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O crescimento do ‘Terceiro Setor’ no campo

do esporte e lazer: apontamentos críticos

El crecimiento del ‘Tercer Sector’ en el campo del deporte y el tiempo libre: apuntes críticos

 

*Licenciado em Educação Física pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul/USCS

Professor da Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo

Mestrando em educação da Universidade de São Paulo/USP

**Doutor em Educação Física pela UNICAMP. Professor da graduação

e do mestrado em Educação Física da Universidade de Brasília/UnB

Membro da Direção Nacional do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte/CBCE

Coordena, em conjunto com o professor Fernando Mascarenhas, o AVANTE – grupo

de pesquisa e formação sócio-crítica em educação física, esporte e lazer da UnB

***Licenciado em Educação Física pela Universidade Católica de Brasília

Mestre em Educação Física pela Universidade de Brasília (UnB)

Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Política Social da UnB

Bruno Assis de Oliveira*

Edson Marcelo Húngaro**

Pedro Fernando Athayde***

pedroavalone@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente artigo analisa, sob um ponto de vista crítico, o crescimento do “Terceiro Setor” no campo do esporte e do lazer. Realizamos análise dos dados do estudo intitulado “As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil”, realizado em 2002 por órgãos governamentais brasileiros em parceria com a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais – a ABONG e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas – GIFE. A avaliação crítica desta pesquisa nos permitiu identificar um crescimento no Brasil, a partir da década de 80, do “terceiro setor” na área ligada ao “Esporte e Recreação”. Todavia, verificamos que essa ampliação associa-se às ideias neoliberais e a concepções que prejudicam a garantia do acesso ao esporte como direito social, bem como a perspectiva universalizante de promoção das políticas sociais.

          Unitermos: Terceiro Setor. Campo do esporte e lazer.

 

Resumen

          Este artículo analiza, desde un punto de vista crítico, el crecimiento de "Tercer Sector" en el ámbito del deporte y el tiempo libre. Se realizó el análisis de los datos de un estudio titulado "Las Fundaciones Privadas y Asociaciones sin fines de lucro en Brasil", realizado en 2002 por el gobierno brasileño en asociación con la Asociación Brasileña de Organizaciones No Gubernamentales - ABONG y el Grupo de Institutos, Fundaciones y Empresas - GIFE. Una evaluación crítica de esta investigación nos ha permitido identificar un crecimiento en el Brasil de los años ‘80, el "Tercer Sector" en el área vinculada a la "Deportes y Recreación." Sin embargo, verificamos que la ampliación se une a las ideas neoliberales y los conceptos que afectan a la seguridad del acceso al deporte como un derecho social, así como la perspectiva universalista de la promoción de políticas sociales.

          Palabras clave: Tercer Sector. Ambito del deporte y el tiempo libre.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 153, Febrero de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    As transformações societárias assistidas nos últimos tempos foram de notável magnitude e relevância que produziram um mosaico analítico heterogêneo e desordenado. Além disso, é notório que essa mixórdia de análise é fruto, também, do processo manipulatório em que está mergulhada a sociabilidade contemporânea. Nesse sentido, engendra-se um mundo da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1986), que assume um aspecto independente e natural, cumprindo o papel de verdade concreta. Destarte, cabe aos analistas, que se colocam no campo crítico e dialético, envidar esforços a fim de compreender a essência da totalidade concreta do real nas suas múltiplas contradições. Pois, somente dessa forma será possível contribuir para a gestação de ações revolucionárias do real, que busquem a superação do modelo societal hegemônico e a redução das desigualdades sociais.

    Dentro dessa perspectiva, objetivamos com este trabalho colaborar para o acúmulo crítico tão fundamental para uma ciência comprometida com o desvelamento da essência dos fenômenos aparentes. Ao mesmo tempo, almejamos, dentro de nossos limites, auxiliar na análise do processo de crescimento do chamado “Terceiro Setor”, que, a nosso ver, traz as referidas características “mistificadas” que acima aludimos. Trata-se de um “setor” composto por instituições que, no marco da “ofensiva neoliberal”, assumem responsabilidades que em outro período histórico eram atribuições inerentes ao Estado. Mais especificamente, importa-nos demonstrar que seu crescimento, principalmente no campo do esporte e do lazer, não deve ser entendido por nossos analistas como algo que democratiza as relações sociais. Deve, muito mais, ser entendido como o fortalecimento da lógica neoliberal no enfrentamento da “questão social”.1

    Em nossa exposição, partiremos: (1) das contribuições do debate acerca da política social e do “Terceiro Setor”, principalmente aquelas sintetizadas no livro “Terceiro Setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social” para, posteriormente, (2) adentrarmos nos dados de uma pesquisa (capitaneada pelo IBGE) que, em 2002, abordou as entidades do “Terceiro Setor”; e, por fim, (3) as mediações com o esporte e o lazer. Cabe destacar que, uma vez que o objetivo principal do presente artigo é demonstrar quantitativamente as implicações da ofensiva neoliberal no entendimento do crescimento do “Terceiro Setor” no campo do esporte e do lazer, dedicaremos atenção especial aos dois últimos itens.

O chamado “Terceiro Setor”

    Nos últimos anos, temos assistido emergir um novo padrão de intervenção social: o chamado “terceiro setor”. A promoção de políticas sociais universais pelo Estado tem a sua legitimidade questionada, pelos mais diversos setores,2 em função do surgimento, segundo esses, de formas “mais democráticas” de enfrentamento da “questão social”. Complementarmente, evoca-se o argumento de que se faz imperativa a adoção de um modelo de gestão das políticas sociais mais eficiente e menos burocrático, o que seria inviável a partir da estrutura estatal.

    Contrapondo-se à tendência interpretativa das novas formas de intervenção social, Carlos Montaño (2002), numa obra intitulada “Terceiro setor e questão social: crítica ao padrão emergente de intervenção social”, partindo de uma perspectiva crítica e de totalidade, denuncia as inúmeras debilidades do conceito “Terceiro Setor”. Para o autor, tal conceito resulta de uma operação ideológica e inadequada ao real, já que a realidade social não se divide em “primeiro”, “segundo” e “terceiro setor”.

    Na verdade, ressalta Montaño (2002), o fenômeno em foco deve ser interpretado em sua materialidade: trata-se de ações desenvolvidas por organizações da sociedade civil, que assumem as funções de dar resposta às demandas sociais, a partir dos valores de solidariedade local, autoajuda e ajuda mútua. Por conseguinte, tais organizações assumem um papel precípuo do Estado, além de se afastarem de princípios como a solidariedade social e universal e do direito de serviços.

    A utilização desse termo equivocado conduz a que pensemos as instituições que compõem o “terceiro setor” como as organizações da sociedade civil e, portanto, leva-nos a uma compreensão ilusória, materializada no seguinte pensamento: em lugar das organizações do Estado (burocrático e ineficiente) ou do mercado (lucrativo), tais organizações da sociedade civil assumem a tarefa de dar respostas às demandas sociais. Isso que pode ser entendido como uma alteração no padrão de resposta à “questão social” - com a desresponsabilização3 do Estado, a desoneração do capital e auto-responsabilização do cidadão e da comunidade local para esta função - é uma característica típica do modelo neoliberal ou funcional a ele (ibidem, 2002: 185).

    Feitas essas considerações, nosso autor trata de observar que o termo “terceiro setor” não é “neutro”, mas sim, “de procedência norte-americana, contexto onde associativismo e voluntariado fazem parte de uma cultura política e cívica baseada no individualismo liberal”.4 Assim, o termo é constituído a partir de um recorte do social em esferas: o Estado (“primeiro setor”), o mercado (“segundo setor”) e a “sociedade civil” (“terceiro setor”). Esse recorte isola e autonomiza a dinâmica de cada um deles e, portanto, desistoriciza a realidade social. É como se o “político” pertencesse à esfera estatal, o “econômico” à do mercado e o “social” à da sociedade civil, numa compreensão absolutamente reducionista e ilusória.

    Montaño (2002) destaca as quatro principais debilidades teóricas do termo, a seguir, sintetizadas:

1.     O terceiro setor como uma possibilidade resolução à dicotomia entre público e privado

    O público é identificado sumariamente com o Estado e o privado considerado como o mercado – concepção claramente de inspiração liberal. Se o Estado está em crise e o mercado é pautado por uma lógica lucrativa, ambos teriam a capacidade reduzida de dar resposta às demandas sociais. Por conseguinte, o “terceiro setor” seria a articulação/intersecção materializada entre os dois setores: o “público, porém privado” – a atividade pública desenvolvida pelo setor privado – e/ou a suposta superação da equiparação entre o público e o Estado – o “público não estatal” – e seria, também, o espaço “natural” para essa atividade social.

    Considerando a identificação do Estado, do mercado e da sociedade civil, respectivamente, como primeiro, segundo e terceiro setores, é possível percebermos, respeitando a perspectiva crítica seguida, que o chamado “terceiro setor”, na realidade, constitui-se em “primeiro setor”. A referida asserção repousa no seguinte silogismo: se o “terceiro setor” é reconhecido como instância representativa da sociedade civil e se, historicamente, é ela que produz suas instituições (o Estado, o mercado, etc.), então, há uma clara primazia histórica da sociedade civil sobre as demais esferas,5 o que reforça nosso argumento de que o “terceiro setor” seria o “primeiro” (ibidem, 2002: 54).

    Em publicação recente, Montaño & Duriguetto (2010) asseguram que, autenticamente, o que chamam de “terceiro setor” não é terceiro e nem é setor. Na verdade, afirmam os autores, tratam-se de ações que expressam funções a partir de valores. Explicando claramente, o que temos são ações desenvolvidas por organizações não-governamentais, que assumem as funções precípuas do Estado, norteadas por valores de solidariedade local, voluntariado, autorresponsabilização e individualização.

    Nesse sentido, cria-se o sofisma de que determinados representantes de um “setor” estariam mais capacitados ou melhores preparados para atender às funções que um Estado burocrático e ineficiente não seria apto. Para Montaño & Duriguetto (2010) o objetivo dessa construção falaciosa é ocultar o verdadeiro caráter do real fenômeno, qual seja: o de construção de um novo padrão de resposta social à “questão social”, com perda de direito e de garantias no atendimento de qualidade. Ao mesmo tempo, busca-se suprimir o debate que confronta organizações estatais e da “sociedade civil”.

2.     Quais entidades compõem o “terceiro setor”?

    Tão incerta quanto a sua origem é sua evolução conceitual. Cunhado nos EUA na transição dos anos 70 para os 80, ele está diretamente ligado a outro conceito: o de filantropia6. Daí se origina uma falta de acordo entre os teóricos sobre as entidades que o compõe. Para alguns, tão-somente as organizações formais o compõe; para outros, até as atividades informais e individuais estão a ele ligadas; há teóricos que julgam que as fundações empresariais seriam excluídas; sem falar no caso dos sindicatos, dos movimentos políticos insurgentes, das seitas, entre outros, que ora são considerados pertencentes, ora são excluídos do conceito de Terceiro Setor.

    Segundo Montaño (2002), de acordo com os autores que estudam o Terceiro Setor, esta representação se caracteriza pela seguinte composição: a) organizações não-lucrativas e não-governamentais – ONGs, movimentos sociais, organizações e associações comunitárias; b) instituições de caridade, religiosas; c) atividades filantrópicas – fundações empresariais, filantropia empresarial, empresa cidadã, que teriam descoberto a importância da atividade social; d) ações solidárias – consciência solidária, de ajuda mútua e de ajuda ao próximo; e) ações voluntárias; f) atividades pontuais e informais.

    É importante destacar alerta realizado pelo próprio autor, que chama-nos a atenção para o fato de que na classificação acima são ignorados os sindicatos, os movimentos armados, as organizações ilegais e as “criminosas”, que também fazem parte da sociedade civil.

    Montaño (2002) alerta-nos que a crítica conceitual ao termo “terceiro setor” transcende uma mera questão epistemológica. De acordo com o autor, é um conceito forjado dentro de um projeto de sociedade neoliberal, defendido pelos organismos internacionais e articulado à justificativa de implementação de políticas públicas sociais focalizadas e precarizadas.

3.     O “terceiro setor” não é uma “categoria” ontologicamente constatável na realidade, mas uma construção ideal

    A afirmativa acima está vinculada/respaldada no item anterior, onde realizamos um mapeamento dos sujeitos e organizações que compõem o “terceiro setor”. A referida localização e classificação demonstra a debilidade conceitual do termo, uma vez que abarca instituições com natureza/origem tão diversas e com interesses significativamente longínquos, para não dizermos antagônicos.

    O “terceiro setor” ou o que Montaño & Duriguetto (2010) denominam de “projeto do chamado terceiro setor” consubstancia-se num eclético guarda-volumes, onde cabem propostas, como: desresponsabilização do Estado e o fortalecimento da sociedade civil, o “voluntariado”, o “empoderamento”, a “economia solidária”, entre outros. Além disso, é possível “guardar” inúmeros interesses, por vezes, contraditórios.

    Portanto, funda-se uma categoria que representa um cenário amigável e pacífico de convivência entre objetivos incompatíveis, imperceptível na realidade concreta. Essa construção ficcional é funcional ao projeto neoliberal e representa o sucesso da luta do capital por instrumentalizar a sociedade civil (MONTAÑO & DURIGUETTO, 2010).

4.     O caráter ”não-governamental”, “autogovernado” e “não-lucrativo” em questão

    As chamadas organizações não-governamentais (ONGs), quando passam a ser financiadas por entidades, por meio das parcerias, ou quando são contratadas pelo Estado para desempenhar, de forma terceirizada, as funções a ele atribuídas, não parecem ser tão “fiéis” a seu caráter “não-governamental” e à sua condição de “auto-governada”. Efetivamente, o Estado, ao estabelecer “parceria” com uma determinada ONG e não com outra, ao financiar uma, e não outra, ou ao destinar recursos a um projeto, e não a outro, está certamente desenvolvendo uma tarefa seletiva, dentro e a partir da política governamental, o que leva à presença e permanência de certas ONGs, e determinados projetos. Tais organizações, querendo ou não (e sabendo ou não) estão fortemente condicionadas – a sobrevivência seus projetos, seus recursos, sua abrangência e até suas prioridades – pela política governamental. Destarte, não têm a autonomia que pretendem demonstrar – nem prática, nem ideológica e, muito menos, financeira – dos governos.

    Já quanto à denominação de “não-lucrativas” dessas entidades - organizações sem fins lucrativos (OSFL) -, podemos caracterizar diversos tipos organizacionais. Algumas fundações, braços assistenciais de empresas (fundações Rockefeller, Roberto Marinho, Bill Gates), não podem esconder seu claro interesse econômico, pois: contam com a isenção de impostos; pretendem, com a consecução de projetos, a melhoria da imagem de seus produtos; utilizam, e muito bem, as atividades que exercem como formas propaganda. Desenvolvem suas atividades, indubitavelmente, com um claro fim lucrativo, ainda que indireto. Para camuflar seus reais interesses econômicos, essas empresas criam adjetivações mistificadoras ardilosamente construídas e acriticamente aceitas, como: “empresa solidária”, “empresa cidadã”, “empresa com responsabilidade social”, entre outros.

    Por outro lado, no caso das ONGs, grande parte dos recursos repassados pelo Estado (por meio das “parcerias”), não chega aos seus destinatários finais. Esse fato decorre de um insuficiente acompanhamento e fiscalização da atuação dessas organizações pelo Estado, bem como, pelo pagamento dos custos administrativos e operacionais (como, por exemplo: os “salários” dos altos funcionários de muitas dessas organizações). Em relação a este último aspecto, é possível verificarmos um paradoxo na atual constituição do “terceiro setor”, tendo em vista que a existência de cargos assalariados e de despesas administrativas sinaliza para uma burocratização dessas organizações, característica pela qual a estrutura estatal foi, e continua sendo, criticada.

    Não bastassem as debilidades conceituais, os pressupostos que embasam o “terceiro setor” contribuem para a aceitação acrítica da ordem do capital, procurando apenas “melhorá-lo”. O “terceiro setor” é, assim, funcional ao projeto neoliberal, pois, entre outras coisas, instaura a “cultura do possibilismo”. Outra debilidade é que na lógica do “terceiro setor” não se luta pelo poder estatal e/ou do mercado – poderes inatingíveis – o que se quer é o poder que está ao alcance do subalterno, do cidadão comum, criado nas associações e organizações comunitárias. Portanto, luta-se dentro da ordem capitalista (e a reforçando). Essa estabelece como estratégia hegemônica não mais a diminuição das resistências operárias mediante a incorporação de parte das demandas trabalhistas – tentando demonstrar ser o capitalismo um sistema (com um aparato político: o Estado) capaz de gerar “bem-estar social” para todos –, mas sim, apostando na desmobilização mediante a resignação frente aos fenômenos supostamente naturais, irreversíveis, inalteráveis: tais como, a desigualdade e o individualismo.

    O “Terceiro Setor”, portanto, contribui com a naturalização do social, que é, ao mesmo tempo, a sua desistoricização; trata-se da exacerbação do artifício de naturalizar, segmentar e fetichizar o real, para torná-lo ininteligível e inalterável. Com isso, têm-se as condições para a ascensão de um “pensamento único”: só o “possível” parece ser o horizonte “razoável” (ibidem, 2002:142).

    Acreditando na possibilidade do estabelecimento de um determinado contrato social que se funda num pacto de classes, numa aliança harmônica entre “cidadãos” com independência de suas procedências e interesses de classe, os defensores do “terceiro setor” conduzem a uma reificação teórica da noção de “contrato social”. Nas atuais condições – claramente restritivas do ponto de vista dos trabalhadores na defesa de seus interesses e direitos – o dito “novo contrato social” só pode ser um bom negócio para o capital.

    Welmowicki (2004) constata a utilização cada vez maior, no movimento operário, do conceito “cidadania” em substituição ao de “classe”. Tal constatação pode ser facilmente observada na tal denominação Sindicato-Cidadão.7 O autor identifica, nessa mudança, uma estratégia contrária à concepção marxista, na qual o “cidadão” não conta com “uma clivagem de classe, a partir de supostos interesses comuns a todos os homens na melhoria social, e que poderiam, uma vez assumidos pela sociedade, superar a desigualdade entre as classes” (2004:12).

    Montaño (1999, apud LIMA, 2002:138) alerta que: “(...) a participação, a cidadania e a democracia são utilizadas tanto para legitimar o poder, a dominação e o status quo, quanto para lutar contra eles e contra as desigualdades sociais”. Deste modo, é preciso estar atento ao fenômeno da despolitização ou idealização da participação que faz dessa ação “a redentora dos problemas sociais e pode servir como panaceia das contradições vividas no cotidiano”. (MELO, 2007:20).

    Segundo crítica à versão moderna da “cidadania” - que tem como principal expoente T. H. Marshall e, em linhas gerais, representa uma adaptação da cidadania burguesa clássica8 aos tempos do pós-guerra e do “Estado de Bem-estar social” não se sustenta à “evidente” contradição entre “uma política de universalização progressiva dos direitos sociais e a lógica do sistema capitalista”. Em outras palavras:

    A experiência histórica [...] mostrou que a batalha pela extensão generalizada da cidadania social não pode existir sem a alteração radical da política econômica governamental, seja pela pressão do movimento operário organizado, seja para evitar explosões sociais, assim como nunca chegou a haver a generalização ilimitada de direitos sociais. Ou seja, a universalização dos direitos sociais estendidos até a erradicação da miséria exigiria política econômica radical que afetaria os interesses privados capitalistas. E, diríamos nós, a mudança do caráter do Estado capitalista, expropriando a classe proprietária e colocando os meios de produção a serviço da sociedade. Os últimos tempos têm mostrado a reação contrária, com o neoliberalismo dirigindo suas baterias contra os mesmos direitos sociais que pareciam ter um status permanente e uma tendência sempre crescente no início da década de 1950 (BEHRING e BOSCHETTI, 2006:33).9

    No campo esportivo ou da prática de lazer, atualmente, observamos o crescimento desenfreado de políticas públicas ou privadas, que se autodenominam promotoras da cidadania, é um contraponto ao projeto anterior, que visava a formação e descoberta de novos talentos. O resultado dessa proliferação de políticas associadas à imagem e à ideia de cidadania é que: “qualquer ação que ‘tire’ os jovens da rua é resgate de ‘cidadania’, qualquer ação solidária, como filantropia empresarial, ação caridosa de uma igreja, ou mesmo as novas políticas esportivas de atletas famosos, tudo se transforma numa ‘promoção de cidadania’” (MELO, 2005).

    O termo “cidadania” tornou-se autoexplicativo. Está na moda. Sua densidade conceitual, sua carga de enfrentamento à ordem desigual e o seu processo de conquista, que sempre implicou em lutas por direitos de diversas ordens, foram mimetizados a um discurso sem conteúdo. Mesmo os autores e organismos que estão diretamente ligados à implementação do projeto neoliberal, que com suas ações contribuem para a precarização das condições de vida da maioria da população mundial, também, clamam por cidadania. Como se o seu convocar fosse suficiente para esclarecer sentidos e projetos políticos (MELO, 2005:80).

    Outra crítica pertinente às premissas do “terceiro setor” é aquela que demonstra que nele há a aceitação acrítica – implícita ou explícita – não questionada, tanto da lógica da “sociedade da escassez” como da “crise fiscal” do Estado. Os defensores do “Terceiro Setor” argumentam que com a escassez de recursos, o Estado não pode castigar o mercado (particularmente as empresas, submetidas a um contexto de concorrência global) e a sociedade civil com elevados impostos. Isso conduz a um problema fundamental: pouca arrecadação, poucos recursos estatais. O resultado é o discurso sobre o déficit financeiro para sustentar políticas sociais e assistenciais. Justifica-se, por esta via, a precarização das políticas sociais estatais, sua desconcentração e sua focalização,10 bem como a sua passagem, ora para a “iniciativa privada",11 ora para o “terceiro setor”.

    Considerando o que até aqui foi elaborado, nota-se que o chamado “terceiro setor”, mesmo não parecendo assim, não está à margem da lógica do capital e do lucro privado (e até do poder estatal). Não possui, portanto, autonomia nem em relação à economia e nem em relação à política. Percebe-se, assim, aquilo que já citamos anteriormente, ou seja, a sua funcionabilidade ao projeto neoliberal. Tal funcionalidade ganha destaque quando observamos dois processos: aquele que resulta na passagem da responsabilidade de elaboração e implementação de políticas estatais (espaço democrático e de luta de classes) para o “terceiro setor” (supostamente supraclassista); e outro que resulta no esvaziamento da dimensão de “conquista” e de “direito” das políticas sociais, encobrindo estas com o “manto sagrado” da concessão e anulando as identidades de classe subsumidas a identidades particulares ou supraclassistas12 (Montaño, 2002:168). A dialética conquista/concessão é aqui “abolida”.

As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos (FASFIL)13 no Brasil: classificação e identificação das instituições ligadas ao Esporte e Lazer

    Com o objetivo de apresentar um “retrato” mais completo das instituições privadas sem fins lucrativos que atuam no Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – o IBGE –, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – o IPEA –, a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais – a ABONG e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas – GIFE – realizou, em 2002, um estudo intitulado “As Fundações Privadas e Associações Sem Fins Lucrativos no Brasil”.

    Esse trabalho, desenvolvido a partir dos dados contidos no Cadastro Central de Empresas - CEMPRE do IBGE, teve como eixo central a necessidade de elaborar e aplicar, em conformidade com os critérios internacionais, uma proposta de identificação e de classificação das “Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos” - FASFIL, no Brasil14. Tratou-se de uma pesquisa de caráter quantitativo e um de seus principais objetivos foi disponibilizar, embora de maneira pouco organizada, as informações oficiais. Além disso, constituiu-se numa organização e de num tratamento de informações inéditos que visaram, sobretudo, alimentar o debate público. A partir dos números disponibilizados pela pesquisa, tentaremos desenvolver uma análise crítica dos dados apresentados.

    Os dados do Cadastro Central de Empresas – CEMPRE do IBGE revelam que em 2002 existiam no país 500 mil entidades privadas sem fins lucrativos. No entanto, integra este universo um conjunto de organizações que desenvolvem atividades: (1) que são essencialmente de cunho mercantil (entidades de mediação e arbitragem); (2) que são reguladas pelos governos (caixas escolares e similares, cemitérios, cartórios, conselhos, consórcios e fundos municipais); e (3) que são gerenciadas e financiadas a partir de um arcabouço jurídico específico, não sendo, portanto, facultada livremente a qualquer organização o desempenho dessas atividades (partidos políticos, sindicatos, entidades do Sistema “S”: SENAI, SESC, entre outras).

    Diante desta constatação, o estudo analisado optou por recortar o universo das “instituições sem fins lucrativos” a partir de cinco critérios que possibilitassem criar uma identidade comum a um determinado grupo de organizações, quais sejam: privadas, sem fins lucrativos, institucionalizadas, auto-administradas e voluntárias. Observou-se que as instituições que atendem simultaneamente a estes cinco critérios enquadram-se nas figuras jurídicas de fundações privadas ou associações sem fins lucrativos. Por isso, batizou-se este conjunto de entidades de FASFIL. Ao aplicar estes cinco parâmetros ao universo das 500 mil entidades sem fins lucrativos, obteve-se um subconjunto de 276 mil para o ano de 2002.

    Uma vez acordada a definição das FASFIL, o grupo debruçou-se sobre uma proposta de classificação dessas organizações. A classificação almejada seria a de agrupamentos por finalidade das instituições. Considerando as diferentes classificações existentes, acordou-se adotar como parâmetro a Classification of the Purpose of Non-Profit Institutions Serving Households – COPNI (Classificação dos Objetivos das Instituições sem Fins Lucrativos ao Serviço das Famílias), da família de classificações definida e reconhecida como tal pela Divisão de Estatísticas das Nações Unidas, adequando-a as necessidades do estudo. Definiu-se, portanto, uma “COPNI ampliada”.

    Os dois principais argumentos a favor desta escolha foram os seguintes: (1) possibilitar a comparabilidade internacional dos dados: com efeito, a COPNI permite ajustes que a compatibilizam com as especificidades de cada país e de estudos relacionados, desde que se mantenham e registrem as correspondências com os grupos da estrutura internacional e; (2) servir como uma primeira proposta de classificação destas entidades, visando, também, subsidiar trabalhos futuros do IBGE no que se refere à construção das contas satélites das instituições privadas sem fins lucrativos.

    Nesse processo, as organizações foram distribuídas em grupos e subgrupos. Um deles, definido como “Cultura e recreação”, foi dividido em outros dois subgrupos: (1) “Cultura e arte” e (2) “Esporte e recreação”15 . Ao todo, em 2002, o grupo citado contava com 37.539 organizações. Como o objetivo desse trabalho foi o de analisar as organizações do chamado “terceiro setor” que se ocupam do esporte e lazer, destacamos a análise do segundo subgrupo.

    Antes de avançarmos na apresentação dos dados, gostaríamos de expor alguns limites da pesquisa que é a referência fundamental do presente artigo. Não há em todo o documento uma preocupação com o debate conceitual sobre esporte e lazer na sociedade contemporânea. Atribuímos isso ao fato da abordagem se guiar por orientações que, no anseio de obter dados, permitiram generalizações e comparações com outros parâmetros e abstrações que pouco se aproximam do real. Dessa maneira, procura-se encaixar a realidade num conjunto de categorias ideais, que ignoram seu movimento contraditório.

    Segundo o IBGE, no ano de 2002, tínhamos 26.894 “entidades sem fins lucrativos” que abordavam o esporte e a recreação, correspondendo a 9,75% do total de Fundações privadas e associações sem fins lucrativos e 71,64% das organizações do grupo “Cultura e Recreação”. Enquanto a região Norte contava com o menor número dessas (708), a região Sudeste (11.832) apresentava o maior quantitativo de organizações desse tipo.

    Os dados quantitativos, ora explicitados, nos permitem afirmar que foi priorizado o atendimento de regiões historicamente privilegiadas tanto nos aspectos econômicos quanto no acesso a bens e direitos sociais. Essa constatação instiga-nos a indagar se a criação dessas entidades tem se atentado para o quadro de desigualdade social que caracteriza nosso país. Nesse sentido, podemos afirmar que o critério para a cobertura das ações, tanto geograficamente quanto demográfica e socialmente, não parece ter por fundamento a promoção da justiça social.

    De acordo com a pesquisa, pode-se apresentar a hipótese de que, na sua maioria, tratam-se “de associações locais dedicadas ao lazer e aos esportes”, ainda que aí se encontrem também os “grandes clubes esportivos ou sociais” (IBGE, 2004:32). É no Sul que essas entidades são relativamente mais numerosas. Nesta região, pouco mais de um quinto das organizações (21%) são culturais e recreativas.

    Quanto à data de fundação dessas entidades, nota-se um rápido aumento a partir da década de 1980. Enquanto na década de 1970 tínhamos tão-somente 1.555 FAFIL, no período compreendido pela década de 1981 a 2002, foram fundadas 19.720 fundações e associações ligadas ao esporte e a recreação. Somente no período entre 1996 e 2002 o crescimento desse subgrupo esteve em 93,8%. Tais índices só reforçam a compreensão sobre o caráter ideológico dessa mudança no atendimento da “questão social”. Além disso, é necessário observarmos que o período de expansão dessas organizações coincide com o momento de crise do modelo de Estado de Bem-Estar Social na Europa e com o avanço das ideias neoliberais.16

    Há quem veja na proliferação das entidades ligadas ao “terceiro setor” uma salutar ampliação da democracia e do controle social. Entretanto, segundo Pereira-Pereira (2003:95), as análises disponíveis apontam como problema proveniente dessa tendência a falta de eficaz coordenação e de estabelecimento de linhas mestras que evitem duplicações de iniciativas.

    Não obstante o objetivo desse artigo seja uma análise meramente quantitativa, o relevante crescimento das FASFIL no setor esportivo e de lazer nos leva a refletir sobre quais são os motivos que justificam o grande interesse dessas organizações por essa área. Melo (2005), fazendo uma análise da relação entre o “terceiro setor” e os esportes, identifica a ampliação dessa aproximação exatamente na década de 80, seguindo tendência apresenta nos parágrafos anteriores.

    Segundo o autor, esse cenário é composto por uma diversidade de organizações, onde se destacam: as fundações empresariais, ONGs e, principalmente, as fundações de esportistas. Melo (2005) verifica que, normalmente, as ações dessas instituições são movidas pelos signos da filantropia, do voluntariado e do altruísmo. Dentro dessa perspectiva, cunha-se o termo “esporte social” para identificar ações sociais privadas ou mesmo políticas públicas em que jovens e crianças pobres poderiam praticar esporte, graças às ações “caridosas” e filantrópicas do capital (p.84).

    Além disso, outras consequências benéficas são coladas aos projetos do “terceiro setor” no campo esportivo e de lazer, a saber: o atendimento de crianças e adolescentes expostos em áreas de vulnerabilidade social; a promoção da cidadania e do desenvolvimento humano; a promoção da inclusão social, entre outros. Em que pese os limites deste trabalho para dar conta de toda a discussão conceitual e teórica que envolve a análise desses possíveis objetivos de cunho social, entendemos a importância de expressar aqui alguns questionamentos do próprio Melo (2005), principalmente, no que diz respeito à inclusão social.

    De acordo com o autor, é preciso indagar-nos sobre: a) Quem será “incluído” socialmente? b) O que seria estar “incluído” socialmente? c) O que levou esses que não estão incluídos a essa situação? d) Pode o esporte “incluir” socialmente?

    Embora não tenhamos desenvolvido o debate teórico e a contextualização histórica necessários à problematização das questões supracitadas, corroboramos das conclusões do autor, qual seja: a de que a delegação da execução das políticas públicas esportivas aos organismos da sociedade civil pelo chamado “terceiro setor”, assim como a ampliação de projetos sociais implementados por esse grupo, colocam em risco a democratização do aceso/permanência do esporte como um direito social, ao mesmo tempo em que comprometem a visão universalizante das políticas sociais.

    Conforme os dados do IBGE, as FASFIL empregam 1,5 milhões de assalariados. Desses, 5,71% atuam nas instituições ligadas ao esporte e recreação. Somente no período compreendido entre os anos de 1996 e 2002, o número de empregados aumentou em 500 mil novos trabalhadores, o que correspondeu a um crescimento da ordem de 48%.

    Pensando na totalidade dos assalariados, trata-se de um número considerável, especificamente, se levarmos em conta que correspondia ao triplo de servidores públicos federais na ativa no mesmo ano, isto é, cerca de 500 mil pessoas de acordo com o IBGE. A maior parte das pessoas ocupadas nas FASFIL encontra-se no Sudeste (56%), sendo que os Estados de São Paulo (32%) e Rio de Janeiro (11%) reúnem mais de 40% dos trabalhadores dessas organizações. Destacamos que a concentração de trabalhadores nesta região e, particularmente, nestes dois Estados, é proporcionalmente maior do que o observado para o número de organizações. Note-se, contudo, que a elevação percentual do número de empregados das FASFIL, cerca de 48%, foi bem menor em relação ao observado quanto ao crescimento do número de organizações (que foi de 157%). Assim, em praticamente todos os casos, o tamanho médio das entidades diminuiu, no período em análise.

    A partir desse resultado, podemos acompanhar as hipóteses formuladas pelo IBGE (2004:45) – que não são necessariamente excludentes – sobre a atuação dessas entidades, no que se refere aos seus recursos humanos: (1) houve uma redução relativa da contratação devida à diminuição da abrangência dos serviços prestados; (2) houve uma precarização das relações de trabalho por meio de contratações “informais”; ou, ainda, (3) um aumento das equipes por meio do trabalho voluntário. Quanto às contratações, é importante notar que o menor crescimento é observado entre as entidades de esporte e recreação que, no período de 1996 a 2002, aumentaram seus números em duas mil pessoas, o equivalente a um aumento de apenas 2%.

    A mesma análise vale para a área de cultura e recreação, na qual as atividades ligadas ao esporte e ao lazer recebem salários inferiores (3,5 salários mínimos) em relação à arte (7,0 salários mínimos em média por mês), o que provavelmente, também, tem como uma de suas causas e consequências a precarização do trabalho.

Considerações finais

    Num contexto em que a disputa pelos fundos públicos intensifica-se – de um lado o empresariado, ansioso por encontrar no Estado um regulador das crises do capital, fundamentados no argumento da escassez de recursos e, por isso, na necessidade de conter o déficit público e; de outro, os trabalhadores em busca de um Estado que garanta, ao menos, o suficiente para a reprodução social da vida humana –, a política social, na lógica neoliberal, entra no cenário como uma forma de paternalismo, como geradora de desequilíbrio. Os que dela necessitam, devem acessá-la pela via do mercado ou via do “terceiro setor”, e não como direito social garantido pelo Estado. Daí as tendências de desresponsabilização e desfinanciamento da proteção social que, aos poucos (já que há resistências e sujeitos políticos nesse processo), vão configurando um Estado mínimo para os trabalhadores e um Estado máximo para o capital (NETTO, 2001:81). O capital não prescinde de seu pressuposto geral, que lhe assegura as condições de produção e reprodução.

    Nessa lógica, cabe ao Estado cumprir esse papel e, assim, facilitar o fluxo global de mercadorias e dinheiro, por meio da desregulamentação de direitos sociais, de garantias fiscais ao capital, de fazer “vista grossa” à fuga fiscal, pela implementação de programas de privatização (supercapitalização). Tudo isso a fim de garantir, pragmaticamente, a viabilização da realização dos superlucros e da acumulação (BEHRING, 2002:186).

    Compreendendo que o crescimento do número de instituições do chamado “terceiro setor” é resultado do processo que tem, por trás de si, os objetivos acima aludidos e, portanto, é funcional ao projeto neoliberal, faz-se necessário analisar criticamente esse processo, apontando para uma premente responsabilização do Estado no atendimento dos direitos sociais, como o único “setor” capaz de promover um atendimento universal e igualitário.

    Como vimos, tanto conceitualmente, quanto em seus pressupostos, o “Terceiro Setor” está saturado das determinações neoliberais contemporâneas. A análise da empiria, efetuada por meio da referência à pesquisa sobre as entidades do “Terceiro Setor” no Brasil, confirma as observações críticas elaboradas por Montaño (2002).

    O crescimento dessas entidades, longe de demonstrar um combate à “questão social”, demonstra o fortalecimento e a consolidação do neoliberalismo, cuja ofensiva fundamental tem por foco os direitos sociais. Da mesma forma, o crescimento de entidades do “Terceiro Setor” no campo do “esporte e da recreação” não deve ser saudado com otimismo, por aqueles que pretendem uma sociedade emancipada – ou melhor, por aqueles que se encontram numa perspectiva revolucionária. Como se viu, o fenômeno em questão – tanto pela via da análise teórica, quanto pela via da análise empírica – demonstra, muito mais, o fortalecimento da hegemonia burguesa.

    Os próximos passos de nossos estudos conduzirão a analisar qualitativamente as fundações e associações que promovem o esporte e o lazer. Algumas questões nos instigam: se até hoje observamos, nesse campo, pouquíssimas políticas sociais de viés emancipatório, como tem sido a atuação dessas instituições que correspondem ao “padrão emergente de intervenção social”? Quais os pressupostos teóricos que orientam suas ações? Tais instituições proporcionam uma leitura crítica do esporte ou se limitam a reproduzi-lo na sua forma hegemônica?17

    Esses e outros instigantes questionamentos não foram respondidos nesse artigo, porém, esperamos que ele contribua com aqueles que pretendem envidar esforços para a apreensão e transformação radical dessa realidade – os seja, para aqueles que se situam numa perspectiva emancipatória. Concomitantemente, almejamos que as questões persistentes e as considerações temporárias deste trabalho sejam estimuladoras da realização de pesquisa futuras que – da mesma forma que este estudo se propôs - debrucem-se sobre a análise do “terceiro setor” de forma crítica e dialética.

    Tendo em vista o cenário restritivo, para aqueles que estão sob um ponto de vista revolucionário, encerramos lembrando a questão apropriadamente posta por Elaine Behring (2002) ao tratar do que nos cabe nessa luta. Segundo ela, a política social, com todas suas contradições, configura-se, no contexto da estagnação (do capitalismo contemporâneo), como um terreno importante da luta de classes. Trata-se da defesa de condições dignas de existência, em face do recrudescimento da ofensiva capitalista em termos do corte de recursos públicos para a reprodução da força de trabalho.

Notas

  1. Adotaremos neste texto o uso das aspas para o termo “Questão Social”, tendo em vista que compartilhamos da conclusão proferida pelo professor José Paulo Netto de que a referida expressão é uma tergiversação conservadora, colada a sociedade burguesa.

  2. Em função dos limites postos pelo formato de apresentação, não avançaremos muito na questão dos direitos sociais no Brasil. Limitar-nos-emos a afirmar a inexistência de um “Estado de bem-estar social” nos moldes europeus em toda a história do país, mais do que isso, reforçamos os que argumentam a existência de um “Estado de mal-estar social”. Todavia, é importante destacar que nossa premissa não ignora a existência e o significado das lutas trabalhista no contexto histórico nacional.

  3. Em relação ao tema da desresponsabilização estatal, ver Behring (2003).

  4. Além da nacionalidade, tal conceito teve origem e foi disseminado por intelectuais orgânicos do capital. O maior exemplo dessa íntima relação é o fato de ter sido cunhado por John D. Rockfeller III, membro de uma das famílias americanas mais ricas e influentes.

  5. Para entender a referida primazia da Sociedade Civil em relação aos demais setores (Estado e Mercado), é preciso interpretá-la a partir de uma compreensão gramsciniana, ou seja, da sociedade civil exercendo a hegemonia política e cultural de grupo social sobre toda a sociedade, como conteúdo ético do Estado.

  6. O III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor, organizado no Rio de Janeiro, em 1996, pelo GIFE, e que introduziu no Brasil o conceito de “terceiro setor”, é continuidade do primeiro e segundo Encontros Ibero-Americanos de Filantropia, organizados na Espanha e México respectivamente. Em 1998, na Argentina, foi realizado o IV Encontro onde se definiram, como organizações do “terceiro setor”, aquelas que são: privadas, não-governamentais, sem fins lucrativos, autogovernadas, de associação voluntária, entre outras.

  7. Denominação sustentada pela Central Única dos Trabalhadores – a CUT.

  8. Que de forma simplificada identifica a liberdade à liberdade do explorado de vender sua força de trabalho no mercado e a igualdade à sua expressão jurídica.

  9. As “mudanças” – melhor seria chamá-las “contrarreformas” - constituídas pelas Reforma da Previdência, Sindical, Trabalhista e Universitária são os maiores exemplos da ofensiva dos órgãos internacionais (FMI, Banco Mundial, etc.) e que representam um sincero ataque aos direitos dos trabalhadores, obtidos no processo dialético de conquista/concessão.

  10. O caráter focalizante da política social brasileira relaciona-se com o conceito de focalização difundido pelos organismos multilaterais, amparado no discurso de uma alocação de recursos mais eficiente e racional. De acordo com Pereira-Pereira (2003): “A focalização afigura-se, assim, como um princípio antagônico ao da universalização - ao contrário da seletividade, que poderá manter relações dinâmicas com este - não só no plano operacional, mas também teórico e ideológico. Trata-se, a focalização, de uma tradução dos vocábulos ingleses targeting ou target-oriented, oriundos dos Estados Unidos e adotados pelos governos conservadores europeus, principalmente o da ex-primeira ministra inglesa Margareth Thatcher - que concebem a pobreza como um fenômeno absoluto, e não relativo, com todas as implicações políticas que tal concepção acarreta, dentre as quais ressaltam: a restrição do papel do Estado na proteção social; o apelo à generosidade dos ricos e afortunados para ajudarem os mais pobres; a ênfase na família e no mercado, como principais agentes de provisão de bem-estar; a proclamação da desigualdade social como um fato natural”.

  11. Percebemos que esse deslocamento da “questão social” para a iniciativa privada ocorre apenas nos casos em que se vislumbra a ampliação e reprodução do capital. Nesse sentido, o crescimento dos fundos de pensão e da previdência privada nos últimos anos é bastante ilustrativo.

  12. As parcerias público privadas (uma forma encoberta de privatização) que se fundamentam, por um lado, na real redução relativa de gastos sociais – com a precarização e localização das ações – e por outro claramente ideológico, visa a mostrar, como já afirmamos, não um desmonte da responsabilidade estatal nas respostas às seqüelas da “questão social”, a eliminação do sistema de solidariedade social, o esvaziamento do direito a serviços sociais de qualidade e universais, mas, no seu lugar, quer fazer parecer como um processo apenas de transferência desta função e atividades, de uma esfera supostamente ineficiente, burocrática, não especializada (o Estado), para outra supostamente mais democrática, participativa e eficiente (o “terceiro setor”).

  13. Tomando como referência as contribuições de Montaño, podemos identificar as FASFIL como pertencentes ao chamado “terceiro setor”.

  14. Sobre essas entidades é apresentado um perfil relativo ao ano de 2002 e o seu crescimento desde 1996, que corresponde, respectivamente, aos últimos dados disponíveis e ao primeiro ano de divulgação do CEMPRE.

  15. Respeitaremos a terminologia utilizada no estudo desenvolvido pelo IBGE mantendo o subgrupo sob o título “esporte e recreação”, embora tenhamos utilizado desde o início da pesquisa “esporte e lazer”, na perspectiva dos direitos sociais, conforme apresentados na Constituição de 1988. Além disso, tendo em vistas os limites e os objetivos desse estudo não desenvolveremos o debate acerca da “consensual” diferenciação entre lazer e recreação.

  16. Embora as idéias neoliberais tenham se tornado hegemônicas na década de 80, sua gênese ocorreu em anos anteriores. De acordo com Perry Anderson (1995), o nascimento do neoliberalismo ocorreu após a II Guerra Mundial, nas regiões onde o capitalismo tinha suas bases fortemente enraizadas, ou seja, na Europa e na América do Norte. Segundo o autor, tratava-se de uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar. O texto que origina as idéias neoliberais, O Caminho da Servidão, de Friedrich Hayek, foi escrito em 1944, constituía-se num ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, ao mesmo tempo, tinha como alvo imediato o Partido Trabalhista inglês, que disputaria e venceria as eleições de 1945 na Inglaterra.

  17. Assumimos o pressuposto de que atualmente, por influência dos aspectos econômicos e da divulgação midiática, a manifestação hegemônica do fenômeno esportivo é aquela pautada no modelo de alto-rendimento e/ou espetáculo.

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