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As proposições teórico-metodológicas para a Educação Física

escolar das décadas de 1980 e 1990: antes, agora, e depois?

Las propuestas teóricas y metodológicas para la Educación Física escolar en los años 1980 y 1990: ¿antes, ahora y después?

 

*Licenciado em Educação Física. Mestre em Educação Física
Doutor em Filosofia da Educação. Professor Adjunto do

Departamento de Educação Física da Faculdade de Ciências

Universidade Estadual Paulista - campus de Bauru

**Licenciada em Educação Física

Especialista em Educação Especial - Deficiência Visual

Professora da rede de ensino da Prefeitura do Município de São Paulo

Mauro Betti*

mbetti@fc.unesp.br

Fernanda Marques Kuriki**

fer.kuriki@hotmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O objetivo desta pesquisa é realizar, uma avaliação crítica de algumas das proposições teórico-metodológicas para a Educação Física Escolar elaboradas no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, a partir do ponto de vista de seus autores. Para tal, foram entrevistados seis autores. Conclui que tais proposições continuam sendo importantes na formação dos professores, mas precisam ser articuladas com novos conhecimentos e se aproximarem das práticas pedagógicas concretas.

          Unitermos: Educação física escolar. Proposições teórico-metodológicas. Teoria. Prática.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 153, Febrero de 2011. http://www.efdeportes.com/

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“Não precisamos temer que nossas escolhas ou nossas ações restrinjam nossa liberdade,
já que apenas a escolha e a ação nos liberam de nossas âncoras.”

MERLEAU-PONTY (1999, p. 612)

Introdução

O problema de pesquisa

    Muitas proposições teórico-metodológicas para a Educação Física Escolar, com diferentes fundamentos, foram apresentadas à comunidade acadêmico-profissional brasileira nas décadas de 80 e 90 do século XX, e apresentam em comum a tentativa de, em maior ou menor grau, romper com o tradicional modelo tecnicista/esportivista que dominava a prática pedagógica dos professores de Educação Física. Destacam-se as auto-denominadas ou “batizadas”: “Desenvolvimentista” (TANI et alii, 1988), a ”Construtivista” (FREIRE, 1989), a “Crítico-Superadora” (COLETIVO DE AUTORES, 1992), a “Crítico-Emancipatória” (KUNZ, 1991,1994), a “Antropológica-Cultural” (DAOLIO, 1995) e a “Sociológica- Sistêmica” (BETTI, 1991). Tais proposições tomaram espaço significativo nos atuais cursos de formação de professores, e nos discursos pedagógicos da área, o que pode ser evidenciado, por exemplo, pela sua presença nos programas de ensino de instituições de ensino superior, bem como nas bibliografias e questões de concursos públicos na área, e pelas sucessivas edições com que foram contempladas.

    Embora todas as obras e autores citados tenham proposto, cada uma a partir do seu olhar, melhorias qualitativas para as práticas pedagógicas no âmbito da Educação Física Escolar, e uma melhor delimitação e esclarecimento das finalidades da Educação Física, o contraste com as práticas pedagógicas concretas predominantes ainda é marcante: muitos professores desconhecem tais proposições ou as conhecem superficialmente, o que mais se vê são aulas são pedagogicamente pobres e os alunos desmotivados.

    Vários autores (por exemplo, BETTI, 2005; KUNZ, 2006; CAPARROZ; BRACHT, 2007) já apontaram que os avanços teóricos da Educação Física ainda não alcançaram em larga escala as práticas pedagógicas no ambiente escolar, o que torna ainda candente na Educação Física o tema da relação entre teoria e prática.

    Assim, o problema que se coloca é sobre a viabilidade dessas proposições teórico-metodológicas realizarem a mediação teórica necessária. Por que há tanta dificuldade em concretizar nas práticas pedagógicas proposições tão ricas do ponto de vista teórico-metodológico? Será que elas realmente podem ser “aplicadas”? Tais dificuldades seriam provenientes das próprias proposições em si, no sentido de que seriam muito genéricas e desvinculadas das especificidades de cada contexto escolar, ou o problema estaria na formação dos professores, que seria insatisfatória desse ponto de vista?

    Levantamos, preliminarmente, a hipótese de que o problema já assinalado talvez não esteja nas proposições em si, mas no modo como esperamos que elas sejam aplicadas. Para Elliot (apud BETTI, 2005) “o problema para os professores não é a teoria, mas a relação teoria-prática”. Talvez o problema esteja na expectativa de que as proposições teórico-metodológicas possam ser automaticamente “aplicadas” na prática.

As proposições teórico-metodológicas em movimento

    A existência de uma literatura secundária sobre as proposições teórico-metodológicas para a Educação Física escolar, que as dilui e simplifica em resumos às vezes pouco fidedignos às idéias originais (e.g. por exemplo: DARIDO, 1998, 2005) pouco contribui para responder ao problema que delimitamos. Isto porque, na medida em que separa e “congela” as obras/autores em seus contextos de elaboração inicial, não percebe neles inter-relações, diálogos, consensos e dissensos, e, por conseguinte, não percebe que há um movimento no campo.

    E chamamos de "campo", à semelhança de Bordieu (1983, 1996), aquele mundo social relativamente autônomo - no caso um campo científico-pedagógico -onde os atores/autores da produção simbólica posicionam-se relativamente uns aos outros, concorrem na busca da hegemonia, "enfrentam-se em lutas que têm como alvo a imposição de princípios legítimos de visão e de divisão do mundo natural e do mundo social" (BORDIEU, 1996, p. 83) Enfim, nesse campo de forças e de lutas, os autores das proposições teórico-metodológicas da Educação Física movimentam-se, interagem, dialogam, concordam e discordam e, sobretudo, continuam a produzir, não estão como que congelados em gavetas de freezer, à espera de consumidores que os escolham conforme as preferências.

    Nesse entendimento, que pode ser confirmado pela análise intrínseca das proposições, evidencia-se que há um movimento no campo pedagógico da Educação Física, qual seja, se tem caminhado em direção à noção de cultura, mesmo que se possa considerar atualmente tal movimento já insuficiente.1

    A figura a seguir procura representar como, ao contrário do entendimento de "abordagens" da Educação Física escolar de Darido (1998, 2005), no qual as proposições teorico-metodológicas encontram-se estáticas no tempo e no espaço, quando as visualizamos "em campo" são projetos em movimento, que ao longo do tempo tem caminhado em direção à noção de "cultura", mesmo que com diferentes viéses em suas respectivas fundamentações teóricas.

    Bracht (1999) já havia identificado, nos anos 1990, três diferentes caracterizações do saber próprio da Educação Física:

  1. atividades físicas ou atividades físico-esportivas e recreativas – a função da Educação Física é o desenvolvimento da aptidão física, e as referências teórico-conceituais provêm das ciências biológicas;

  2. movimento humano, movimento corporal, motricidade humana ou movimento humano consciente – o objetivo da Educação Física é o desenvolvimento integral do educando; o referencial provém da aprendizagem motora e desenvolvimento motor, e, em certo sentido, da antropologia filosófica;

  3. cultura corporal, cultura de movimento ou cultura corporal de movimento – movimentar-se é forma de comunicação com o mundo, constituinte e construtora de cultura, mas também possibilitada por ela; é linguagem, que enquanto cultura habita o mundo do simbólico.

    Ora, as proposições teórico-metodológicas que serão objeto deste estudo inserem-se exatamente no terceiro entendimento dessa classificação proposta por Bracht. Também em Daolio (2004) encontramos respaldo para nossas escolhas, quando, a partir do modelo antropológico de Clifford Geertz, considera que houve um processo de ampliação do entendimento das relações entre ser humano e cultura nas proposições teórico-metodológicas, que progressivamente passaram de aspectos biológicos para psicológicos, depois sociais, e, por fim, consideraram a cultura e o ser humano de forma simbólica e dinâmica, ampliando a visão de Educação Física.

    Então, entendemos que a contribuição específica desta pesquisa para esse debate pedagógico reside na sua intenção de, ao buscar uma avaliação crítica das proposições teórico-metodológicas, ouvir os pontos de vista dos autores, buscando neles captar o dinamismo do campo, para além de uma mera apresentação de opiniões ou classificação de concepções. Para compreender melhor as proposições teórico-metodológicas da Educação Física, é necessário considerar as condições e propósitos com que foram elaboradas por seus autores, às décadas de 80 e 90 do século XX. Que expectativas tinham à época? Quais fundamentos teóricos as subsidiaram? Como avaliam a repercussão de suas proposições? Que possibilidades e limites vêem para elas nos dias de hoje? Que “atualizações” fizeram em suas próprias proposições?

    Não encontramos na literatura da área estudos com tal ambição, apenas análises críticas específicas em relação a algumas delas (por exemplo, FERREIRA, 2000; MANOEL, 2008; TANI, 2008).

    Por outro lado, o estudo aqui proposto guarda alguma similaridade com o de Daolio (1998), o qual buscou compreender o conjunto de valores, pressupostos e significados que deram sustentação à criação e construção dos discursos acadêmicos presentes nos movimentos de renovação da Educação Física brasileira desde o final da década de 70 até meados da década de 90 do século XX. No referido estudo foram entrevistados sete personagens considerados mais importantes naquele processo, alguns dois quais coincidentes com as nossas próprias escolhas.2

Objetivo

    O objetivo desta pesquisa é realizar uma avaliação crítica3 das repercussões e perspectivas futuras de algumas das proposições teórico-metodológicas para a Educação Física Escolar elaboradas no Brasil nas décadas de 1980 e 1990, a partir do ponto de vista de seus autores.

Metodologia

    Foram entrevistados os seguintes autores: João Batista Freire (proposição “Construtivista”), Celi Z. N. Taffarel, Lino Castellani Filho e Valter Bracht (proposição “Crítico-Superadora”), Elenor Kunz (proposição “Crítico-Emancipatória”) e Jocimar Daolio (proposição “Antropológica-Cultural”).

    Os depoimentos dos autores foram coletados mediante entrevista presencial. Os autores foram ouvidos, em entrevista caracterizada como semi-estruturada, com relação aos seguintes tópicos: (a) Contexto de elaboração da proposição e fundamentos teóricos que a subsidiaram; (b) Repercussão e implementação, nas práticas pedagógicas escolares; (c) Avaliação atual da proposição.

    As entrevistas tomaram com base o seguinte roteiro de perguntas:

  1. Em qual contexto (época, finalidade, expectativas, pessoas envolvidas, etc.) esta proposição teórico-metodológica foi elaborada?

  2. Quais fundamentos teóricos a subsidiaram (especificar principais autores e obras)? Como teve acesso a eles?

  3. Como avalia a repercussão/impacto da proposição na comunidade da Educação Física, em especial na Educação Física Escolar, à época?

  4. Inúmeros estudos indicam que as proposições teórico-metodológicas elaboradas na década de 1980 e 1990 foram pouco implementadas nas práticas pedagógicas da Educação Física Escolar. Você concorda com isso? Se sim, porque acha que isso aconteceu?

  5. Como avalia a proposição hoje? Ainda é atual? Faria alguma revisão ou atualização?

  6. Estas proposições, elaboradas nas décadas de 1980 e 1990, são suficientes para fundamentar e subsidiar a formação dos licenciados em Educação Física e a prática pedagógica da Educação Física escolar?

    As entrevistas foram realizadas presencialmente, registradas em gravador de áudio e posteriormente transcritas.4

Resultados: Os autores falam

    “A gente precisa fazer as coisas, mas ter consciência do que faz”: João Batista Freire

    Antes...

    João Batista Freire da Silva (JF) foi técnico de Atletismo infanto-juvenil e professor de Educação Física para crianças, tanto antes como durante o início de sua carreira universitária. Caracteriza a si próprio, em sua primeira fase profissional na Educação Física, como “prático”, sem muita atenção para questões teóricas. Valoriza sobremaneira esta experiência de vida ao explicar sua trajetória de docente e pesquisador: “Porque existe uma teoria, mas também existe uma história de vida, então eu vivi uma história de vida que é muito afim com a teoria que eu não conhecia [...] a minha história de vida é absolutamente coerente com meus trabalhos profissionais.

    Por “sintetizar uma história de vida” é que JF justifica o fato do livro “Educação de Corpo Inteiro”, publicado em 1989, ser ainda significativo, e critica aqueles que disseminam “a idéia de que só o que tem valor é aquilo que vem de um estudo teórico, de um estudo acadêmico”. Outro fator que teria contribuído para o sucesso do livro é a sua linguagem não-acadêmica, uma linguagem de comunicação direta com o professor, já que, à época, estava em estreito contato com professores.

    Explica o ponto de partida da sua dissertação de Mestrado (concluído na USP): “a idéia era de fazer uma pessoa ter uma compreensão daquilo que ela vivia a partir da ação prática [...], a partir da ação ela teria que disso emergir uma compreensão”. Mas o tema não partiu da teoria piagetiana, e sim do título de um livro de Piaget - “Fazer e compreender”- pois o título do livro o fez refletir sobre o fato de que as pessoas “fazem coisas pra viver”, mas se não compreendem o que fazem “aquilo se limita à ação [...], é uma coisa que começa e acaba”, já a compreensão “ vai pra vida, se estende a ela e a outras pessoas”.

    Explica então que, a partir dessas idéias, criou um “método”, centrado no jogo, de acrescentar nas ações elementos novos, para contradizer o já conhecido e provocar reflexão, gerar dados de consciência. Assim a criança, que vive intensamente o lúdico, poderia “viver um ponto de contradição” e sair “com um ganho de conscientização”.

    Esclarece que “Educação de Corpo Inteiro” não é a sua dissertação publicada como livro, mas resultado da demanda de uma Editora. Embora admita a influência de Jean Piaget em sua formação, pois foi o único autor que havia lido com profundidade, refuta o “rótulo” de “piagetiano”, pois não o considera o autor que toma como base dos seus trabalhos. O livro, insiste JF, “tem muito mais da minha experiência, da minha história de vida do que de Piaget”

    A associação com o “construtivismo” é também parcialmente rejeitada por JF, na medida em que percebe, por parte de quem assim o rotula, uma concepção restrita de construtivismo, associado exclusivamente à Piaget, quando, na verdade já pré-existia um lógica construtivista, “uma lógica da formação histórica do conhecimento”, da qual Piaget foi apenas um dos colaboradores, embora com a genialidade que lhe é própria: “então, se alguém falasse que eu sou construtivista, é mais nesse sentido geral, não piagetiano”.

    Agora...

    JF avalia que hoje dialoga melhor com os professores da educação básica do que com os colegas da Universidade, não se vê como detentor de um “discurso acadêmico”, mas de um “discurso de professor”. O próprio livro “Educação de Corpo Inteiro”, afirma JF, retrata essa “conversa” com os professores, pois estes se identificam facilmente com o livro. Nesse sentido, embora de modo não premeditado mas intuitivo, o livro valeu-se de uma “estratégia política”:

    “Como a idéia de todos nós é mudar a sociedade, e é provocar transformações, quem vai fazer finalmente a transformação é quem ta dando aula pra criança, pra adolescente. Se eu atinjo o professor da rede, eu posso produzir transformações. Então ele é político nesse sentido de usar uma estratégia”.

    Tal estratégia foi também facilitada pelo uso de uma linguagem “que todo mundo entende”, em contrapartida, professores universitários tendem a criticar o livro “porque ele não tem uma fundamentação teórica, e eu reconheço que de fato não tem”.

    Considera que muitas vezes se cometem injustiças com autores que, como ele, não explicitam todas suas referências teóricas, porque “o principal do meu trabalho não é essa teoria”, mas “uma trajetória histórica minha e de um povo que eu vivo”:

    “isso é que forja uma idéia, isso forja uma ideologia, quer dizer, eu não preciso de Marx pra ter uma ideologia a favor de um operariado, a favor de uma classe trabalhadora [...]. Mas eu não preciso de Marx pra ser isso, eu sou isso antes do Marx, eu sou uma pessoa assim, eu vim disso.”

    Por isso afirma, com relação ao seu atual trabalho de pesquisa em escolas de bairros pobres de Florianópolis-SC, com crianças em situação de risco que, “se pegar teoria e colar ali em cima tenho certeza que bate, a teoria a favor dos excluídos”.

    Ao falar sobre a implementação das proposições teórico-metodológicas nos dias de hoje, afirma não avaliar “Educação de Corpo Inteiro” como uma proposta pedagógica, nem que os professores tenham que “aplicar alguma coisa consistente a partir do que eu escrevi”, porque não é isso que propõe, embora outros autores o tenham feito, na sua opinião.

    Vê grande descaso com a educação de modo geral, mas acredita nas possibilidades da Educação Física. Todavia, percebe a atual política de pós-graduação em Educação Física ditada pela CAPES como uma ameaça para a frutificação do movimento pedagógico que iniciou no Brasil na década de 1980, na medida em que “certas pessoas cooptadas pelo governo”, que se arvoram “o direito de definir o destino da Educação Física” e a monitoram, destróem a autonomia universitária e quebram “a espinha dorsal da Educação Física, que é a pedagogia”, Instauram assim uma espécie de “neo-colonialismo”: a biomecânica, a fisiologia etc., “que deveriam ser, quando muito, uma assessoria dessa pedagogia”.

    Depois...

    JF pretende escrever novos livros, que serão frutos dos trabalhos de pesquisa-ação que vêm realizando em escolas, e avalia que hoje faz um trabalho pedagogicamente mais consistente do que quando escreveu “Educação de Corpo Inteiro”, livro que considera “um pedaço de um projeto”. Afirma possuir uma pretensão de pesquisa e de trabalho pedagógico bastante ampla, que “só é possível porque eu não mudei”, porque houve coerência ao longo do tempo em seu trabalho. Mas está melhor fundamentado, realiza um trabalho de maior amplitude na rede escolar: “eu tô com o pessoal da rede todos os dias em muitas escolas”. Nos últimos anos tem lido outros autores, que pretende mencionar em seus futuros escritos. Adverte, contudo, que é preciso ter responsabilidade ética com relação a isso, pois você não pode sair mencionando qualquer autor, a não ser a partir do momento que você o domine”.

    Não considera que as proposições teórico-metodológicas das décadas de 1980 e 1990, sejam hoje suficientes para fundamentar e subsidiar a formação dos licenciados em Educação Física e a prática pedagógica da Educação Física escolar. Avalia que, por falta de outras obras, fica-se naquelas já existentes, e o angustia perceber “que não tem coisas novas em pedagogia”. Convida os colegas que publicaram nas décadas de 1980 e início da seguinte a pesquisarem e publicarem mais. Lembra que “a ditadura nos unia [...] enquanto a ditadura existia, nós produzimos juntos [...] quando ela termina, a gente começa a produzir separados e como adversários”.

    E como nada surgiu que permitisse a esse grupo juntar-se novamente, JF procura reunir e jovens que o procuram, “porque viram o valor que tem a prática, e e vêem que eu nunca me afastei da prática, eu fui teimoso”. Clama aos colegas universitários pelo diálogo, críticas e auxílios mútuos, no sentido de melhorar a qualidade do que se publica. Considera ainda particularmente grave a insuficiência da produção que dá sustentação à formação e atuação dos professores de Educação Física, pois a Educação Física “é uma disciplina há muito tempo ameaçada de extinção”, muitos a acham desnecessária, e ela não tem mais o amparo dos militares, como no passado.

    Em sua concepção, a Educação Física “é mais importante que as outras disciplinas”, pois seria a própria formação escolar, na medida em que considera equivocado transmitir culturas específicas da matemática, do português etc.: “escola não é pra transmitir é pra construir, e aí, no sentido mais amplo que do construtivismo, é para desconstruir coisas e construir um conhecimento rico pras pessoas se apoderarem de instrumentos, pra dar conta de viver em sociedade, e há uma Educação Física que faz isso, que pode fazer isso muito bem.”

    Por fim, entende que é necessário trabalhar com uma pedagogia que tenha como fundamento o corpo humano, entendido este como a própria pessoa que vive, como corpo que é, e não como algo que possui. Então, trata-se de uma opção pela matéria, pois é preciso se realizar materialmente, corporalmente, neste tempo de vida. Ressalta JF que somos herdeiros de uma ética moderna, que justifica, em nome do poder financeiro, a supressão do direito à vida material, já que ela diferencia vida "material" e vida "espiritual". De outro ponto de vista ético, o direito à vida é o direito à vida corporal. Em conseqüência, educar “é educar para viver corporalmente [...] é uma outra ética que parte do ponto de vista do excluído, do oprimido, da vítima”. E para isso, prossegue JF, é necessária uma pedagogia para ensinar a viver corporalmente, papel que Educação Física poderia assumir, embora este seja um problema de toda educação, e de toda a sociedade: Não vejo futuro na humanidade, se nós não educarmos as pessoas para viverem corporalmente, não há céu nem inferno, há vida corporal [...]. Isso requer uma pedagogia. Então eu quero trabalhar a favor dessa pedagogia”.

“Essa é a lei da dialética”: Celi Taffarel

    Antes...

    O livro “Metodologia do Ensino de Educação Física” foi elaborado no início dos anos 90, quando o neo-liberalismo aprofundava-se no Brasil, e precisavam então também avançar o elementos de resistência no âmbito da Educação, com o debate filosófico sobre como tratar o conhecimento na educação básica, em especial a questão da metodologia do ensino. A Educação Física foi também chamada a pronunciar-se, por intermédio do Lino Castellani Filho (CF), que reuniu professores que já estavam apresentando propostas pedagógicas ao nível de Secretarias de Educação de alguns estados brasileiros. O grupo realizou seminários e debates, e estruturaram uma proposta que pudesse ser publicada, explicitando as bases teórico-metodológicas que deveriam orientar a Educação Física no currículo das escolas. Esses fundamentos teórico-metodológicos expressam o acúmulo de conhecimentos que tinham à época, que permitiu elaborar um livro que demarcou a época e dialogou com outras proposições de Educação Física que surgiram ou estavam em construção no mesmo momento histórico.

    Os fundamentos teóricos dizem respeito às concepções de escola, currículo e projeto histórico. O projeto histórico é concebido com referência aos clássicos que fazem a critica ao modo de produção capitalista, em especial Marx e Engels. A concepção de currículo é a noção de currículo ampliado, a partir de experiências pedagógicas do Leste Europeu, no qual educadores procuraram organizar o currículo escolar em nexo com o projeto histórico revolucionário (socialismo).

    Considera-se que o trabalho pedagógico se expressa no trato com o conhecimento, nos objetivos e na avaliação: qual é o objetivo da Educação Física na escola, como o conhecimento deve ser tratado, como fazer a avaliação? As referências aqui são o Prof. Luiz Carlos de Freitas, Pistrak, Macarenko, Luria, Vygotsky, Leontiev.

    A concepção de Educação Física advém do debate internacional sobre o objeto da Educação Física, e o grupo reconheceu a cultura corporal como seu objeto, entendida como construção histórica, que tem determinadas características e assume sentidos e significados na vida. A depender do período histórico aparecem determinados sentidos e significados. Assim a central principal seria: “qual é o sentido/significado da Educação Física na escola nesse momento histórico?”. “E daí nós víamos os embates de projeto” em torno da concepção que justificaria a Educação Física na escola: aptidão física versus cultura corporal.

    Avalia que o livro teve boa repercussão, ficou conhecido, penetrou a rede pública, é debatido, adentrou às universidades. Particularmente sua adoção em concursos públicos, por exigir dos professores a sua leitura, facilitou sua socialização.

    Agora...

    Não concorda com os que afirmam que as proposições teórico-metodológicas em questão foram pouco implementadas nas práticas pedagógicas da Educação Física Escolar, porque esse processo depende de condições objetivas. A adoção da proposição crítico-superadora exige mudar normas, mudar regras, capacitar professores, investir em formação continuada, investir em infra-estrutura: “Não é só chegar e botar um livro lá dentro e achar que a coisa vai acontecer”. Afirma que acompanhou o esforço de implementação realizado por professores em vários lugares do país. Entende que o exame dos Anais de eventos científicos e o relatos de experiências demonstram que o Coletivo “foi realmente implementado”. A sua consolidação é que teve limitações, pois não poderia se dar sozinho, exigiria “o acompanhamento de uma série de coisas”.

    Depois...

    Admite que é preciso aprofundar, esclarecer e revisar alguns aspectos do livro, que “serviu pra uma época”, “tinha uma determinada encomenda” à qual teve que se adaptar. Lembra que vai publicar outros livros, de modo a realizar aprofundamentos e revisão de conceitos, no sentido de “consolidá-los, explicá-los melhor”.

    Não considera as proposições elaboradas nas décadas de 1980 e 1990 suficientes para fundamentar e subsidiar a formação dos licenciados em Educação Física e a prática pedagógica da Educação Física escolar, pois “elas tiveram tempo, um espaço, uma época, elas tem que ser avaliadas”, então “nós temos que fazer as sínteses superadoras”. Avalia que a “a jovem geração tem condições de fazer sínteses superadoras”; “é fundamental que essa juventude que ta aí escutando, ela se disponha a fazer isso, elaborar novas sínteses”. “Essa é a lei da dialética, tem uma tese, tem que ter antítese pra ter uma nova tese”. O que foi feito àquela época tem que ser revisado, aprofundado, “tem que ter uma nova síntese”, e entende que o mesmo aplica-se às outras proposições.

“Mediação teórica”: Elenor Kunz

    Antes...

    Ex-atleta e treinador de Atletismo, Elenor Kunz (EK) doutorou-se em 1987 na Universidade de Hannover (Alemanha), e destaca a importância de ter sido orientado por um filosófo, Andreas H. Trebels, na época em que se iniciava uma “perspectiva crítica da Educação Física”. Seu orientador o incentivou a ler Paulo Freire, o que foi “uma salvação pro meu doutorado, porque o Professor Trebels não queria fazer com que ele fosse um responsável para uma importação cultural, quer dizer, levar culturas já mais elaboradas da Alemanha para o Brasil”. Deslocou-se então do campo do treinamento esportivo para a área pedagógico-escolar, estudou “teorias pedagógicas da linha crítica” e admite a grande influência de Klauss Morenhauer nesse período. Sua tese, traduzida para o português, resultou no livro “Educação Física: Ensino e Mudanças", publicado em 1991, no qual já iniciou a elaboração do conceito de “movimento humano” ("se-movimentar"), que retomou depois, mas avalia que tal conceito “não teve tanta repercussão no Brasil pelo menos até agora”.

    Anuncia que fundamentação teórica do seu trabalho baseou-se em estudos da fenomenologia e no conceito do “Se-movimentar”, a partir dos estudos de teorias de autores holandeses e alemães, como Buytendijk, Gordjin e, principalmente, Jan Tamboer. Sua intenção na tese foi construir conhecimentos teóricos, mas voltados para a prática. Mas tal não seria possível “à distância”, e quando retornou, inserido na “nossa realidade brasileira” propôs a construir “um trabalho que fosse mediador, vamos dizer assim, das práticas realmente”. Daí surgiu o livro “Transformações didático-pedagógicas do esporte”, publicado em 1994.

    Agora...

    Considera que a boa repercussão da publicação de sua tese de mestrado se deve ao fato de, justamente, haver à época uma carência de propostas. Quanto à implementação das proposições teórico-metodológicas, EK considera que, na Alemanha, a implementação prática das teorias é melhor resolvida que no Brasil, ainda que não seja por completo, e que houve, na década de 1990, no Brasil, uma certa proximidade entre a mediação teórica e a realidade escolar, que o levou a julgar que haveria avanços no início do século XXI, que “nós teríamos uma Educação Física totalmente transformada através dessas idéias, porque eram muitas, não só as minhas [...]. E aí eu vejo que, de repente, isso não tem acontecido” [...] Eu não sei bem qual o motivo, pra mim hoje eu percebo um afastamento, um certo distanciamento” .

    EK manifesta sua preocupação com o distanciamento em relação às propostas pedagógicas, com o fato de que os programas de pós-graduação não possuem pesquisadores relacionados à área de Educação Física escolar, que produzem poucos trabalhos que digam respeito à escola, às problemáticas do professor, da metodologia de ensino e da didática, do conteúdo, da didática. Acredita também que os teóricos de alto nível que surgiram após sua geração acabaram permanecendo em outras áreas, como a filosofia e a educação, e por conseqüência “se caiu, no meu modo de entender, num círculo de discussões teóricas, até bem aprofundadas, mas a parte frágil, a parte carente que sempre foi, ficou sobrando mais uma vez”. Por isto, entende que as proposições da década de 1990 continuam sendo as principais referências para orientação da Educação Física escolar e a formação profissional. A nova geração não teria dado continuidade a esta produção. Vê a necessidade de haver um desenvolvimento, e não sobreposição de teorias, a partir dos melhores fundamentos hoje disponíveis, que poderiam se articular com "com essas fundamentações que nós iniciamos na época". Aponta a necessidade de "realmente criar um curso de licenciatura para a Educação Física”, no momento em que se privilegia mais o bacharelado. Destacou a necessidade de aprofundar a teoria do Se-movimentar em especial em relação "a uma outra lacuna que ficou na nossa área, que é a Educação Física infantil".

    EK denuncia o distanciamento entre os que oportunidade de fazer mestrado e doutorado e os continuaram trabalhando no cotidiano escolar, com sobrecarga de trabalho e trabalhos reduzidos uma possível desilusão política. Ao lado de uma possível “desilusão política”, tal distanciamento teria sido, possivelmente ao lado de uma, a principal causa do arrefecimento do entusiasmo dos professores de Educação Física que trabalhavam nas redes públicas de ensino, que, à época, “participaram de muitos eventos, congressos, discussões, debates”, Esclarece que, embora tivesse dado grande ênfase às teorias e conceitos, o que era necessário à época, isto que acabou por produzir algum afastamento dos professores.

    Depois...

    Mais recentemente, na Coletânea “Didática da Educação Física” (KUNZ, 2002, 2003), EK, propõe justamente problematizar situações da realidade específica em que trabalha o professor: “O professor trabalha com basquete, nós temos um texto que fala do trabalho de basquete na proposta crítico-emancipatória” [...] mas não no sentido de servir como modelo, mas como problematização pra eles sentirem o que é necessário".

    Não vê como necessário “mudar radicalmente o que é a prática”, mas sim "desenvolver novos sentidos, os significados daquilo que se realiza na prática”. Daí, o professor “tem que se apropriar de novos conhecimentos, começar da prática para a teoria”. Por não fazermos isso, não há “conseqüências boas”.

“Essenciais, mas não mais suficientes”: Lino Castellani Filho

    Antes...

    Para Lino Castellani Filho (CF), a primeira metade da década de 1980 caracterizou-se como de denúncia de status quo da Educação Física, e a segunda metade por expressar uma necessidade de elaboração de novas práticas pedagógicas, superadoras dessas denúncias. A elaboração da obra “Metodologia do Ensino de Educação Física” deu-se nesse contexto. Em 1990, recebeu convite da Editora para publicar livro em uma coleção destinada a professores, e ampliou o convite a outros colegas: “Então a idéia foi justamente essa, dar seqüência ao movimento iniciado lá atrás nos anos 80, de reflexão, de denúncia, de crítica, de compreensão, de anunciar”.

    CF aponta que todos os autores do “Coletivo” estavam fincados numa tradição marxista, embora não com a mesma compreensão, pois havia os mais ortodoxos, os que se aproximavam mais dos ideais da Escola de Frankfurt, os que se identificavam com o conceito de “Estado Ampliado”, de onde surgiu a idéia de “currículo ampliado”, e havia também uma interlocução com sócio-interacionistas. Para CF, particularmente, sua aproximação com este trabalho se deu por conta de seu mestrado, no qual sua pesquisa estava assentada sobre referenciais materialista-histórico-dialéticos, de tradição também marxista.

    Os subsidios teóricos foram buscados em autores que trabalhavam com a perspectiva de prática pedagógica de intervenção social, de transformação social, em uma relação íntima com a tradição marxista, “o que fez com que nós nos sentíssemos a vontade para trabalhar tanto com a pedagogia crítico-social dos conteúdos, do Saviani que nos orientou num primeiro momento” como com Paulo Freire, embora este “tivesse uma outra perspectiva de discussão de Educação”. Esta base teórica foi trazida para a Educação Física, e possibilitou aos autores avançar na direção do que Saviani apontava como concepção histórico-crítica da Educação.

    Contudo, os autores consideraram que era necessário outra denominação de Paulo Freire e Saviani, o que os levou a cunhar a expressão "crítico-superadora”: “crítico e superadora dos dois, do Saviani e do Paulo Freire numa busca de uma coisa que avançasse em relação a eles para dentro da nossa Educação Física".

    CF avalia que a obra teve boa repercussão desde o seu lançamento, principalmente por parte daqueles que compartilhavam da busca do rompimento da relação paradigmática da área com a aptidão física, em busca de uma perspectiva de natureza histórico-social. Todavia, afirma que houve um movimento conservador contrário à proposição crítico-superadora, e que os responsabilizou pela descaracterização da Educação Física, já que, ao se afastar do paradigma da aptidão física, ela perderia sua identidade e seu espaço.

    CF concorda que houve pouca implementação da proposição nas escolas brasileiras, já que a produção teórica não é, por si só, suficiente: “É ilusório, é equivocado acreditar que basta ter uma produção teórica para que de uma forma automática e mecânica essa produção teórica vá ter significado na prática pedagógica concreta que está acontecendo aí nas escolas brasileiras”. Para ele “faltou mediação e falta até hoje mediação”, e mediação é “a configuração de políticas públicas que permitam a esses professores já em ação docente, se apropriarem dessa discussão e dessas reflexões, para com isso dar novos, digamos, novo sentido à sua prática pedagógica”.

    O hiato entre a Universidade e o campo de atuação profissional também é apontado por CF como uma das razões pela quais as proposições não foram suficientemente implementadas, pois a Universidade não se aproxima para dialogar com os professores “e trazer as questões concretas para a discussão acadêmica”. Denuncia também que não há preocupação de instâncias governamentais em construir mecanismos para que estes profissionais possam, em horário de trabalho, remunerado, ter a oportunidade de estudar, par acompanhar o que vem sendo produzida no meio acadêmico. Para ele, apenas em épocas de concursos públicos os professores tomam contato com a produção teórica que lhes foi negada na formação inicial. Mas a jornada de trabalho intensa finda por levar os professores a uma apropriação “pela metade, muito superficialmente”, portanto, “a culpa não é da produção teórica, mas é da ausência da mediação”, e aí CF responsabiliza “tanto o meio acadêmico, quanto os meios governamentais, principalmente, que não constroem essas formas.”

    A atualização/revisão da proposta crítico-superadora é precisa ser considerada, afirma CF, pois acredita que já existem trabalhos e experiências construídas a partir do referencial do “Coletivo de Autores”, que são capazes de elaborar uma nova síntese. Por diversos motivos, relata ser inviável que o grupo orignal de autores possa realizá-la, o que o leva a crer “que o Coletivo já não existe mais enquanto grupo de produção”. Mas acredita que existe hoje um novo grupo acadêmico capaz de, com o avanço teórico atual, construir uma nova síntese - não no sentido de reproduzir a antiga, mas de superá-la, de preencher as lacunas que surgiram.

    Para CF, as proposições teórico-metodológicas são essenciais, mas não suficientes. O que chama sua atenção, enquanto elemento de dificuldade, é que os cursos de formação da área não dão conta da formação de profissionais que saibam distinguir entre as diversas perspectivas apresentadas pelas diversas proposições: "[...] não conseguem entender o que está no fundo, qual é a base epistemológica de um e de outro que permite, digamos, abordagens, leituras distintas da realidade com propostas, com prognósticos que acabam também sendo distintos por conta dessa leitura distinta”.

    Por fim, vê a necessidade de novas obras, com novas sínteses, mas com a ressalva de que “se não vierem acompanhadas desse novo, digamos, arcabouço teórico elas vão continuar sendo apropriadas de uma forma mecânica, automática, desvinculada dos pressupostos que as fomentaram

“O coletivo de autores é agora bem maior”: Valter Bracht

    Antes...

    Para Valter Bracht (VB), a época em que o livro “Metodologia do Ensino da Educação Física” foi publicado, seus autores vinham de um processo de análise crítica da história da Educação Física, de uma década de críticas à perspectiva tradicional da Educação Física. Surgiu, então, a expectativa de “apresentar algo que pudesse então orientar uma nova prática pedagógica com base em princípios diferentes daquele que vinham orientando a prática.”

    De acordo com Bracht, a criação da proposição crítico-superadora teve clara influência da pedagogia histórico-crítica, e marcada pelo perfil marxista do seu grupo de autores, em especial pela pedagogia soviética. Enfim, o livro foi "uma tentativa na verdade de pensar uma prática pedagógica na Educação Física a partir dos princípios da pedagogia histórico-crítica", agregando a ela a idéia dos ciclos de escolarização. Sua contribuição pessoal se deu mais por conta da idéia de “cultura corporal”. VB relatou as dificuldades que encontraram no trabalho em grupo, devido ao surgimento de divergências teóricas entre os autores, o que em dado momento quase os fez desistir da empreitada.

    Agora...

    Quanto ao impacto da obra na comunidade, VB acredita que foi um livro bastante esperado. No entanto, os autores tiveram o cuidado de deixar claro, já no prefácio, que o livro não deveria ser visto como um manual para a prática, como alguns esperavam. Após a publicação, segundo VB, ouve reações diversas - elogios e críticas.

    Mas avalia que predominou a dificuldade de utilização pelos professores, pois muitos esperavam o que já era tradição, ou seja, obras que trouxessem planos de aula prontos, e um estranhamento em relação à linguagem utilizada.

    VB acredita que o professor deve se apropriar de diferentes perspectivas e construir sua própria síntese, adaptando-a a seu contexto e espaço de trabalho, de acordo com suas necessidades. Avalia que proposição teve pouca repercussão na escola, mas mesmo assim considera que propiciou grandes avanços, se considerarmos as dificuldades impostas pelo conservadorismo da escola, o peso da influência da mídia na Educação Física Escolar, e a forte presença das tradições.

    Para VB, o grupo de autores tinha uma visão "meio ingênua", quando acreditaram que apenas o lançamento de uma proposta teórica faria a prática modificar-se por si só: “tínhamos uma visão, eu diria, meio problemática da relação entre a elaboração teórica e o que acontecia lá na intervenção”, decorrente do pouco conhecimento “dos processos que estão no presente na mudança, na inovação pedagógica”. Passou então a fazer pesquisas para compreender por que a prática não se modificava, e a “pensar em estratégias, em metodologias de formação de professores, praticamente de formação continuada, que pudessem promover efetivamente mudanças dessa prática que nós temos na Educação Física Escolar.”

    VB afirma que ele próprio já fez uma revisão sobre o referencial teórico marxista utilizado na elaboração da obra “Metodologia do Ensino de Educação Física”, mesmo porque as diferenças de referenciais políticos dos vários autores foram colocadas em segundo plano, a fim de viabilizar a produção do próprio livro. Mas, mesmo assim, ele não acredita que uma “atualização” da mesma proposição seria o mais adequado, pois considera que ela já teve seu papel cumprido, foi muito importante à época, e não traria as modificações necessárias à prática pedagógica atual.

    VB faz ainda uma crítica quanto à diferenciação dos ciclos adotada na obra, que para ele foi feita a partir de categorias cognitivas, ao passo que entende que a especificidade do conteúdo da Educação Física exigiria outra categoria, com “critérios internos”, que encontrou então, provisoriamente, no “movimentar-se” como uma forma de comunicação com o mundo. Essa foi, avalia VB uma “divergência importante” no coletivo de autores, que já expressava, por sua parte, certa oposição a um marxismo "mais duro”, e por conta dela foi considerado “idealista”.

    Depois...

    VB entende que todas as teorias possuem uma “insuficiência crônica”, e que a apresentada pelo “Coletivo” também não foi suficiente para subsidiar e fundamentar a formação dos licenciados em Educação Física. Mas, por outro lado, há um acúmulo de conhecimentos capaz de oferecer para o processo de formação dos licenciandos alternativas ao que já existe, ou seja, a construção de novos conhecimentos, divulgação de experiências e novas idéias em eventos e publicações que serão capazes de auxiliar o professor. Afirma, então não possuir a expectativa “que surja aí uma nova síntese, mais uma quarta, ou quinta, ou sexta, proposta metodológica, e essa sim então vai ser “aquela”... eu acho que não” . Há experiências sendo divulgadas, que podem oferecer subsídios importantes para o processo de formação dos professores de Educação Física, então VB acha que “o Coletivo de Autores é agora bem maior” , no sentido de que há “experiências sendo divulgadas, construídas, etc., que oferecem aí, eu diria, elementos suficientes pra uma formação que leve a uma prática diferente da que nós temos na tradicional".

“A aula como coisa viva”: Jocimar Daolio

    Antes...

    A principal produção de Jocimar Daolio (JD) é o livro “Da Cultura do Corpo” (1995), que foi uma retomada de sua Dissertação de Mestrado, concluída em 1992, na USP. A partir de 1989 buscou respaldo teórico na antropologia social, passando a fundamentar seu trabalho em Marcel Mauss e Clifford Geertz, trazendo conceitos próprios da antropologia para a Educação Física, sobretudo na área escolar, tais como: alteridade, pluralidade e diversidade.

    JD não considera que tenha produzido uma proposição teórico-metodológica tal como a classificamos neste trabalho. Declara que, mesmo tendo incluído no título de alguns textos termos como “perspectiva” e “abordagem” teórica ou metodológica, e outros autores se referiram às suas obras desse modo, tal não corresponde à sua intenção: “isso gerou talvez uma expectativa por uma coisa que na verdade nunca quis formular”.

    Agora...

    Considera o livro “Da Cultura do Corpo” ainda atual e com idéias interessantes para a prática docente na Educação Física escolar, mas que, pelo tempo decorrido desde a publicação, precisa ser revisado. Sua atualidade decorreria, em especial, pelo fato de apontar algumas possibilidades de atuação docente que consideram o meio cultural, a relativização, simultaneidade e a pluralidade de conteúdos, assim como a noção de “técnica” de Marcel Mauss, que questiona o entendimento tradicional de técnica na área, baseado no gesto do atleta de alto nível. Avalia que as proposições teórico-metodológicas tem sido consideradas na prática, mas talvez não na velocidade que gostaria, pois se trata de um processo de formação “talvez de uma nova geração de professores, saindo das universidades, principalmente das universidades públicas, das leituras das novas teses, da formação de mestres e doutores”.

    Para JD, as proposições são extremamente criativas e importantes, mas não basta que sejam apenas lidas nos cursos de formação de professores, mas aplicadas pelos graduandos nos estágios que realizam durante sua formação. Acredita que a expectativa de que uma proposição “dê certo” é muito difícil de avaliar, pois uma proposição “é necessariamente teórica, e outra coisa é uma intervenção na prática”, “ela pode até prever uma organização que, logicamente, na prática, não vai se dar do mesmo jeito”. Mas isto não quer dizer que não devam ser estudadas, pois “dão uma série de caminhos”, permitem “ver a aula como uma coisa dinâmica, como uma coisa viva, como uma coisa, de certa forma, não-engessada”, e ainda questionar “determinada certeza, determinados padrões”. Se o professor estuda as proposições, entende melhor aquilo que faz. Também considera saudável que o professor “misture” diferentes proposições, o que “pode e deve fazer”.

    Depois...

    Justifica o não-aprofundamento numa proposição teórico-metodológica específica, com o argumento de que isso seria contraditório diante dos princípios da antropologia social, os quais impedem a idéia de um planejamento único e a universalização de comportamentos, e, pelo contrário, defendem a pluralidade de conteúdos e significados em determinados contextos, e diferentes relações intersubjetivas. E, portanto, finaliza: “eu não quero mais fazer uma proposição metodológica”.

Conclusão

    Há um aspecto do contexto de elaboração que é coincidente para todas as proposições teórico-metodológicas: mantiveram relações com o processo de formação acadêmica ao nível de Pós-Graduação de seus autores, durante a década de 1980 e primeiros anos da década seguinte. Foi no processo de pós-graduação (mestrado e/ou doutorado) que os autores tomaram contato com as teorias e autores de bases de suas propostas, a partir dos quais estabeleceram relações com a Educação Física. Várias das obras que gestaram no âmbito da Educação Física escolar proposições teórico-metodológicas, originaram-se diretamente ou indiretamente de dissertações de Mestrado ou teses de Doutorado, elaboradas no Brasil, na maior parte dos casos, ou na Alemanha, como é o caso dos professores Elenor Kunz e Valter Bracht. Tal fato atesta a importância que teve o sistema de Pós-Graduação em Educação Física – e também o de Educação - na renovação/construção da área pedagógica na Educação Física brasileira nas décadas de 1980 e 1990. Importância que, conforme alertam João Freire e Elenor Kunz está gravemente ameaçada pela política de Pós-graduação agora vigente no país.

    O depoimento dos autores também atesta, e não é novidade, que as bases teóricas das proposições assentaram-se nas Ciências Humanas, embora privilegiando, na maior parte dos casos, as apropriações prévias das teorias, tais como realizadas pela área da Pedagogia: materialismo histórico, antropologia social, fenomenologia e construtivismo.

    No contexto de elaboração das proposições os autores não conseguiam prever a repercussão que estas teriam na prática, mas nenhum deixou de reconhecer que, de algum modo, suas proposições tiveram impactos na prática. Mesmo que de maneira mais lenta, ou de modo diferente de suas expectativas, muitos consideram que as repercussões das proposições para a Educação Física foram muito mportantes. Alguns autores, como Jocimar Daolio, Elenor Kunz e Valter Bracht, entendem que suas proposições teórico-metodológicas foram pouco implementadas, ou implementadas de uma maneira diferente da que esperavam, mas não avaliam tal fato como negativo, já que consideram equivocado imaginar que seria possível uma "aplicação" direta para as práticas pedagógicas.

    No entanto, avaliam que há um distanciamento entre o contexto de elaboração destas proposições e a realidade em que o profissional está inserido, o que gera uma necessidade de aproximação/mediação entre as teorias e a realidade educacional, para que o professor de Educação Física possa de fato conhecer estas proposições, surgindo a possibilidade de transformação de sua prática a partir deste conhecimento. Kunz aponta a sobrecarga de trabalho no cotidiano escolar como fato inibidor desse processo; Taffarel e Castellani Filho aliam a este fator a ausência de políticas públicas que favoreçam a capacitação em serviço dos docentes.

    Todos os autores concordam que suas proposições foram muito importantes à época para uma transformação da Educação Física vigente, mas vêem hoje essa nova necessidade de elaborações, ou atualizações, de teorias que se relacionem com a prática e a transformem tanto quanto se esperava nas décadas de 1980 e 1990. As proposições, segundo os autores, precisam de uma revisão, de uma atualização, mas não no sentido apenas de verificar sua “implantação” e repercussão, e sim de uma reformulação baseada nas mudanças ocorridas desde a época em que foi elaborada até hoje, desde as transformações sociais e políticas, na legislação, e no próprio contexto escolar que o professor se depara ao ingressar no campo de trabalho. Autores como Castellani Filho e Bracht ainda apostam na possibilidade de que a nova geração de professores recém-graduados seja capaz de realizar esta transformação, esta atualização que a Educação Física necessita, tendo como base estas proposições elaboradas nas décadas passadas. Outros, como Kunz e Freire, entendem que a Educação Física Escolar ainda carece de trabalhos que dêem continuidade às proposições teórico-metodológicas das décadas de 1980 e 1990, e não apresentam posições otimistas quanto à contribuição da nova geração de professores e pesquisadores.

    Por fim, permitimo-nos concluir que as proposições teórico-metodológicas foram concebidas em um contexto em que diferentes fatores se conjugaram para constituir um clima de efervescência política, cultural e científica. Tal clima favoreceu a incorporação de novas idéias, teorias e conceitos anteriormente mobilizados para contrapor-se ao paradigma e tradições dominantes na Educação Física, identificados com a ditadura militar. Talvez, por isso, explica-se a permanência da importância dessas proposições na formação dos professores, mais de 20 anos depois.

    Os autores consideram que os caminhos a serem trilhados pelas novas gerações são os já abertos pelas proposições, que precisariam de continuidade no sentido de melhor fundamentação, articulação com novos conhecimentos e aproximação com as práticas concretas do professor.

    Mas deixamos, como contraponto, as palavras de Valter Bracht, no sentido de que as proposições cumpriram "um papel importante naquele momento e hoje não me parece ser essa a estratégia mais adequada para provocar modificações na prática pedagógica seja numa direção ou outra”.

    Será que nós teremos outro momento como “as décadas de 1980 e 1990” na Educação Física brasileira, quando se apresentariam novas e contestadoras idéias, teorias, oportunidades, e outras direções para as práticas pedagógicas?

    Não nos arriscaremos a responder tal questão, já que fenômenos socioculturais são contingentes, e não acreditamos que seja possível uma história do futuro. Mas se tal ocorrer, os novos autores, obras, teorias e práticas serão, de algum modo, devedores dos professores e pesquisadores aqui entrevistados (e outros aos quais não conseguimos acesso): Celi Taffarel, Elenor Kunz, João Batista Freire, Jocimar Daolio, Lino Castellani Filho e Valter Bracht.

    E, por fim, esperamos que as novas gerações aprendam com as proposições teórico-metodológicas das décadas de 1980 e 1990, avaliem seus limites e possibilidades. Porque não se constrói o novo destruindo a caminhada.

Notas

  1. Ver, por exemplo, BETTI, M (2007) e GOMES-DA-SILVA (2010), na qual os autores apresentam as bases de uma proposição semiótico-comunicacional para a Educação Física escolar.

  2. Daolio (1998) entrevistou os seguintes autores: Vitor Matsudo, Vitor Marinho de Oliveira, João Paulo Medina, Go Tani, Celi Z. N. Taffarel, João Batista Freire e Lino Castellani Filho, sendo os três últimos também entrevistados em nosso próprio estudo.

  3. Entende-se aqui, por “crítica”, o ato de analisar os critérios (normas, regras, princípios) de um fenômeno, à luz de algum juízo de valor (ABBAGNANO, 2000; ALFONSO-GOLDFARB, 1994).

  4. Todos os entrevistados assinaram um “Termo de Consentimento de Participação na Pesquisa”, e autorizaram a publicação das suas entrevistas.

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