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A estética como aporte formativo de uma alteridade omnilateral

a partir dos jogos infantis: contribuições para a Educação Física

La estética como aporte formativo de una alteridad omnilateral a partir de los juegos infantiles: aportes a la Educación Física

Aesthetics as a formative contribution omnilateral otherness from the children’s games: contributions to the Physical Education

 

*Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Licenciado e Bacharel em Educação Física pela UFSCar

Professor efetivo de Educação Física da rede estadual de educação

do Estado de São Paulo, município de Araraquara

**Doutora em Educação e Mestre em Educação

pela Universidade Federal de São Carlos UFSCar

Gustavo Martins Piccolo*

Maria Aparecida Mello**

gupiccolo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          A humanidade contida nos homens redimensiona sua própria constituição biológica, por isso, não há como negar que a cultura e a sociedade transformam qualitativamente nossas estruturas fisiológicas, psicológicas e corpóreas. Tornado como matéria existencial o caráter criacionista do processo de formação humana, torna-se nítido que nossos juízos e gozos também perfazem um processo histórico. Posto isto, os mais diversos conceitos e, porventura, preconceitos, se edificam pelos processos supracitados de apropriação e objetivação no transcorrer de nosso enraizar ao solo social. Como tudo o que é humano tem seu ato de nascimento, o gosto pelo belo, ou melhor, por determinadas características histórica e ideologicamente definidas como belo também tem seu ato de nascimento. É sobre este processo que objetivamos tecer breves comentários. Para tanto, analisaremos um fragmento de uma pesquisa empírica sobre a apreciação do que é beleza por crianças durante suas brincadeiras e jogos infantis, conceito presente ainda em tenra idade, enfatizando a importância da intervenção docente no processo formativo da brincadeira e do próprio sentimento de reconhecer o outro como parte de si.

          Unitermos: Arte. Estética. Jogo. Educação Física. Mediação.

 

Abstract

          Mankind contained men biological resizes its own constitution, so there's no denying that culture and society qualitatively transform our structures physiological, psychological and corporeal. Developed as a matter of existential character creationist process of human development, it becomes clear that our judgments and joys also make up a historical process. That said, many different concepts and, perhaps, prejudices, to build the above processes of appropriation and objectification in the course of our social rooted to the ground. Like anything that is human is his act of birth, the taste for beauty, or rather, certain historical features and ideologically defined as beautiful also has his act of birth. It is this process that we aim to make brief comments. We will analyze a piece of empirical research on the appreciation of the beauty of children during their play and games for children, this concept at an early age, emphasizing the importance of teacher intervention in the training of play and own sense of recognizing the other as part of himself.

          Keywords: Art. Aesthetics. Play. Physical Education. Mediation.

 

 

 

EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 153, Febrero de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Hodiernamente parece ter se tornado ponto comum a consideração do homem para além de suas limitações e circunscrições biológicas. Até mesmo a sociologia médica, historicamente centrada em um modelo de análise parsoniano, toma como dado o fato de a evolução animal atingir um estágio transcendental no humano cujo nexo explicativo apenas pode ser alcançado no terreno histórico.

    O homem se faz homem, processo criacionista arquitetado na senda das determinações do meio que o circunscreve em relação dialeticamente conjugada a sua possibilidade de transformação de tais circunstâncias, cuja concretude se manifesta pelas atividades humanas frente à natureza. É exatamente esse o sentido da colocação de Marx (1972) de que apenas posteriormente a intervenção teleológica da natureza o humano do homem se edifica e estrutura no ser.

    Por atividade entendemos um tipo de mediação concretizado em relação à realidade externa. É uma forma de inserção prática e efetiva no mundo. Qualquer ser vivo possui atividades, as quais estão em dependência da necessidade do organismo, e no caso humano, também do gênero. Por intermédio de sua atividade, o homem se relaciona com o mundo, além de satisfazer suas principais necessidades físicas, materiais, espirituais e culturais. A atividade é a verdadeira chave para a inserção humana no encadear de acontecimentos denominado história. Em conformidade com este raciocínio, para Davidov (1988b, p.12):

    A essência do conceito filosófico-psicológico materialista dialético da atividade está em que ele reflete a relação entre o sujeito humano como ser social e a realidade externa – uma relação mediatizada pelo processo de transformação e modificação desta realidade externa. A forma inicial e universal desta relação são as transformações e mudanças instrumentais dirigidas a uma finalidade, realizadas pelo sujeito social, sobre a realidade sensorial e corporal ou sobre a prática humana material produtiva. Ela constitui a atividade laboral criativa realizada pelos seres humanos que, através da história da sociedade, tem propiciado a base sobre a qual surgem e se desenvolvem as diferentes formas da atividade espiritual humana (cognitiva, artística, religiosa etc.). Entretanto, todas estas formas derivadas da atividade estão diretamente ligadas com a transformação, pelo sujeito, de um ou outro objeto sob a forma ideal. O sujeito individual, por meio da apropriação, reproduz em si mesmo as formas histórico-sociais da atividade. [...] A atividade humana tem uma estrutura complexa que inclui componentes como: necessidades percebidas, capacidades, objetivos, tarefas, ações e operações, que estão em permanente estado de interligação e de transformação.

    A atividade que representa em determinado estádio histórico o marco ontológico na apropriação da realidade pelo ser humano é considerada como atividade principal, não pelo fato de ocupar maior porção de tempo na vida do indivíduo, mas, sim, por promover as maiores e mais profundas transformações psicológicas. Para Davidov (1988), cada estádio de desenvolvimento psíquico possui uma determinada atividade principal. A etapa inicial (0 e 1 ano de idade ) é marcada pelo forte contato emocional dos bebês com os adultos, todas suas necessidades físicas, lúdicas e sociais são satisfeitas pelos adultos; a segunda etapa (1 e 3 anos de idade) tem como atividade principal a manipulação de objetos, nessa fase a criança já consegue se locomover sem o auxílio do adulto e conhece o mundo por intermédio da exploração objetal; a terceira etapa, considerada como pré-escolar (3 aos 6 anos) possui nos jogos sua atividade principal, eles são os responsáveis pela inserção da criança à realidade social e pela apropriação de seus principais conhecimentos e estruturas, a qual se efetiva de forma lúdica e protagonizada; já na quarta etapa (6 aos 10 anos), o estudo escolar passa a ser a atividade principal, por possibilitar a apropriação de conhecimentos científicos e sistematizados; na adolescência, a comunicação entre coetâneos (atividade principal) é a responsável pelas principais alterações nos mecanismos construtores da personalidade; por fim, a fase adulta tem no trabalho sua atividade principal, cuja gênese reside na transformação da natureza a partir de idealizações pré-estabelecidas.

    Nesse sentido, é importante frisar que o homem, quando de seu abrolhar histórico, já encontra uma realidade social anteriormente construída por todas as gerações precedentes a sua. Contrariamente aos animais, cujo desenvolvimento e inserção na coletividade da qual fazem parte são garantidos por caracteres hereditários, os homens necessitam assimilar uma grande gama de conhecimentos para efetivamente se tornarem parte da sociedade, materialidade tornada corpo pela atividade e, no caso das crianças, pelos jogos e brincadeiras.

    Ao nascermos, encontramos um ambiente sociocultural carregado de significações historicamente engendradas pelas mãos humanas, as quais não estão inscritas em qualquer código genético. E é a apropriação destas significações que nos permite transcendermos os limites oferecidos pela evolução biológica, daí o nascimento humano ser um ato que se supera (MARX, 1987), e, cuja concretização se dá através de uma práxis criativa em relação à realidade circundante, se consubstanciando pelo auxilio de instrumentos mediadores. Sem a apropriação destas significações permanecemos ilhados dentro de nosso próprio agrupamento social, além disso, se escasseia sobremaneira a possibilidade de transformação da estrutura social da qual fazemos parte, inclusive na alteração de seus conceitos, ou seja, em sua re/significação.

    De acordo com Thompson (1981), a vida em sociedade representa um longo percurso histórico construído por todas as gerações em conjunto que já habitaram a Terra, portanto, não se configura como obra de um único homem ou de determinada etapa cronológica. Sociedade é um conceito essencialmente histórico, complexo e multifacetado, assim, a inserção de qualquer indivíduo em seu interior não se dá de maneira criativa e espontânea, uma vez que no caso humano a reprodução vem antes da criação, aliás, a reprodução já é uma forma de criação. Nada crio se não reproduzo as construções humanas anteriormente edificadas por meus ancestrais, se isto ocorresse, seria como partir eternamente do zero, inventar novamente a roda a cada geração humana. A vida humana necessita de certa dose de reprodução, seja no trabalho, na linguagem, na arte, na estrutura da vida cotidiana, no esporte, na educação, pois toda experiência social está repleta de significados e valores culturais que carecem ser compreendidos, analisados e praticados. Destarte, precisamos nos apropriar de todos estes elementos anteriormente edificados pelo gênero humano para que efetivamente possamos intervir no mundo, pois a criação carrega inextricavelmente a reprodução em seu seio histórico, não são conceitos excludentes, mas complementares.

    É imprescindível ao homem se apropriar das conquistas alcançadas pelas gerações passadas, aprendendo seus principais conhecimentos, hábitos, conceitos e práticas laborioso-culturais para efetivamente se inserir no solo da história. Em virtude disso, para Leontiev (1978, p.164):

    Durante o processo do seu desenvolvimento ontogênico, o homem realiza necessariamente as aquisições de sua espécie, entre outras acumuladas ao longo da era sócio-histórica. Todavia as aquisições do desenvolvimento sócio-histórico da humanidade acumulam-se e fixam-se sob uma forma radicalmente diferente da forma biológica sob a qual se acumulam e se fixam as propriedades formadas filogeneticamente. (...) No decurso da sua história, a humanidade empregou forças e faculdades enormes. A este respeito, milênios de historia social contribuíram infinitamente muito mais que milhões de anos de evolução biológica. Os conhecimentos adquiridos durante o desenvolvimento das faculdades e propriedades humanas acumularam-se e transmitiram-se de gerações em gerações. Por conseqüência, estas aquisições devem necessariamente ser fixadas. Ora, nós vimos que na era do domínio das leis sociais elas se não fixavam sob a forma de particularidades morfológicas, de variações fixadas pela hereditariedade. Fixavam-se sob uma forma original (...), a citar, o processo de apropriação. Esta transformação que acabamos de falar manifesta-se como um processo de encarnação, de objetivação nos produtos da atividade dos homens, das suas forças e faculdades intelectuais e a história da cultura material e intelectual da humanidade, enfim, manifesta-se como um processo, que exprime sob uma forma exterior e objetiva, as aquisições do desenvolvimento das aptidões do gênero humano.

    A interiorização destas aquisições é possibilitada por intermédio de um moroso processo educacional, o qual se corporifica ao utilizar diversos estímulos mediadores, sejam eles diretos (o próprio objeto, pessoa mais experiente, a prática de alguma atividade artística, lúdica ou laboral) ou indiretos (representações simbólicas, fórmulas e conceitos científicos, preceitos religiosos, etc.); e, cuja intervenção efetivamente no permite entrarmos em contato com o objeto/realidade de nossas investidas teóricas e práticas. Logo, este processo de apropriação também não pode ser fixado de forma hereditária, na medida em que se concretiza por intermédio de mediações educacionais arquitetadas durante as mais diversas comunicações interpessoais, tendo por objetivo a re/produção de aptidões humanas historicamente formadas. Apenas por intermédio de seu desenvolvimento o homem alcança na ontogênese o que o animal consegue pela hereditariedade (MARX, 1972).

    Em virtude destas características, Vygotsky (1995) destaca que o desenvolvimento psíquico humano difere completamente do desenvolvimento transmitido pela herança biológica ou pelo processo de experiência individual, devido ao fato de nossas basilares faculdades intelectuais e históricas se enriquecerem sob uma forma específica, a citar, o processo de apropriação e objetivação. Todo nosso desenvolvimento espiritual e material reflete um processo particular de apropriação, o qual falta no animal, se objetivando em novas atividades e construções humanas. É assim que nos movimentamos como construtores de nossa própria realidade ao longo de centenas de anos.

    O homem se apropria da realidade de diferentes formas, por meio da curiosidade, da arte, dos jogos e brincadeiras, da ciência, do direito, da política, religião, do esporte, da educação sistematizada, etc., e, com todas suas potências naturais e históricas. Para Marx (1987), nós nos apropriamos da realidade com todos os nossos “sentidos” (visão, audição, olfato, paladar, tato), e pelas mais diversas atividades socioculturais, sendo que até esses sentidos, aparentemente naturais, também são produtos histórico-sociais, se desenvolvendo a partir de um moroso processo educacional pelo qual nos apropriamos das conquistas alcançadas pelo gênero humano.

    Quando não temos esses “sentidos” histórico-biológicos desenvolvidos, as criações e conceitos humanos não podem ser efetivamente compreendidos, coerentemente, passamos a assumir uma postura de espectador e não ator no espetáculo de produção de nossas próprias vidas. Partindo dessa concepção marxiana, Kosik (1976, p.24) retrata que “da minha audição e da minha vista participam, portanto, de algum modo, todo o meu saber e a minha cultura, todas as minhas experiências.” Destarte, a humanidade contida nos homens redimensiona sua própria constituição biológica, por isso, não há como negar que a cultura e a sociedade transformam qualitativamente nossas estruturas fisiológicas, psicológicas e corpóreas.

    Tornado como matéria existencial o caráter criacionista do processo de formação humana, torna-se nítido que nossos juízos e gozos também perfazem um processo histórico. Posto isto, os mais diversos conceitos e, porventura, preconceitos, se edificam pelos processos supracitados de apropriação e objetivação no transcorrer de nosso enraizar ao solo social. Como tudo o que é humano tem seu ato de nascimento, o gosto pelo belo, ou melhor, por determinadas características histórica e ideologicamente definidas como belo também tem seu ato de nascimento. É sobre este processo que objetivamos tecer breves comentários materializados mediante um recorte de nossa pesquisa de mestrado, intitulada “Educação Infantil: análise do preconceito na atividade principal de jogos na pré-escola”.

    O objetivo principal da pesquisa residia em destacar o aparecimento do preconceito na atividade de jogos realizadas por pré-escolares, as quais tiveram como instrumento metodológico uma descrição densa dos acontecimentos transcorridos nas brincadeiras, principalmente pela utilização de diários de campo, filmagens e gravações de áudio. Posteriormente, tais instrumentos eram transcritos e foram analisados sob a forma de excertos para facilitar o processo de refinamento analítico. Neste texto, utilizaremos um fragmento que consideramos fundamental para a compreensão da categoria beleza e da formação de seus juízos como aparecendo presente ainda em tenra idade, enfatizando a importância da intervenção docente no processo formativo da brincadeira e do próprio sentimento de reconhecer o outro como parte de si.

A situação problema

    Durante uma aula com a turma de 5 anos, um grupo de 10 alunos resolveu participar de um concurso de beleza pelo qual julgariam o menino e a menina mais belos da escola. O concurso transcorreu da seguinte maneira, as crianças escolheram os três meninos mais bonitos e as três meninas mais bonitas através de um desfile por uma passarela, na verdade era a rampa da casinha. Nesse desfile três meninos participaram, sendo que o Hugo foi o escolhido o mais bonito pelas meninas; quanto às meninas foram 7 as participantes, sendo que a Maria foi considerada a mais bela e a Isabela a mais feia por ser muito gordinha. Após essa brincadeira, todos os alunos foram brincar de outras coisas com exceção da Isabela, a qual foi tomar satisfação com os meninos e, novamente foi chamada de gorda e feia por eles. Posteriormente, Isabela saiu correndo para bater nos meninos, porém, não conseguiu alcançá-los. O clima tenso só se dissipou com a intervenção da professora, cuja argumentação retratou a necessidade da diferença à construção da beleza humana, na medida em que é na multiplicidade de cores e formas das mais diversas sociedades e culturas que o homem efetivamente se humaniza, transcendendo, assim, suas determinações genéticas e biológicas. Essa mediação foi realizada para toda a classe, e não somente para àquelas crianças envolvidas nos conflitos.

A análise

    A intervenção da professora coloca em destaque o efeito positivo da discussão de temas que afligem contemporaneamente grande parcela da população, discussão essa que deve ser realizada desde a pré-escola. Discutir sobre beleza e a construção de padrões estéticos na escola não pode ser considerado banalidade, formalidade ou preenchimento de tempo, mas, sim, como a realização de uma reflexão crítica sobre os conceitos e arquétipos hegemônicos impostos pela sociedade.

    Sentir-se belo ou como integrante do segmento da população considerado como atraente não passa despercebido pelos meninos e meninas, na medida em que essas conceituações exercem relativa interferência na construção de sua personalidade, na amplitude de suas relações sociais e, consequentemente, nas experiências assumidas por cada um durante sua vida. Na conjunção entre o julgamento negativo de determinado traço fenotípico e a exclusão das pessoas portadoras desse traço em diversas relações sociais se insere o gérmen das principais manifestações preconceituosas apresentadas na sociedade. Por isso, concordamos com Heller (1970), quando esta diz que efetivamente o preconceito estreita os limites e as possibilidades de desenvolvimento humano, uma vez que impede os sujeitos de participarem e, consequentemente, se apropriarem da multiplicidade de conhecimentos constituintes e arquitetados pelo gênero humano.

    Por todas essas características, não há como a escola se imiscuir da discussão sobre a construção histórica da beleza, pois os padrões dominantes impostos em determinados contextos culturais influenciam as relações sociais assumidas pelos mais diversos alunos. Assim, percebemos que o simples fato de a professora ter retratado a diferença como parte fundamental da beleza foi essencial para uma relativa transformação no relacionamento entre as crianças durante suas aulas. Esse fato confirma uma das hipóteses orientadoras de nosso trabalho, qual seja, a de que os conceitos norteadores das relações sociais entre pré-escolares se encontram no início de sua construção teórica, portanto, mediante intervenções críticas podem ser transformados e reorganizados em bases mais democráticas e libertárias.

    Além dessa intervenção, também poderia ser oferecido para as crianças uma discussão sobre o percurso da beleza ao longo de nossos séculos, principalmente sobre a evolução do corpo feminino na história, na medida em que as meninas demonstravam grande aflição quanto aos rótulos estéticos impregnados sobre seus corpos.

    Para Souza (2004, p.20), não há como entender os padrões de beleza em determinada época histórica sem nos atentarmos para o tratamento dado aos corpos femininos. Desde a Antiguidade, o corpo feminino foi marcado por uma gama de relações que estabeleceu o bonito e o feio na sociedade, a maioria delas ditada pelos homens. Assim, o corpo, visto como uma construção social e cultural se constitui como um espaço demarcador de identidades e rótulos,

    é nele que o simbólico se inscreve e funciona como um modo de classificar, agrupar, ordenar, qualificar, diferenciar, revelando marcas que posicionam os sujeitos de diferentes modos na escala social, determinando (...) quem pertence ou não a certas classificações de corpo, seja corpo magro, alto, belo, branco, jovem, malhado, saudável. Esses marcadores identitários não são fixos ou estáveis, mas objetos de uma contínua construção.

    Dessa forma, quando falamos em beleza, o primeiro elemento a ser destacado é que ela não possui um padrão único adotado em distintas épocas históricas, na medida em que se trata de uma construção social e cultural, cuja gênese e desenvolvimento sofrem influência de fatores políticos e econômicos. Cada época edifica uma nova roupagem para os corpos belos, a qual acaba fazendo parte do imaginário estético da população mediante um intrincado processo educativo pelo qual o corpo é criado e recriado continuamente nas mentes humanas. Por isso, suas classificações são necessariamente provisórias e mutáveis.

    Como retrata Souza (2004), a beleza não é reconhecida instantaneamente, nossa visão sobre o belo precisa ser treinada para apreciarmos favoravelmente ou negativamente determinadas configurações corpóreas. Pelo excerto descrito logo acima, percebemos que esse treinamento se realiza cada vez mais cedo na sociedade, na medida em que uma criança de 5 anos já considera a outra como feia por ela ser gorda e a outra como linda, devido à aparência loira e magra.

    De acordo com Souza (2004), historicamente a beleza feminina foi forjada em função de critérios mais ou menos variáveis, sendo que nas sociedades primitivas esse culto a beleza feminina era quase que uma exceção, na medida em que o corpo masculino era o alvo das principais codificações sociais. A valorização do corpo feminino se alterou ao longo das épocas, inclusive, se sobrepondo aos olhares anteriormente destinados aos corpos masculinos, consequentemente, as formas femininas passaram a ser objeto de debate público, sendo que a “beleza” de seus corpos se transformou continuamente em contextos históricos diferentes. Por exemplo, no Renascimento, a análise da “beleza ideal” desta época pode ser realizada por intermédio dos quadros pintados naquele período por autores como Ticiano e Rafael. Nesses quadros, os corpos femininos são expressos em formas arredondados, com cabelos louros e pele branca, os ombros, braços, seios e quadris também são alargados, enfim, a beleza é considerada diretamente proporcional ao tamanho da forma, lá gordura era efetivamente sinal de formosura. A magreza era algo a ser evitado, sinal de pobreza e feiura, resumindo, as mulheres belas do Renascimento eram todas gordas.

    Essa visão foi se modificando paulatinamente até assumir novos contornos no século XX, aqui o corpo magro e bem definido passa a se configurar como belo. A obesidade passa a ser tratada como sinal de desleixo, feiura, de uma saúde debilitada e frágil. Os novos ideais corpóreos são estabelecidos midiaticamente, e veiculados para a população como se fosse à forma natural da beleza humana, ou seja, como se tivesse uma existência supra-histórica. Novamente, se faz necessário lembrar (e isto não deixa de ser uma das tarefas da escola) que os ideais de beleza são historicamente variáveis, suas representações se alteram constantemente, sofrendo influência de vários fatores como sociais, políticos, econômicos, culturais e ideológicos. Essa lógica corpórea mutável precisa ser apropriada pelas crianças, objetivando que estas interpretem a própria corporeidade de forma a valorizar as diferenças, e não encará-las pejorativamente como sinal de desigualdade humana. Coerentemente com essa estrutura argumentativa, Souza (2004) destaca que cada cultura define a sua forma as fronteiras da beleza e os tipos ideais dos corpos. Destarte, o belo não é inerente a uma determinada aparência feminina, pois se assim o fosse, seria eternamente o mesmo, raciocínio insustentável a análises históricas e científicas.

    Por isso, para Souza (2004), o que nos parece belo hoje, não precisa necessariamente o ser amanhã, além disso, a consideração do belo pelas pessoas é mediatizada por um longo processo educacional iniciado desde o nascimento e se estendendo até a morte dos sujeitos, o qual varia entre distintas culturas e contextos históricos. Assim, as classificações sobre o corpo, como todas as categorias do universo, se encontram em contínuo movimento. Movimento que se assume como o elemento chave da dialética, e, como princípio elementar das principais mediações realizadas pelos seres humanos.

    Acreditamos que este tipo de investigação histórica pode contribuir para a desconstrução dos ideais de beleza estabelecidos pelas sociedades atuais, os quais oprimem e discriminam grande parte da população brasileira, como os negros, gordos, baixos, pobres, dentre outros. Enfim, a contestação dos valores tidos como bom e belo pelas classes hegemônicas contribui para a reflexão sobre alguns dos princípios da dominação ideológica capitalista materializada nos corpos e disseminada pelos novos meios de comunicação. Essa reflexão crítica não deve ser encarada como mera alegoria estética, assim, sua utilização se justifica desde a pré-escola como demonstramos anteriormente, na medida em que, ao se concretizar, redimensiona favoravelmente a qualidade dos inter-relacionamentos entre as pessoas, os quais não precisam necessariamente ser pautados em rotulações e estereótipos contra àqueles que diferem dos padrões impostos pelas classes hegemônicas da sociedade, aliás, devem diferir deles.

    Dentro desse complexo, para Vygotsky (1988), a educação sistematizada pode se constituir como uma boa ferramenta no que diz respeito a uma leitura crítica do mundo, a qual conteste os valores impostos pelas classes dominantes, tais como seus preconceitos e os intricados processos de exclusão arquitetados por seus grupos. Ou seja, a educação, por intermédio de suas teorias e métodos pode enraizar nos pensamentos e práticas humanas das mais diversas faixas etárias a necessidade da contestação do sistema discriminatório estabelecido pela sociedade e a possibilidade da edificação de uma nova realidade social mais democrática e efetivamente igualitária.

    Para Lênin (1979), sem teoria revolucionária não há prática revolucionária, coerentemente, acreditamos que sem o conhecimento do caráter histórico de uma determinada realidade social, assim como, de seus componentes estruturais e superestruturais, não há como nos organizar e conscientizar sobre a importância de uma prática efetivamente humanizadora e transformadora das relações sociais opressoras e alienantes. A construção desse conhecimento é uma tarefa essencialmente educacional (nas sociedades modernas desempenhadas pelas escolas), necessitando de um mediador para sua efetivação, e, apesar de ser interiorizada subjetivamente, pois representa um fenômeno de nossa consciência, pode se tornar um impulso que transcenda os limites do campo subjetivo ao atuar na esfera da transformação das relações materiais da sociedade, e das condições objetivas da existência de cada sujeito em particular.

    É claro que a atividade pedagógica possui limites objetivos em sua esfera de realização, e os professores precisam se conscientizar destes elementos. A educação, por ser uma prática subjetiva, não pode alterar de imediato a vida de suas crianças no que diz respeito às condições objetivas de seu meio. Porém, embora seja impossível transformar o capitalismo em um regime justo e fraterno, podemos criar novas engrenagens que apontem os caminhos futuros para a transformação das relações sociais atuais, as quais atuam como verdadeiras barreiras ao desenvolvimento da grande maioria da população. É nesta possibilidade que nosso trabalho se insere.

    Posto isto, inegavelmente a arte pode se constituir como uma das esferas a ser trabalhadas pela Educação Física, na medida em que esta talvez represente aquilo que de mais genérico e enriquecedor o ser humano produziu ao longo da história. Claro está que a arte também pode ser alienadora e, ao menos nas sociedades hodiernas, na maioria das vezes acaba por sê-lo, mas isto, não pode obnubilar sua potência em protoforma, a qual foi descrita singularmente por Lukács (1972). Por isso, nossas considerações finais se voltam para a materialização de uma breve digressão de como Lukács (1972) tratou a estética e a arte e quais suas possibilidades adormecidas e exteriorizadas no seu processo de apropriação objetivadora pelo homem.

Considerações sobre a arte e estética em Lukács

    Lukács (1972) considera a arte como a manifestação subjetiva em um produto objetivado, é a síntese do social sob uma forma orgânica de individualidade, ou seja, o fenômeno artístico e sua produção em si abrangem uma complexa relação entre o social e o individual, relação esta que pode se dar a qualquer indivíduo, desde que ele interprete a vida cotidiana como um espaço não de conformação à realidade, mas, sim, como esfera da existência do ser em forma de devir.

    Em virtude destes elementos, Lukács (1968) ressalta que a obra de arte não pode ter sua existência consubstanciada apenas a partir da experiência vivida por seu autor. O caráter paradoxal, mas concomitantemente fascinante, da arte reside justamente no fato de a arte corporificar uma aproximação e distanciamento simultâneo da realidade cotidiana, é o coletivo e o individual em tensão constante, o imanente (característico de todo fenômeno artístico) e o transcendente em estado de quase concomitância, na medida em que “a Estética deve ser imanente, mas sua forma transcendental” (LUKÁCS, 1968, p. 78).

    Por isso, a obra de arte não deixa de representar a eternização móvel de um determinado momento da história, que, nas palavras de Lukács (1968, p.220) “sai do tempo para a ele retornar posteriormente, arrancando, assim, um instante do fluxo temporal lhe conferindo a perenidade do tempo”. Em outras palavras, (ibid, p.132) “a arte procede da perplexidade e do dilaceramento do sujeito contemplador em um mundo no qual as coisas são completamente heterogêneas entre si; no qual há apenas equilíbrios reflexivos, práticos e abstratos, entre o desejo de unidade e ordem e o mundo que pede uma explicação

    Assim, o reflexo imanente e realista da obra de arte não é mera cópia da realidade, mas, sim, uma interpretação desta a partir de seus principais condicionantes, ou seja, é cópia consciente e humanizadora da realidade. Por conseguinte, a construção de uma estética histórica e realista possui como pilar de sustentação a projeção formativa de um homem novo, liberto das amarras da vida cotidiana e das relações degradantes geradas nesta esfera. Destarte, quando Lukács (1972) destaca a importância do fenômeno estético sua preocupação está direcionada a elevação do gênero humano as formas mais desenvolvidas, representando um enriquecimento ontológico de toda a humanidade, já que, nas palavras de Fischer (1981, p.13), “[...] nesse percurso estético, o homem anseia por unir na arte o seu EU limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a sua individualidade”.

    É essa arte que objetivamos tencionar nas relações estéticas desenvolvidas no ambiente escolar, para tanto, os professores, como responsáveis pela sistematização do saber cotidiano em saber científico, adquirem papel basilar em tal empreitada, umas vez que são eles que permitem a elevação dos julgamentos de seus alunos e alunas para além do ambiente cativo em cristalizações e estereótipos conforme se põe a realidade que nos circunscreve.

Referências bibliográficas

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