Análise da morte e do chiste em Quincas Berro Dágua Análisis de la muerte y del chiste en Quincas Berro Dágua |
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*Mestrando em Educação Física – UnB Especialista em Docência do Ensino Superior pela Universidade Gama Filho Licenciado em Educação Física pela Universidade Católica de Brasília Licenciado em Letras-Português e Respectiva Literatura pela Universidade de Brasília **Especialista em Língua Espanhola pela Faculdade Noroeste de Minas Graduada em Espanhol pela Universidade de Brasília Graduanda em Letras-Português e Respectiva Literatura pela Universidade de Brasília |
Marcos Paulo de Oliveira Santos* Renata Pereira Torres** (Brasil) |
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Resumo O presente estudo tem por escopo analisar a dualidade riso/seriedade dentro do universo literário de Jorge Amado. Para essa reflexão, elegeu-se a obra literária A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, publicada em 1958. Em um primeiro momento, buscou-se compreender o cenário modernista e como o autor se insere nesse panorama. Posteriormente, fez-se um estudo sobre a temática da morte, pano de fundo da obra. E para tanto, o referencial teórico subsidia-se nas obras de Rodrigues (2006), Mauss (2003), Elias (2001) e outros que transitam pelas múltiplas abordagens do fenômeno da morte. Por fim, são evocados os pensamentos de Freud (1996) concernente ao chiste, para sustentar os argumentos relativos ao riso e as suas múltiplas facetas, bem como de Zijderveld (1983), para corroborar o papel do riso enquanto instrumento de prazer, mas também de crítica social. Conclui-se que o riso é coisa séria e por diversas passagens ele é trazido à baila pelo autor para criticar a sociedade pusilânime e moralista, notadamente a instituição familiar. Unitermos: Morte. Vida. Riso. Seriedade. Jorge Amado.
Resumen Este presente estudio analiza la dualidad risa/seriedad en el universo literario de Jorge Amado. Para esta reflexión, fue elegida la obra literaria La muerte y la muerte de Quincas Berro Dágua, publicada en 1958. Al principio, se buscó comprender el escenario modernista y cómo el escritor entra en este entorno. Más tarde, fue hecho un estudio sobre el tema de la muerte, el telón de fondo de la obra. Y para esto, el referencial teórico está basado en las obras de Rodrigues (2006), Mauss (2003), Elias (2001) y otros que se ocuparon de los diversos enfoques del fenómeno de la muerte. Por fin, son evocados pensamientos de Freud (1996) relativos a la broma, para sostener los argumentos relativos a la risa y a sus múltiples facetas, así como Zijderveld (1983), para corroborar el papel de la risa como instrumento de placer, pero también de crítica social. La conclusión es que la risa es un asunto serio y muchas veces es presentada por el autor como una crítica a la sociedad moralista, en especial la familia. Palabras clave: Muerte, Vida. Risa. Seriedad. Jorge Amado.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 150, noviembre de 2010. http://www.efdeportes.com/ |
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Literatura e sociedade: reflexões sobre o Modernismo Brasileiro
Para a historiografia literária, a Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em São Paulo, foi o marco decisório para a consolidação do Modernismo no Brasil. Entretanto, antes de analisá-la, torna-se imprescindível compreender os movimentos sociais que ocorreram antes do período de 22 e que caracterizaram o quadro nacional que se desenhava.
Estudados em si, esses movimentos têm uma história de todo independente; mas, no conjunto, testemunham o estado geral de uma nação que se desenvolvia a custa de graves desequilíbrios (Bosi, 1994: 305).
Portanto, tal reflexão é relevante para a contextualização do Modernismo no Brasil, que não se forjou de maneira abrupta. Nenhuma ruptura e implantação de novos ideais, nesse particular, processaram-se bruscamente. Mas, ao largo do tempo, com a mudança de mentalidade de modo geral e as influências exógenas (principalmente européias) e endógenas (nacionalismo) que imprimiram o modus vivendi dos escritores brasileiros.
Esse período de transição foi caracterizado como um momento sincrético (Coutinho, 1988), justamente pelo fervilhar de múltiplas idéias e correntes ideológicas, que se manifestavam em ritmos diversos nos variados rincões do Brasil. Assim, segundo Bosi (1994: 304) tinham-se ideologias conflitantes:
a) uma visão do mundo estática quando não saudosista;
b) uma ideologia liberal com traços anarcóides;
c) um complexo mental pequeno-burguês, de classe média, oscilante entre o puro ressentimento e o reformismo;
d) uma atitude revolucionária.
Tudo isso se passou em grande parte na República Velha (1889-1930), que era calcada na hegemonia política dos oligárquicos de dois estados: São Paulo e Minas Gerais. As decisões políticas, econômicas e sociais desses estados configuraram a política do café com leite, visto ser agroexportadora a base econômica do país, ou seja, delineada pela exportação de café somado à atividade pecuária.
O quadro geral da sociedade brasileira era nevrálgico. De um lado havia uma camada latifundiária conservadora que detinha ainda privilégios no cenário político e econômico (período do coronelismo e do voto de cabresto, que grosso modo, são caracterizados pelo abuso de autoridade e poder exercidos pelo latifundiário sobre as pessoas que estão sob a sua “tutela” nos municípios). Por outro, entrava em declínio a cultura canavieira na região Nordeste. O que ensejou um deslocamento da mole humana para a região Norte, para a exploração da seringueira e a exportação da borracha. Tal atividade foi bastante profícua perdendo apenas para a exportação cafeeira.
A explosão demográfica na região norte culminou com a criação de centros culturais, como o Teatro Amazonas e, também, contribuiu com o desenvolvimento da ainda incipiente indústria automobilística no mundo (indústrias como Volkswagen, Chevrolet, Toyota, Ford, dentre outras, começavam a se desdobrar no mundo), uma vez que os pneus dos carros eram feitos daquela matéria prima. Cabe salientar que o usufruto de tal extração centrava-se na figura dos barões da borracha, que ostentavam luxo e poder. Os camponeses – trabalhadores da linha de frente – tinham sua condição ontológica aviltada; sem recursos mínimos de subsistência.
Outro aspecto que caracterizou o período em análise foi a ascensão da burguesia urbano-industrial concomitante ao processo de imigração européia. Já que as causas do atraso nacional diziam respeito à herança étnica, ou seja, o negro; que se via impelido a se deslocar para as periferias urbanas e não possuía meios de mobilidade social na sociedade de classes que se delineava (Fernandes, 2007).
Engrossam-se, em conseqüência, as fileiras da pequena classe média, da classe operária e do subproletariado (Op.cit., 1994: 304).
É nesse cenário de múltiplas confluências, de novas configurações das cidades e do campo, de reordenamentos políticos, de estímulos artísticos da Europa (Cubismo, Futurismo, Surrealismo) que os inovadores percebiam o Brasil de dois modos: (i) a São Paulo, caracterizada como o lócus do desenvolvimento do país e (ii) “um Brasil cujas contradições se resolviam magicamente no reino da palavra poética” (Bosi, 1988: 118).
Os famosos paulistas
(...) enxergavam o Brasil como um mito enorme, protéico, de que seriam símbolos seminais os totens amazônicos. As fortes e belas imagens antropofágicas de Tarsila, os manifestos de Oswald e a rapsódia de Mário de Andrade não poderiam ter nascido senão da cabeça de artistas que imaginavam lúdica e surrealmente o Brasil, aquela vaga e estranha e múltipla realidade pré-industrial que não era a cidade de São Paulo (...). O ângulo de visão era o de intelectuais mais informados e mais inquietos que se propunham desentranhar a poesia das origens, o substrato selvagem de uma ‘raça’; e que desejavam intuir o modo de ser brasileiro aquém da civilização, ou então surpreendê-lo na hora fecunda do seu primeiro contato com o colonizador (Op.cit., 1988: 119).
É nesse cenário que surgiu a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo. Tratou-se, portanto, de um corolário das principais idéias existentes entre os intelectuais daquele período. Foi marcada pela renovação e a liberdade nos mais variados aspectos artísticos, com o desiderato de ser construir uma identidade nacional.
Foi uma espécie de caldo cultural que se espraiou de forma virulenta e acabou por influenciar as diversas partes do país. Mario de Andrade, um dos maiores expoentes da Semana de 22, não sabe precisar como tal evento surgiu.
[sic] Quem teve a idéia da Semana de Arte Moderna? Por mim não sei quem foi, nunca sube, só posso garantir que não fui eu. O movimento, se alastrando aos poucos, já se tornara uma espécie de escândalo público permanente (Andrade, 1974: 234).
Ele ainda explica os motivos pelos quais o movimento ocorreu em São Paulo:
[sic] (...) socialmente falando, o modernismo só podia mesmo ser importado por São Paulo e arrebentar na província. Havia uma diferença grande, já agora menos sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era muito mais internacional, como norma de vida exterior. Está claro: porto de mar e capital do país, o Rio possue um internacionalismo ingênito. São Paulo era espiritualmente muito mais moderna porem, fruto necessário da economia do café e do industrialismo conseqüentemente. Caipira de serra-acima, conservando até agora um espírito provinciano servil, bem denunciado pela sua política, São Paulo estava ao mesmo tempo, pela sua atualidade comercial e sua industrialização, em contato mais espiritual e mais técnico com a atualidade do mundo (Op.cit., 1974: 236).
Segundo o Bosi (1988), a partir de 30 o Brasil deixaria de ser mítico e passaria a ser da contradição. Porque ao se ampliar a lente sobre a nação brasileira, os inovadores paulistas não poderiam açambarcá-la em todas as suas nuances. Eles se restringiram à dualidade estabelecida entre o selvagem (da tribo e dos rituais) e o futuro tecnológico que se delineava em São Paulo. Cabe perguntar: E o resto?
Quem responde é o próprio Alfredo Bosi (1988: 122):
.(...) a prosa do resto do Brasil falou pela boca de um realismo ora ingênuo ora crítico, já não modernista em sentido estreito, mas certamente moderno
É a partir de 30, em síntese, que as heranças legadas pelo Estado Novo e pela Segunda Guerra Mundial tornaram possíveis as bases de uma consciência artística no Brasil. Nesse comenos, Lafetá (2000) consegue estabelecer um paralelo importante entre as gerações de 20 e 30: a primeira centrou-se no projeto estético. A segunda teve uma ênfase no projeto ideológico. Não são, portanto, antitéticas; ao contrário, estão jungidas embora tensionadas. Diferenciam-se pelo modo de ver e pela ênfase dada em um ou outro aspecto.
Já que
As duas fases não sofrem solução de continuidade; apenas, (...) se o projeto estético, a ‘revolução na literatura’, é a predominante da fase heróica, a ‘literatura da revolução’ (...), o projeto ideológico, é empurrado, por certas condições políticas especiais, para o primeiro plano dos anos trinta. E mais: essa troca de posições vai se dando progressivamente durante todo o período modernista: o equilíbrio inicial entre revolução literária e literatura revolucionária (ou reacionária, conservadora, tradicionalista: pensemos sempre na direita política) vai sendo lentamente desfeito e a década de 30, chegando a seu término, assiste a um quase-esquecimento da lição estética essência do Modernismo: a ruptura da linguagem (Lafetá, 2000: 30-31).
Apresentado esse breve mosaico, é constante a fragmentação ou subdivisão dos momentos literários para melhor compreendê-los. Cabe salientar, porém, que tais divisões não decorrem de um consenso. Algumas vezes são arbitrárias, já que existem autores que possuem características que não são pertinentes a determinados movimentos literários. Desta forma, grosso modo, o modernismo é divido em três momentos: (i) Primeira Geração (1922 a 1930), conhecida pelo radicalismo, buscava uma ruptura total com as estruturas do passado e a heurística de uma linguagem nacional, era necessário devorar as influências estrangeiras e impor o nacional; (ii) a Segunda Geração (1930 a 1945) há um predomínio da prosa e as reflexões sobre as questões cotidianas e as contradições do capitalismo. Uma ênfase no aspecto histórico-social; (iii) a Terceira Geração (1945 a 1960) configura-se como uma literatura intimista, um mergulho psicológico, o aspecto regionalista também adquire novas modelagens, notadamente com Guimarães Rosa.
Nesse sentido, a respeito do vínculo que se poderia estabelecer entre os primeiros modernistas e a segunda geração, da qual fazia parte, dentre outros, Jorge Amado, esse mesmo responde:
(...) o meu depoimento é de um pós-modernista, de um escritor que não teve a mais mínima ligação com este movimento. Quando ele surgiu e cresceu, era eu aluno de escola primária e de curso ginasial. E se figura como marco do fim desse movimento o aparecimento de A Bagaceira, em 1928 (ano em que também foi escrito Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade, romance que é um balanço do movimento), ficará claramente demonstrado que estreando eu em 1931, com 18 anos, não tive nenhuma ligação com o movimento (Amado, 1940: 108 apud Bueno, 2006: 50).
Cabe, nesse momento, compreender um pouco os principais traços ideológicos desse autor.
Jorge Amado. Notas biográficas
Jorge Amado de Faria nasceu no dia 10 de agosto de 1912, em Itabuna, sul da Bahia. Seus primeiros estudos foram realizados em Ilhéus e Salvador. Nessa famosa capital, ele começou a participar da vida literária e jornalística, tendo no findar dos anos 20 uma vida boêmia (Bosi, 1994: 405).
O movimento modernista já encontrava simpatizantes e detratores, o que o incitou a criar ainda jovem a Academia dos Rebeldes, grupo de que faziam parte o poeta Sosígenes Costa e o historiador e folclorista Édson Carneiro (Op.cit., 1994: 405).
No período de 1930, Jorge Amado formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, que a época era um profícuo pólo de discussões políticas, artísticas, literárias, entre outras, propiciando ao escritor os primeiros contatos com o comunismo. Nessa condição, ou seja, já militante comunista, viu-se obrigado a se exilar na Argentina e no Uruguai entre 1941-1942, período também que fez longa viagem pela América Latina.
Durante um período de sua vida escreveu em oposição ao Estado Novo, o que o levou à prisão. Quando libertado, Jorge Amado dedicou-se novamente à literatura. E no ano de 1945 foi eleito membro da Assembléia Nacional Constituinte, na legenda do Partido Comunista Brasileiro – PCB, tornando-se o deputado federal mais votado do Estado de São Paulo.
Entretanto, devido às pressões políticas, a perseguição e a prisão aos membros do PCB, ele se exilou com a família e viajou longamente pela Europa Ocidental e pela Ásia, passando a maior parte do tempo na Tchecoslováquia, onde vivia a expensas dos direitos autorais de suas obras.
Quando retornou ao Brasil, em meados dos anos 50, ele se afastou da militância política e dedicou-se exclusivamente à literatura, tornando-se uma referência importante do modernista regionalista. Era ainda simpatizante do candomblé, o qual tinha profundo respeito e detinha o grau de Obá de Xangô, no Ilê Opó Afonjá.
No dia 06 de abril de 1961 foi eleito para a cadeira número 23, da Academia Brasileira de Letras, que tem por patrono José de Alencar e por ocupante primeiro, Machado de Assis.
Jorge Amado morreu em Salvador, Bahia, em 2001, quatro dias antes de completar 89 anos.
Jorge Amado. Obras e Prêmios
Jorge Amado foi laureado com diversos prêmios e variadas obras de sua autoria tornaram-se sucessos da teledramaturgia nacional, além de temas para as escolas de samba. Em suas obras encontram-se traços da vida baiana sensual e citadina e, o fator marcante por excelência, é a comicidade; a ironia. Teve suas obras publicadas em 55 países, em 49 idiomas, existindo também publicações em Braille. Foi superado em número de vendas apenas por Paulo Coelho.
Nesse rol literário, seguem-se as sínteses de algumas das suas principais obras, em ordem cronológica:
O País do Carnaval, romance (1930);
Cacau, romance (1933): narra a história de trabalhadores de cacau em fazendas ao sul da Bahia, na década de 30. Demonstra o degradante mundo do trabalho, as tensões sociais e as idéias socialistas;
Suor, romance (1934): trata-se da história de vida miserável de algumas pessoas no Pelourinho;
Jubiabá, romance (1935): retrata as classes populares em Salvador;
Mar morto, romance (1936): tece descrições sobre a vida da personagem Guma, um pescador. É uma narrativa sobre a vida difícil do “povo do mar”, bem como as referências aos santos e orixás do candomblé, os amores nos cais e as aventuras marítimas;
Capitães da areia, romance (1937): obra que retrata a vida dos “meninos de rua” em Salvador nos anos 30;
A estrada do mar, poesia (1938): obra de poesia;
ABC de Castro Alves, biografia (1941): análise biográfica do poeta romântico Castro Alves;
O cavaleiro da esperança, biografia (1942): é uma ode a Carlos Prestes e seus feitos;
Terras do Sem-Fim, romance (1943): romance que tem por temática as disputas latifundiárias e o amor proibido de famílias inimigas;
São Jorge dos Ilhéus, romance (1944): narrativa das lutas travadas ao sul da Bahia pela conquista de terras;
Seara vermelha, romance (1946): crítica social às condições do retirante nordestino ao sudeste brasileiro, especificamente em São Paulo;
Gabriela, cravo e canela, romance (1958): livro bastante famoso que versa sobre o universo cacaueiro, a vida noturna e boêmia, o sexo, os coronéis e jagunços;
A morte e a morte de Quincas Berro d'Água, romance (1961): narrativa sobre a vida do funcionário Joaquim Soares da Cunha que decidiu abandonar a família e viver como e com vagabundos (a obra será analisada mais adiante);
Os velhos marinheiros ou o capitão de longo curso, romance (1961): retrata a história de Vasco, que se diz um homem do mar, mas Chico não acredita e tenta desconstruir as narrativas do capitão Vasco. Há um conflito sobre o poder de construção da narrativa e a verossimilhança (o dito, o desdito);
Dona Flor e Seus Dois Maridos, romance (1966): obra famosíssima de Jorge Amado que narra a história de Dona Flor e os seus maridos Vadinho, falecido em uma festa de carnaval e um farmacêutico com quem se casa após o falecimento daquele. Nesse realismo fantástico, ela vive um dilema entre ceder aos prazeres do espírito de Vadinho, que vem visitá-la ou se manter fiel ao novo marido;
Tenda dos milagres, romance (1969): história sobre o herói Pedro Archanjo e seu benfeitor Silva Virajá, que se desenvolve no Pelourinho. Tem por pano de fundo o candomblé e a capoeira;
Teresa Batista cansada de guerra, romance (1972): narrativa sobre uma jovem, que é violentada por um capitão e torna-se escrava sexual;
O gato Malhado e a andorinha Sinhá, historieta infanto-juvenil (1976): fábula sobre um impossível amor de um gato bravo e uma andorinha gentil;
Tieta do Agreste, romance (1977): centra-se na personagem principal, Tieta, que havia sido expulsa de sua cidade ainda adolescente, porém, anos mais tarde, volta à cidade com uma condição econômica bastante favorável;
Farda, fardão, camisola de dormir, romance (1979): obra que se refere à Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro;
Do recente milagre dos pássaros, contos (1979): diversos contos;
O menino grapiúna, memórias (1982): livro de memórias da época em que viver na região cacaueira;
Tocaia grande, romance (1984): narra a fundação de uma cidade, que virou palco de disputas territoriais e cenário político para coronelismos e todos os tipos de violência;
Navegação de cabotagem, memórias (1992): livro de memórias;
Hora da Guerra, crônicas (2008): obra póstuma de crônicas do autor sobre a Segunda Guerra Mundial e os seus impactos na vida cotidiana no Brasil.
Segundo dados da Fundação Casa de Jorge Amado, entre os prêmios recebidos destacam-se:
Stalin da Paz (União Soviética, 1951), Latinidade (França, 1971), Nonino (Itália, 1982), Dimitrov (Bulgária, 1989), Pablo Neruda (Rússia, 1989), Etruria de Literatura (Itália, 1989), Cino del Duca (França, 1990), Mediterrâneo (Itália, 1990), Vitaliano Brancatti (Itália, 1995), Luís de Camões (Brasil-Portugal, 1995), Jabuti (Brasil, 1959, 1997) e Ministério da Cultura (Brasil, 1997). Ainda os títulos de Comendador e de Grande Oficial, nas Ordens da Argentina, do Chile, da Espanha, da França, de Portugal e da Venezuela, além de ter sido feito Doutor Honoris Causa por dez universidades, no Brasil, na Itália, em Israel, na França e em Portugal. E o título de Doutor pela Sorbonne, na França, recebido pessoalmente, em 1998, em sua derradeira viagem a Paris, quando já estava doente.
Desenvolvimento. Apresentação da obra
A obra versa sobre a vida de um funcionário público, chamado Joaquim Soares da Cunha, pai de família e casado. Certa feita, cansado da vida familiar, ele decide viver como ébrio e vagabundo. É nesse mundo de boêmia e prazeres sexuais que ele recebe o apelido de Quincas Berro Dágua. É nesse ínterim que ocorre sua primeira morte, aquela estabelecida pelos seus familiares, ou seja, a morte social. A segunda morte ocorre no seu próprio quarto imundo e é percebida por uma amiga e decretada por um médico. Com o objetivo de resgatar a imagem idílica do probo Joaquim Soares, seus familiares decidem fazer um enterro luxuoso. Porém, seus amigos decidem visitá-lo no velório e o encontram com um sorriso no caixão. Desta forma, pensam que ele está vivo e decidem festejar. É nesse passeio pelas ruas de Salvador que o enredo se desenvolve. Ao anoitecer, eles decidem utilizar um barco para uma excursão marítima, todavia, uma forte tempestade surge repentinamente e uma imensa onda os abate, fazendo com que Quincas morra a terceira vez.
Discussão
Após essa apresentação do cenário modernista e da biografia do autor, apresenta-se adiante uma análise sobre a obra literária A Morte e a Morte de Quincas Berro Dágua, publicada em 1958. Tal escolha não ocorreu de modo fortuito. O corpus eleito atende ao objetivo do presente estudo que é compreender a dicotomia riso/seriedade dentro do universo literário de Jorge Amado. É verdade que outras obras do autor poderiam servir de embasamento para análise da dualidade proposta, porém, a emblemática história de Quincas Berro Dágua traz dois traços relevantes e inovadores para o processo de análise: a morte e o desprezo pela instituição familiar. Ora, ambos os pontos são considerados coisas ou fatos sociais bastante sérios. Daí a necessidade de se trazer à baila, mais adiante, autores que versem sobre a temática da morte, pano de fundo da obra e, posteriormente, depreender as críticas sociais, mormente à instituição familiar existentes no livro.
Brincando com coisa séria: a morte
Me enterro como entender
Na hora que resolver.
Podem guardar seu caixão
Pra melhor ocasião.
Não vou deixar me prender
Em cova rasa no chão.
Quincas Berro Dágua.
Subjaz no imaginário social uma representação bastante negativa da morte, uma vez que ela designa o caos e a extinção. Efeitos antitéticos da ordem e da vida, que são corolários da sociedade ocidental moderna (científica e racionalizada).
A despeito dos inauditos avanços científico-tecnológicos, a morte é uma certeza inexorável. Furtar-se desse fenômeno natural é querer portar-se qual o ínclito Barão de Münchhausen, que para escapar de um pântano – onde ele havia caído com seu cavalo e eram tragados pelo solo – decidiu puxar a si próprio pelos cabelos.
Sob o aspecto biomédico, considera-se um indivíduo morto quando não há mais atividade cerebral. Para tal aferição, o tronco encefálico é submetido a exames minuciosos com aparelhos bastante específicos. Para além desse evento fisiológico, existe também, no bojo da sociedade ocidental, a lendária personificação revestida de um capuz preto e uma foice, que causa bastante pavor, embora, por vezes, seja cômica.
É imperioso considerar que o fenômeno da morte é plurissignificativo e sui generis para cada cultura. Logo, é antes de tudo, social. Pode-se apontar, a título de exemplificação, a morte das fases da vida (no mundo literário é possível desconstruir o que é natural. Peter Pan e Dorian Gray são alguns dos exemplos de afronta ao natural). Assim, a criança necessita morrer para o surgimento do adolescente; este morre, para o aparecimento do adulto; que por sua vez também morre para o alvorecer da senectude... Num encadeamento lógico é possível entender tais eventos como ritos de passagem (Rodrigues, 2006: 28).
Rodrigues (Op.cit., 2006) exara ainda que há um plano ético do fenômeno, já que na cultura brasileira, quando alguém morre, de maneira irrefletida o interlocutor pergunta “De quê?”. Ato contínuo, a resposta perpassa por um plano de juízo de valores, mormente se aquele que morre tem uma simbologia positiva ou negativa: morreu em paz; morreu de morte matada; morreu de nó nas tripas; teve uma morte Severina.
Há ainda uma morte social que recai sobre aqueles que não se ajustam a determinados grupos por motivos exógenos ao indivíduo (doenças, mutilações, velhice etc.). Como exemplo se tem o caso dos leprosos, que eram dados por mortos antes mesmo de morrerem fisicamente. Assim como outros segmentos: idosos, tuberculosos, pessoas portadoras do vírus HIV, etc. (Elias, 2001).
Ela também pode ocorrer em determinados grupos sociais por meio dos feitiços, encantamentos, magias, causas morais, religiosas e, até mesmo, por causa das proibições alimentares (Mauss, 2003). Levando a óbito aquele (a) que se delicia com um fruto proibido...
Os interditos acerca da morte forjaram-se a partir dos múltiplos processos históricos e culturais porque passaram as sociedades. É da condição ontológica do ser humano a compreensão da sua finitude, daí, talvez, resulte o temor do desconhecido (do caos). Em contrapartida, nos animais existem curiosíssimas manifestações que nada mais são que simulacros da morte. Ou em outros termos, os animais não percebem a sua finitude tal como o ser humano. Eles podem, sim, esboçar reações instintivas de auto-preservação (e fingirem-se mortos, como o opossum). Mas, são incapazes de compreenderem a brevidade do tempo existencial, porque não apreendem o mundo da simbologia, da abstração, do raciocínio complexo. Isso é, em síntese, da natureza humana. Já que (...) o pensamento é um atributo que me pertence: só ele não pode ser separado de mim (Descartes, 2008: 91).
Após esse intróito, relevante e necessário para se compreender o pano de fundo da obra (a morte), a seguir desenvolvem-se apontamentos acerca do livro de Jorge Amado e são evocados alguns autores para auxiliarem na leitura vertical que se pretende realizar e se chegar ao objetivo do artigo, qual seja compreender a dualidade riso e seriedade.
Análise da obra
A obra é iniciada pela dúvida. Até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua (Amado, 2004: 01). A família tem uma versão para o seu falecimento, que se deu de forma tranqüila, harmoniosa. Em contrapartida, pessoas idôneas, como Mestre Manuel e Quitéria do Olho Arregalado, defendem outro ponto de vista, quando, após ter vivido intensamente,
(...) em hora duvidosa e em condições discutíveis, Quincas Berro Dágua mergulhou no mar da Bahia e viajou para sempre, para nunca mais voltar (Idem, 2004: 02).
Num primeiro momento, a obra causa surpresa e já detém um poder cômico, por conta dos desencontros das informações. A dubiedade ou a incerteza são da condição de determinados contextos da vida cotidiana. A título de exemplificação, na cultura ocidental moderna, Elvis Presley (ainda) não morreu. O mesmo se dá na obra ficcional de Jorge Amado, na qual o protagonista não teve somente um desfecho insólito, mas um total de três, fazendo de Quincas um recordista da morte, um campeão do falecimento (Idem, 2004: 03).
A primeira que diz respeito à versão familiar, a segunda quando ele por livre e espontânea vontade (Idem, 2004: 02) se atirou ao mar. E, por fim, outra simbólica ou social no sentido de Rodrigues (2006) e Mauss (2003), “a ponto de seu nome não ser pronunciado e seus feitos não serem comentados na presença inocente das crianças” (Amado, 2004: 03).
Nessa dinâmica de múltiplos desfechos, há uma imbricada relação entre o corpo e a morte, que pode ser relacionada à perspectiva de Hertz (1980). Esse autor, importante sociólogo francês, encontrou elementos que justificam a preeminência da mão direita sobre a mão esquerda. Ele percebeu que a assimetria corporal não se dá casualmente, ao contrário, culturalmente alguns elementos são construídos e vinculados ao hemisfério direito e, conseqüentemente, outros ao esquerdo. O corpo nesse sentido constitui um rico filão de análise, já que se apreende que determinados significantes e significados são voltados para cada um dos hemisférios: o direito sendo positivo e o esquerdo, negativo.
No que concerne à obra de Jorge Amado, a vida burguesa, pura, recatada, do funcionário público, Joaquim, representa o lado direito; em suma, o que é positivo e probo aos seus familiares. Em contrapartida, o contato com prostitutas, o baixo corporal, o contato com jogadores, malandros, marginais, denotam o lado esquerdo; o negativo, a morte social.
Por essa razão, seus familiares criaram uma barreira afetiva ou evitaram uma infecção anômica, no sentido de Elias e Scotson (2000), já que eles representavam os estabelecidos, aqueles que seguiam determinadas normas de conduta para se manterem superiores. Ao passo que os amigos de Quincas e, conseqüentemente, também moradores das adjacências não tinham os mesmos códigos e normas de conduta e, por esse motivo, eram os outsiders ou aqueles marginalizados.
Quincas, portanto, vivencia dois momentos distintos: um, ainda na condição de Joaquim, que ele recusa, porque se sente acrisolado e que ocorre (...) no meio do grupo formado na sala, com discursos, cerveja e uma caneta-tinteiro oferecida ao funcionário (Amado, 2004: 34), mas esse momento de celebração do novo funcionário público não lhe proporciona alegria, ainda que haja na ocasião um importante elemento de deleite, a cerveja. É como se aquilo tudo (...) o enfastiasse e não lhe sobrasse coragem para dizê-lo (Idem, 2004: 34). Como Joaquim, pode-se dizer que ele é o sujeito desencantado da visão weberiana, ou seja, aquela rotina do funcionalismo público e os papéis sociais (em nome da honra familiar) colocavam-no em uma jaula da desilusão, conforme a metáfora weberiana.
Noutro aspecto, já morto, tem-se um Quincas fugidio. É como se a morte representasse a liberdade que por muito tempo foi abafada pela família que queria o homem público exemplar. É no contato com os marinheiros e tantos outros personagens marginalizados socialmente que ele se sentia liberto e feliz, já que entre seus amigos acontece a suspensão das hierarquias; rompem-se as estruturas.
Configura-se a partir da morte do protagonista a dualidade terra e mar. A primeira denotando o aprisionamento que ele teve durante um período de sua existência, quando tinha de seguir determinados padrões impostos por seus familiares. A segunda, antítese da primeira, constitui para ele a liberdade. É se aventurar em busca do inesperado que a vida marinha e os marginalizados podem suscitar.
Não haviam de prendê-lo em sete palmos de terra, (...) Exigiria, quando a hora chegasse, a liberdade do mar, as viagens que não fizera em vida, as travessias mais ousadas, os feitos sem exemplo (Idem, 2004: 43).
Além dos desencontros das informações sobre o derradeiro momento do protagonista, da dicotomia entre positivo e negativo, o desencantamento do sujeito, a obra de Jorge Amado aborda ainda a avareza da família, para a qual os negócios eram sempre mais importantes que o próprio evento da morte. Há uma profunda crítica à acumulação de capital, de patrimônio material. Tanto que Tio Eduardo não deixava sua repartição com os empregados, que considera ladrões e vagabundos; Leonardo, genro do falecido, buscava incessantemente a companhia imobiliária para adquirir um terreno e pouco se importou com a morte de Joaquim, entre outros exemplos que pululam na obra.
Encontram-se traços de comportamentos não condizentes com as normas padrões da boa educação nos familiares de Quincas. Aqui, Jorge Amado demonstra a hipocrisia familiar, que discutia o valor monetário do enterro à mesa lauta. Sublinha-se nessa passagem, a conduta de tia Marocas, que arrotou e tinha o bucho farto. Ora, uma família que tenta ocultar o escatológico, o grotesco, mas que na intimidade das refeições (momento de limpeza por excelência) adota tais comportamentos está, no mínimo, em contradição. E por essa razão não poderia criticar o defunto, afinal o que diferencia o arroto e a gula de Tia Marocas da embriaguez de Quincas? Ambos os estados estão num mesmo nível e são suscetíveis de reprovação familiar. Acontece, porém, que na intimidade a família adota um tipo de comportamento que se repreende em Quincas. Há, portanto, uma flagrante hipocrisia delatada por Jorge Amado.
Diante desse panorama, o “morto” desdenha de todas dessas normas e condutas sociais. O riso debocha da seriedade social. E isso se dá por meio do chiste, que segundo Freud (1996) pode ser ingênuo ou tendencioso. O primeiro ocorre de modo inesperado, por atos falhos, por jogos de palavras, silogismos, trocadilhos etc. O segundo, como o próprio nome indica, tem um objetivo. Usualmente, é utilizado para depreciar, humilhar uma pessoa, já que não se pode enfrentá-la diretamente.
Trata-se, portanto, do arquétipo criado por Jorge Amado que ri da morte, que desdenha a avareza, o preconceito, os padrões sociais, que ri de si mesmo. Uma vez que o riso carrega em seu cerne uma característica peculiar: visa a interação social. É por meio dele que Quincas estabelece contato com os amigos ou desdenha dos familiares. Somente o ser humano é capaz de rir (Nascimento, 1999). E o defunto Quincas carrega essa insígnia que desafia a própria a morte, já que ele em vida raramente sorria (Amado, 2004: 34).
O emblemático riso é percebido por sua filha, Vanda, quando esta
(...) fitou o cadáver. Sapatos lustrosos, onde brilhava a luz das velas, calça de vinco perfeito, paletó negro assentando, as mãos devotas cruzadas no peito. Pousou os olhos no rosto barbeado. E levou um choque, o primeiro.
Viu o sorriso. Sorriso cínico, imoral, de quem se divertia. O sorriso não havia mudado, contra ele nada tinham obtido os especialistas da funerária. (...) Vanda, esquecera de recomendar-lhes, de pedir uma fisionomia mais a caráter, mais de acordo com a solenidade da morte. Continuara aquele sorriso de Quincas Berro D’água e, (...) , um riso que se ia ampliando, alargando, que aos poucos ressoava na pocilga imunda. Ria com os lábios e com os olhos, olhos a fitarem o monte de roupa suja e remendada, esquecida num canto pelos homens da funerária (Amado, 2004: 35-36).
Ora, no trecho supracitado tem-se claramente o deboche de um fenômeno que, usualmente, gera tristeza. Nem mesmo os especialistas da funerária conseguiriam demover o escárnio do rosto de Quincas, adrede executado por conta da situação patética que toda a sua família almejava ocultar por causa da etiqueta social; da honra. Debalde, Vanda intentou resgatar a imagem do pudico Joaquim por meio do embelezamento funerário. Todavia, ele mesmo riu dessa tentativa inglória. Em outras palavras, ele carregava a marca do riso ao estar morto. Ria de tudo e de todos.
Como se não bastasse o riso, Jorge Amado também evoca a natureza como condição sine qua non para desdenhar a morte. Tanta luz do sol, tanta alegre claridade, pareceram a Vanda uma desconsideração para com a morte (Idem, 2004: 30). Por essa razão, ela resolveu forjar o ambiente, tornando-o mais escuro, mais condizente com a morte. A natureza, por intermédio do vento e do sol, é um desrespeito ao fenômeno da morte e Vanda é caracterizada pela seriedade e pela tentativa de controlar o incontrolável. É no recinto fechado, ausente de claridade, que ela é assaltada pela memória. E com pesar as notícias do pai vagabundo volvem à sua mente.
Passado o momento de remorsos e clichês mentais da filha Vanda na obra, é retomada a perspectiva do riso que a todo o momento se tenta suplantar, mas ele é o responsável por suavizar a temática e torná-la cômica; é o elo de interação entre Quincas e os amigos. Mas, também, é o veículo do deboche à filha (uma jararaca), à irmã (um saco de peidos) e às pessoas que tentaram sufocar a sua felicidade.
Nesse último caso, o escárnio se manifesta também pelo seu corpo no sentido de Hertz (1980), com o hemisfério esquerdo denotando a zombaria
(Amado, 2004: 38) (grifos nossos).(...) Ria com a boca e com os olhos, não era de admirar se começasse a assoviar. E (...) um dos polegares – o da mão esquerda – (...), elevava-se no ar, anárquico e debochativo
Em outras passagens o seu dedão é ressaltado, denotando o baixo corporal, o que está vinculado ao chão, ao imundo, ao escatológico.
É a partir dessa manifestação do riso que os seus amigos o levam para viver intensamente a “vida”. Porém, antes, eles tentam realizar alguma prece católica para o “morto”, mas não conseguem. Negro Pastinha recorda-se de alguns toques de candomblé. E é nesse conflito carnavalesco-religioso que seus amigos não conseguem orar para o morto e há, portanto, uma desconstrução do modo canônico de velório. Ali, embora, achassem a oração relevante, eles não a executaram. Não se recordam de nenhuma. E por isso, para celebrar a vida introduzem a bebida.
Nos capítulos IX e X isso ocorre de forma acentuada, no velório acontece o contato do defunto com o álcool. Este, além do riso, são o laço entre Quincas e os amigos. Por intermédio da bebida cria-se com maior força a afetividade entre os ditos vivos e aquele que não mais pertence ao mundo e que, teoricamente, não poderia retornar.
É pela bebida que o diálogo se realiza, ela faz o defunto ter vontades e, sobretudo, sorrir de diversas situações, porque libera o que está sufocado no seu inconsciente.
Tem-se, também, a crítica às roupas utilizadas por ele, bastante sofisticadas para o nível socioeconômico dos seus amigos e que estariam fadadas aos vermes (...) e tanta gente por aí precisando... (Amado: 2004: 77). O personagem sente-se feliz somente quando essa roupa (o terno, o sapato, etc., que representam a burocrata) lhe é retirada e as suas de boêmia lhe são colocadas. Ademais, cada um dos amigos ficou com uma parte da roupa. De modo que é possível inferir que houve a desconstrução do Joaquim funcionário público e probo, para o renascimento do Quincas malandro e livre. Ao vestirem, cada um, uma parte da roupa dele, acabaram se imbricando cada vez mais na individualidade de Quincas. Em última instância, o coletivo tornou-se um único sujeito: o corpo coletivo ébrio, a brincar pelas ruas da Bahia.
Figura, ainda no referido capítulo, o desejo de Negro Pastinha por tia Marocas, uma senhora gorda, logo, não condizente aos padrões de beleza vigentes. Quincas disso também debocha, ri e diz que Negro Pastinha não sabe eleger mulher bonita.
Nesses capítulos também há a introdução de um símbolo importante: o sapo, ser especial que transita entre dois ambientes: água e terra, assim como Quincas. A esse respeito, Rodrigues (2006) estabelece que esses seres híbridos ou ambíguos são especiais. Por exemplo, o sapo é um anfíbio, vive na água e na terra; os zumbis estão “mortos”, mas também “vivos”; os morcegos são “cegos”, mas “videntes”; as sereias são mulheres e ao mesmo tempo peixes; todos esses elementos configuram-se como interditos culturais por serem especiais e algumas vezes repulsivos. É por esse motivo, dentre outros, que doentes graves são colocados em alas especiais, porque não estão vivos, nem mortos. São, portanto, especiais.
Jorge Amado cria um pano de fundo propício para que esse evento especial – a movimentação e o divertimento de um morto – seja exeqüível. Assim, algumas palavras ou expressões são evocadas: lua cheia, noite de encantamento, cenário fantasmagórico, atabaques que ressoam ao longe, violões que gemem serenatas, gatos sobre os telhados, noite fantástica. E o autor, sabiamente, joga com os múltiplos significados para entreter, causar riso e criticar diversos aspectos do social. Jogar com os vários significados da língua, em última instância, é fundamental para a vida humana, sendo comparável mesmo a religião (Zijderveld, 1983).
Ao se locomover pelas ruas, as pessoas ficaram estupefatas com a presença de Quincas. A personagem Quitéria correu em direção a Quincas que estava sorridente e
(...) tomava-lhe a mão, colocando-a sobre o seio pujante para que ele sentisse o palpitar do seu coração aflito:
─ Quase morri com a notícia e tu na farra, desgraçado. Quem pode com tu, Berrito, diabo de homem cheio de invenção? Tu não tem jeito, Berrito, tu ia me matando7... (Idem, 2004: 86).
Percebem-se que as palavras são emblemáticas e recorrentes pelo autor. O coração, símbolo da vida, é apalpado pelo defunto. É estabelecido o paradoxo: a morte que apalpa a vida. E a vida que não pode se apartar da morte (Quase morri / ia me matando).
A história apresenta ainda vínculos às amizades do escritor Jorge Amado, tais como (...) o alemão Hansen lhes ofereceu uma rodada de pinga. Mais adiante, o francês Verger distribuiu amuletos africanos às mulheres (Idem, 2004: 86). O primeiro diz respeito ao amigo de Jorge Amado, Hansen Bahia, artista alemão radicado na Bahia. O segundo, Verger, pode remeter a Pierre Fatumbi Verger, importante etnólogo e fotógrafo francês, amigo de Jorge Amado. A leitura que se faz dessa passagem chama atenção ao labor para a arte de fotografar. Nessa digressão é possível depreender que por meio da imagem retratam-se situações que nem mesmo as palavras são capazes de expressar. De modo que, a fotografia ou a imagem é a preservação de um momento idílico e, conseqüentemente, indelével. É a preservação por meio de pequenos quadros do cotidiano da própria vida, da alegria, da felicidade (e os antônimos também são verdadeiros). O fato é que a imagem de Quincas com os amigos descendo a ladeira de São Miguel pode ser retratada e o amigo Verger surge como um personagem implícito, que ao invés de fotografar, distribui amuletos africanos (símbolos de rituais) para os transeuntes. Em última instância, a imagem ou a fotografia é a não-morte. É a ritualização em pequenos quadros de momentos do cotidiano.
Por fim, Quincas opta por morrer no mar. Quando uma tempestade vem buscá-lo. Ali, naquele momento, ele seria livre.
Considerações finais
Acredita-se que toda a produção de Jorge Amado enseja um profícuo campo de reflexão para esse viés cômico, porém, para efeito desse estudo, elegeu-se por corpus a obra A morte e a morte de Quincas Berro Dágua, publicada em 1958. O objetivo precípuo do presente artigo foi analisar a dualidade riso/seriedade, tendo por pano de fundo a problemática da morte, entre outras questões ventiladas pelo escritor de Jorge Amado no decurso da obra.
Para tal desiderato, foram utilizados diversos autores que problematizam a temática da morte, especialmente Rodrigues (2006), para demonstrá-la como fenômeno social e plurissignificativo por excelência. Além dessa abordagem, utilizou-se Freud (1996) para explicar em quais situações o riso pode ser utilizado e depreendeu-se que ele pode ser ingênuo ou tendencioso. O primeiro referindo-se aos eventos não intencionais do sujeito, portanto, em tênue relação com o inconsciente. Seriam os atos falhos, as tentativas ingênuas de se brincar com as palavras sem o objetivo de vituperar terceiros. A segunda opção, já tendenciosa, tem por fim a humilhação e o deboche das pessoas. É esse recurso que vai pautar toda obra aqui analisada.
O personagem principal utiliza-se do riso para vilipendiar a instituição familiar, para deflagrar as hipocrisias existentes, tais como a avareza, a etiqueta social, entre outros.
Essa antítese (riso/seriedade) evocada pelo autor é proposital, já que temas sociológicos como o carnaval, a jogatina, o alcoolismo, a malandragem e a própria morte, historicamente tratados com significados sérios, são duramente criticados pelo autor. Que sublinha o protagonista, Quincas, como o herói que se arvora no riso para desconstruir o sério.
Tal personagem só se sente realmente vivo quando está morto. Porque nessa condição ele tem oportunidade de vivenciar os prazeres do mundo; em outras palavras, é um hedonista. É o arquétipo de Jorge Amado que vivencia todos os prazeres ao invés da “vida” pernóstica do burocrata infeliz.
Destarte, depreende-se da leitura realizada na obra do autor que o riso é coisa séria e por diversas passagens ele é trazido à baila para a crítica à sociedade pusilânime e moralista, notadamente à instituição familiar que tenta a todo instante suplantar a felicidade da personagem principal.
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