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História e memória da pipa em Goiânia. 

Uma história das crianças e da cidade

Historia y memoria del cometa en Goiania. Una historia de los niños y de la ciudad

 

FEF-UFG

SME-GO

(Brasil)

Profa. Dra. Rubia-Mar Nunes Pinto*

Prof. Mtdo. Reigler Siqueira Pedroza**

Acadêmico Tharley Cortes Freitas*

Acadêmico Denys de Souza Viana*

Acadêmica Jullyana Esteves dos Santos*

hiscorpo@hotmail.com

 

 

 

 

Resumo

          O trabalho relata os resultados da investigação História e memória da pipa em Goiânia e a experiência do Festival Pipa com Grude... e sem cerol (?), ambos integrantes do projeto de pesquisa Educação e cultura na história das práticas corporais em Goiânia (1935-2005): o corpo entre a cidade e o sertão. Ao enfocar a pipa, este frágil e efêmero artefato da cultura material e da história da infância e da juventude goianiense, a pesquisa e o Festival pretenderam compreender e dar a conhecer aspectos da historicidade da construção social do corpo no centro do Brasil ressaltando as permanências e rupturas na produção e uso de pipas. Pretendeu-se também instituir um debate sobre os espaços e tempos relacionados à prática da pipa em uma cidade-capital estadual que vivencia um processo de metropolização sustentado na ocupação (capitalista) do urbano, o qual traz como um de seus desdobramentos, a criminalização do cerol. De outro lado, o Festival vem propondo uma pedagogia que trate jogos, brinquedos e brincadeiras como um saber/conhecimento socialmente válido e de grande interesse para o campo da educação física brasileira.

          Unitermos: História. Pipa. Goiânia.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 150, Noviembre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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    O que dizem as pipas sobre as cidades, sua história, sua cultura? O que elas podem dizer sobre os sentidos do urbano, sobre a identidade daqueles que habitam as cidades, sobre os paradoxos e contradições de sociedades urbanizadas? Poderia a pipa - este artefato construído e manipulado por crianças - contribuir para um repensar sobre o modelo de cidade que predomina na realidade brasileira? São estas as questões colocadas no ponto de partida de uma investigação que procurou mapear a existência e os usos da pipa em Goiânia, cidade-capital estadual planejada e construída nas décadas de 1930 e 1940 como um símbolo da modernidade e da civilização do sertão.

    Na busca de respostas possíveis para tais questionamentos, a investigação recortou dois momentos significativos da história de Goiânia: as décadas de 1940 e 1990. Em ambos, pode ser encontrada a busca de construção ou re-construção da identidade dos goianos e dos goianienses, dimensão reiteradamente presente na história de Goiás. No primeiro momento – 1940 – a cidade-capital estadual era construída material e simbolicamente como ponto de fusão da nação dilacerada; o lugar e o momento em que a pátria cindida seria unificada; ‘o cadinho onde se unem sertão e litoral’, conforme afirmava então a ‘intelectualidade moca de Goiás’. Porém, além do seu valor para a unidade da nação, a construção material e simbólica de uma nova cidade-capital, Goiânia, sob os auspícios da modernidade arquitetônica e urbanística ensejou a esperança de superação de uma história (regional) estigmatizada pela decadência e pelo atraso. A modernidade da cidade sustentava, assim, a busca pela construção de uma identidade afirmativa para um povo representado pejorativamente como caipira, roceiro, atrasado. Segundo (PINTO, 2010: 43), o surgimento de uma nova capital estadual

    prometia aliviar os ombros do povo goiano do excessivo peso de uma história que não era nem conhecida nem reconhecida. Por isso, foi anunciada como a solução para aquela sociedade que vivia “a míngua de um passado”. A nova cidade-capital do estado de Goiás [...] surgia como ruptura com o passado decadente e atrasado e como promessa de um futuro promissor para o ‘filho mais modesto, o filho menos educado’ entre os filhos do pai Brasil. Um futuro no qual Goiás deixava de ser uma ‘[...] quasi desnecessidade’ para a nação e se tornava parte relevante e reconhecida no seu espectro.

    No segundo momento - 1990 - a capital de Goiás viva os dilemas e desencantos provocados pela contaminação radioativa do Césio 137 ocorrida em 1987. As conseqüências do acidente se traduziram em ondas de violência e incerteza diante da incompetência da esfera pública regional além da discriminação em relação à Goiânia e aos goianienses. De acordo com Vicente (2006), a imagem da cidade moderna estilhaçou-se sobrevindo uma crise identitária evidenciadas em relações conflituosas e discriminatórias entre a população do interior do estado e a da capital e entre esta e a população do restante do país. Havia, assim, a necessidade de reconstruir imagens e representações que, desde o surgimento de Goiânia, vinham qualificando a cidade sob os signos da modernidade. Ainda conforme este autor (2006: 34), esta reconstrução pautou-se pela problematização da

    [...] integração do estado ao país mediada pelas idéias da industrialização do estado baseada na agricultura, e da modernização, cujo símbolo é a construção de Goiânia e a transferência da capital, em 1937. [...] podemos perceber que Goiás é reinventado como pertencente à federação, isto é, suas imagens identitárias são reconstruídas: a integração do imaginário regional goiano ao nacional surge para uma sociedade que, no final dos anos de 1980, é marcada pelo trauma da exclusão e do medo provocado por um fato particular, o ‘acidente’ radiativo com o césio 137. (Grifos do autor)

    As fontes privilegiadas pela investigação sobre a história da pipa em Goiânia foram fontes orais, fazendo-se também uso de fontes textuais como livros de memórias e noticiário urbano publicado pela impressa local. Foram recolhidos relatos de moradores que viveram suas infâncias em Goiânia nos períodos recortados e realizada uma pesquisa de arquivo em jornais locais. A consulta aos jornais estendeu-se pelas décadas anteriores e posteriores à demarqueé temporal, qual seja, os anos 1930, 1950, 1980 e 2000 na expectativa de buscar indícios do uso do cerol e de suas possíveis conseqüências para a vida urbana. Buscou-se também detectar a presença da pipa nos relatos de memorialistas da cidade.

Material de divulgação do Festival

    Das fontes utilizadas, os relatos orais forneceram maior quantidade de pistas, indícios e sinais da pipa na história da infância e da juventude goianiense. Deles emanaram alguns aspectos característicos da história da pipa em Goiânia, os quais se mostram articulados ao processo de desenvolvimento urbano da cidade-capital goiana. Um destes aspectos diz respeito à mudança na terminologia que designa este artefato. No relato de um morador que nasceu em 1938 e viveu sua infância na então jovem Goiânia nos anos 1940, a mudança de nomes é explicada em uma lógica que reconhece a diversidade regional brasileira.

    Brincamos muito de pipa. Na verdade, chamava soltar raia; depois, soltar papagaio. Pipa veio depois. Porque uns termos são usados - esse país é grande demais - são usados em certas regiões e não são usadas em outras. [...]. Aqui em Goiás não se chamava pipa; depois é que veio pipa. Do Rio, eu acho.

    Acerca do nome do artefato, o entrevistado que viveu sua infância na década de 1990 também admite a existência de diferentes termos nominativos para o artefato, porém, afirma que a geração de meninos e meninas que brincavam de pipa nos anos 1990 não o reconhece por esta designação, mas pelo termo raia. Já para as crianças que, hoje, lidam com o artefato, o termo pipa é predominante, embora em certas regiões da cidade ainda conviva com outras designações, especialmente, o termo raia. A complexidade relativa à mudança de termos designativos e o recente predomínio do termo pipa coloca em foco a questão das influências e pregnâncias que sustentaram esta mudança histórica fazendo surgir, como hipótese a ser melhor investigada, a idéia de que a cultura escolar é uma das responsáveis - juntamente com as mídias - para a difusão da designação pipa em Goiânia. Afinal, além das cartilhas que contém a palavra PIPA, as escolas de Goiânia utilizam a mesma expressão em oficinas pedagógicas de produção e uso do artefato.

Aspecto da exposição pipas de Goiânia

    Um segundo aspecto da história da pipa em Goiânia diz respeito ao material usado para a sua produção. Destaca-se, neste aspecto, a mudança no material usado para colar as partes da pipa. A mudança do material colante parece ter-se dado em estreita associação com a história da cidade. Na gênese e primeiras décadas, usava-se predominantemente uma cola artesanal produzida com farinha branca e água, o grude. Depois, usou-se uma cola de madeira utilizada construção civil, a cola tablete, a qual foi sendo progressivamente substituída pela cola plástica de origem industrial. O percurso da cola artesanal à cola industrial deixa ver o processo de modernização da cidade: nas primeiras décadas, a quase ausência de produtos industrializados impelia a produção artesanal da cola; posteriormente, o uso de um material colante típico da engenharia e da arquitetura mostra-se coerente com a expansão privilegiada da indústria da construção civil em uma cidade planejada. E, por fim, a substituição deste material pela cola plástica industrializada revela o processo de industrialização e circulação de mercadorias vivenciados no estado de Goiás e em sua cidade-capital.

    O terceiro aspecto da historicidade da pipa na cidade-capital de Goiás refere-se aos modelos de pipa que predominam na cultura da infância e da juventude goianiense. Conforme o entrevistado dos anos 1990, Goiânia poderia ser dividida em duas grandes regiões a partir do predomínio de dois modelos de pipa: a flechinha e a arraia. Ou seja, neste aspecto a história da pipa em Goiânia diz respeito à história da ocupação urbana e das relações entre bairros e setores. O que diz esta história? Um olhar para mapas urbanos de Goiânia nos períodos 1940 e 1990 ajuda a compreender o quadro.

Crianças simulam movimentos da pipa no céu

    O que se vê nestes mapas é uma cidade recortada por imensos espaços vazios entre bairros, setores e regiões. Nos anos 1940, havia dois bairros prontos e oficialmente reconhecidos – o Setor Central e Campinas, distantes 06 quilômetros um do outro. Era nestes bairros que viviam as elites intelectuais e econômicas de Goiânia. Mas, existiam núcleos populacionais nas margens do Córrego Botafogo – a Invasão do Botafogo - e na fronteira norte do Setor Central – o Setor Ferroviário. Estes eram núcleos marginais na cidade que se erguia; ali residia uma população empobrecida, formada pelos operários que trabalhavam na edificação da cidade e por suas famílias e também por aqueles que migravam - sem posses de propriedades, prestigio ou dinheiro – atraídos pela promessa de riqueza que então fazia parte da propaganda de Goiânia (PINTO, 2009).

    Já nos anos 1990, a cidade começava a ensaiar um processo de grande crescimento demográfico e expansão de sua área de influência. De acordo com Moysés (2004), é neste momento em que a cidade ganhou o status de região metropolitana: nascia a Grande Goiânia, complexo constituído pela capital e os dez municípios geograficamente mais próximos. A Grande Goiânia, entretanto, manteve os grandes espaços vazios entre alguns bairros e setores e também em relação a alguns dos aglomerados urbanos vizinhos.

Fazendo pipa no museu

    Os vazios urbanos possibilitavam, conforme nossos depoentes, que o cerol fosse usado sem riscos e perigos para a circulação de pessoas e veículos. Talvez por isso, a ocorrência de acidentes fosse mínima a ponto de não chamar a atenção da impressa. Além disso, as distâncias entre bairros e setores permitiam que as guerrinhas de cerol fossem travadas entre crianças de regiões urbanas distintos. No céu das fronteiras entre bairros, separados por distâncias seguras, as crianças de um lado ‘toravam’ as pipas das crianças de outro, alimentando disputas que se davam também em outras dimensões da vida infantil, como ocorria com a guerra de pedras entre meninos dos Setores Central e Ferroviário nos anos 1950 e 1960.

    O cerol, seus usos e conseqüências, é o quarto aspecto da historicidade da pipa em Goiânia. Na pesquisa em jornais das décadas de 1930, 1940, 1950, 1980 e 1990 – bem como a consulta nos livros de memórias - não foi possível encontrar referências ao cerol e à pipa de modo geral. Os jornais dos anos 2000, entretanto, deixam evidentes a agudização de um dos efeitos de uma prática histórica da pipa em Goiânia, qual seja, o uso da mistura de cola e vidro moído nas linhas da pipa nas guerrinhas de cerol. A pipa havia se tornado um problema urbano em Goiânia. Nesta década, no noticiário jornalístico local, abundam relatos e ocorrências acerca das conseqüências nefastas desta prática, especialmente, para motociclista e ciclistas.

    Os jornais dão a ver um intenso debate sobre esta questão, o qual culmina na aprovação de lei municipal que criminaliza a fabricação e uso do cerol em Goiânia. A partir da aprovação da lei, os jornais trazem noticias do aprisionamento de linhas com cerol, de fabricantes e usuários da mistura, inclusive, crianças e adolescentes e uma certa ênfase no trabalho educativo (e repressivo) realizado por grupamentos militares locais (PM, Guarda Municipal, Corpo de Bombeiros) junto a crianças e jovens da cidade. A criminalização do cerol reveste-se de uma latente dramaticidade se levados em conta, de um lado, seus funestos efeitos sobre a vida de cidades e, de outro, a construção histórica que faz do cerol uma prática de formação, principalmente de meninos.

Os nomes do artefato na historia de Goiânia

    Neste sentido, os relatos são inequívocos. Eles deixam ver a função social da pipa na formação da identidade masculina bem como seu papel de mediação nas relações entre pais e filhos e nas relações entre meninos de diferentes idades. Uma simbólica da masculinidade se insinua no coração do Brasil. Ao rememorar a pipa, o depoente dos anos 1940 não deixa de mencionar a preservação de um saber transmitido ao filho bem como a permanência da sensação de alegria e felicidade na manipulação do artefato. Conforme suas palavras: ‘Pipa? Eu sei fazer até hoje. Meu filho mais velho, até uma certa idade, eu fazia com ele, me deliciando. Eu não sei se era para ele ficar alegre ou eu que estava ficando mais feliz, não é?

    Nos anos 1990, as relações entre meninos de idades diferentes são mais enfatizadas em contraponto a presença paterna e com ênfase nas aprendizagens decorrentes da fabricação e uso do cerol. Segundo o depoente deste período, em torno da fabricação e uso da pipa bem como das guerras do cerol ocorre a constituição de uma verdadeira hierarquia dos sujeitos-pipeiros. Os meninos mais habilidosos na construção, na soltura e na guerra agregam, perto de si, um coletivo de meninos menores ou menos habilidosos, os quais assumem tarefas diferenciadas na prática da pipa na condição de ajudantes. Alguns se encarregam de encontrar a matéria prima bruta para a construção da pipa e do cerol; outros carregam pipas e rolos de linha para o local de soltura; outros ainda correm atrás da pipa torada com a intenção de recuperá-la para seu dono ou tê-la para si como um troféu. Sob a orientação do menino mais habilidoso, todos colaboram na construção da mesma, fazendo varetas de bambu ou buriti, cortando e colando papel, fabricando o cerol, enrolando a linha.

Pipas fechinha (direita) e arraia (esquerda)

    O combate e a criminalização do cerol em Goiânia têm enfrentado as resistências dos meninos da cidade. Eles continuam a guerrear nos céus da cidade, apesar dos esforços de escolas, professores, policiais e políticos e da mídia local e nacional. Seus efeitos nefastos tendem a se ampliar dado que Goiânia acelera o passo rumo a um modelo urbano pautado pela redução ou desaparecimento dos amplos espaços vazios que marcaram a sua geografia e pelo aumento na circulação nas ruas e avenidas que surgem onde antes só existia mato ou capim. Neste contexto, escasseiam os espaços públicos de lazer para a população goianiense. Praças e campões nos quais se pode soltar pipa com segurança vão sendo substituídos pelos condomínios privados e pelos shopping-centers que qualificam, progressivamente, a modernidade excludente que é uma das marcas das cidades brasileiras.

    É na perspectiva de difundir os resultados desta pesquisa e contribuir para a instauração de um debate acerca da cidade que foi proposto e realizado o Festival de pipa com grude...e sem cerol (?). Espera-se, com a sua realização, contribuir para a preservação da memória das práticas corporais e estimular iniciativas voltadas para a ocupação cidadã de espaços públicos adequados a prática da pipa (praças, escolas, parques, complexos poliesportivos, museus, campi universitários, etc.) ensejando o debate e a prática da busca de espaços qualificados para o lazer comunitário na capital goiana.

Festival de pipa com grude... E sem cerol (?): uma estratégia de difusão da história da pipa em Goiânia

    O Festival é um evento de extensão e cultura composto de oficinas, palestras e experiências que surgiu da necessidade de difundir os resultados da pesquisa. Seu objetivo principal é reconstituir a história da pipa em Goiânia com ênfase: 1) na recomposição dos modos de fazer e soltar a pipa; 2) no reconhecimento das relações entre crianças de bairros, setores e regiões a partir da construção e uso de distintos modelos de pipa; 3) na tematização da terminologia que designa a pipa em Goiânia; e 4) na problematização sobre o uso do cerol e sua relação com a progressiva deteriorização dos espaços de lazer que permitem a prática da pipa ensejando o debate e a prática da busca de espaços qualificados para o lazer comunitário na cidade de Goiânia.

    A proposta prima pela reconstituição das ‘artes de fazer’ relacionadas a um artefato da cultura material - a pipa - na história da cidade de Goiânia. De outro lado, encaramos a pipa com um artefato que integra a cultura corporal da sociedade goianiense. O Festival insere-se na perspectiva de uma história das ‘práticas comuns’ - ou ainda das práticas do cotidiano -, como propõe Michel de Certeau (1994). Para este autor, tais práticas, ao contrário de apenas reproduzirem a cultura da sociedade de consumo, se constituem como ‘uma produção’ de sujeitos aparentemente entregues à dominação e considerados como meros consumidores da cultura de massas. Ressalta-se aí as operações (as artes de fazer, os usos, as operações) realizadas por tais sujeitos sobre os objetos de consumo.

    Neste sentido, o Festival assume a perspectiva de que a pipa – sua construção e uso – é uma produção histórica de sujeitos despossuídos de poder (crianças, jovens, principalmente, crianças e jovens pobres) que, através das maneiras de usar e fazer, se inserem nas brechas do sistema dominante inventando uma poética do cotidiano. O Festival propõe dar a conhecer a historicidade desta produção essencialmente infanto-juvenil. O foco privilegiado da proposta dirige-se, portanto, à história da cultura corporal urbana na cidade-capital goiana privilegiando as práticas ‘da gente modesta’ (DAVIS, 1990) – os soltadores de pipas - e suas operações sobre o artefato. Toma-se como pressuposto que o urbano é lugar de uma cultura (capitalista, burguesa) que age sem que se tenha consciência de sua ação sobre os sujeitos e, como num jogo de claro-escuro, oculta os rastros da cidade.

    Considera-se, a partir daí, que as pipas são artefatos culturais que expõem estes rastros: elas nos chamam a flanar no urbano e a perscrutar os seus cantos, adentrar seus vazios e a espionar seus espaços disciplinarizadores. Desta perspectiva, o Festival também intenciona estimular o debate sobre os limites e conseqüências dos usos da pipa em uma cidade que tem vivenciado um intenso processo de especulação imobiliária e ocupação desordenada do espaço bem como do acelerado avanço da violência urbana.

    Para o alcance dos seus objetivos, elaborou-se uma pedagogia que permita a apreensão da pipa como objeto da cultura material e da história de Goiânia. A proposta fundamenta-se em uma elaboração da Profa. Dra. Rubia-Mar Nunes Pinto a partir do referencial histórico-cultural da formação do psiquismo individual, dos estudos sobre cultura material e sobre o ensino de história da educação física. A problemática que vem suscitando e estimulando a construção desta pedagogia é a seguinte: Como tratar pedagogicamente os conteúdos da cultura corporal como conhecimento/saber nas aulas de educação física escolar e também nos espaços não-escolares, mas que trabalham com intencionalidades educativas e em articulação com a escola (como museus, brinquedotecas, colônias de férias, etc.)? Mais precisamente, questiona-se como tratar este tema em uma perspectiva critica e problematizadora que contribua para que a criança possa se valer de tais saberes para fazer a leitura da realidade na qual vive.

    Neste sentido, o foco recai sobre o ensino dos jogos, brinquedos e brincadeiras. Objeto que transita nas fronteiras do conhecimento, o jogo/brinquedo/brincadeira se mostra como algo extremamente complexo, inclusive, pela proliferação de discursos que celebram sua importância e validade na educação e na formação humanas, mas que avançam pouco em direção à sínteses que o tratem como saber socialmente válido. O que mais se evidencia nos discursos, pesquisas, intervenções e práticas é a abordagem puramente instrumental do jogo, do brinquedo e da brincadeira, característica já conhecida e defendida desde a antiguidade clássica tendo sofrido grande desenvolvimento a partir da consolidação da moderna forma escolar, por volta do século XVIII e XIX. Continuamos, ainda hoje, a ecoar Rousseau, Pestallozzi, Froebel e outros teóricos de tempos passados e do tempo presente. O que prevalece são as perspectivas que repetem ad nauseaum seu valor para o desenvolvimento infantis e seu potencial instrumental nas aprendizagens escolares (em especial, os saberes elementares – ler, escrever e contar) e na incorporação dos comportamentos civilizados requeridos pela vida social moderna, etc., etc., etc..

    Daí a maior dificuldade em lidar cientifica e pedagogicamente com este objeto, predominando a falta de problematização sobre o mesmo e a repetição sobre importância para o desenvolvimento infantil. Nossos discursos e práticas pouco fizerem avançar, por exemplo, a tomada destas práticas lúdicas em sua historicidade e significação social, embora, seja esta a postura do referencial teórico e pedagógico de caráter crítico da educação física no Brasil. É este, talvez, o maior desafio se pensarmos as práticas lúdicas como práticas culturais e históricas e como saber/conhecimento a ser ensinado e apreendido nos contextos da educação física, exatamente como indicam as proposições críticas do campo.

Referências bibliográficas

  • CERTEAU, MICHEL. A invenção do cotidiano. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

  • DAVIS, NATALIE ZEMON. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro/RJ: Paz e Terra, 1990.

  • MOYSÉS, ARISTIDES. Goiânia, metrópole não-planejada. Goiânia/GO: Ed. UCG, 2004.

  • PINTO, RUBIA-MAR NUNES. Goiânia, no ‘coração do Brasil’ (1937-1945): a cidade e a escola re inventando a nação. Niterói/RJ: FEUFF, 2009. Tese de doutorado.

  • VICENTE, KEIDES BATISTA. Retratos de Goiás: memórias de ex-militantes estudantis goianos sobre a década de 1960. Goiânia/GO: IH/UFG, 2006. Dissertação de mestrado.

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