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Esporte escolar e educação estética: caminhos 

para a experiência plural, pacifista e democrática

Deporte escolar y educación estética: caminos para una experiencia plural, pacifista y democrática

Sport in schools and aesthetic education: pathways for a pluralist, democratic and peaceful education experience

 

*Licenciado em Educação Física pela Universidade de São Paulo

Professor do Colégio Oswald Andrade e do ensino médio

da disciplina Corpo da Escola Viva, SP

**Professor da School of Education at University of Western Sydney,

onde também é pesquisador do Centre for Educational Research

***Mestre em Educação, Arte e História da Cultura (Mackenzie)

Bacharel em Artes Cênicas (USP).

****Bacharel e Licenciado em Educação Física pela Universidade de São Paulo

Técnico de handebol

(Brasil)

Patrício Casco*

oliveiracasco@ig.com.br

Jorge Dorfman Knijnik**

j.knijnik@uws.edu.au

Selma Carneiro Felippe Knijnik***

selmacf@uol.com.br

Diogo Castro****

diogocastrosp@yahoo.com.br

 

 

 

 

Resumo

          É característica do senso comum qualificar o esporte com diversos epítetos positivos, tais como ser uma atividade saudável que inibiria o uso de drogas por parte de jovens. O esporte também tem sido considerado por organismos internacionais como um agente capaz de propiciar aos jovens uma prática saudável, imbuindo-os de uma cultura de paz. O esporte tem conseguido atingir estes objetivos? Partindo do pressuposto que o Esporte é um fenômeno plural, com significados e possibilidades de prática e intervenção muito variadas e heterogêneas, o objetivo deste texto é discutir uma nova visão para o emprego do Esporte na Escola, visando uma educação tanto estética quanto corporal, que busque uma educação pluralista, tolerante e comprometida com a democracia. Utilizando referências da filosofia e da antropologia do esporte, o texto deixa claro que a perspectiva excludente com que o esporte vem sendo usado na Escola não favorece uma participação democrática de todos e todas; por outro lado, enxergar claramente que a prática esportiva é um direito universal, que consta inclusive em tratados de direitos humanos internacionais, pressupõe que se utilize desta ferramenta de um modo diferenciado, e é ai que o texto propõe novas alternativas de uso do Esporte na Escola.

          Unitermos: Esporte escolar. Estética. Pluralidade cultural.

 

Abstract

          The general perception usually qualifies sport with several positive adjectives, such as it is a healthy activity that can leave children apart from drugs, which bring sport to a place where it could, as per magic, have strong educational benefits. Sport has also been viewed in several instances and by international organizations as an agent able to lead young people to a healthy lifestyle and at the same time imbuing them with a peaceful culture. Is sport such a powerful activity? Is sport reaching educational aims within the schools? The authors consider sport to be a many faceted phenomenon, with heterogeneous practices and many different meanings. This paper discusses a new approach to sport in schools, suggesting an aesthetic and body education, with a fundamental commitment to tolerance and democratic practices. Citing philosophical and anthropological references, this article clearly demonstrates that sport in schools has often perpetrated exclusion rather than expanding democratic participation. On the other hand if we consider that sport is a universal right, which has been included in several international Human Rights agreements, we should also use sport in different ways, with more inclusive and democratic practices in school sports.

          Keywords: Sport in schools. Aesthetics. Cultural diversity.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 151, Diciembre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    O objetivo deste texto é discutir o Esporte da Escola, sublinhando sua especificidade em relação ao Esporte de Alto Nível (EAN), refletindo sobre aspectos nos quais há uma intersecção diretiva. Escolhemos em primeiro lugar o tema Pluralidade Cultural, pois nela encontramos um traço diferenciador do EAN em relação ao Esporte da Escola. Geralmente, o EAN, ao se reproduzir infinitamente pelas diversas mídias, produz também padrões e modelos de movimento e comportamento, os quais, para os objetivos de uma educação escolar plural, podem não servir de referência. Pensando nos objetivos de uma educação do novo milênio, talvez devêssemos traçar objetivos escolares visando à ampliação do valor da pluralidade e respeito às diferenças, reforçando a idéia de paz em todos os níveis. Para tal, este texto discute o papel da experiência democrática, possível de ser construída no espaço escolar no qual os valores democráticos podem ser vividos de maneira direta e concreta.

    No segundo momento, discutimos o Esporte na Escola (ao invés “da”) sob a perspectiva do gosto e da Estética, valorizando-o como parte de uma possível educação dos sentidos e das percepções, com forte ludicidade, diferentemente do discurso agônico ou com foco na saúde ou na competitividade.

    O Esporte é uma manifestação cultural fundamentada na competição e na comparação quantitativa e objetiva de desempenho. Os parâmetros reguladores de todas as modalidades são os recordes, os saldos de gols, o número de pontos alcançados. Mesmo quando os resultados são julgados como na ginástica artística, parte-se do pressuposto da autoridade dos árbitros para um julgamento, embora subjetivo, carregado de décimos avaliativos, bastante próximos da ciência tradicional. A apreciação estética desportiva segue normas rígidas, fundamentadas em detalhes que escapam à maioria dos mortais.

    Esta objetividade no Esporte é de fundamental importância. Motiva as pesquisas de desempenho desportivo, atrai multidões que encontram nesta superação de alguns, a catarse necessária para sua própria auto-superação. Afinal, é a autotranscendência que estimula o ser humano em todas as suas ações, a sua “ânsia de completude” como diz o filósofo do Desporto Sérgio (1991) Ao buscar o centésimo que falta ao recorde, ou o gol da vitória “à qualquer preço”, o ser humano realiza uma paródia de si mesmo, um teatro de sua própria vida. Herdamos estas questões da civilização grega, e mesmo hoje, continua fazendo sentido perceber a atividade corporal em sua face desportiva como mais um desafio ao autoconhecimento e à transcendência.

    Até agora não falamos de Escola. O direito à catarse desportiva e o exercício de desenvolvimento pessoal, presente no esporte, deveriam pertencer somente àqueles poucos que conseguem superar os padrões do grupo? Ou todos estão convidados a viver este teatro a céu aberto (ou nas quadras cobertas) proporcionado pelo esporte? Para uma vivência plural e ampliada do esporte, faz-se necessário oferecer o espaço a todos aqueles que, auto motivados, ou movidos pela presença de um professor que possa facilitar esta busca, desejem participar deste tipo de atividade. Aliás, esta nova abordagem dos programas esportivos e educativos vem ao encontro e se coadunam com as metas de desenvolvimento do milênio propostas pela ONU (United Nations Inter-Agency Task Force on Sport for Development and Peace), metas estas que a força-tarefa para o desenvolvimento do esporte e da paz da própria ONU procura atingir. Esta força, composta por membros de diversas agências educativas, enxerga na prática esportiva uma excelente oportunidade para se desenvolverem valores de disciplina, liderança e auto-estima, mas também de respeito, cooperação e tolerância.

    Para a força-tarefa,

    “a prática do esporte é vital para o desenvolvimento holístico dos jovens, ajudando sua saúde física e emocional, e edificando valorosas conexões sociais. O esporte oferece oportunidades para a diversão e auto-expressão, benéficos, sobretudo para os jovens com poucas oportunidades em suas vidas” (UN, 2003, p. 3, tradução livre).

    A Educação Física curricular não tem sido o melhor espaço para que tudo isso aconteça. Ela apenas deveria abrigar o esporte em sua grade curricular, sem considerá-lo preponderante. No entanto, como já se afirmou anteriormente, esta prática, sendo central em diversos programas e currículos, apenas reforça a elitização e a exclusão, incompatíveis com o ambiente escolar. Ao contrário, pensar num esporte plural significa que ele deve assumir novas formas que contemplem todas as possibilidades de inclusão das diferentes pessoas, com suas diversas habilidades, manifestação de gênero, tamanhos e conhecimentos particulares

    Pluralidade cultural significa que as práticas orientadas dentro do ambiente escolar devem ter como característica a aceitação e o respeito às diferenças individuais, sejam elas de ordem física, social, cultural, étnica, racial ou religiosa. Lidamos aqui, no que diz respeito à prática desportiva escolar, com as diferenças de ordem física. Temos claro que os domínios da capacidade orgânica e da habilidade motora são amplos, exibindo diversos graus de desempenho. As Para-Olimpíadas são um exemplo de que a limitação física não é correspondente à limitação espiritual, atitudinal, o que coloca a auto-superação como acessível a todos.

    Como entender que somente alguns poucos no ambiente escolar são estimulados à prática competitiva? Quantos jovens não fogem da competição, não pelo medo de perder ou ganhar, e sim pelo medo da exclusão social? Pelo medo de não atender às expectativas de técnicos, pais, colegas ou mesmo instituições escolares? Quantas crianças ao serem substituídas abruptamente de suas equipes não saem direto da quadra para a arquibancada, em caráter irrevogável? Quantas estão na arquibancada desejando participar de toda aquela encenação dramática que nos remete diretamente às representações simbólicas e arquetípicas da vida e da morte? O poeta Jim Morrisson dizia que “todo jogo contém em si a idéia da morte”. Encenar esta peça desportiva é uma possibilidade e um direito abertos a todos, sejam eles “magricelas ou gordões”, “grandalhões ou baixinhos”, rápidos ou mais lerdos, “fracotes ou sarados”, ou portadores de quaisquer outras diferenças de peso, massa, estatura, nível de contração muscular ou freqüência cardíaca em repouso. Ou estes estão condenados apenas à catarse e à sublimação da arquibancada e mais tarde (isso se ainda sentir algum gosto pelo esporte) diante da TV? Não será essa uma das origens do asco que certos setores da intelectualidade (mesmo dentro do ambiente escolar) têm pelo esporte, considerando-o como um exercício de brutalidade insana, fruto de um discutível belicismo inato, ou culturalmente estimulado? Quantos, um dia, não se aproximaram do esporte e deram de cara com a muralha do padrão de desempenho transformado em parâmetro de exclusão?

    Tudo tem seu tempo e seu lugar. Pode haver espaço para a atuação de um grupo de “melhores jogadores”, obtido por meio do consenso democrático de um coletivo. O que não exclui a necessidade de várias faixas de atuação abertas a um número maior de pessoas, sem a necessidade de provar nada e sim, simplesmente pelo desejo de participar da festa. Democracia pode ser o nome desse prazeroso processo.

A Experiência Democrática

    É possível desenvolver a experiência democrática no espaço da quadra, no Esporte Escolar? Esta reflexão é fruto de uma prática de muitos anos com crianças e adolescentes do ensino privado, aos quais foi dada a possibilidade de escolha democrática das equipes de competição do Esporte Escolar. Este contexto, carregado de contradições e rearranjos constantes, fez com que se ampliasse a reflexão acerca de aspectos educacionais importantes tais como a autonomia e a cooperação, presentes no esporte, colocando-os sob a perspectiva do coletivo e de suas formas democráticas para a solução de conflitos.

    Na Escola, o Esporte ocupa um lugar de destaque. Seu privilégio consiste na sintonia entre sua prática e os processos de desenvolvimento vividos pelos alunos. Seus atributos dinâmicos correspondem ao desejo e ao prazer desfrutado pelas crianças e adolescentes em movimentar-se, estar junto, de medir/comparar competências e de, concomitantemente, co-operar. O Esporte promove estas relações em diversos níveis, daí ser um foco de interesse para a grande maioria dos alunos. Aqui cabe uma reflexão acerca dos modelos relacionais possíveis de serem desenvolvidos no contexto das aulas de Educação Física e nas aulas das Escolas de Esporte de maneira que se promova a liberdade, a autonomia e a cooperação como valor social. Esta possibilidade, no entanto, é por vezes substituída na Escola por uma segunda ordem de valores sociais na qual o Esporte apenas separa “os mais fortes dos mais fracos”. O que fazer diante disto?

    No que diz respeito à Escola tradicional, a competência para movimentar-se parece ser um campo exclusivo da Educação Física e do Desporto, em seu tradicional espaço próprio e especializado: a quadra. Outras competências tais como: medir, avaliar, julgar, relacionar, compreender, entre tantas outras, aparecem mediadas tradicionalmente por provas, trabalhos escritos e seminários, ligados intimamente ao seu espaço físico, ou seja, a sala de aula.

    No entanto, todas estas competências estão presentes o tempo todo, em todos os espaços da Escola, o que nos leva afirmar que a todas estas práticas corresponde um mesmo conjunto de conteúdos atitudinais, indispensáveis para o desenvolvimento de valores tais como Paz, Respeito às Diferenças, Solidariedade e cooperação. Esta presença de valores pode permitir uma maior reflexão sobre atitudes e um despertar para consciência, atributo indispensável para as já citadas liberdade e autonomia. Além disso, cabe à Escola o papel de promover o desenvolvimento das competências daqueles que, por uma ou outra razão, não conseguiram desenvolver-se suficientemente, elevando assim o seu potencial ao máximo.

    Os aspectos relacionais desenvolvidos no espaço escolar podem ser um ponto de partida para se entender o que acontece dentro da quadra. Em primeiro lugar, a quem pertence o saber na Escola? Acreditamos que a cada um dos participantes do processo. Crianças, adolescentes e adultas, cada um destes, possuem uma experiência, um fragmento do que pode ser trocado no espaço de aprendizagem. Por sua maior experiência, os mais velhos têm um maior poder de permuta, o que não exclui a experiência e a energia dos mais jovens.

    Neste contexto, a autoridade do professor decorre da sua habilidade em permitir que o conhecimento dos alunos seja valorizado conjuntamente com sua experiência magistral. Interesses ou desejos conflitantes podem ser mediados pelo professor que, conjuntamente os seus alunos estipula as regras e critérios para a resolução dos conflitos. Essa sua autoridade educacional é na maioria das vezes o que confunde o seu papel pedagógico, tornando-o fonte exclusiva do saber, com poder de decisão absoluta sobre o que deve ser aprendido ou não. No caso do Esporte isto significa quem deve, ou não deve fazer parte da equipes competitivas.

    Talvez este seja um dos maiores dramas vividos pelas crianças e adolescentes, dada a grande valorização social da prática desportiva. O modelo competitivo permeia o tecido social, pressionando os jovens a um comportamento estereotipado, ou seja, o de vencer a qualquer custo. Heróis do esporte são criados e destruídos diariamente pela mídia e isto atinge em cheio os alunos. Suas expectativas e anseios, sua auto-imagem e a correspondente auto-estima, são lançados à comparação e à competição com resultados óbvios de decepção, frustração e desmotivação para a prática corporal, fato que corresponde à grande maioria dos alunos.

    Selecionados por esses critérios de performance, os que vencem essa disputa recebem um visto de aceitação social, adornado por troféus e medalhas sobre a camisa do time. Os de fora são losers - para resumir a ética do cada um por si destes dias de individualismo, neoliberalismo econômico e do achatamento e americanização da cultura. A culpa por serem losers recai exatamente sobre o indivíduo, reforçando a ética do cada um por si. Como conseqüências têm multidões de solitários, em metrópoles cada vez mais populosas, buscando saídas individuais. Afinal, são os anti-depressivos os medicamentos mais consumidos no mundo todo. E depressivo é aquele que faz de tudo pra evitar o conflito, conforme afirma a psicanalista Kehl (2009).

    Há alternativas para este quadro. O professor, ao assumir para si o dom da escolha torna-se o centro do processo, quando na verdade, deveria ser o inverso. O aluno deve ser o centro da ação pedagógica e é a ele que corresponde o poder real de efetivação de qualquer projeto. Sua capacidade de escolha deve ser valorizada para que seu resultado ocorra como parte final de um processo de reflexão e não mera contagem de desejos individuais. Esta reflexão pode ser uma resposta ao conflito (e não uma fuga ao conflito). criado pela limitação na participação de campeonatos e torneios.

    Existem muitos modelos sociais de participação social que operam pelo limite do número de participantes. Nosso sistema político é um modelo no qual a representação é um valor, legitimando a vontade popular expressa pelo voto. Este, em si, nada significa se não for precedido de um processo que confira um significado ao ato de escolher o seu representante, que tipo de idéias defende e que passado histórico possui. Uma vez representado, o cidadão, teoricamente, sente-se parte do processo de discussão e transformação da sociedade. Pode o aluno sentado na arquibancada sentir-se da mesma forma representado por aquele que está no banco, ou na quadra, jogando?

    Por que não atuar a partir do modelo democrático na solução do conflito representativo criado pela existência de torneios e/ou jogos amistosos? A semântica presente em nossos gestos e propostas como professores e técnicos ajuda a construir nos alunos um modelo de compreensão do mundo e de como resolver contradições. Se, como educadores, demonstramos saber qual é o perfil do aluno que representa a escola nas competições, selecionando-os, automaticamente negamos o seu saber social e a sua capacidade de expressar o seu desejo e sua necessidade de se sentir representado como um grupo social diferenciado (“eu pertenço a tal escola”).

    A ausência de participação política é uma das relações inevitáveis construídas por tal modelo semântico. Passa a idéia de incapacidade para resolver um conflito a não ser que seja mediado por uma autoridade competente, com saber necessário para tal, um especialista. Há o medo da “anarquia”, da zoeira, dos votos emocionais, das escolhas mal feitas, das injustiças. É preferível deixar que um adulto decida e isente o aluno da angústia da escolha? Um dos traços da maturidade emocional é justamente a capacidade de escolher o seu próprio destino. Tornamos-nos adultos quando nos libertamos dos desejos e expectativas dos nossos pais e construímos o nosso próprio mundo. É angustiante decidir, mas é parte do processo de crescimento. Historicamente, a democracia moderna é uma resposta, ainda em construção, à infantil necessidade social de reis e governantes paternais.

    Saber implica em aprender, e isto não é possível sem se praticar. Nesta prática o aluno deve refletir, observar e necessariamente aprender a conhecer a si mesmo e ao outro. Com certeza, isso é muito difícil, pois requer que o professor esteja com a atenção redobrada no processo de escolha e não no objetivo final de montar a sua equipe, seja ela composta por votos ou não. Na verdade este é o ponto de chegada e não a contagem formal de votos. Votos nulos ou em branco representam a alienação indesejável para o desenvolvimento do processo democrático, conferindo poder absoluto e centralizado ao técnico. É o que se deseja?

    Se desejarmos uma Ética fundamentada na construção da paz, da cooperação e do respeito às diferenças, sejam elas quais forem, devemos estendê-la a todos os recantos da escola. As relações de poder existentes no processo ensino aprendizagem, seja na quadra ou na sala de aula, devem ser repensadas e re-focalizadas na direção de uma maior participação dos alunos e para tanto é necessário colocar o aluno como autor de sua própria existência, responsabilizando-o pelos seus atos, não sem antes viver o Esporte através do diálogo, da livre expressão e da comunicação dos seus desejos.

    Há um salto qualitativo, e não apenas semântico, quando saímos do conceito de seleção, para o conceito de representação, mesmo que isto se dê no micro mundo das relações desenvolvidas dentro do ambiente escolar, mais especificamente na quadra. Isto pode também ser precisado empregando–se a idéia já citada dos especialistas da ONU, quando dizem que o esporte é um meio importante para a saúde,mas também para a diversão e a auto-expressão. Ora, considerar estas dimensões da prática esportiva não tem sido uma forma corrente de se lidar com o esporte, sempre tão preocupado com marcas e índices, deixando-se à deriva ou totalmente ocultas as possibilidades enormes de uma verdadeira fruição estética do movimento propiciado pelas práticas esportivas. É o que pretendemos discutir no item a seguir.

Estética e Esporte Escolar

    Para melhor situar o Esporte da Escola, é necessário observar atentamente qual o seu papel entre os saberes e fazeres ali desenvolvidos, para, enfim, direcionar e discutir sua prática e efetivar opções mais fundamentadas.

    Atualmente, o Esporte (escolar ou não) é merecedor de análises multidisciplinares. Cientistas sociais, antropólogos, pedagogos e psicólogos, somam-se, em número cada vez maior, às áreas tradicionalmente ligadas ao Esporte, tais como a fisiologia e as ciências biomédicas de maneira geral. A Educação Física atua no ponto médio entre estes campos de estudo, isso no ambiente escolar. O Esporte, como já afirmamos antes, é um dos temas fundamentais desta Cultura Corporal, da qual a E.F. é seu braço pedagógico-educacional, seja no aspecto curricular como no extra-curricular.

    Para focalizar esta discussão escolhemos a antropologia como recurso reflexivo. Uma das teses básicas de Lovisolo, referência central nos trabalhos de antropologia do esporte, está relacionada às motivações gerais do ser humano. São elas, segundo Lovisolo (1997) normativas, utilitárias ou estéticas.

    Por ações normativas entendem-se as ações ligadas ao cumprimento de normas, deveres, regras, tradições, rituais e/ou costumes. Por ações utilitárias compreendem-se aquelas ligadas a um objetivo específico, a uma utilidade explícita, em razão da qual se estabelecem estratégias e meios de alcançá-las. Por motivações estéticas entendem-se aquelas ligadas ao gostar puro e simples, bem como ao exercício dos sentidos e da percepção.

    O papel fundamental da Escola tradicional, desde suas origens, sempre esteve ligado à normatização da vida dos indivíduos e no período pós - Revolução Industrial foram aí incluídas as atividades utilitárias, visando a formação de bons cidadãos, aptos física, moral e espiritualmente a exercer suas funções sociais de maneira útil, porém nem sempre prazerosa. Os saberes e fazeres escolares estiveram tradicionalmente vinculados a estas expectativas.

    O refinamento do gosto, como exercício do desejo, começou a ganhar espaço nos meios intelectuais somente a partir da segunda metade do séc. XX, decorrente de estudos de diversas áreas, sobretudo da psicanálise. Neste sentido, as atividades corporais, musicais, plásticas e expressivas ganharam mais espaço na Escola. Propor atividades “gostosas” no interior desta passou a ser visto como um bem necessário à realização de um bom trabalho pedagógico. Aprender matemática, por exemplo, além da sua utilidade explícita dentro de uma sociedade tecnocrática, deveria ser também uma atividade gostosa. Currículos foram habilmente elaborados para atingir os alunos em suas necessidades estéticas, porém com claros objetivos utilitários e universalizantes.

    O Esporte, historicamente, parte essencial do mundo do espetáculo, adentrou a Escola devido principalmente ao seu aspecto estético, altamente motivador para a prática corporal. No entanto, associou-se paulatinamente aos aspectos normativos e utilitários, introduzindo no ambiente escolar a idéia da prática esportiva ser necessária para a saúde e para o treinamento de funções sociais, especialmente para o cumprimento das regras sociais, portanto obrigatória.

    O movimento pela saúde é um exemplo do caráter utilitário e universalizante da atividade corporal e, dentro da escola, é o argumento mais utilizado a favor da prática regular das atividades corporais. O discurso de competência do educador corporal passou a ser o discurso biomédico e biomecânico, fundamentado no uso otimizado das alavancas e trações segmentares. As técnicas desportivas foram e ainda são utilizadas como elementos básicos do desenvolvimento corporal, sendo que este tópico é, ainda em muitos casos, o elemento principal do trabalho realizado na Escola. Na contramão das técnicas e saberes utilitários, a atividade corporal, “gostosa” por excelência, deveria exibir um discurso e um método que justificasse sua presença no meio escolar. Esta tem sido a resposta tradicional dos educadores físicos, àquela incômoda pergunta que, vira e mexe, aparece nos questionamento dos alunos: para que serve isso tudo?

    Pensamos que nossa resposta pode e deve ser outra. O sentido estético da atividade, o gosto pela prática corporal, o saber fazer pelo prazer de saber fazer (o que exclui, ou pelo menos subordina objetivos utilitários de, por exemplo, vencer os jogos utilizando recursos “de qualquer maneira” ou se utilizando recursos não previstos nas regras), devem ser, em nosso entender, o foco principal da atividade física desenvolvida na Escola. A construção de uma cultura corporal mediada pelo gosto, no qual o desenvolvimento das técnicas corporais está a serviço de uma visão ampla da atividade física, das suas características culturais, possivelmente fonte de tradição e transformação, inclui atitudes e formas de organização voltadas à educação do gosto pela atividade, do exercício dos sentidos, das percepções e das ações, parece um elemento inovador e um antídoto para estes tempos no qual a saúde e a boa forma aparecem como valores totalizantes e absolutos, que demandam sacrifícios, torturas e penas para serem alcançados – exemplos não faltam no EAN, quando se chega a extremos de se lesionar propositadamente o próprio corpo (ou o de outrem) na busca desmedida do utilitarismo da vitória acima de qualquer valor, inclusive do propalado “espírito esportivo”.

    O verdadeiro espírito do esporte, cuja origem sempre foi relacionada à festa e ao congraçamento social presentes nas atividades sociais comunitárias tais como a dança, não tem vínculos com a violência que os valores hipermasculinos querem ditar para toda a sociedade. Ao contrário, este espírito quer transformar esta maravilhosa atividade naquilo que ela pode ser, um complexo e importante espaço para se educar as crianças e jovens, também no que tange ao aguçamento do senso estético e à fruição dos próprios corpos em contato com os demais.

Pelo resgate do belo no Esporte Escolar: questões para reflexão à beira da quadra, transformando-a num espaço plural e democrático

  • Como anda o gosto pelo Esporte (jogar/torcer) dos alunos?

  • O que fazer e propor para que o Esporte seja, antes de qualquer outro valor, um elemento na sua formação estética (educação do gosto, da percepção e dos sentidos)?

  • Como fazer com que a participação maciça dos alunos (treino, escola de esportes, torcida) seja um objetivo a ser alcançado pelo departamento de Esportes?

  • Qual a proporção de alunos da escola que efetivamente participam das atividades corporais com prazer e auto-motivação?

  • Por que os alunos tradicionalmente participantes ocupam várias vagas em modalidades e categorias diversas, em detrimento de outros possíveis (porém nem sempre eficazes do ponto de vista utilitário) alunos que poderiam interessar-se em jogar? O que fazer para reverter este quadro?

  • Quais são e como são valorizados pela Escola, os elementos culturais e estéticos presentes nos Esportes?

  • Há ou não uma preocupação em situar o Esporte como elemento de cultura nos informativos publicados pela Escola, além das notícias (nem sempre publicadas) sobre vitórias e conquistas obtidas no plano desportivo escolar?

  • Como situar a cooperação e a arte no quadro competitivo das equipes escolares?

    Cremos que alguns passos já estão sendo dados na medida em que adotemos um modelo representativo e democrático de escolha das equipes escolares. Outros passos devem ser pensados agora para que possamos avançar para um conceito desportivo ético e estético significativo que nos motive e nos situe num patamar diferenciado da Cultura Corporal realizada nas escolas, para que toda ela, e inclusive o Esporte, enquanto fenômeno significativo deste contexto possa ser fonte de experiência prazerosa, significativa, plural e educativa de todos os sentidos.

Referências bibliográficas

  • KEHL, M. R. O tempo e cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Ed. Boitempo, 2009.

  • LOVISOLO, H. Estética, Esporte e Educação Física. Rio de Janeiro: Ed. Sprint, 1997.

  • SÉRGIO, M. Educação Física ou Ciência da Motricidade Humana? São Paulo: Ed. Papirus, 1991.

  • UNITED NATIONS. Report from the United Nations Inter-Agency Task Force on Sport for Development and Peace. United Nations, 2003.

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