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Desempenho esportivo: talento inato ou treinamento?

Rendimiento deportivo: ¿talento innato o entrenamiento?

 

Escola de Artes, Ciências e Humanidades

Universidade de São Paulo, São Paulo

(Brasil)

Alessandro Nicolai Ré

alehnre@usp.br

 

 

 

 

Resumo

          Atualmente, não há evidências de que a excelência esportiva esteja relacionada, isoladamente, a fatores genéticos ou ambientais. Dentro desse contexto, o presente estudo de revisão teve como objetivo apresentar resultados de pesquisa e considerações teóricas sobre os fatores que potencialmente influenciam a excelência esportiva. A quantidade e a qualidade dos estímulos ambientais, em constante interação com aspectos genéticos, determinam o nível de desempenho esportivo. Devido à complexidade e a consequente imprevisibilidade dessa interação, a predição do talento esportivo, especialmente durante a infância, é altamente questionável, justificando-se assim a adoção de estratégias que favoreçam a promoção do talento.

          Unitermos: Esporte. Treinamento. Genética. Talento.

 

 
http://www.efdeportes.com/ EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 149, Octubre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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    Dentro de uma perspectiva histórica da pesquisa científica sobre a excelência, a visão do talento inato foi inicialmente preferida. Provavelmente, devido a uma impossibilidade para explicar certas observações empíricas, a teoria baseada em características adquiridas passou a ser seriamente considerada (Ericsson & Smith, 1991). Na verdade, as causas relacionadas ao desempenho de alto nível são extremamente complexas, dependentes de um conjunto de fatores que interagem, influenciando-se mutuamente. Dentro dessa abordagem, o objetivo desta revisão de literatura é apresentar resultados de pesquisa e considerações teóricas sobre os fatores que potencialmente influenciam a excelência esportiva.

Fatores genéticos

    O treinamento esportivo, mesmo quando combinado com orientação adequada, oportunidades precoces, muito incentivo e motivação incomum, nem sempre dará origem a atletas excepcionais. Apesar de atrativa, a ideia de que a prática leva à perfeição, não parece ser realista. É inegável a necessidade de dedicação aos treinamentos para obtenção do sucesso. Porém, as explicações em termos de prática não são suficientes e características hereditárias não podem ser desprezadas (Schneider, 1997). Na verdade, não existe nenhuma evidência científica que sustente exclusividade em favor de características hereditárias ou ambientais no desempenho esportivo apresentado.

    BOUCHARD, MALINA e PÉRUSSE (1997) destacaram que ainda existem lacunas no conhecimento das possíveis contribuições de aspectos genéticos no esporte. De acordo com esses autores, até mesmo características antropométricas, como a composição corporal, sofrem importante influência ambiental. A estatura é um exemplo singular de mecanismo genético claramente demonstrado. Dentro de condições normais e nutrição adequada é bem conhecido que o crescimento físico é amplamente determinado por fatores genéticos em termos de velocidade e estatura final (Bouchard & Malina, 1986; Malina, Bouchard & Bar-Or, 2004; Wilson, 1986). Evidentemente, essa predisposição genética da estatura, pode interferir no desempenho esportivo, talvez limitando as possibilidades de superação com o treinamento. Por exemplo, é improvável que um indivíduo de 1,60m tenha sucesso internacional no basquetebol, por maior que seja sua dedicação aos treinamentos.

    Chase e Simon (1973) e Ericsson, Krampe e Römer (1993) popularizaram o que se tornou conhecido como “regra dos dez anos” de prática para atingir a excelência. Entretanto, tal teoria apresenta limitações, pois é baseada em dados de indivíduos que atingiram o sucesso, não tendo acesso àqueles que se dedicaram, com a necessária motivação, entre outros fatores, mas não atingiram níveis elevados de desempenho. Parece que, quanto mais favorável for a disposição genética, maior a probabilidade de resposta favorável ao treinamento.

    Fatores genéticos são importantes na maturação neuro-muscular e, consequentemente, no desenvolvimento de habilidades motoras, mas a contribuição específica dos genes para esses processos é difícil de quantificar. Para Seefeldt (1988) a herança genética determina os limites em que as habilidades são expressas. Kupferman e Kandel (1995) afirmaram que a maior parte dos comportamentos humanos depende de interações entre processos genéticos e ambientais, e, nesse caso, a motivação para se dedicar ao treinamento ocupa um lugar de destaque.

    Diversos aspectos da personalidade podem predispor os indivíduos no sentido de maior ou menor dedicação aos treinos, assim como manter níveis ótimos de motivação por longos períodos. Wolansky (1984) citou que existem diferenças na sensibilidade (aceitação) dos diferentes estímulos ambientais. Segundo ele, a sensibilidade do organismo é geneticamente determinada e influenciada por experiências precoces. É provável que características psicológicas sejam influenciadas indiretamente pelos genes (Plomin & Thompson, 1993). Entretanto, não existe um padrão psicológico que possa ser considerado ideal para o alto desempenho (Williams & Reilly, 2000; Abbott & Collins, 2004).

    A motivação para se dedicar pode fazer parte de um potencial inato (Winner & Martino, 1993). Ainda que sejam oferecidos oportunidades e incentivo para a criança, não são todas que respondem de maneira positiva a tais ofertas. Crianças que notoriamente se destacam passam horas praticando tarefas relacionadas à sua atividade de maneira absolutamente voluntária. Feldman (1988) e Winner e Martino (1993) argumentaram que alguns fatores apontam para a existência de habilidades que naturalmente variam entre crianças. Um desses fatores seria o grande empenho e dedicação para se destacar em determinada atividade.

    Em relação à influência da família, Freeman (1991) identificou que as crianças que se destacavam na música tinham tido o necessário apoio familiar e oportunidades iniciais de treinamento, mas, acompanhando o desenvolvimento das mesmas, o autor concluiu que muitas vezes o que era identificado como uma “promessa” era, na verdade, o resultado das oportunidades iniciais. O grande destaque inicial não foi mantido quando estas crianças se tornaram mais velhas. Freeman (1995) argumentou que não existem estudos, em nenhuma área, realizados com um grupo randomizado de crianças, treinadas nas mesmas condições, resultando em grandes desempenhos. Não existe nenhuma evidência que permita desprezar a participação de fatores hereditários no desempenho. De acordo com Bouchard e Malina (1986), a resposta e adaptação a estímulos crônicos, como o treinamento, sofre considerável influência de fatores genéticos. Porém, mesmo que diferentes resultados sejam observados em decorrência de um mesmo treino, não é possível concluir que apenas aspectos genéticos interferem nessas diferenças. Características genéticas e ambientais influenciam-se mutuamente, sendo difícil “isolar” determinado fator.

    Na realidade, os caminhos que levam ao alto desempenho são diversos, sendo improvável especificar seus fatores determinantes (Silva, Massa, Ré, Uezu & Teixeira, 2010). Compensações são possíveis, ou seja, uma eventual desvantagem em determinado aspecto pode ser compensada por uma superação em algum outro fator. Segundo Singer e Janelle (1999), a excelência no esporte é o resultado da ótima integração entre genes e ambiente. Mesmo reconhecendo que existem influências genéticas no alto desempenho, elas devem ser entendidas de forma probabilística para obtenção do sucesso, sendo necessárias condições ambientais apropriadas para que o indivíduo se destaque (Tranckle & Cushion, 2006). Desse modo, é absolutamente questionável o pensamento, ainda sustentado por muitos envolvidos com a formação esportiva, de que os atletas habilidosos “nasceram para o esporte” ou possuem um “dom natural” que os possibilita atingir um alto nível de desempenho.

Fatores ambientais

Especificidade das adaptações orgânicas

    No meio esportivo, é comum atribuir o desempenho motor de excelentes atletas a fatores hereditários. Entretanto, tem sido demonstrado sistematicamente que diversas adaptações orgânicas são resultantes de um extenso período de treinamento. Howald (1982) realizou estudos com atletas de elite, que foram forçados a parar ou reduzir o treinamento devido a lesões e observou quedas drásticas no percentual das fibras lentas em um período de seis meses a um ano, concluindo que as diferenças entre atletas e outros indivíduos, quanto à proporção de fibras musculares, é específica para os músculos mais exercitados no treinamento para uma modalidade específica. Ericsson (1990) ressalta que a diferença na proporção de fibras lentas, essenciais para o sucesso em corridas de longa distância, é o resultado de extenso treinamento, antes de ser uma causa inicial de desempenho superior. Elloviano e Sundberg (1983) reportaram que corredores adultos de elite em longas distâncias adquiriram excelente potência aeróbia e maior volume cardíaco durante um período de cinco anos de treinamento, porém não exibiam tal superioridade aos catorze anos de idade.

    A especificidade de adaptações estruturais também é o resultado da prática durante longos períodos. O exercício provoca uma grande adaptação neural e essa adaptação é específica. Entretanto, ainda existem lacunas no conhecimento sobre como ocorrem tais adaptações e sobre as diferenças que ocorrem na magnitude dessas adaptações (Enoka, 1997). Kelly e Jessel (1995) argumentaram que a faixa de comportamentos potenciais é geneticamente determinada, mas os componentes particulares expressados são formados por interações entre as células em desenvolvimento e o ambiente.

    Em estudos realizados com macacos (Jenkins, Merzenich & Recanzone 1990) foi verificado que as áreas de representação cortical variavam consideravelmente e a hipótese sustentada foi a de que essas diferenças se davam devido ao uso durante a vida (interação com o meio); resultados semelhantes foram observados na recuperação de lesões, onde se notou uma reorganização dos mapas de representação cortical. Black, Isaacs, Anderson, Alcantara e Greenough (1990), compararam grupos de ratos treinados em atividades acrobáticas com grupos treinados em exercícios físicos (corrida) e observaram um aumento do número de sinapses no córtex cerebral dos ratos do primeiro grupo, porém não nos ratos treinados em exercícios físicos, os quais exibiram maior densidade dos vasos sangüíneos. Elbert, Pantev, Wienbruch, Rockstroh e Traub (1995) demonstraram em estudos com seres humanos de destaque em instrumentos musicais com corda, que os dígitos mais utilizados tinham uma representação cortical distinta devido ao tempo de prática.

    De acordo com Kandel (1995), os indivíduos têm probabilidade de exercitar suas habilidades motoras de diversas formas. Logo, a arquitetura de cada cérebro é modificada de modo especial e tal modificação distintiva da arquitetura cerebral, junto com uma formulação genética única, constitui a base biológica da individualidade. No entanto, as relações entre o sistema neural e medidas de desempenho ainda são muito fracas para garantir conclusões sobre o talento. Segundo Sternberg (1993), tais relações diminuem à medida que a tarefa se torna mais complexa.

    O controle de atos motores está de tal forma interligado às forças ambientais, que é completamente remota a possibilidade de que nossos esquemas de memória ou genes sejam capazes de antecipar todas as possíveis modificações contextuais na realização de uma tarefa motora, as quais exigiriam novos comandos, gerados a partir do nível superior do sistema de controle (Teixeira, 2001).

    Existe uma diversidade de possíveis modos de integração entre componentes sensoriais, motores e associativos, a partir do conjunto de experiências particulares de um organismo. Dentro dessa perspectiva, fica explícito que o estabelecimento de um comportamento motor habilidoso é conseqüência de um processo de especialização, em que as unidades mais bem adaptadas são selecionadas e integradas entre si, por intermédio da experiência prática (Teixeira, 2001). Sem um melhor entendimento das possíveis interferências ambientais, entre as quais se destaca o treinamento, é improvável o progresso no estudo das causas relacionadas ao sucesso esportivo.

Cognição, conhecimento e ação no desempenho esportivo

    O conhecimento é essencial para entender a informação do ambiente de maneira apropriada e utilizá-la em padrões táticos e técnicos específicos de determinada modalidade esportiva. É plausível que, mesmo com um padrão motor consistente, um indivíduo não consiga executar a resposta desejada devido à falta de conhecimento. Por esse motivo, ainda que o foco da presente pesquisa esteja relacionado às execuções motoras, é imprescindível o conhecimento dos estudos que investigam aspectos perceptivos e decisórios no esporte.

    O balanço entre conhecimento e ação varia de acordo com diferentes modalidades. Em algumas delas, principalmente as que requisitam habilidades motoras fechadas, a execução (ação) predomina. Em outras, onde são empregadas habilidades motoras abertas, o conhecimento é extremamente importante, pois são necessárias decisões precisas e rápidas dentro do contexto do jogo, executando o movimento para gerar a resposta desejada, em ambiente de constante mudança. Nessas modalidades, como por exemplo o futebol, o desempenho esportivo pode ser entendido como um complexo produto do conhecimento, combinado com a capacidade do executante para produzir as habilidades esportivas requeridas (Thomas, French & Humpries, 1986).

    De uma maneira geral, os experts tendem a apresentar uma grande vantagem na velocidade da tomada de decisão. Essa vantagem na velocidade é ainda mais expressiva do que a vantagem na qualidade das decisões (Chamberlain & Coelho, 1993). Allard e Starkes (1980) demonstraram em seus estudos que a vantagem na velocidade de decisão que os experts apresentavam na detectação de um sinal era específica para o domínio em que se destacavam. Quando tal tarefa não era realizada dentro de seu domínio, a vantagem deixava de existir. Os mecanismos que conduzem a um desempenho superior implicam em estruturas cognitivas que são específicas para as tarefas relevantes em determinado campo de atuação. Para diferentes domínios, o processo de identificação da informação pode ser bastante diferente, dependendo da demanda da tarefa (Allard & Starkes, 1991).

    Allard, Graham e Paarsalu (1980) e Starkes e Deakin (1985) realizaram, respectivamente, estudos no basquetebol e no hockey sobre o gelo. Ambos os estudos encontraram resultados semelhantes, que apontam para o fato de que os jogadores de maior destaque são capazes de memorizar com eficiência bastante superior as condições de jogo estruturadas, porém não apresentavam essa memória superior em outras condições, evidenciando a especificidade de processos cognitivos.

    French e Thomas (1987) examinaram a relação existente entre o conhecimento específico no basquetebol e o desempenho em crianças experientes e inexperientes. As crianças de maior destaque se diferenciavam significativamente em relação às menos experientes, no que dizia respeito ao conhecimento, habilidade para arremessar e tomada de decisão. O componente do desempenho de maior diferenciação foi o de tomada de decisão. A correlação positiva do teste de conhecimentos com a tomada de decisão oferece alguma evidência de que é necessário conhecimento suficiente para a seleção adequada de respostas durante o jogo. Outro aspecto interessante desse estudo foram às mudanças no processo de tomada de decisão e na execução de habilidades motoras durante um semestre de treinamento. O conhecimento e a exatidão das decisões relativas ao jogo aumentaram durante a temporada; entretanto, a qualidade da execução de habilidades motoras durante o jogo permaneceu constante. Portanto, as crianças estavam aprendendo quais decisões eram apropriadas durante o jogo mais rápido do que estavam adquirindo qualidades técnicas. Tais resultados podem ser devidos à grande ênfase que os técnicos dão a habilidades cognitivas durante a prática e as competições, ou ao próprio acúmulo de experiência/conhecimento de situações de jogo.

    O conhecimento específico influencia o desempenho de crianças de diversas maneiras (French & Nevett, 1993). Por exemplo, facilitando a memória em relação a determinadas situações, reduz o tempo para a tomada de decisão e aumenta possíveis interferências da criança em relação a situações novas, contribuindo para o desenvolvimento do conhecimento estratégico. Quando as crianças estão desenvolvendo o processo de tomada de decisão, seus erros podem ser devidos a uma incapacidade de reconhecer ou monitorar situações de jogo no sentido de detectar, selecionar ou criar situações adequadas. A seleção da resposta é utilizada em uma ampla situação de jogo e, provavelmente, se desenvolve e ganha força com as repetições (Anderson, 1982).

    O conhecimento e, possivelmente, a confiança fazem com que, quanto maior o nível de excelência, menor o número de fixações visuais, sendo possível centralizar o foco de visão em determinado estímulo por um período de tempo mais curto (Hubbard & Seng, 1954). A insegurança em relação à ação de um oponente faz com que um indivíduo inexperiente opte por dar atenção a fontes de informação mais seguras para sua tomada de decisão; alguns estudos mostram que muitas vezes isso é prejudicial para o desempenho, por dois motivos principais: informações transitórias relevantes deixam de ser observadas e o tempo para a tomada de decisão é aumentado (Chamberlain & Coelho, 1993).

    Em estudos no xadrez, De Groot (1978) concluiu, através da comparação entre bons e excelentes jogadores, que os excelentes analisavam combinações de movimentos mais longas e assim optavam pela ação mais conveniente. O desempenho superior dos melhores jogadores, de acordo com De Groot, pode ser atribuído à sua extensa experiência, permitindo a associação direta entre as características de posicionamento das peças e métodos apropriados de mudanças. Simon e Chase (1973) observaram que dez anos ou mais de preparação eram necessários para atingir um nível de desempenho internacional no xadrez. Os autores citaram ainda que a organização do repertório de informação dos mestres leva milhares de horas para se formar e o mesmo também é verdade para qualquer tarefa habilidosa, como por exemplo, futebol e música. Isto - segundo Simon e Chase (1973) - explica por que a prática é a maior variável independente na aquisição do desempenho.

    Bartlett (citado por Knapp, 1963, p.66) enfatiza que “o jogador habilidoso deve saber muito mais ‘o que’ fazer do que ‘como’ fazer”. O sujeito vê o que ele conhece, e esse processo é mais eficiente, mais seletivo e mais rápido, quanto maior o nível de excelência (Helsen & Pauwels, 1992). Estudos realizados em diversos domínios esportivos como o baseball (Chiesi, Spilich & Voss, 1979), basquetebol (French & Thomas, 1987), xadrez (Chi, 1978; De Groot, 1978) e tênis (Mcpherson & Thomas, 1989) têm claramente demonstrado que a vantagem dos indivíduos de maior destaque deve-se à maior base de conhecimento específico e ao uso eficiente de tal conhecimento para mediar ações motoras.

    Helsen e Bard (1989) compararam a seleção de resposta entre jogadores de futebol experientes e inexperientes enquanto assistiam a um jogo de futebol através de vídeo. Os mais experientes eram mais rápidos e corretos nas respostas do que os inexperientes. Porém, é importante destacar que a tomada de decisão em situação real de jogo não acontece de modo desvencilhado das ‘affordances’ (possibilidades de ação) do executante, ou seja, não basta identificar qual a “melhor” solução, mas sim a solução mais adequada para as características do executante. Araújo, Davids e Hristovski (2006), destacaram que o processo de tomada de decisão é melhor avaliado quando visto como a manifestação da interação do indivíduo com as condições ambientais situacionais. Nesse sentido, é questionável a elaboração de testes de tomadas de decisão que estabelecem soluções adequadas ‘a priori’, desconsiderando que a solução correta depende não apenas do ambiente, mas também das possibilidades individuais.

    Para um melhor entendimento do desempenho, é necessário que se levem em consideração os complexos processos cognitivos adquiridos através da prática, ou seja, o conhecimento do contexto em que são desenvolvidas as habilidades motoras. A natureza do processo cognitivo permite inferir que ele reflita conhecimento adquirido e experiências prévias em determinado campo. Isso se torna fundamental no desempenho em modalidades esportivas coletivas, sendo necessário reconhecer a importância de aspectos cognitivos e os importantes efeitos do tempo de prática e experiência para sua aquisição.

Importância do treinamento

    Diversos estudos ressaltam a importante influência do treinamento para o desempenho de alto nível, ainda que salientem a participação de fatores hereditários (Davids & Baker, 2007; Garay, 1974; Helsen, Starkes & Hodges, 1998; Malina & Bouchard, 1986; Singer & Janelle, 1999). De acordo com Ericsson et al. (1993), a correlação entre treinamento e desempenho pode tornar mais compreensível uma grande quantidade de características empíricas da excelência do que a visão de talento inato. Estudos realizados na música (Ericsson et al., 1993), nos esportes (Starkes & Deakin, 1985; Helsen & Pauwels, 1992) e no xadrez (Chase & Simon, 1973) demonstraram o caráter determinante da prática durante longos períodos, questionando a visão de que fatores genéticos são determinantes no alto desempenho.

    O fato de que o desenvolvimento precoce de algumas habilidades não existe sem estímulos precoces, sugere que a variabilidade no desempenho é causada pelas diferenças nas oportunidades para aprender. Não existem casos comprovados, em nenhuma área, de indivíduos que tenham alcançado os mais altos níveis de desempenho, sem antes ter dedicado milhares de horas ao treinamento (Howe, Davidson & Sloboda, 1998).

    A quantidade de prática realizada anteriormente está diretamente relacionada com o desempenho atual. A excelência é predominantemente adquirida com o treinamento (Ericsson & Smith, 1991; Starkes, Deakin, Allard, Hodges & Hayes, 1996). Segundo Ericsson e Crutcher (1990) e Ericsson et al. (1993), indivíduos de reconhecido destaque, em diversas áreas, geralmente iniciaram a prática antes dos seis anos de idade e se dedicaram durante mais de dez anos ou dez mil horas até atingir níveis de excelência. Sage (1980) e Weiss e Knoppers (1982) demonstraram que as crianças que se destacam no esporte, geralmente iniciam sua participação por volta de cinco ou seis anos de idade e o interesse inicial pelo esporte geralmente é encontrado dentro da família. Ré e Bello Jr. (2002), em estudo retrospectivo realizado com jogadores profissionais de futsal adultos, encontraram médias de oito anos de idade no início do treinamento e de dez anos de idade no ingresso em equipes federadas.

    Ericsson et al. (1993) realizaram um estudo com pianistas e violinistas de diferentes níveis de desempenho e encontraram uma relação direta entre o nível de desempenho e o tempo de treinamento, ou seja, os melhores músicos haviam dedicado um tempo significantemente superior ao treinamento. Com base em tais resultados, Ericsson et al. (1993) concluíram que, dentre as características imutáveis correspondendo ao talento inato, virtualmente todas podem ser adquiridas através de práticas relevantes. Vale ressaltar que nesse estudo os autores tiveram acesso a músicos que efetivamente atingiram níveis elevados de desempenho, sendo plausível que eles tivessem dedicado muitas horas à prática. É improvável que tais dados permitam desprezar a participação de fatores hereditários, apesar de demonstrarem claramente que o ambiente exerce influência marcante na obtenção de níveis elevados de desempenho.

    Helsen, Starkes e Hodges (1998) reportaram, com base em informações retrospectivas de jogadores de futebol belgas de três níveis competitivos (internacional, nacional 1a. divisão e 2a. divisão), que todos os grupos começaram a jogar futebol por volta dos cinco anos de idade e iniciaram o treinamento formal por volta dos sete anos de idade. As diferenças significantes em relação ao tempo de prática se iniciaram apenas aos 15 anos de idade e, a partir daí, o tempo de prática se mostrou diretamente relacionado ao nível competitivo. Aos 23 anos de idade, os jogadores de nível competitivo superior tinham acumulado significantemente mais prática do que os outros grupos (9332, 7449 e 5079 horas de treinamento, respectivamente). Em estudos realizados com lutadores (Hodges & Starkes, 1996) e com jogadores de hockey (Helsen et al., 1998) também foi identificada uma relação direta entre o tempo de prática e o desempenho apresentado. Assim como no estudo de Ericsson et al. (1993), esses resultados enfatizam a grande importância do treinamento, mas não permitem desprezar a participação de fatores hereditários, assim como não são capazes de identificar diferenças qualitativas no treinamento (Starkes, 2000).

    É completamente remota a possibilidade de um indivíduo obter sucesso no esporte se não tiver acesso a um ambiente que o favoreça. Consequentemente, deve-se tomar a devida precaução quando se aceita que fatores genéticos ou o tempo de treinamento levem ao alto desempenho. Todavia, a preocupação generalizada da preparação precoce no esporte se revela positiva, no sentido de que o treinamento deve ser um processo contínuo, de muitos anos. Por isso, a qualidade do treinamento e do meio social em que o indivíduo é exposto desde os primeiros anos de vida, são questões centrais para a geração do talento esportivo.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 15 · N° 149 | Buenos Aires, Octubre de 2010
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