouvir” e de “escrever”3 também. O ouvir, assim como o olhar, tem uma significação específica para um cientista social e não podem ser tomados como propriedades totalmente independentes no exercício da investigação, pois ambas completam-se e servem para o pesquisador “como duas muletas (...) que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento.” (Ibid. p.21).

    Assim, este texto procura se aventurar neste exercício de aproximação, considerando-se o papel central da educação do corpo – alguns aspectos os quais geralmente são atribuídos à Educação Física, nos mais variados níveis de ensino quando se fala em ambientes educacionais – com as questões mais antropológicas, neste caso, a temática das técnicas corporais proposta por Marcel Mauss (1974).

    Para a realização deste trabalho, faremos uso de categorias de análise propostas por Richter e Vaz (2005), em que os mesmos propõem pensar, quando se imagina em espaços de instituições de educação infantil, na centralidade da educação do corpo a partir de categorias como: corpo-higiene, corpo-alimentação, corpo-sono, corpo-parque e corpo-atividade orientada.

    As observações participantes foram realizadas no período de maio a junho de 2009 (período matutino), em uma instituição de educação infantil do município de Florianópolis/SC, localizada em região central da parte insular do município.

    Na sequência do texto, inicialmente faremos uma rápida apresentação da instituição em que foram feitas as observações, considerando que o espaço físico e institucional também participa do processo de educação corporal nas suas sutilezas; a seguir, trataremos das temáticas específicas deste texto, ou seja, da educação do corpo em ambiente de educação infantil pensada à luz das técnicas corporais de Marcel Mauss.

A instituição de educação infantil. Espaços, tempos, configurações e determinações

    Na etnografia, a descrição do espaço físico é um elemento necessário e importante a ser considerado, pois apresenta-se como algo que permite pensar, por exemplo, aspectos que vão para além da simples descrição espacial: trata-se de algo que pode limitar ou possibilitar uma série de atividades humanas.

    Com relação à educação do corpo, o espaço físico de uma creche se apresenta como o lócus de parte da rotina de uma criança, ser social que vai aprendendo e apreendendo, por observação, imitação (mimese) e mesmos movimentos autônomos, as técnicas corporais mais variadas, usufruindo de seu próprio “objeto corporal” e compondo seu repertório de técnicas corporais que irão, com o tempo, automatizar-se, dando a (falsa) impressão de “naturalização”.

    Para este exercício etnográfico, portanto, acompanhou-se a rotina de uma instituição de educação infantil pública do município de Florianópolis/SC, durante os meses de maio a junho de 2009, no período matutino. A creche localiza-se em uma região bastante arborizada, próxima à região central da Ilha, em um local que serve, de certa maneira, de corredor entre a Lagoa da Conceição e a Universidade Federal de Santa Catarina. A instituição atende crianças das mais variadas faixas etárias (desde os 4 meses de vida até os 6 anos de idade) e níveis sociais (há crianças, segundo a diretora da instituição, oriundas de classes populares, média e média alta). Tais crianças são organizadas em grupos, de acordo com a faixa etária, com diferença entre 6 meses e 1 ano de idade cada grupo.

    Os grupos possuem suas salas específicas, apesar de que sua organização interna, apresenta-se de forma muito parecida, recebendo uma certa “identidade própria” de acordo com a forma como a professora4 de sala/turma concebe sua turma a qual mantém sob sua responsabilidade, tanto com relação à educação como quanto ao cuidado dessas crianças pequenas.

    Dentro das salas, poderíamos dizer que há uma certa “configuração”: um canto da sala destina-se a brinquedos, os mais diversos, que podem ser utilizados pelas crianças. Outro canto geralmente é destinado aos colchões, pensando-se no momento do sono e da restauração das energias dessas crianças. No centro da sala ou geralmente em algum outro canto da mesma há cadeiras e mesas para as atividades orientadas, as quais as professoras propõem atividades variadas às crianças: desenhos para colorir, atividades com argila, construção de brinquedos, atividades rítmicas e musicais etc. E no outro canto que resta, é o corredor que liga a sala ao banheiro – este adaptado ao padrão corporal dessas crianças, o que supõe momentos em que as crianças, de forma autônoma, na maioria dos casos, têm a possibilidade de seguirem os sinais fisiológicos de seu próprio corpo, pressupondo, portanto, certas técnicas corporais5 ligadas à higiene corporal, bem como a própria relação com sua sexualidade.

    Além dessas salas, a creche possui também um espaço interno coletivo que atende pelo nome de “refeitório”, onde todas as crianças, em momentos variados e seguindo uma escala de horários para utilização deste espaço, realizam suas atividades nutricionais, sendo o espaço/tempo que permite-nos pensar em certas técnicas corporais ligadas à alimentação. São servidas quatro refeições durante o dia: o café da manhã, o almoço, o lanche da tarde e o jantar. Não são todas as crianças que permanecem no período integral na instituição, pois algumas ficam apenas no período matutino enquanto outras ficam apenas no período vespertino.

    Com relação a espaços externos, a creche é cercada por um muro e também por cercas de arame, possuindo alguns pequenos espaços com grama e um espaço maior, que se localiza em toda parte lateral da instituição, local este que possui vários brinquedos adaptados às crianças, como balanços, gangorras, pneus montados para escalá-los, casinhas com escadas, escorregadores, cordas, bem como as árvores dispostas naquele espaço etc. Trata-se de um espaço que, junto com o espaço interno da sala, permite-nos pensar nas técnicas corporais ligadas às atividades orientadas e também aos movimentos mais “livres” e “autônomos” das crianças, em que, teoricamente, quando não no espaço e tempo das aulas de Educação Física, podem brincar livremente de acordo com o que acharem mais interessante (poderíamos chamar este momento de técnicas corporais no espaço do parque).

    Neste espaço “total” da creche, há uma rede de profissionais responsáveis tanto pelo cuidado como pela educação das crianças: são pedagogas, professores/as de Educação Física, nutricionistas que realizam trabalhos de pesquisa e intervenções neste ambiente, merendeiras, faxineiras, trabalhador de serviços gerais, bem como alguns pais que participam de forma voluntária de certas atividades (de acordo com o convite das professores de turma).

    Assim, poderia-se dizer, desde já, na questão da sociabilização do adulto frente à educação das crianças, o que acaba gerando, de alguma maneira, geralmente ligada aos aspectos vicariantes das crianças em relação aos adultos, uma forma das crianças desenvolverem determinadas técnicas corporais a partir da mediação dos adultos, pois, como diria Mauss (1974, p.408), “Tudo em nós todos é imposto. (...) Temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não.”

    Assim, de acordo com o que foi descrito até então e com o propósito teórico deste texto, pensando nas questões das técnicas corporais, devemos pensar o “sujeito” como alguém que está no mundo e que vai incorporando coisas que não são dadas apenas pela oralidade, mas por um conjunto de fatores, que vão para além das questões ligadas à natureza. O sujeito, segundo Mauss, deve ser visto em sua “totalidade”, em suas três dimensões que o configuram: a física, a psicológica e a sociológica.

    Em seguida, partimos, então, às possíveis articulações entre o que foi observado e relatado em diário de campo, procurando pensar nas questões da educação do corpo e as técnicas corporais que ocorrem no espaço desta instituição de educação infantil.

A educação do corpo e as técnicas corporais. Aproximações e apontamentos possíveis

    Mauss (1974), ao tratar as técnicas corporais, está pensando na dimensão da mudança histórica que ocorre também em relação ao corpo. Para ele, é difícil pensar a existência humana sem pensar na cultura e na sociedade, pois não existe um ente natural (ideia de criador e criatura). Ele entende que a expressão técnicas corporais seriam “as maneiras pelas quais os homens, de sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo.” (MAUSS, 1974, p.401)

    Na tentativa de realização deste trabalho de aproximação teórico-empírica, portanto, procuramos seguir a mesma orientação de Mauss, ou seja, partir “do concreto em direção ao abstrato”, pensando na realidade e no que é observado e numa possível abstração do que é visto, e assim, refletir sobre os aspectos da educação do corpo que ocorrem, de forma objetiva e também nas suas sutilezas (nas subjetividades e na formação das crianças) no espaço educacional de uma creche pública.

    Mauss (1974) acredita no processo de educação quando se refere às técnicas corporais, isto é, “O ato se impõe de fora, do alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo. O indivíduo assimila a série dos movimentos de que é composto o ato executado diante dele ou com ele pelos outros.” (Ibid., p.405). Ocorre que a criança, em contato com o adulto, acaba imitando-o devido, principalmente, ao prestígio do adulto em relação a elas. O ato imitador seria a forma de se “visualizar” o aspecto social nessa noção de prestígio, e nele mesmo, pode-se verificar, também, o elemento psicológico e o elemento biológico.

    Nos ambientes educacionais há a preocupação de transmitir às crianças noções das mais variadas, mas a principal dela seria a perpetuação de uma tradição, de acordo com os valores e princípios mais gerais de cada sociedade. Segundo Mauss (1974, p.407), “Não há técnica e não há transmissão se não houver tradição. Eis em quê o homem se distingue antes de tudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral.”

    Assim é que podemos pensar o que foi constatado na creche e as possíveis ligações do olhar antropológico com as questões teóricas deste autor. Alguns aspectos relacionados à educação do corpo, como a higiene, a alimentação, sono, as atividades orientadas (brincadeiras, por exemplo) vão seguindo uma orientação passada dos adultos às crianças, seja por imitação (linguagem corporal), seja pela transmissão oral.

    Richter e Vaz (2005), ao realizarem uma investigação etnográfica em um ambiente educacional de 0 a 6 anos da rede pública de ensino de Florianópolis elaboraram uma agenda de estudos sobre a educação do corpo na infância, sistematizando algumas categorias que permitiriam pensar em tais elementos, como por exemplo, corpo-higiene, corpo-alimentação, corpo-sono, corpo-parque, corpo-atividade orientada.

    Esses últimos autores constataram, dentre outras coisas, que o conjunto de elementos que compõem as intervenções pedagógicas sobre o corpo, tanto nas aulas de Educação Física quanto em outros tempos e espaços da educação de 0 a 6 anos, interpenetram-se nos meandros da rotina da instituição, mostrando-se fortemente vinculados à eliminação dos descontroles ameaçadores da realidade. Em outras palavras, pelo que observaram, consideram que a criança resiste diante do processo civilizador, ou seja, as mais variadas tentativas das professoras daquilo que as crianças devem fazer sempre encontra, de alguma forma, certa resistência nas crianças. (RICHTER; VAZ, 2005).

    Invariavelmente, o que se percebe, quanto se pensa no contexto de uma instituição educacional com público infantil, é a centralidade do corpo nestes locais. E isso ocorre, como já citado anteriormente, das mais diversas formas. Veremos em seguida, de forma um pouco mais ampla, algumas maneiras como isso ocorre, de acordo com as categorias propostas por Richter e Vaz (2005) e com exemplos do que foi observado na creche, durante algumas observações participantes.

    Com relação à categoria denominada de corpo-higiene, poderíamos dizer que seriam os aspectos relacionados à saúde e à higiene. Objetiva-se constituir sujeitos higiênicos, purificados e moralizados e para isso, seriam necessários momentos de eliminação de sujidade. (RICHTER; VAZ, 2005)

    A questão da higiene aparece freqüentemente no espaço da creche. De acordo com a faixa etária das crianças, elas já se dirigem a sós até o banheiro, seja para lavar suas mãos momentos antes ou após as refeições. Há a preocupação, também, com a limpeza do nariz, principalmente nos dias mais frios, quando as professoras costumam andar com pedaços de papel higiênico, pois torna-se algo freqüente. Ao término das refeições, as crianças são orientadas a lavarem-se na região da boca, evitando que fiquem resquícios de comida. Já as crianças de menor idade têm uma certa dependência das professoras, principalmente as que participam do grupo do berçário, as quais precisam ter suas fraldas descartáveis constantemente verificadas e trocadas.

    A categoria corpo-alimentação seria compreendida desde os gestos rápidos das professoras ao servir, recolher, limpar, cortar, distribuir alimentos e, ao mesmo tempo, ingerir algum. Poderíamos pensar que da forma como é realizada essa alimentação, os odores, sabores, cores, texturas, prazeres e desprazeres se perdem em meio à administração maquinal de organismos que são abastecidos nessa pseudo-atividade que meramente garante a autoconservação física e, ao mesmo tempo, ensina a, tecnicamente, sujeitar-se. (RICHTER; VAZ, 2005)

    Ao pensar nestes elementos da alimentação vinculados ao que foi observado na creche, em primeiro lugar, percebe-se uma homogeneização no paladar das crianças, isto é, são servidas as mesmas alimentações a todas as crianças, independentemente de seus gostos individuais. Por mais que os alimentos sejam bem preparados, não há uma diversidade durante os dias. Nos lanches geralmente são oferecidos um suco, um chá ou mesmo café com leite, juntamente com algum biscoito. Nas refeições como almoço e jantar, o arroz, feijão, macarrão, alguma proteína (na forma de omelete ou carne – bovina ou de frango), e salada (geralmente tomate, cenoura ou beterraba) são as formas predominantes de cardápio. Às crianças comumente não se pergunta a quantidade que desejam: as professoras é que “montam” o prato a ser degustado pelas crianças (menos mal que, pelo observado, as crianças não são obrigadas a consumir tudo que foi colocado em seus pratos).

    Os momentos de sono e de repouso são caracterizados por meio da categoria corpo-sono. Nestes momentos o que se percebe é a desconsideração de alguns elementos de sono, como por exemplo, a individualidade das crianças e suas preferências (tempo de duração do sono, vontade de fazer isso, questões de iluminação do ambiente, de preferências espaciais e de distribuição em meio aos seus colegas, entre outros). (RICHTER; VAZ, 2005)

    Podemos ver, até aqui, que ocorre, na rotina da instituição (como de tantas outras), ciclos de repetição, ou seja, com relação à higiene, à alimentação e ao próprio sono, no dia a dia os elementos vão se repetindo, e isso vai configurando-se, também, como um aspecto da educação que, via mecanização, vai tornando-se algo natural à vida das crianças e nossa (dos adultos) também.

    Mais especificamente com relação ao sono, este é realizado no final da manhã, tão logo as crianças realizam seu almoço, e no final da tarde, para aquelas crianças que ficam no espaço da instituição em período integral. São destinados colchões com forro e travesseiro às crianças, que, conforme suas vontades, são convidadas a relaxarem por um certo período de tempo, recuperando-se para as próximas atividades do dia na creche. Geralmente são puxadas as cortinas das janelas a fim de escurecer um pouco mais a sala, em dias quentes, liga-se o ventilador de teto, e assim espera-se que as crianças durmam. Respeita-se o ritmo delas: não são acordadas em horário determinado, algumas acordam antes, outras depois, mas de acordo com o despertar delas mesmas.

    Quanto à categoria corpo-parque, são vistos como momentos em que as crianças se soltam e que elas ficam mais livres. Geralmente as professoras apenas observam as crianças, deixando tudo correr à solta, sem mediação pedagógica. (RICHTER; VAZ, 2005)

    Estes momentos no parque talvez sejam os de maior liberdade para as crianças dentro da instituição. Dentre os mais variados brinquedos e equipamentos, elas têm a possibilidade de escolherem aquele que desejam e brincarem, sozinhas ou acompanhadas (seja com os colegas de sala ou mesmo com outras crianças de faixas etárias diferenciadas). Torna-se o momento das “correrias” e das “gritarias”, em que as crianças extravasam suas emoções. É importante destacar que mesmo as crianças de faixa etária mais elevada na creche não diferenciam muito atividades e brincadeiras que seriam de “menina” ou de “menino”, o que pressupõe que essa construção e papel de gênero é algo que é construído socialmente, sendo as instituições escolares o lócus principal desta construção, bem como o espaço familiar e nos dias atuais, também o espaço midiático.

    E por fim, a categoria corpo-atividade orientada, em que se percebe uma certa regulação corporal das professoras para com as crianças. Aqui, há destaque para os castigos e às ameaças lançadas sobre o corpo. (RICHTER; VAZ, 2005)

    Talvez seja dentro das salas de aula, espaço mais reduzido, que se possa impingir certos controles corporais de forma mais intensa. Nas atividades orientadas que foram observadas, pode-se perceber uma diversidade de atividades sendo realizadas pelas crianças, orientadas pelas professoras, como por exemplo, o trabalho com argila, desenho, pinturas, colagens, brincadeiras cantadas, construção de certos brinquedos, brincadeiras populares, estimulação (no caso dos bebês) entre tantas outras. Não se verificou, em nenhum dia de observação participante, castigos dados às crianças, entretanto, as ameaças – sejam elas corporais, sejam elas verbais – costumavam aparecer em alguns momentos, principalmente quando alguém (adulto) queria impor determinadas formas de ação às crianças. E isso aparece, por exemplo, na forma de tratar as crianças (gritando, xingando), bem como ao tocar a criança com uma certa força física desnecessária ou desproporcional para aquela situação.

    Tudo isso nos leva a pensar, conforme Mauss (1974, p.411) que a “educação da criança é repleta daquilo que chamam detalhes, mas que são essenciais.” Pensar em todos esses aspectos, não de forma isolada, mas interdependentes e em sua totalidade, permite-nos constatar que a educação do corpo, via técnicas corporais, ocorre das mais variadas formas, em todas suas sutilezas, e que isso deve ser um exercício aos profissionais que se preocupam com a transmissão do saber e mesmo com a construção/transmissão de uma dada cultura, visto que a tradição continua a ocorrer e que é por meio dela, de seus princípios, valores e ações que podemos pensar na sociedade da qual fazemos parte, fazendo o difícil exercício antropológico de olhar para nós mesmos e “estranharmo-nos”.

Considerações finais

    Por fim, a guisa de conclusão, podemos pensar, como o próprio Mauss procurou nos mostrar, que “Temos um conjunto de atitudes permitidas ou não, naturais ou não” (MAUSS, 1974, p.408). O processo de educação do corpo, que começa desde muito cedo, e talvez por isso vá se naturalizando em nós, mostra que se olharmos atentamente para este processo perceberemos traços de um objetivo mais geral: através das mais variadas técnicas, corporalmente vamos incorporando valores, gestos e padrões que são gerais em nossa sociedade e são próprias de nossa cultura: a nossa fala, o nosso andar, o nosso “gosto” por isso ou por aquilo, o nosso comportamento, entre tantas outras coisas.

    É necessário que passemos a considerar, cada vez mais, conforme Mauss nos alertou, que há “coisas que acreditamos ser da ordem da hereditariedade e que são, na verdade, de ordem fisiológica, de ordem psicológica e de ordem social.” (Ibid., p.410)

    Em meio a isso tudo, há algo que comanda, a qual, segundo Mauss, seria a educação, vista não de forma limitada, através apenas das questões biológicas ou psicológicas, mas percebida também em sua dimensão sociológica. Isso porque, conforme Mauss (1974, p.421), “É graças à sociedade que há uma intervenção da consciência. Não é graças à inconsciência que há uma intervenção da sociedade. É graças à sociedade que há segurança e presteza nos movimentos, domínio do consciente sobre a emoção e o inconsciente.” 

Notas

  1. Dizemos isto porque, historicamente, a Educação Física sempre foi vista como constituinte do campo da saúde, e por isso, geralmente, acompanhando a forma positivista da produção do conhecimento, pautada a partir do olhar das ciências naturais.

  2. Para Oliveira (2000), o olhar, o ouvir e o escrever constituem formas as quais nos permitem conhecer especificidades daquilo que se estuda nas ciências sociais (ou as “teorias sociais” – denominação atribuída a Anthony Giddens).

  3. No ato de escrever, segundo Oliveira (2000), é que se configura o produto final do trabalho de campo (também chamado de fieldwork), momento em que a questão do conhecimento torna-se tanto ou mais crítica.

  4. Utilizamos o termo “professora” por considerar que são as mulheres que predominam quase que de forma total nestes ambientes de educação infantil.

  5. Em seu clássico texto, Mauss exemplifica das mais variadas formas como ocorreria este processo no decorrer dos tempos, como por exemplo, as diferenças na forma de aprendizagem do mergulho, a forma de cavar e de marchar diferenciada das tropas inglesa e francesa, o andar das jovens francesas em comparação às norte-americanas (as primeiras sendo influenciadas pelas últimas graças ao cinema americano que chegava à França), entre tantos outros exemplos que aparecem no texto.

Referências

  • MAUSS, Marcel. As técnicas do corpo. In: _____. Sociologia e antropologia. Vol. 1. São Paulo: Edusp, 1974, p.399-422.

  • OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. In: ___. O trabalho do antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Unesp, 2000, p. 17-35.

  • RICHTER, Ana Cristina; VAZ, Alexandre Fernandes. Corpos, saberes e infância: um inventário para estudos sobre a educação do corpo em ambientes educacionais de 0 a 6 anos. In: Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Campinas, v. 26, n. 3, maio 2005. p. 79–93.

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