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Recreação nas aulas de Educação Física: princípios para incluir

La recreación en las clases de Educación Física: principios de inclusión

 

*Licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Rio Claro)

Mestrado em Ciências da Motricidade – Area de Pedagogia

da Motricidade Humana (UNESP - Rio Claro)

Doutorado em Educação Escolar (UNESP - Araraquara)

Docente do Departamento de Educação Física e Motricidade Humana

da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Coordenador do LEPPEF (Laboratório de Estudos e Pesquisas

das Dimensões Pedagógicas da Educação Física – CNPq)

**Licenciatura em Educação Física pela Universidade Estadual Paulista (UNESP - Rio Claro)

Doutora em Educação Especial (UFSCar)

Docente do Mestrado em Promoção de Saúde - Universidade de Franca

Docente do curso de Educação Física, Universidade de Franca

Membro do LEPPEF (Laboratório de Estudos e Pesquisas

das Dimensões Pedagógicas da Educação Física - CNPq)

Fernando Donizete Alves*

fdlves@ufscar.br

Maria Georgina Marques Tonello**

tonellogina@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O artigo coloca em discussão a Recreação e suas possibilidades educativas. Recrear-se, portanto, representa um importante limite de espaço e tempo em que a criança se coloca a brincar ou a jogar, investindo grande prazer na construção de novos saberes (sejam eles procedimentais, conceituais ou atitudinais). Dessa forma, pode-se dizer que a recreação produz aprendizagem e, conseqüentemente, efeito educativo. Partindo deste princípio, recrear-se produz espaço e tempos ricos para se pensar o processo de inclusão nas aulas de educação física. E assim, poder reconhecer e acolher as diferenças que nos marcam como seres humanos, de modo a pensar numa con-vivência marcada pelo respeito, pela ética e pela igualdade de condições.

          Unitermos: Recreação. Educação Física. Escola. Inclusão.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 152, Enero de 2011. http://www.efdeportes.com/

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Notas introdutórias

    Quem nunca pensou nas aulas de educação física escolar como espaço recreativo!? Certamente todos nós já fizemos essa associação dado o dinamismo e prazer possíveis pelo formato das aulas de educação física que vivenciamos na escola. Normalmente, as pessoas associam ao termo recreação àqueles momentos de descontração, de diversão, marcados pelo ‘descompromisso’. É assim que, muitas vezes se reconhecem as aulas de educação física escolar, particularmente aquelas voltadas ao público infantil.

    A questão é que essa associação da recreação ao contexto escolar normalmente é tomada de modo pejorativo. Recrear-se significa, nessa direção, ‘passar o tempo’, ‘distrair’, ‘entreter-se’ etc. Em outras palavras, a atividade recreativa acaba por se tornar um apêndice na escola, sempre a margem do processo educativo propriamente dito. Segundo Gonçalves Jr (2004), a recreação vivida no cenário escolar se coloca como atividade para ‘cansar, relaxar e ensinar’.

    Soma-se a essa marginalização o preconceito que muitos professores possuem devido ao fato de que enquanto os alunos estão se divertindo, rindo, correndo, se movimentando, falando ou gritando, ou seja, enquanto esses alunos têm liberdade de expressão corporal, eles não estão aprendendo, que não se tem disciplina na aula, tornando-a, então, sem importância. Régis de Morais (2005) enfatiza que “para deixar nascer a disciplina, não é nem nunca foi necessário sufocar o lúdico ou eliminar a alegria”.

    Apesar de consistente, a proposta de Regis de Morais nos parece ainda distante de ser unanimidade. Como ressalta Emerique (2003) infelizmente nascemos e crescemos imersos em uma cultura antilúdica que costumeiramente diz: “deixe de brincadeira’ ou ‘você só pode estar brincando comigo’. Uma cultura antilúdica que estimula a deixar para trás a infância e a alegria: ‘isso é coisa de criança’ ou ‘muito riso, pouco siso (juízo)!’. Na escola, diz o autor, ouvimos: ‘vamos parar de brincar que vai começar a aula!’. Essas observações do autor o levam a questionar o distanciamento da escola em relação ao prazer da criança e do professor e nos conduz à uma triste constatação compartilhada com Bacha (2003): “talvez não haja nada mais característico das escolas que sua estranheza para com o prazer da criança e do professor” (EMERIQUE, 2003, p. 13).

    Não é sem razão que Bacha (2003, p. 197) afirma que “nas nossas escolas as crianças não brincam mais, elas trabalham”. Segundo a autora, isso denota uma cisão entre brincar e estudar, de modo que ao primeiro é concedido direito de existência em hora e lugar determinados, fora dos quais assume ares de transgressão. Haverá o tempo para o sério (a aprendizagem) e o tempo para a recreação ressalta Oliveira (2006b), sugerindo uma incompatibilidade entre o brincar e a educação escolarizada.

    Essa autora argumenta que a idéia na qual se funda a tendência da escola é a de que o divertimento, o lazer, a arte, por não serem pragmáticos, úteis, opõem-se ao trabalho. A alegria e o brincar convertem-se, portanto, em atividades indesejáveis ao ambiente escolar, por estarem ligados ao prazer e à vida imaginativa, distantes daquilo que rege a educação escolarizada (atenção, rigidez, disciplina). Dicotomia anunciada no poema de Cecília Meireles “Ou isto ou aquilo”: “não sei se brinco, não sei se estudo... não sei o que é melhor...”. A escola é lugar de estudar (o que exige responsabilidade e seriedade) e não de brincar (atividade improdutiva, face à soberania da racionalidade).

    Assim, a recreação (aqui tomada como parte integrante do universo do lazer) ora é apropriada pelo professor como atividade para cansar o aluno, esgotando suas energias nas aulas de educação física de modo que não atrapalhe as aulas das demais disciplinas, ora é tomada como atividade para relaxar o aluno, desenvolvendo jogos, brincadeiras etc com o objetivo de descansar a mente dos alunos do ‘esgotante’ trabalho intelectual, de modo que tenham melhor rendimento, ora ainda é utilizada para preencher as aulas vagas, de outras disciplinas, quando os professores das mesmas faltam, sem necessariamente ter um conteúdo, apenas servindo para encobrir a lacuna que ficou com a ausência de outro professor.

    Por fim, a tentativa de apreender a recreação como espaço para ensinar (e aprender) que se coloca como uma ‘luz ao final do túnel’ pode ser desastrosa, como argumenta Gonçalves Jr, distanciando-se de uma possível dimensão educativa. É quando o professor sistematiza demasiada a atividade na perspectiva de não perder o controle sobre seus alunos. No exemplo do autor, quando um professor resolve levar seus alunos para visitar um museu e exige-lhes que anotem todos os nomes dos quadros e seus respectivos pintores etc. O que faz o professor nesse exemplo (tão comum no meio escolar) é sistematizar e/ou formalizar a atividade recreativa em termos de tempo, de espaço e mesmo de ação das crianças, conduzindo-as a uma vivência alienada e empobrecida. Na visita ao museu, o aspecto contemplativo do mesmo, que poderia instigar a curiosidade dos alunos e gerar questionamentos não é valorizado, e normalmente, sequer reconhecido e estimulado pelos professores. Em conseqüência, perde-se uma excelente oportunidade de exercer efetivamente uma ação educativa.

    Aliás, esse é nosso foco aqui: pensar a recreação e, por conseqüência o lazer, como espaço potencialmente educativo, cuja ênfase estará no processo de inclusão de portadores de necessidades especiais às aulas de educação física. O primeiro passo é, sem sombra de dúvida, reconhecer na atividade recreativa seu valor educativo. O segundo passo é considerar a escola como um local possível de se vivenciar a recreação articulada a prática educativa, ou seja, a escola pode ser um lugar de prazer. Se assim for, certamente as possibilidades de se efetivar um processo de inclusão serão muito maiores. Vejamos, então, essas idéias com mais profundidade.

Princípios para Incluir...

    Antes de seguirmos adiante, uma breve analise etimológica do termo Recreação na perspectiva de compreendermos melhor seu significado e, seu conseqüente papel na escola. Seguindo os passos de Gonçalves Jr, fomos buscar a etimologia da palavra ‘recreação’ a fim de esclarecer possíveis distorções na compreensão de seu real significado (tais como aquelas que já pontuamos a pouco). Há um enorme equívoco ao conceber o lúdico e a recreação como atividades inférteis para a educação/formação da criança. Embora o termo recreação seja usado de modo pejorativo na escola, poderia não sê-lo. Poderia ser tomada em seu sentido original, ou seja, como re-criação.

    A partir dessa rápida análise etimológica da expressão recreação, podemos observar quão rica e fundamental pode ser para a educação/formação da criança: Sua origem aponta para aquilo que causa prazer, alegria, diversão, satisfação assim como para o ato ou efeito de recriar como se observa na junção do radical recreare (recrear) e do sufixo criaçon (criação). Recrear-se, portanto, representa um importante limite de espaço e tempo em que a criança se coloca a brincar ou a jogar, investindo grande prazer na construção de novos saberes (sejam eles procedimentais, conceituais ou atitudinais). Dessa forma, pode-se dizer que a recreação produz aprendizagem e, consequentemente, efeito educativo.

    Aproveitamos a oportunidade para buscarmos também as palavras ‘educação’ e ‘escola’ de modo que pudéssemos refletir suas possíveis interfaces com a recreação (que é justamente o que aqui defendemos).

    O termo educação significa, portanto, a ação de conduzir o sujeito, criança ou adolescente, para a descoberta da Cultura, rumo a sua entrada no universo mais amplo da Cultura. Educação aqui entendida num sentido mais amplo, que está além do ensino de conteúdos objetivos pré-determinados pelos currículos formais. Trata-se de possibilitar a entrada da criança e adolescente no universo mais amplo da Cultura Humana o que inclui o aprendizado de valores, atitudes, comportamentos etc que se insere no que se chama de currículo oculto. É possibilitar ao aluno experiências pessoais e coletivas que se colocam como fundamentais ao ‘con-vivio’ com o outro.

    Segundo Libâneo (2001), educação é uma prática social pela qual os seres humanos adquirem aquelas características humanas e sociais necessárias para a vida em sociedade. Ou seja, ela constitui-se do conjunto de ações, influências, processos, estruturas, que atuam no desenvolvimento humano de indivíduos e grupos em suas capacidades físicas, cognitivas, espirituais, morais, estéticas, num determinado contexto sociocultural e político.

    Já a escola, que hoje é a instituição que, por excelência, deve dar conta desse desafio, traz em sua origem, ironicamente, a idéia de um lugar de prazer, um tanto quanto distante do que ela representa atualmente no imaginário social. De toda forma, há um precedente interessante que nos conduz a compartilhar das idéias de Gonçalves Jr (2004), ao propor que a escola pode ser um espaço privilegiado de educação, função que acreditamos não vem sendo cumprida efetivamente.

    Na essência, a escola é um lugar privilegiado de educação, ainda que a realidade da escola atual diga o contrário. Uma escola que privilegia o prazer de ensinar inspira o prazer de aprender. Um processo de ensino-aprendizagem embebido do espírito lúdico será muito mais significativo, portanto mais rico e fértil tanto para quem ensina quanto para quem aprende. Valorizando o lúdico (essência da recreação), espaço intermediário de elo entre a relação da criança com a realidade interna e entre a criança e a realidade externa ou compartilhada, a escola pode fomentar o enriquecimento das experiências da criança e ajudá-la a encontrar uma relação operante satisfatória com o mundo (WINNICOTT, 1997).

    Oliveira (2006a) ressalta que o professor, assim como a “mãe suficientemente boa” tal como propõe Winnicott, também pode proporcionar à criança a noção de quem é, deixando manifestar-se o gosto pelo conhecer(-se). A educação, nessa perspectiva, significa construção de conhecimento e autoconhecimento, per via de levare, ou seja, “a tarefa da educação pode ser pensada como um trabalho de escultor”, como aquele que “dá forma, busca-a e a faz emergir” (OLIVEIRA, 2006a, p. 93).

    Emerique (2004) sugere que o professor deveria permitir-se vivenciar o lúdico, interagir com as crianças, viajar com elas na sua imaginação, superar a mesmice das aulas expositivas sempre iguais e monótonas, perguntar do que desejam brincar, descobrir o aprendizado ali onde o conhecimento programado a priori não acontecesse. Resgatar, assim, para o processo de ensino e aprendizagem o mesmo espírito aventureiro que tinham quando brincavam de esconde-esconde, caça ao tesouro e tantas outras, resgatar o entusiasmo de satisfazer a busca com prazer e o sabor do saber compartilhado.

    A Educação tomada nesses termos possibilita o acolhimento da recreação e, consequentemente, da ludicidade na escola, de modo que se possa pleitear “o extrair do si mesmo, o cultivo do ser, a criação e a recriação, com espontaneidade, alegria e prazer” (GONÇALVES JR., 2004, p. 130).

    Eis um caminho potencial e riquíssimo para se pensar o processo de inclusão nas aulas de educação física. Processo esse que exige em primeira instância o reconhecimento do outro despojado de pré-conceitos e atitudes/comportamentos discriminatórios. Não se trata de pensar ingenuamente numa suposta igualdade entre as pessoas, mas de reconhecer e acolher as diferenças que nos marcam como seres humanos. Só assim poderemos pensar numa con-vivência marcada pelo respeito, pela ética e pela igualdade de condições.

    Atualmente, as discussões em torno dos objetivos da educação física escolar que circundam a área, apontam para a necessidade de se democratizar as aulas de educação física na escola, ou seja, de se possibilitar o acesso de todos os alunos. Se a educação física é parte integrante do currículo escolar, é um direito de todo aluno que passa pela escola vivenciá-la ativamente. Desse modo, é importante que esse componente curricular possa oferecer igualdade de oportunidades a todos (RANGEL et al., 2005).

    Partindo do argumento de que todos os alunos têm direitos, como cidadãos, de participar das aulas de educação física, independente da cor, etnia, religião, gênero, idade... e do fato de ser portador de necessidades especiais, a questão a se resolver reside em encontrar alternativas para a não-exclusão. Assim sendo, o professor também precisará repensar sua prática pedagógica de modo que consiga tornar suas aulas acessíveis aos seus alunos, sem exceção (RANGEL et al., 2005). Nessa direção, incluir todos os alunos implica torna-lhes acessível todo o conjunto de conhecimentos da educação física que, por sua vez, deve constituir em instrumento de transformação pessoal e coletiva “na busca da superação das desigualdades sociais, do exercício da justiça e da liberdade, da constituição de atitudes éticas de cooperação e solidariedade” (p. 38).

    O professor de educação física não pode esquecer que o portador de necessidades especiais (deficiências físicas, deficiências mentais, obesidade, diabetes, etc) possui algumas peculiaridades que necessitam ser levadas em consideração, então o mesmo tem que conhecê-las para que as atividades propostas não ofereçam riscos a esses alunos, nem sejam impossíveis de ser realizadas pelos mesmos, permitindo assim a inclusão e vivência das atividades por esses alunos.

    Van Munster (2004) ressalta uma colocação que deixa claro a diferença na atuação e no pensamento das pessoas. Para a autora, “É diferente dizer que “o indivíduo não consegue se locomover sem o auxílio de órteses e muletas” e que “o indivíduo consegue se locomover com o auxílio de órteses e muletas”. E que “É interessante que o profissional atuante mude o foco das incapacidades para as potencialidades latentes no indivíduo” (p.143). Para isso, o professor de educação física deverá repensar a sua forma de entender e lidar com as pessoas portadoras de necessidades especiais, para então poder repensar a prática das suas aulas, permitindo uma verdadeira inclusão, sem que, para isso, ocorra a exclusão dos demais alunos e de atividades.

    Também importante é o acolhimento dos alunos portadores de necessidades especiais pelos demais colegas de turma. Uma situação que certamente todos nós já presenciamos é o pré-conceito e, a conseqüente discriminação daquelas crianças e/ou adolescentes que apresentam alguma deficiência, seja física ou mental, por parte de outras crianças e/ou adolescentes ditos ‘normais’. Pré-conceito esse que marginaliza o portador de necessidades especiais do con-vívio do grupo e das atividades por ele vivenciadas. Pré-conceito que se sustenta na falsa idéia de que uma criança paraplégica, por exemplo, não é capaz de participar de um jogo ou de uma brincadeira simplesmente porque não pode andar ou correr.

    Sua participação é perfeitamente possível desde que as crianças e o professor estejam disponíveis para incluir efetivamente seu colega/aluno valorizando suas capacidades como propõe Van Munster ao invés de ressaltar suas incapacidades e limitações. Talvez seja necessário reorganizar a atividade para tornar possível a participação daquela criança portadora de uma deficiência física (no caso do nosso exemplo). Desse trabalho criativo, uma nova brincadeira ou um novo jogo surge. As atividades propostas para as aulas, ou seja, os jogos, as brincadeiras, os esportes, a dança entre outros são e deverão ser os mesmos para todos os alunos como ressalta Van Munster (2004). Até porque, como já dissemos, é igualmente um direito de todos os alunos o usufruto das manifestações da cultura corporal de movimento. O que modifica são as estratégias e a metodologia de ensino de modo que as aulas e mesmo as atividades propostas permitam efetivamente a participação do portador de necessidades especiais.

    Essa mudança de posição da marginalização ao acolhimento do portador de necessidade especial implica o reconhecimento da diferença, do ‘diferente’, ou seja, o reconhecimento de que as pessoas são diferentes entre si, que elas apresentam capacidades e limitações diferentes.

    Na perspectiva de atender tais propósitos, dois princípios nos parecem fundamentais: inclusão e diversidade (BETTI, 1991 e 1999). O princípio da inclusão pressupõe que nenhum aluno deva ser excluído de qualquer aula, garantindo o acesso de todos e, o princípio da diversidade pressupõe que os conteúdos devam ser diversificados, sem privilégio deste ou daquele conteúdo. Ampliar as possibilidades de conteúdos permite atender diferentes interesses e necessidades dos alunos o que aumenta as chances de participação daqueles.

    Tomando esses dois princípios como referência, podemos observar, ao menos no papel, uma significativa abertura para se pensar o processo de inclusão do portador de necessidades especiais às aulas de educação física, assim como, pensar a recreação e, mais propriamente, o lazer como uma das possibilidades para concretizá-lo. Ao mesmo tempo, pode e deve o lazer ser tomado como objeto de ensino, possibilitando aos portadores de necessidades especiais sua apropriação para além dos muros da escola, mais precisamente para além das aulas de educação física.

    Nesse sentido, o processo de inclusão dos portadores de necessidades especiais apresenta dois caminhos, no que diz respeito ao lazer: ele pode ser tomado como meio e fim do processo educativo. Ou nos termos de Marcellino (2000b), o lazer assume uma dupla função: é veículo e objeto de educação. Para o autor, o lazer é um veículo privilegiado de educação, contudo, para a prática positiva das atividades de lazer é necessário o aprendizado que nos permita vivenciá-lo de modo mais crítico, seja na prática seja na observação.

    Tratar o lazer como veículo de educação nos leva pressupor que a vivencia das atividades podem favorecer o desenvolvimento de um conjunto de capacidades e competências que corroboram com a formação de nossos alunos, cuja finalidade maior está no pleno exercício da cidadania, como prorroga a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9.394/96 e a Constituição Federal de 1988.

    Segundo Marcellino (2000b), é fundamental reconhecermos no lazer/recreação sua potencialidade para o desenvolvimento pessoal e social das pessoas ao tratá-lo como veículo de educação. A vivência de atividades de lazer/recreação possibilita ao sujeito, no âmbito pessoal, além da diversão e do entretenimento que lhe é mais aparente, olhar para si mesmo, para suas necessidades e interesses, para seus desejos, para seus limites e potencialidades, a partir do reconhecimento e compreensão da realidade, do que ela representa e de como ele está nela inserido.

    Isso nos leva ao desenvolvimento social, pelo reconhecimento de nossas responsabilidades sociais, seja no trabalho seja na família seja na comunidade em que moramos e implica respeito, ética, solidariedade, direitos e deveres necessários ao convívio social e, sem dúvida, para uma cidadania ativa, crítica e autônoma.

    O lazer como objeto de educação, a educação para o lazer deve acontecer para qualquer faixa etária, e seria uma das funções de todos os profissionais que se denominam como educadores. As pessoas precisam saber aproveitar o seu tempo disponível das obrigações, ou seja, o tempo para o lazer. Isso é direito de todos, e, portanto, deve ser oferecido. A escola pode ser um momento único na vida das pessoas portadoras de necessidades especiais para a vivência de atividades que lhe proporcionem prazer.

    A grande maioria da população sofre com as barreiras (Marcellino, 2000a) que dificultam ou impedem a vivência de atividades de lazer, o que se multiplica quando falamos das pessoas que possuem algum tipo de necessidade especial. Muitas delas só conseguem se locomover para a escola, pois não tem condições financeiras ou pessoas que auxiliem no translado até algum outro local em que poderiam estar indo para participar de alguma outra atividade que não seja o estudo ou o trabalho, então, a educação para o lazer dentro do ambiente escolar não deve ser deixada de lado ou ser marginalizada por algumas pessoas. Mas para isso, ela deve acontecer em determinadas horas e locais que não prejudique o ensino e aprendizagem dos alunos.

    Blascovi-Assis (1999) é uma pesquisadora sobre pessoas com deficiência mental e suas famílias. De acordo com o que a autora pesquisou, podemos perceber onde o lazer se situa na vida desses deficientes mentais, podendo essa percepção se estender as pessoas portadoras de outras deficiências.

    A autora observa que os pais e a sociedade se preocupam, primeiramente, com o desenvolvimento da linguagem e das aquisições motoras da criança portadora de necessidade especial. Depois que a criança consegue ter esses domínios, o próximo passo é ampliar o desenvolvimento intelectual, ou seja, a capacidade de ler, escrever e fazer cálculos.

    Quando essa criança entra na adolescência, a ênfase é dada para a profissionalização e convívio social. Ou seja, essa criança portadora de necessidade especial possui uma gama repleta de atividades e afazeres que tem por objetivo maximizar o seu desenvolvimento, tentando a semelhança com uma vida “normal”.

    Se para as crianças ditas “normais” já ocorre um furto da infância devido à preparação para o futuro, para as crianças portadoras de necessidades especiais isso é mais penoso ainda. O tempo para o lazer é deixado para depois que essa criança melhorar seu desempenho motor, afetivo, depois que conseguir ser útil de alguma forma, ou seja, sempre para o futuro. E quando esse futuro chega, nem sempre junto está o tempo para o lazer.

    Então, além do professor de educação física necessitar de mudanças dos seus paradigmas pessoais e profissionais, os outros alunos e os próprios portadores de necessidades especiais também podem precisar mudar seus modos de pensar e agir.

    Para Marcellino (2000a): “[...] no plano cultural, uma série de preconceitos restringe a prática do lazer aos mais habilitados, aos mais jovens, e aos que se enquadram dentro dos padrões estabelecidos de ‘normalidade” (p.24).

    As pessoas que não se enquadram nesse padrão estabelecido pela sociedade sofrem preconceitos, são julgadas como incapazes, não têm suas diferenças respeitadas, tendo, portanto, dificuldades de vivenciar momentos de lazer, dificuldades essas que normalmente são transferidas para os momentos, nas aulas de educação física, onde o professor trabalha com as atividades recreativas, tanto educando para ou através do lazer.

    Van Munster (2004) ressalta ainda as barreiras sociais ou atitudinais: “[...] Discretas e quase sempre invisíveis, aproveitam-se da desinformação e do desconhecimento; fortalecem-se com o preconceito e relegam a pessoa com deficiência a uma condição de marginalidade e segregação do convívio social” (p. 140).

    Segundo a autora, essas barreiras podem acontecer em dois sentidos: ou ela parte da sociedade para as pessoas com necessidades especiais, ou das próprias pessoas portadoras de deficiências para consigo mesmas.

    Cita como exemplos “não conceder uma chance, sentir receio de se aproximar, sentir vergonha de estar por perto, desistir antes de tentar, negar ou não aproveitar as oportunidades, ridicularizar ou zombar do desempenho do outro, sentir pena ou autopiedade [...]” (p.141).

    Portanto, a educação para e pelo lazer podem ter grande importância na inclusão dessas pessoas nas aulas, e podem acontecer juntas ou em momentos distintos, de acordo com o planejamento e objetivos do professor. Só não se deve esquecer que se a atividade recreativa proposta estiver sendo desenvolvida na proposta de educação para o lazer ou dentro do conteúdo da educação física escolar jogos e brincadeiras ela não necessita ter sempre como pano de fundo outra função, além da diversão dos alunos, da aprendizagem de atividades novas que poderão ser multiplicadas para outras crianças e adolescentes em outros espaços além da sala de aula, como nos intervalos, na rua, no convívio familiar, etc.

    Então, as atividades de lazer podem propiciar um momento excelente para a inclusão das pessoas com necessidades especiais nos grupos escolares, na sociedade, permitindo a essas pessoas uma efetiva participação.

    O professor de Educação Física Escolar, quando utiliza as atividades de lazer como objeto ou veículo de educação, deve lembrar que a variação dos conteúdos culturais (Marcellino, 2000a) é de suma importância, pois cada aluno, dependendo da fase da sua vida, sente necessidade por tipos diferentes de atividades de lazer, que irão contemplá-lo nos seus anseios e desejos.

    Quando não ocorre a diversificação das atividades nos conteúdos culturais o aluno não terá opções para escolher, o que poderá dificultar a inclusão de atividades de lazer nas aulas, pois as mesmas normalmente são escolhidas pelo professor, sem prévia consulta dos alunos, que também podem ter incutido o preconceito com relação aos jogos e brincadeiras, ao lúdico nas aulas, principalmente do ensino médio em diante.

    O professor deve tentar solucionar as possíveis causas pelas quais os alunos não estão motivados a participar das atividades propostas em aula. Quando ocorre a construção coletiva e contínua do planejamento das aulas, o entrosamento do professor e aluno e desse com os demais colegas poderá ser facilitado, pois em algum momento, todos serão contemplados com atividades que sentem prazer em fazer, e não só com atividades em que são obrigados a participar, sem gostar, sentindo-se motivados a participarem das aulas.

    É preciso que se observe se alguém do grupo de alunos pode não ser contemplado com a atividade de lazer proposta, devido a alguma necessidade especial que possua. O professor terá, então, que fazer a modificação ou adaptação que for necessária para que esse aluno consiga participar de forma efetiva, com todos os demais alunos.

    Portanto, além da possibilidade que os professores possuem de utilizar as atividades de lazer como uma das formas de inclusão nas aulas de Educação Física escolar, as mudanças de paradigmas de ambos os lados devem ser revistas, pois as atitudes dos professores e alunos, portadores ou não de necessidades especiais, são essenciais para que qualquer inclusão tenha êxito.

Considerações finais

    Está posto o desafio ao professor no ensino da educação física: lidar com a necessária democratização das aulas, com a diversificação dos conteúdos, com a proposta de uma educação para a cidadania. Lidar com turmas mistas (meninos e meninas), lidar com turmas heterogêneas (gordinhos, mais habilidosos, menos habilidosos, magros, altos, portadores de necessidades especiais etc), lidar com a diversidade de conteúdos (até pouco tempo era somente o esporte e, basicamente, o futebol, o basquete, o vôlei e o handbol – as vezes o atletismo), lidar com os interesses e necessidades individuais e coletivos, articular-se com os outros componentes curriculares, não perder de vista o projeto educacional da escola. Torna-se necessário que o professor modifique suas estratégias de ensino, reveja os conteúdos, conheça a realidade (quem seus alunos, conheça a escola e sua proposta educacional, conheça a comunidade, suas necessidades e interesses).

    Nessa direção, é importante que o professor conceba o processo de ensino-aprendizagem como o conjunto de atividades organizadas do professor e dos alunos, tendo por finalidade alcançar determinados resultados, ou seja, o domínio de conhecimentos e o desenvolvimento de capacidades e competências, considerando para isso o nível atual de conhecimentos, experiências e desenvolvimento mental dos alunos. Esse processo possui algumas características como: o desenvolvimento e transformação progressiva das capacidades intelectuais, alcançando determinados resultados, como o domínio de conhecimentos, habilidades, hábitos e atitudes (LIBÂNEO, 1994).

    Nessa direção, o professor precisa se conscientizar que a ação educativa atua por meio de saberes e modos de agir, tais como conceitos, teorias, habilidades, técnicas, procedimentos, estratégias, atitudes, crenças, valores, preferências, adesões, que precisam ser internalizados pelos indivíduos como condição de continuidade da sociedade e produção de outros saberes e modos de agir. São princípios importantes para que as aulas de educação física efetivamente se transformem num espaço democrático, inclusivo em que portadores e não portadores de necessidades especiais e professor con-vivam de modo compartilhado a construção de conhecimentos, habilidades e competências. Um processo educativo que possibilite a necessária transformação social à inclusão do portador de necessidades especiais.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 15 · N° 152 | Buenos Aires, Enero de 2011
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