O turfe em Porto Alegre/Rio Grande do Sul: aspectos históricos de uma prática cultural esportiva El turf en Porto Alegre/Río Grande do Sul: aspectos históricos de una práctica cultural deportiva |
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*Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências do Movimento Humano na Escola de Educação Física (ESEF) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Licenciatura plena em Educação Física pela ESEF/UFRGS Membro do Núcleo de Estudos em História e Memória do Esporte e da Educação Física (NEHME) da ESEF/UFRGS, atuando principalmente no tema das práticas esportivas equestres **Mestranda do Programa de Pós-graduação em Cências do Movimento Humano com bolsa CAPES Especialista em Cinesiologia pela ESEF/ UFRGS Graduada em Educação Física com licenciatura plena pela Universidade da Região da Campanha (2002) Membro integrante do NEHME, ESEF/UFRGS ***Licenciatura em Educação Física pela Universidade Federal de Santa Maria Especialização em Pesquisa Curricular em Educação Física Mestrado em Ciência do Movimento Humano pela Universidade Federal de Santa Maria Doutorado em Ciências do Desporto pela Universidade do Porto Professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul |
Ester Liberato Pereira* Carolina Fernandes da Silva** Janice Zarpellon Mazo*** (Brasil) |
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Resumo Este estudo objetiva investigar como se organizou a prática do turfe em Porto Alegre, desde a fundação dos primeiros prados, no final do século XIX, até o fechamento da maioria dos prados, na primeira década do século XX. Para tal, foi realizada a coleta e análise documental de fontes impressas. Evidenciou-se que a elite rural luso-brasileira organizara espaços para o turfe, mas sem o caráter de associações esportivas teuto-brasileiras. Com a criação da Associação Protetora do Turfe, há um movimento no sentido de promover o turfe sob o ponto de vista esportivo, e não apenas de lucrar com essa prática esportiva. Provavelmente, desde então, a mobilização em torno do turfe porto-alegrense passou, pela primeira vez, a configurar-se como uma expressão do associativismo esportivo, possivelmente constituindo a principal contribuição luso-brasileira para essa prática em Porto Alegre. Unitermos: Turfe. História. Esporte.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 150, Noviembre de 2010. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
O presente estudo inclina-se sobre relações dos luso-brasileiros com o fomento do associativismo esportivo em Porto Alegre, no período do fim do século XIX ao início do século XX, voltando o olhar mais precisamente para a organização de associações turfísticas na cidade. O turfe, como prática esportiva, contribuiu com a formação sociocultural de Porto Alegre, assim como do estado do Rio Grande do Sul (PEREIRA, 2008). Partindo-se deste entendimento, busca-se reconstruir aspectos históricos marcantes desta prática cultural esportiva em Porto Alegre.
O turfe pode ser definido, segundo Roessler e Votre (2002), como uma prática que envolve corridas de velocidade de cavalos. Para, além disso, Melo (2007b) considera o turfe não simplesmente como disputas de velocidade a cavalo, mas sim como corridas de cavalos organizadas por associações esportivas. Nessa mesma linha, Melo (2007b) ainda acrescenta que tais corridas, nas quais os cavalos são conduzidos por um jóquei, sempre são realizadas em pistas ovais, quadrangulares, circulares ou elípticas, de grama ou areia (MELO; MAIA, 2006).
Enquanto prática esportiva, o turfe mobiliza mais do que apenas o conjunto cavalo e cavaleiro, necessitando de um espaço específico para a sua prática. Os hipódromos, segundo Melo (2007b), são os locais adequados para a prática do turfe, constituídos de uma pista (de diferentes dimensões e formatos), arquibancadas, uma estrutura para a preparação dos cavalos para as corridas (local de encilhamento), casas de apostas, além da parte de convívio e parte social (bares e/ou restaurantes). Ainda é destacado por Melo (2007b) o fato de que, no Brasil, os hipódromos foram as primeiras instalações especificamente dedicadas à prática esportiva; além disso, adota o termo prado de maneira intercambiável e equivalente a hipódromo. Estes locais foram, paulatinamente, se disseminando por Porto Alegre e contribuíram para o alargamento de suas fronteiras através da criação de novos bairros. Em meados do século XIX, a prática do turfe já ocupava um espaço de destaque no cenário esportivo da cidade, com a existência simultânea de quatro hipódromos (MAZO, 2003).
Faz-se importante esclarecer que, ao consultarem-se dicionários da língua portuguesa, também se pôde encontrar o emprego como sinônimos dos conceitos de hipódromo e prado. De acordo com Bissón (2008), o termo prado teve sua origem em razão das amplas áreas verdes onde eram construídos os hipódromos no estado do Rio Grande do Sul. Em função disso, os freqüentadores começaram a denominar esses locais de prados, já que todos eles se situavam em meio a campinas planas, cobertas de pastagens. Não obstante, com o intuito de unificar a linguagem ao longo da pesquisa, será adotado prado, já que, nas fontes consultadas, esse é o termo mais recorrente.
Tendo em vista o significado do cavalo no estado do Rio Grande do Sul – como recurso de guerra, de lazer, e como meio de transporte – não se estranha que, desde o século XVIII, as corridas de cavalos atraíssem grande parte da população gaúcha (BISSÓN, 2008). Dentre os criadores de cavalos e incentivadores das corridas, encontrava-se uma maioria de luso-brasileiros. Desde a organização dos primeiros prados em Porto Alegre até a fundação da Associação Protetora do Turfe, no início do século XX, evidenciou-se a presença marcante de nomes e sobrenomes de luso-brasileiros nos quadros dirigentes das associações (MAZO; FROSI, 2009).
Segundo Mazo e Frosi (2009), os luso-brasileiros, inicialmente, dedicavam-se à promoção de atividades culturais, como a dança e o folclore. Somente a partir da segunda metade do século XIX, este grupo passou a incentivar a prática do turfe na cidade. Esse período coincide com a época em que ocorreu a origem dos primeiros prados em Porto Alegre, por volta do último quarto do século XIX. A partir de então, se evidencia que a adesão a esta prática possibilitou a propagação do esporte na cidade.
Neste contexto, esta pesquisa tem por objetivo investigar como se organizou a prática do turfe em Porto Alegre, desde a fundação dos primeiros prados, no final do século XIX, até o fechamento da maioria dos prados, na primeira década do século XX. O ano de 1877, quando foi criado o primeiro prado na cidade, é o marco temporal inicial do estudo, o qual se estende até o ano de 1910, quando restou apenas um prado na cidade, em razão de uma crise na prática turfística em Porto Alegre.
A crise desencadeada no turfe de Porto Alegre foi gerada por uma série de fatores, tais como a concorrência excessiva que existia entre os prados, o surgimento de novas práticas, como o futebol e o cinema, a mudança nas características valorizadas pela cultura burguesa em formação e a crise econômica derivada da Revolução Federalista no Rio Grande do Sul ocorrida no período de 1893/1895 (PEREIRA, 2008). O palco dessa crise foi Porto Alegre – capital do estado do Rio Grande do Sul e, por isso, o recorte espacial delimita-se a esta cidade. Além disso, a capital foi o centro das atividades turfísticas do Estado e a região onde se concentraram os luso-brasileiros, que impulsionaram a prática do turfe.
Para este estudo histórico, foi realizada a coleta e análise documental (BARDIN, 2000) das informações localizadas em diferentes fontes impressas: livros que retratassem a história de Porto Alegre, a obra comemorativa ao Jockey Club do Rio Grande do Sul, organizada por Rozano e Fonseca (2005), o Almanaque Esportivo do Rio Grande do Sul, organizado por Amaro Júnior (1947) e o Catálogo do Esporte e da Educação Física na Revista do Globo: 1929-1967 (MAZO, 2004). Também se constituíram de suma importância para esta pesquisa os estudos de Melo (2001; 2007a) e de Priore e Melo (2009), apesar de que estes focalizam a prática do turfe nos contextos dos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
A presente pesquisa procura contribuir para a construção de um mapeamento histórico das práticas corporais e esportivas no Estado, uma vez que está inserida em um dos eixos do projeto mais amplo denominado “Esporte e Educação Física no Rio Grande do Sul: estudos históricos” do Núcleo de Estudos em História e Memória do Esporte e da Educação Física (NEHME), da Escola da Educação Física (ESEF) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Espera-se que a presente pesquisa possa contribuir para reconstruir a memória do turfe no cotidiano porto-alegrense. Para isso, traremos, ao longo do texto, um panorama de Porto Alegre no período em que foram fundados os prados na cidade.
Porto Alegre e suas práticas esportivas
A cidade de Porto Alegre, durante o período da transição do século XIX para o XX, apresentava uma realidade muito peculiar devido ao processo de explosão demográfica, cultural e econômica. Outro fator importante que caracteriza o cenário de Porto Alegre nesse período de transição de século era a significativa entrada de imigrantes, os quais alteraram o caráter étnico-cultural da cidade (JÁ EDITORES, 1997).
Nesse cenário, destaca-se o incipiente interesse pelos esportes e os lazeres ao ar livre, concomitantemente à mudança dos comportamentos coletivos. Até aquele momento, no que se refere às atividades de lazer e diversão a céu aberto, praticamente só havia o antigo costume das carreiras de cavalos em cancha reta. Segundo Rozano e Fonseca (2005), as carreiras de cancha reta eram disputas a cavalo, em pistas retas, em canchas capinadas, que tinham as apostas como um importante fator de atração para esse espetáculo. Além destas canchas retas, não havia em Porto Alegre, segundo Amaro Júnior (1947), um local onde fosse possível efetuar provas de tal natureza. As carreiras representavam para o gaúcho - indivíduo natural do estado do Rio Grande do Sul - a expectativa diária e a preocupação constante (AMÁDIO, 1946).
Durante todo o século XIX, havia a predominância das atividades lúdicas em recinto fechado, como, por exemplo, o teatro, a música, o baile, os bilhares e o antigo costume ibérico do carteado. Com exceção dos imigrantes alemães e seus descendentes - teuto-brasileiros -, os quais eram afeiçoados à prática da ginástica e do tiro-ao-alvo, a população permanecia a maior parte do tempo no ambiente privado. Posteriormente, por influência teuto-brasileira, o remo surge como uma nova possibilidade de lazer ao ar livre, com as regatas realizadas entre os clubes; porém, as canchas retas permaneceram como locais reconhecidos por serem espaços de sociabilidade freqüentados, predominantemente, pelos imigrantes luso-brasileiros.
Posteriormente, as práticas esportivas do remo, da ginástica, do tiro, do ciclismo, do futebol e do turfe começaram a mudar o comportamento social do porto-alegrense na transição para o novo século XX (MAZO, 2003). Com o funcionamento dos bondes e as conseqüentes alterações do quadro viário da cidade, desenvolveram-se os arrabaldes ou arraiais - o que atualmente denominam-se bairros -, criando as condições necessárias para o surgimento dos prados, que aprimoravam, com pistas circulares ou elípticas, as antigas carreiras de cavalos em cancha reta. Da mesma forma, Rozano e Fonseca (2005) ainda destacam que a organização dos prados também contribuiu para o melhoramento dos arrabaldes.
Os prados porto-alegrenses
Em meados do século XIX, os gaúchos estavam acostumados a cavalos rústicos e canchas retas. No entanto, conforme Rozano e Fonseca (2005), em 1856, ano em que foi registrada a primeira importação oficial de um puro-sangue-inglês no Rio Grande do Sul, viu-se chegar o primeiro animal mais nobre e veloz. Procedentes da Inglaterra, esses animais chegaram a bordo do vapor Avon. Tal iniciativa pertenceu ao criador de cavalos José Ferreira Porto. A partir desses animais, foram dados os primeiros passos para o desenvolvimento e aperfeiçoamento da criação de cavalos no Estado. Iniciava-se uma transformação paulatina, primeiramente, mas que não seria mais interrompida. Esses já eram sinais de que os tempos estavam mudando.
Nesta mesma linha, Bissón (2008) ainda alerta para o fato de que a Inglaterra, de onde procederam os exemplares da raça puro-sangue-inglês, era o parceiro comercial de maior importância do Brasil na época. Durante todo o século XIX, a Inglaterra constituía a maior potência não somente econômica como também militar do mundo. Sendo assim, sua cultura, seus costumes e hábitos exerciam grande influência na elite brasileira, o que inclui o entusiasmo pelas corridas de cavalos. O turfe, no continente europeu, era considerado o esporte dos reis, já que todas as monarquias sempre foram apaixonadas por cavalos (Espanha, Inglaterra, Itália e França) (DUARTE, 2000).
O advento das corridas em pistas circulares ou elípticas, além do fato de que as corridas de cavalos passaram a constituir espetáculos ainda mais emocionantes, levou a um aumento na afluência, passando a exigir locais mais adequados para o público (BISSÓN, 2008). A partir disso, surgiram vários prados. E era necessário investir para fundar um prado com pista e arquibancada. Sendo assim, Rozano e Fonseca (2005) apontam que todos os prados implantados em Porto Alegre no final do século XIX pertenciam a associações anônimas, as quais também tinham como meta lucros mercantis.
Na transição do século XIX para o XX, funcionavam, simultaneamente, em Porto Alegre, quatro prados, os quais contribuíam para o desenvolvimento dos bairros onde se localizavam. O primeiro prado da cidade, de acordo com Rozano e Fonseca (2005), foi o Porto-Alegrense, inaugurado em 1877. Localizava-se na antiga Rua Boa Vista, atual Rua Vicente da Fontoura, no Bairro Partenon. Contou com o apoio de médicos, militares, conselheiros e industrialistas criadores de cavalos. No entanto, após três anos de funcionamento, sem motivos aparentes, o Prado Porto-Alegrense encerrou suas atividades. No mesmo local, em 23/05/1880, foi instalado o Prado Boa Vista, pelo mesmo grupo que já havia contribuído com recursos financeiros para a construção do prado anterior. Esse prado, até o encerramento de suas atividades, no final de 1907, trouxe desenvolvimento para este bairro (MAZO, 2003).
No ano seguinte à instalação do Prado Boa Vista, foi inaugurado o Prado Rio-Grandense no dia 06/02/1881, no Bairro Menino Deus. A edificação do prado coincidiu com o ciclo de prosperidade do bairro, que concentrava chácaras pertencentes à elite luso-brasileira. O Prado Rio-Grandense tinha uma proposta diferenciada do Boa Vista, pois permitiu a incorporação de um costume oriundo das carreiras em cancha reta: os desafios particulares (FRANCO, 1998). Esta particularidade foi um dos motivos que favoreceu a conservação do prado por 18 anos, na atual Avenida Getúlio Vargas, até o ano de 1909. Nesse sentido, Rozano e Fonseca (2005) apontam a existência do prado como auxiliar à expansão e ao crescimento do Bairro Menino Deus.
Nesse movimento de valorização do turfe na cidade, outro prado foi criado, em 1891: o Prado Navegantes. Localizava-se no bairro homônimo, na antiga Rua do Prado (hoje Rua Lauro Müller). Esse prado enfrentou problemas, desde a fundação, com as cheias do rio Guaíba, porque não havia sistema de drenagem. Encerrou suas atividades em 1906, quando sofria uma forte concorrência do movimento de apostas dos outros prados e, concomitantemente, uma decadência que atingia, de modo geral, o turfe em Porto Alegre.
No Bairro Moinhos de Vento, em terreno onde atualmente situa-se o Parque Moinhos de Vento, o Prado Independência abriu as portas em 1894, destinado a tornar-se o único durante muito tempo e a centralizar decisivamente as atividades turfísticas da cidade. A sua abertura é destacada por Rozano e Fonseca (2005) como um dos fatores positivos para a evolução do bairro. Manteve suas atividades por 65 anos, até fechar as portas em novembro de 1959, com a transferência para o Bairro Cristal, onde se encontra atualmente, sendo o único existente em Porto Alegre.
Com quatro prados em funcionamento, o turfe atingiu seu auge em Porto Alegre na última década do século XIX. Contudo, no princípio do século XX, começou o enfraquecimento dessa prática com o encerramento das atividades de três prados. A comunidade luso-brasileira, que estava diretamente ligada a esta prática, reagiu ao que parecia ser o declínio do turfe em Porto Alegre organizando a Associação Protetora do Turfe. A fundação desta entidade foi fundamental para promover a unificação e impulsionar o esporte hípico em Porto Alegre.
As associações de turfe e os luso-brasileiros
Os luso-brasileiros fizeram-se notar em Porto Alegre, inicialmente, nas danças e no folclore. Somente a partir da segunda metade do século XIX, segundo Pereira (2008), é que este grupo passou a incentivar a prática do turfe, evidenciando-se, então, a presença marcante de seus nomes e sobrenomes nesse cenário. Sendo assim, os espaços destinados ao turfe se constituíram em locais de exibição da presença e da identidade da elite luso-brasileira em Porto Alegre. Apesar da existência desses espaços organizados para a prática do turfe, não havia o caráter associativo identificado nas associações esportivas fundadas a partir de meados do século XIX pela iniciativa dos teuto-brasileiros, que incluíam vários esportes.
Contudo, seguindo o compasso de Pereira (2008), não se pode afirmar que não havia associativismo no contexto do turfe porto-alegrense, uma vez que a criação dos prados e sociedades turfísticas, em meados do século XIX, envolvia significativa organização, além de incluir símbolos e comportamentos. Mesmo apresentando um caráter predominantemente mercantil, visando a lucros financeiros com as apostas, caracterizando o turfe eminentemente como um jogo de azar, tais agremiações possivelmente já podem ser consideradas como uma forma primária de associação em função dessa prática (PEREIRA, 2008).
Essa modalidade eqüestre associava-se a uma aristocracia de origem rural, de importantes famílias possuidoras de chácaras, que foram ocupando espaços na cidade (BISSÓN, 2008). Como reflexo dessa elite luso-brasileira patriarcal rural, com a qual o turfe porto-alegrense vinculava-se, observava-se a presença marcante dos homens oriundos dessas famílias nos prados da cidade, relegando o papel feminino no cotidiano turfístico ao mero acompanhamento de seus pais ou maridos, além de atentar à moda e à elegância, embelezando os prados (MAZO; PEREIRA; MADURO, 2009).
No princípio do século XX, o turfe começou a enfraquecer em Porto Alegre, resultando no fechamento de quase todos os prados, como nos informam Rozano e Fonseca (2005). Entre os fatores que contribuíram para o surgimento dessa crise, destaca-se a chegada de inovações esportivas na cidade, gerando novos focos de interesse; dentre elas, o emergente futebol. Franco (1998, p. 91) refere que os prados foram “um fenômeno transitório e surpreendente na cidade, pois com o novo século os espaços do turfe cederiam seu lugar ao futebol”.
A expansão da cidade, que acabou ocupando com loteamentos e construções os espaços antes pertencentes aos prados, também colaborou para o declínio do turfe (MAZO; FROSI, 2009). De acordo com Pereira (2008), a concorrência excessiva que existia entre os prados e as sociedades turfísticas, principalmente no que se refere aos lucros mercantis, a chegada do cinema, a mudança nas características valorizadas pela cultura burguesa em formação e a crise econômica derivada da Revolução Federalista (1893/1895), também desestabilizaram o cenário turfístico porto-alegrense.
Esse enfraquecimento do turfe na cidade ocorreu de forma simultânea à transição para um novo modelo sociocultural. As significativas transformações sócio-econômicas de Porto Alegre, destacadas por Franco (1998) e marcadas pelo aumento populacional, processos de urbanização e modernização citadinos, constituem o contexto propício à introdução de novas práticas esportivas pelas associações teuto-brasileiras.
Porém, segundo Pereira (2008), a elite luso-brasileira apresentou resistência à incorporação das novas práticas esportivas (em especial, o futebol), procurando reanimar o turfe na cidade. Com a finalidade de promover a prática turfística, pela primeira vez, e não simplesmente lucrar com esse esporte, em setembro de 1907, era fundada a Associação Protetora do Turfe, justamente na data comemorativa da Independência do Brasil. Contudo, não se optou por tal simbolismo devido ao nome do prado escolhido para sediar tal agremiação, o Prado Independência, mas sim em função de estar associado à idéia e ao objetivo expressos e registrados na ata histórica, a qual oficializou a fundação: promover a unificação e impulsionar o esporte hípico em Porto Alegre.
Aqueles desinteressados em lucros passariam a prestigiar o turfe, protegendo-o dos tribofeiros – segundo Melo (2007b, p. 153), aqueles que realizavam falcatruas, confusões, polêmicas, brigas de inúmeras naturezas nos eventos de turfe. Nesse sentido, após uma série de iniciativas isoladas, sem sucesso, os admiradores do turfe consolidavam uma nova sociedade, a qual incentivaria o turfe como um esporte, e não mais como um simples jogo de azar.
Concomitantemente à finalidade de recuperar o turfe porto-alegrense, a Protetora do Turfe também se configurou como um espaço de afirmação dos luso-brasileiros (MAZO; FROSI, 2009). Os nomes e sobrenomes luso-brasileiros dos quadros dirigentes apontam nessa direção, desde a fundação até o final da década de 1920. Por exemplo, o primeiro diretor da associação chamava-se Oscar Canteiro, e um dos destacados diretores por sua atuação foi Antonio Pedro Caminha. Mesmo com o esforço dos integrantes da Associação Protetora do Turfe, restou somente um espaço para a prática do turfe em Porto Alegre: o prado que sediava a associação, o Prado Independência.
Nesse período, no final dos anos 1910, com a fundação dessa associação, já se tem a intenção concretizada de promover e respeitar o turfe sob o ponto de vista esportivo, e não simplesmente lucrar com essa prática. Provavelmente, a partir desse momento, a mobilização em torno do turfe porto-alegrense passa, pela primeira vez, a configurar-se como uma expressão do associativismo esportivo (PEREIRA, 2008).
No entanto, ainda no início do século XX, em 1903, foi fundada, pelos luso-brasileiros, a primeira associação nos moldes do associativismo teuto-brasileiro, sendo escolhida a prática esportiva do remo: o Grêmio de Regatas Almirante Tamandaré (SILVA; MAZO, 2009). É provável que esta associação de remo luso-brasileira seja resultado do movimento que foi potencializado pelo turfe, desde meados do século XIX, no sentido da mobilização em torno de uma prática esportiva procurando incentivá-la e apoiá-la, enquanto um esporte. Tanto luso-brasileiros como teuto-brasileiros, pareciam ter como objetivo, em um confronto de identidades, a preservação de seus elementos culturais através do associativismo esportivo.
Sobre tal aspecto, é interessante notar que, entre os fundadores do Prado Navegantes, estava Germano Meisterling e o Coronel Jacob Kroeff Filho, sendo este um dos primeiros criadores de cavalos na cidade de Novo Hamburgo, antigo distrito de São Leopoldo, e incentivador das corridas de cavalos. Na sociedade que administrava o Prado Navegantes, havia turfistas de São Leopoldo, porém não há registro oficial a este respeito, a não ser em comentários de jornais da época, como o Jornal do Comércio, o qual frisou que o prado “divulgava muita animação às corridas e grande número de pessoas vindas de São Leopoldo” (FRANCO, 1998, p. 205). Considerando-se os sobrenomes e o fato de estas cidades configurarem-se como típicas de imigração alemã no Estado, pode-se ter o indício de um confronto de identidades através de uma possível tentativa dos teuto-brasileiros apropriarem-se e fazerem-se presentes em uma prática esportiva associada à identidade luso-brasileira.
Os luso-brasileiros, portanto, fazem-se presentes como protagonistas em toda a trajetória do turfe em Porto Alegre: desde a organização e construção dos primeiros locais destinados à prática até a superação de uma crise no cenário turfístico. Ou seja, a identidade luso-brasileira caracteriza e incentiva o turfe desde sua gênese, seus primeiros passos, até a criação de uma associação com moldes similares ao associativismo esportivo, a qual é responsável, até os dias atuais, sob a denominação de Jockey Club do Rio Grande do Sul, pela resistência ao tempo e às dificuldades enfrentadas por esse esporte.
Considerações finais
Na transição do século XIX para o XX, Porto Alegre se encontrava em um processo de explosão demográfica, cultural e econômica. Também ocorria a significativa entrada de imigrantes, os quais compuseram as identidades étnicas da cidade. Havia o antigo costume gaúcho das carreiras de cancha reta. Com a introdução dos bondes e a alteração do quadro viário da cidade, desenvolveram-se os arrabaldes, criando as condições necessárias para o surgimento dos prados, que aprimoravam, com pistas circulares ou elípticas, as antigas carreiras de cancha reta.
Observou-se o funcionamento simultâneo de quatro prados na década de 1890, os quais contribuíam para o desenvolvimento dos bairros onde se localizavam. O primeiro prado a ser inaugurado foi o Porto-Alegrense, em 1877, mantendo-se em atividade durante 25 anos. Já o Prado Rio-Grandense, no Bairro Menino Deus, funcionou por 18 anos, de 1881 a 1909. O Prado Navegantes iniciou as atividades em 1891, perdurando até 1906. E, por fim, o Prado Independência iniciou em 1894, no Bairro Moinhos de Vento, até ter sua sede transferida para o Bairro Cristal, em 1959.
No início do século XX, as associações esportivas já demarcavam um espaço sociocultural de destaque na cidade de Porto Alegre. Por um longo período, foi conferido ao associativismo esportivo um papel de suma importância na expressão das identidades culturais dos imigrantes e seus descendentes. No caso dos luso-brasileiros, as associações turfísticas e, mais tarde, aquelas envolvendo a prática do remo, se constituíram em espaços para produzir fronteiras simbólicas de sua cultura em relação aos teuto-brasileiros, pioneiros no associativismo esportivo em Porto Alegre.
As primeiras expressões do associativismo esportivo em Porto Alegre pertenceram aos primeiros imigrantes que chegaram à cidade, dentre eles portugueses e alemães. Tal tipo de organização em função do esporte caracterizava-se como uma maneira de afirmar as identidades culturais desses imigrantes, bem como de seus descendentes. Os luso-brasileiros, inicialmente, dedicavam-se a expressões mais artísticas, tais como o folclore e a dança. Foi somente a partir da segunda metade do século XIX que essa aristocracia rural passou a incentivar a prática do turfe, organizando espaços específicos para a prática eqüestre. Tais locais afirmavam a presença e a identidade desse grupo étnico. No entanto, as associações não apresentavam a preocupação pela busca de um caráter esportivo, presente naquelas organizadas por teuto-brasileiros, que primavam pelo fomento de variadas práticas esportivas.
O desencadeamento de uma crise à prática turfística porto-alegrense deveu-se a variados fatores. Dentre eles, a emergência de novas práticas esportivas, como o remo e o futebol, por exemplo, as quais valorizavam a participação humana mais efetiva na prática de esportes em detrimento da grande dependência de um animal, expressando a mudança de valores cultivados com a virada do século. A expansão da cidade, a concorrência excessiva entre as organizações turfísticas dos distintos prados, assim como a crise econômica advinda da longa Revolução Federalista (1893/1895), também contribuiu para o agravamento da situação do turfe na cidade.
Todavia, diante dessa difícil situação, os luso-brasileiros resistiram à incorporação de novas práticas, incentivando a recuperação do turfe em Porto Alegre por meio da fundação de uma associação que viesse a valorizá-lo por suas características esportivas, fomentando sua manutenção e progresso. Vigente até os dias atuais, a Associação Protetora do Turfe foi fundada no dia 07/09/1907, tendo como sede o Prado Independência até 1959, ano em que se mudou para o Bairro Cristal, no Prado do Cristal. Seus preceitos norteadores baseavam-se na unificação e impulsão do esporte hípico na cidade.
Dessa maneira, passa a ser perceptível a concreta decisão de impulsionar e respeitar o turfe como um esporte, e não simplesmente como um jogo de azar. A partir de então, já se pode perceber outra postura frente às corridas de cavalos. Testemunha-se uma mobilização pelo turfe com configurações e expressões de uma associação esportiva.
Assim, a história do turfe em Porto Alegre, desde sua gênese, parece ser indissociável da presença luso-brasileira na cidade. Sendo assim, compreende-se porque determinados hábitos, costumes e tradições acabaram por ser transferidos ao contexto dessa prática esportiva.
Referências
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Digital · Año 15 · N° 150 | Buenos Aires,
Noviembre de 2010 |