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Da fábrica à várzea: clubes de futebol 

operário em Porto Alegre (1931-1937)

De la fábrica al potrero: clubes de fútbol de obreros en Porto Alegre (1931-1937)

 

Historiador. Discente de Mestrado do Programa de Pós-graduação

em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul- UFRGS

(Brasil)

Miguel Enrique Stédile

miguel.stedile@gmail.com

 

 

 

 

Resumo

          Futebol e operários são produtos e símbolos da modernidade, das sociedades urbanas e industriais, cujas trajetórias se entrelaçam e confundem. Não à toa, a Revolução Industrial e o futebol tem seu berço na Inglaterra. O objetivo do presente trabalho é analisar como o futebol pode tornar-se campo de disputa entre operários e industriais, fora das fábricas, como espaço para formação de laços de solidariedade e identidade ou de subordinação e disciplinarização, partindo do estudo dos clubes de futebol operário em Porto Alegre, entre 1931 e 1937.

          Unitermos: Futebol. Operários. Modernidade.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 151, Diciembre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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    Os clubes de futebol operários em Porto Alegre, entre os anos 1931 e 1937, são o objeto deste trabalho. Procura-se aqui identificar relações de dominação e resistência manifestas, através de uma forma específica de organização e de um espaço determinado de sociabilidade, durante o tempo livre destes trabalhadores.1

    Futebol e operários são produtos e símbolos da modernidade, das sociedades urbanas e industriais, cujas trajetórias se entrelaçam e confundem. A prática do esporte, inicialmente restrita aos colégios e associações de elite inglesa, populariza-se na mesma velocidade com que crescem bairros e cidades industriais. Assim, na década de 1880, como atestou Hobsbawm (2000, p.268), o futebol na Inglaterra já era um “esporte proletário de massa — quase uma religião leiga”, incorporando-se como parte de uma cultura proletária, confundindo-se com a identidade local, ocupando o tempo livre do operariado, tantos nos campos quanto nas discussões de mesa de bar. O operário se identificava com o seu time contra o resto do mundo, traçando um mapa de nação proletária, onde o mapa da Federação de Futebol era praticamente idêntico ao mapa da Inglaterra industrial (HOBSBAWM,2000, p.291).2

    Esta apropriação pelos operários se verifica também na América do Sul. Acompanhando a expansão do capital inglês, no final do século XIX e início do XX, o futebol aportou neste continente em torno dos portos, ferrovias e fábricas instaladas pelos britânicos. Inicialmente restrito aos colégios da comunidade britânica, de ex-alunos oriundos de instituições européias ou ainda de associações de elites específicas; é apropriado por outros setores mais populares. Neste processo, novamente, identifica-se o papel dos operários na difusão e organização do futebol.3

    Paradoxalmente, o futebol reproduzia uma nova organização social do trabalho, através da disciplina – pela fixação das regras, do controle do tempo e da hierarquia - da especialização das funções e o trabalho coletivo, em contraposição à forma artesanal do trabalho; da quantificação dos resultados e da competitividade. Mas, se seria mais factível que os trabalhadores não procurassem, naturalmente, em seu tempo livre, uma reprodução tão próxima da vida na fábrica, como compreender esta imensa adesão?

    Na sociedade capitalista, o tempo de não-trabalho tem por função restaurar a força de trabalho daquele que a vende para garantir a sua sobrevivência. Para Adorno (2002, pp.103-107), se por um lado, este momento deve ser dedicado em não lembrar em nada o trabalho, por outro, são introduzidas formas de compor­tamento próprias do trabalho. De maneira que o tempo livre nada mais é do que uma prolongação da não-liberdade, da vida social organizada segundo a lógica capitalista, um apêndeice do trabalho ao qual estaria acorrentado.

    De forma mais enfática, Vinnai (1978, p.22) também não encontra perspectivas à emancipação humana através do tempo livre dentro da sociedade capitalista. Para este autor, o futebol é mecanicamente reprodução do mundo laboral, logo simples reflexo da infraestrutura na superestrutura. Consiste desta forma em outro aparato ideológico, que serve “para ejercitar y cimentar el principio imperante de realidad, y que de esa manera mantiene uncidas a las víctimas del aparato industrial alienado”. A liberdade do tempo livre só é possível no futuro.

    Nesta interpretação da prática deste esporte como disciplinadora do corpo e do sujeito, os clubes de futebol operários seriam compreendidos como ferramentas para a reprodução, fora das fábricas, dos mecanismos de dominação que se manifestam no interior destas. Isso significa aceitar a dimensão da dominação sobre o não-trabalho (e de certa forma, sobre todas as dimensões da vida) e não questionar ou considerar a possibilidade de margens de resistência neste espaço de tempo cotidiano (e, novamente, sobre as outras dimensões humanas).

    Entretanto, o historiador E.P. Thompson já demonstrara que a ação dos sujeitos não pode ser simplesmente determinada pelas relações de produção vivenciadas. Nem ao contrário, sua consciência não pode ser simplesmente definida pelo local que ocupa na esfera produtiva. É a experiência vivida nas relações de produção, expressa em termos culturais e encarnada em tradições, valores, idéias – sua consciência de classe - que pode resultar em uma ação “relativamente autônoma”. Assim, não é equivocado supor que esta consciência possa manifestar-se também na esfera do não-trabalho e do lazer. Este último, inclusive, compreendido como espaço de práticas culturais.

    O próprio Thompson já demonstrara situações de resistência à imposição moral e disciplinadora do lazer dos trabalhadores na formação da classe operária britânica entre os últimos anos do século XVIII e os primeiros anos do século XIX. A implantação de uma rígida disciplina necessária para o sistema fabril, foi acompanhada por uma série de normas sociais e medidas de controle moral, onde costumes, esportes e feriados populares eram freqüentemente atacados para impor o “uso econômico do tempo” na Inglaterra.

    Thompson (1987, vol.1, p.61-62) sugere que o historiador olhe para estas classes populares com valores brechtinianos: o fatalismo, a ironia em face das homilias do Establishment, a tenacidade da autopreservação. É através da materialização destas práticas, como nas canções de baladas e feiras, que os “sem linguagem articulada” conservavam certos valores que alcançaram o século XIX - espontaneidade, capacidade para a diversão e lealdade mútua – apesar das pressões de magistrados, usineiros e metodistas. Assim, para Thompson (1987, Vol.2, pp.295-297), seria ilusório supor que a Revolução Industrial submergiu um “mundo rural” para substituí-lo, naturalmente e sem conflitos, por um novo mundo urbano. Ao contrário, esportes brutais, brigas de animais, representações teatrais, jogos e trapaças, entre outras diversões permaneceram vivas e concentradas nas feiras, assim como tradições, superstições e celebrações próprias das classes populares.

    Considerando então a possibilidade de autonomia relativa do sujeito, frente às condições que determinam sua existência, e o espaço de não-trabalho como campo também de resistência, como pensar o papel dos clubes operários neste contexto?

    Segundo Damo (2005, pp.71-72), os clubes de futebol são, ao mesmo tempo, entidades político administrativas e portadores de uma dimensão simbólica. O clube é um mediador entre dada equipe de 11 atletas e um torcedor, um mediador entre um significante (time, camiseta, bandeiras, cores, etc) e um significado (amor/ódio, fidelidade, pertencimento, etc). Ainda, segundo Damo (2005, p.90), o pertencimento clubístico implica na identificação de um indivíduo a dada coletividade. E, para Giulianotti (2002, p.55), classe, nação e localidade são as três formas fundamentais de relação de identidade entre torcedor e clube. Ou seja, em torno delas e dos valores que emanam, se constituem as relações identitárias entre o torcedor e o clube. Ora, se esta coletividade for uma classe subalterna e o clube atue como mediador entre equipe e classe, é possível, então, pensá-los também como espaços de experiência - recuperando novamente este conceito em Thompson. Por fim, se estes clubes se auto-definiam como “times operários”, reafirmavam portanto uma identidade. E esta só pode ser atribuída em antagonismo à outra. Assim, seria é possível indagar estes clubes também como espaços onde eram compartilhados os valores culturais da classe operária. Interessa ainda compreender se num dado momento de maior controle estatal sobre os sindicatos e de repressão às manifestações políticas, se estas demandas reprimidas poderiam ser canalizadas para estes clubes, como forma alternativa de organização.

O paradigma Bangu

    Apesar da participação operária na própria difusão e consolidação do futebol, pouco ainda tem se produzido a cerca deste tema. Em parte também porque os clubes de menor duração deixaram poucos vestígios para a memória oficial do esporte. Além disto, a trajetória do mais conhecido destes clubes de origem operária, o The Bangu Athletic Club, no Rio de Janeiro, tornou-se uma chave explicativa “clássica” na interpretação destes clubes. Em partes, coube ao jornalista Mário Filho (2003) a construção deste paradigma de interpretação em sua obra O Negro no futebol brasileiro.

    O time teria sido precursor da democratização do acesso ao futebol. Fundado em 1904, por funcionários da Companhia Progresso Industrial do Brasil no subúrbio carioca homônimo, ao contrário de outras equipes, o time seria desde sua origem aberto à participação de outros trabalhadores, em virtude do isolamento geográfico do restante da comunidade britânica no Rio. Teria sido também o primeiro time operário. Em sua primeira partida já contaria com a presença de dois brasileiros, um tecelão da fábrica e um empregado do comércio local recrutado para completar a equipe. Para Mário Filho, o Bangu seria democrático não apenas dentro de campo, mas também fora dele, na medida em que abria as portas do seu estádio para todos (2003, pp. 42-43).

    Os jogadores-operários passariam a constituir uma elite dentro da fábrica, em comparação com seus pares. Além de sair uma hora antes dos demais empregados para treinar no campo ao lado da fábrica, estes operários recebiam outros privilégios, como a alocação na “sala do pano” com trabalhos mais leves.

    Logo, a empresa perceberia nesta relação um instrumento para ganhar a lealdade de seus trabalhadores, e que era expressa de forma paternalista, como no abono das faltas dos operários no dia seguinte a conquista do título carioca de 1933. Por isso, também, o interesse da empresa em subsidiar equipamentos e doar o campo para o time.

    Estudando as atas do Bangu, Pereira (2000), pode comprovar que a influência da fábrica sobre o clube eram ainda mais intensas, desde o empréstimo da sede ao fornecimento dos uniformes, contando ainda com a nomeação do diretor da fábrica como presidente honorário do clube. A Companhia Progresso Industrial tratava o time como um departamento da própria fábrica. Mais do que o isolamento geográfico tratava-se, portanto, de uma estratégia da empresa que funcionaria como modelo para outras indústrias.

    Uma análise mais aprofundada sobre os clubes operários foi produzida por Fátima Antunes (1992) sobre estas associações esportivas em São Paulo. Seu trabalho possui um mérito inicial de localizar a existência de clubes anteriores ao Bangu, por exemplo, como o Votorantim Athletic Club ou Rigoli e Cia. Ltda.4 Uma segunda contribuição importante trata de pesquisar o comportamento de militantes e entidades anarquistas e comunistas em relação aos clubes operários. Inicialmente tratados como esporte burguês e “poderoso ópio”, estes militantes tentaram frustradamente deslocar o interesse dos trabalhadores do futebol. Num segundo momento, no final da década de 20 e início dos anos 30, os comunistas estimulam a criação de clubes operários, que não estivessem sob controle ou influência da fábrica. Almejavam inclusive a criação de uma federação e campeonatos próprios, através da “proletarização do esporte”.

    Em relação as indústrias, a autora também demonstra que a omissão da empresa em subsidiar ou em apoiar de forma mais intensa os clubes de seus empregados pode inclusive inviabilizá-los. Nos casos em que este apoio existiu, como nos times das Indústrias Reunidas Matarazzo, eles se inserem numa estratégia de atenuar conflitos internos e também de propagandear a boa imagem das fábricas. Quando estes investimentos de empresas ocorrem, logo, exigem um retorno sobre os recursos, como relatórios de atividades ou o desempenho nos campeonatos. Isto exige dos clubes que constituam uma forma organizativa mais complexa, com diretores – alguns recrutados na direção da empresa ou em cargos de chefia – e conselhos fiscais e deliberativos. Estes, por sua vez, vão estabelecer normas e estatutos, onde manifestam-se interesses da fábrica na conduta moral e disciplinar de seus funcionários.

    Portanto, o trabalho de Antunes confirma a reprodução de características semelhantes ao Bangu, em especial no peso que a fábrica exerce sobre o clube. Mas também demonstra que existem possibilidades de resistência a esta dominação pelos próprios operários, como na oposição dos trabalhadores da Light & Power em unificarem seus grêmios em uma única entidade conforme estímulo da empresa; ou na rejeição dos operários da Votorantim aos operários-jogadores profissionais e, ainda, na reação dos empregados da Matarazzo em relação aos regulamentos e ao time dos funcionários de escritórios, mais próximos à diretoria, com constantes e violentos atritos com os times dos grêmios laborais. Este caso demonstra as margens de resistência e protagonismo e ação dos trabalhadores em relação ao desejo de controle total almejado pelas fábricas.

O futebol operário em Porto Alegre

    A base esportiva de origem germânica já instalada desde o final do século XIX5 e a influência platina, através da região sudoeste, na fronteira com os países do Rio Prata, permitiu que o Rio Grande do Sul fosse um dos primeiros estados a adotar e organizar a prática do futebol. A Taça Prefeitura de Porto Alegre, em 1909, pode ser considerada um embrião do atual campeonato gaúcho, organizado dez anos depois e também pioneiro neste tipo de competição (Mascarenhas, 2002).

    Nas primeiras décadas do século XX, a capital Porto Alegre vive um salto industrial vigoroso, alcançando o terceiro posto entre as cidades industriais do país, e crescendo em ritmo semelhante ao de São Paulo. Assim, simultâneo a adoção do esporte pela burguesia local, movida pela aspiração à modernidade que o esporte representava, também multiplicaram-se os campos improvisados em torno das fábricas, em especial nos bairros industriais de São João e Navegantes, o chamado Quarto Distrito (Mascarenhas, 2002, p.226).

    Prova desta expansão está no número de clubes fundados no período. Eram apenas 4 na primeira década do século passado e já totalizavam na década de 1900, haviam 4 clubes de futebol. Entre 1903 e 1937, são criados 97 clubes. Só na década de 1930, são criados pelo menos 70 destes clubes. Até o momento, nossa pesquisa tem indicado que apenas os clubes que pertenceram às ligas e federações mais organizadas e elitistas deixaram registros acessíveis ao pesquisador. Tendo conhecimento que as ligas estabeleciam critérios rigorosos, inclusive como forma de segregação social, esta característica exclui clubes efêmeros, de piores condições financeiras ou menos profissionalizados, não apenas no sentido de remuneração dos jogadores. No caso específico dos clubes operários, aqueles que disputaram as primeiras divisões dos campeonatos municipal ou estadual no período encontram-se, digamos, na superfície, enquanto a memória de tantos outros clubes provavelmente jamais possam emergir.

    Com esta ressalva, foi possível identificar a existência de pelo menos oito clubes de origem e vinculação operária atuando no período: Grêmio Esportivo Força e Luz; Grêmio Esportivo Gerdau; Grêmio Esportivo Renner; Grêmio Esportivo Fiateci (Fábrica de Fiação de Tecidos); Grêmio Esportivo Estivadores; Grêmio Esportivo Zivi, Müller, Hercules; Nacional Atlético Clube, ligado ao Departamento Desportivo da Viação Férrea , Grêmio Esportivo Circulista (vinculado aos Círculos Operários) e o Garratt Futebol Clube. Com exceção dos dois primeiros, todos os demais fundados entre 1931 e 1937.

    Destes clubes, apenas Força e Luz, Renner e Nacional disputaram os campeonatos organizados pela Federação Riograndense de Desportos, responsável pelo campeonato estadual, e pela Associação Metropolitana Gaúcha de Esportes Atléticos (AMGEA). Não se trata de nenhuma surpresa. Em todo país, as primeiras ligas de futebol caracterizam-se por seu caráter elitista e excludente, estabelecendo regras que impediam o acesso de clubes mais populares e o avanço do profissionalismo. Tanto que, no caso de Porto Alegre, apesar de um universo de centenas clubes, apenas sete disputavam o campeonato citadino da AMGEA.

    Esta segregação obrigava a formação de outras ligas e associações para os clubes operários e varzeanos, especialmente por áreas de moradia. Desta forma, o Gerdau pertencia à Coligação de foot-ball dos Navegantes e o Zivi, Müller, Hercules da Coligação de foot-ball do bairro Floresta. Outra alternativa eram os torneios por ramo industrial, como o campeonato fabril, e as disputas entre seções de uma mesma empresa.

    A disputa entre amadorismo e profissionalização também perpassa pelos clubes operários do período. Em 1937, a AMGEA cinde-se em duas associações distintas : a “especializada”, defensora do futebol profissional, e a “cebedense”, vinculada à Confederação Brasileira de Desportos (CBD), defensora do amadorismo. Enquanto o Força e Luz acompanha Grêmio e Internacional na primeira, o Renner permanece na segunda, adotando a profissionalização apenas em 1945. Os demais clubes identificados mantiveram seu caráter amador.

    Por suas denominações – Grêmio Esportivo e Atlético Clube - é possível supor que estes clubes, com exceção do Garrat, dedicavam-se a outras modalidades esportivas. De fato, o Zivi, Muller, Hércules oferecia ainda a prática de ping pong, atletismo e pugilismo; o Gerdau também possuía um departamento de atletismo; o voleibol era praticado no Fiateci e o Renner oferecia ainda ping pong, bolão e bocha, além do vôlei. Esta variedade de práticas esportivas certamente recebia estímulos de suas empresas, como parte da estratégia de desenvolvimento “físico e moral” de seus operários, apoiada nas teses higienistas próprias da modernidade.

    A presença da fábrica neste espaço de tempo livre pode ser aferida também pelos nomes dos clubes – quase todos referenciando os empregadores – e no fornecimento de equipamentos ou na cedência de sedes e campos para os times de futebol. No caso do Luz e Força, Renner e Nacional que construíram ou adquiriram estádios próprios e disputavam a restrita liga municipal, este patrimônio pode ser indicativo de que não eram poucos os volumes investidos por suas respectivas companhias.

    Os patrões poderiam ocupar ainda cargos honorários, que também eram utilizados para prestigiar autoridades. Por exemplo, o presidente honorário do Fiateci era Aníbal Di Primo Beck, secretário estadual da Agricultura, Indústria e Comércio. Em 1934, o campo do Força e Luz reuniu oito clubes, entre eles o Renner e um time da metalúrgica Wallig, para disputar a Taça General Flores da Cunha, interventor do estado. O general que também doara a taça propriamente dita, além de batizá-la, era homenageado também com “vivas e urras” a cada saída de bola.6

    Porém, o futebol operário era espaço de disputa também para anarquistas e comunistas. Os anarquistas condenavam a prática de jogos e de bailes, além do consumo alcoólico, pregando o uso do tempo livre para o estudo e para atividades ao ar livre, como piqueniques. Em 1911, entre estas atividades ao ar livre, estava um time de futebol organizado pela Federação Operária do Rio Grande do Sul, hegemonizada pelos anarquistas naquele momento (ARAVANIS,2005, p.181).

    Por sua, a possibilidade de utilizar o futebol como angariador de militantes pelos comunistas é ilustrada no seguinte depoimento: “Eu era mais de futebol, reunião de futebol (...) Mas tinha um cara que era meio pirado, ele se chamava Agenor, (...) [ele] tinha o dom de convencer a gente [a entrar no sindicato]” (Entrevista de Armando Pinheiro in: FORTES, p.71) e ainda “[O Jacob Koutzii era da] Organização Camponesa Operária e ele estava muito ligado (...) ao setor de futebol. Havia um grande movimento de futebol de empresa e ele atuava quase todo sábado e domingo” (Entrevista de Eloy Martins in:FORTES, p.71). Os clubes forneceriam, mais tarde, quadros também para o trabalhismo, como Antonio Achutti, presidente do Zivi, Muller, Hércules e fundador do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) em Porto Alegre.

    Entre todos estes clubes de Porto Alegre foi o Renner, porém, quem se tornou símbolo do futebol operário. Certamente em virtude da conquista invicta do campeonato gaúcho em 1954, único clube operário a alcançar tal façanha. Mas, contribuiu também para esta simbologia, sua vinculação com uma das maiores indústrias da capital gaúcha no período. Na década de 50, por exemplo, a Renner empregava em torno de 2.500 operários. Além de sua estreita vinculação com o Quarto Distrito, onde se localizavam tanto a empresa quanto a maior parte de seus empregados.

    Criado em julho de 1931 por um grupo de funcionários, o Renner recebeu permanentes estímulos da empresa. A fábrica de tecidos Renner tornou-se pioneira na implementação de um modelo taylorista de produção, acompanhado do desenvolvimento de um sistema que oferecia redução de jornada, creche para os funcionários, entre outras políticas assistenciais, que Fortes (2001) definiu como paternalistas.7 O subsídio ao time de futebol formado pelos operários da fábrica é parte deste sistema, que inclui o fornecimento de equipamentos e a cessão do campo.

    A adoção destas medidas paternalistas como forma de controle, disciplinarização e lealdade parecem ter surtido efeito. Na greve de têxteis e metalúrgicos em janeiro de 1935, os trabalhadores da Renner não apenas não aderiram à paralisação, como propuseram a criação de uma nova entidade sindical em oposição à Federação Operária do Rio Grande do Sul, dirigente da mobilização e hegemonicamente comunista.

    Por outro lado, a torcida do G.E. Renner parecia construir simbologias de identidade muito maiores com seus pares de classe e com o bairro navegantes do que com a empresa. Os torcedores identificavam o clube como “Grêmio Esportivo Renner, o time dos trabalhadores” (HORN e MAZO,2009) e era tratado pela imprensa como “o time dos industriários”. Na década de 40, o Renner já congregava a terceira maior torcida da capital e alcançava mais de mil de 1.000 associados, ainda que este fosse um número “relativamente pequeno em relação ao número de colaboradores das indústrias Renner” (BOLE­TIM RENNER, 1946, p. 30).

    Para a fábrica, que via no clube um veículo de propaganda, a torcida também era alvo das pretensões de controle da fábrica. Em 1946, o clube criou o Departamento de Torcida para que associados ou não comparecessem “a todos os jogos em que tomarem parte as nossas equipes de futebol, incentivando, com uma torcida organizada e disciplinada, os nossos esportistas à vitória” (BOLETIM RENNER, 1946, p.14).

    Ainda que houvesse conquistado os campeonatos estadual e municipal invictos em 1954, a dependência do clube à fábrica levou ao seu próprio fechamento. Criado por iniciativa dos operários tornou-se cada vez mais vinculado à empresa que, economicamente, não recebia tanto retorno do investimento, decidindo encerrar as atividades do clube em 1958.

Á guisa de conclusão

    Os clubes de futebol operário tem sido interpretados como espaço de reprodução fabril e de disciplinarização no tempo livre. Entretanto, a partir do referencial teórico de E.P. Thompson e de pesquisas como de Antunes (1992) é possível repensar estes clubes como espaço de manifestação de resistência ao controle fabril. Como então aferir se os clubes de futebol operário constituem-se em ferramentas de dominação, resistência ou campo de disputa entre ambos?

    A hipótese em construção nesta pesquisa pressupõe que quanto maior, ainda que sutil, seja presença da fábrica no tempo livre, maior seja sua característica de subordinação dos operários. E, inversamente, quanto menor sua presença, maior o espaço de autonomia. Para isso, propõe-se adotar alguns parâmetros para apuração: o nome do clube, a forma de aquisição dos equipamentos e do local das partidas, a participação efetiva dos sócios, a presença de diretores da empresa em funções diretivas do clube, os tipos de campeonatos disputados e as ligas a que pertenciam, os motivos que levaram à extinção e a participação dos operários (jogadores) nas greves e mobilizações da categoria no período.

    Entre os clubes identificados em Porto Alegre, destaca-se o Grêmio Esportivo Renner, cujo caráter “industriário” amplia sua torcida para além da fábrica de origem, atraindo outros operários, ao mesmo tempo em que sua existência é parte de uma estratégia de controle e subordinação pelos empregadores.

    A partir deste exemplo, procura-se ilustrar que esta pesquisa não compreende o tempo livre como espaço determinando pela dominação ou resistência. Pelo contrário, supõe que justamente este momento do não-trabalho é marcado pela tensão, disputa ou ainda pela existência conjunta de ambos os pólos. E os clubes de futebol operários como espaços organizativos, sem natureza econômica ou reivindicatória – mas, ainda assim uma forma organizativa – e comportam-se dentro da disputa pelo tempo livre. Como espaço de reprodução da fábrica ou de emancipação dela.

Notas

  1. Esta comunicação corresponde aos apontamentos iniciais do projeto de dissertação de mestrado em andamento sob orientação do Prof. Dr. César Augusto Guazzelli, portanto ainda inconcluso.

  2. Entre os clubes operários surgidos neste período na Inglaterra estão o Arsenal Football Club, o Conventry, o West Ham, Milwall e o Manchester United.

  3. Na Argentina, ferroviários fundaram o Rosário Central e o Atlético Talleres Central Córdoba. O Argentino Juniors fora fundado em 1904 como Mártires de Chicago, em homenagem ao primeiro de maio, dia do trabalhador, mesma data escolhida para a fundação do Chacarita Juniors, em 1906, na sede de uma biblioteca socialista. No Uruguai, o exemplo mais significativo é o Peñarol, além do primeiro River Plate Football Club (1914-1925) fundado por trabalhadores do porto e o Club Atlético Progreso, fundado por mineiro, com cores vermelhas por influência anarquista.

  4. Com a compra da Rigoli pelos tecidos Crespi, o clube alteraria o nome para Crespi F.C. e, mais tarde, em C.A. Juventus, tradicional clube bairro paulistano da Mooca, ainda em atividade.

  5. Em 1867 é criada a primeira sociedade de ginástica no Rio Grande do Sul, a Deutscher Turnverein. Além da ginástica, plenamente difundida no início do século seguinte, o remo e o ciclismo também possuem sociedades próprias e a prática difundida em Porto Alegre. Esta base é fundamental para a fundação dos futuros clubes de futebol, como o Fuss Ball, de 1903, criado por um grupo de ciclistas da Rodforvier Verein Blitz.

  6. Fundo Documentação dos Governantes, Série Documentos dos Governantes, Sub-Série Correspondência Recebida, Interventor Federal, 1934, Maço 72, Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul.

  7. O Paternalismo, é utilizado por Fortes (2001), no sentido de que para além do atendimento a necessidades materiais e simbólicas dos trabalhadores, essas políticas alimentavam a imagem do capitão de indústria como pai da família que pretendia constituir no âmbito da empresa.

Bibliografia

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