Relações entre ginástica e mulher brasileira: do início do século XX aos dias atuais Relación entre la gimnasia y la mujer brasileña: desde el inicio del siglo XX hasta la actualidad |
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Especialista em Aspectos Biodinâmicos do Movimento Humano (UFJF) Tutora a distância (UFJF) (Brasil) |
Vera Lucia Ferreira Pinto Fernandes |
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Resumo O presente trabalho teve a intenção de analisar os diferentes discursos sobre a mulher inserida na prática da ginástica, no Brasil, no decorrer do período compreendido entre o início do século XX até os dias atuais. Na busca deste objetivo foi realizada uma pesquisa bibliográfica, que reuniu autores que estudam a ginástica, a mulher e/ou a relação entre ambos. Concluímos que por trás dos diversos discursos - eugenia, não praticar exercícios masculinizantes, saúde, qualidade de vida e juventude – sempre existiu a preocupação com a manutenção ou aprimoramento da beleza feminina através da ginástica. Nos últimos 30 anos houve a intensificação desta preocupação, na qual a indústria da beleza, valendo-se de recursos (cosméticos, cirurgias plásticas, dietas) que extrapolam a prática da ginástica, utiliza o poder de influência da mídia para difundir entre o público feminino, padrões de corpo e beleza difíceis de serem alcançados. Concluímos também que a ginástica muito se desenvolveu neste período, porém, na atualidade esta “compete” com tecnologias estéticas que prometem os mesmos ou melhores resultados mais rápidos e “sem esforço”: tudo por uma “vida saudável”. Unitermos: Ginástica. Mulher. Padrões de beleza.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 148, Septiembre de 2010. http://www.efdeportes.com/ |
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Introdução
Diferentes períodos da história inserem a mulher na prática da ginástica sob a ótica de discursos distintos. Desde o início do século XX até os dias atuais, a ginástica para mulheres passou de recomendação médica, atrelada aos ideais de purificação da população, a uma busca (pessoalmente feminina) em transformar o próprio corpo, ajustando-o a padrões de beleza, fortemente influenciados pela mídia de cada época. Esta situação se intensificou a partir do final dos anos 30 e, mais fortemente, nos dias atuais.
O presente estudo objetiva fazer um levantamento dos diversos discursos nos quais a mulher que prática ginástica esteve (e ainda está) inserida, em diferentes épocas, analisando-os quanto às semelhanças e divergências. Para isso será utilizada a pesquisa bibliográfica na qual serão incluídos trabalhos de autores que estudam a ginástica, a mulher, e/ou suas relações. Na concepção de Lima e Mioto (2007, p. 40) “[...] a pesquisa bibliográfica possibilita um amplo alcance de informações, além de permitir a utilização de dados dispersos em inúmeras publicações, auxiliando também na construção, ou na melhor definição do quadro conceitual que envolve o objeto de estudo proposto”.
Apesar de, na prática, não haver uma separação definida dos diferentes discursos no decorrer do período estudado, assim como na história em geral, optamos pela divisão em períodos de tempo para melhor entendimento da discussão.
Eugenia, mulher e ginástica: primeiras décadas do século XX
Goellner (2009) nos conta que no início do século XX nossa população era constituída, em sua maioria, por negros. Concomitantemente, nossa elite branca acreditava, baseado nas teorias Darwinistas1 e confirmado por “cientistas” da época (médicos-higienistas), que a atividade física seria capaz de causar o robustecimento humano e, consequentemente, o aprimoramento da espécie. Por isso, seria fundamental a prática de exercícios físicos que fortalecessem o organismo dos indivíduos, pois as características adquiridas externamente seriam transmitidas às futuras gerações, ocorrendo assim, a eugenia de nossa nação.
Por eugenia Azevedo (1929 apud Soares 2007: 120) entende que
a ciência ou disciplina que tem por objetivo o estudo de fatores que, sob o controle social possam melhorar ou prejudicar mentalmente as qualidades raciais das gerações futuras [ou seja]: o estudo das medidas sociais, econômicas, sanitárias e educacionais que influenciam, física e mentalmente, o desenvolvimento das qualidades hereditárias dos indivíduos e, portanto, das gerações futuras [grifo nosso].
No “Projeto de Eugenia” era disseminada a idéia de que só os melhores seres deveriam se reproduzir. Neste contexto atribuiu-se grande importância à saúde e aparência do corpo feminino, no qual as mulheres (em especial as brancas, das elites) deveriam adotar práticas que as tornariam aptas à função de reprodutora, entre as quais os exercícios físicos que deveriam estar presentes em seu cotidiano.
Mas que atividade física era recomendada às mulheres? Médicos-higienistas do período recomendavam a ginástica, entendida por Dallo (2007: 25) como “um sistema de formas específicas de movimentos e de suas respectivas técnicas de execução, destinadas ao desenvolvimento físico que envolve as formas e as funções corporais e as ações motoras [...]”.
Soares (2007: 83) nos mostra a importância da prática da ginástica pelo público feminino em relação ao discurso médico-higienista, ao destacar que “o corpo feminino deve ser fortalecido pela ‘ginástica’ adequada ao seu sexo e às peculiaridades femininas, pois era a mulher que geraria os filhos da pátria, o bom soldado e o elegante e civilizado cidadão”.
E que ginástica era essa? Devido à forte influência européia no Brasil, a ginástica recomendada à população era composta por movimentos dos chamados Métodos Ginásticos Europeus2. Em especial às mulheres, encontramos evidências de que os principais exercícios vieram da Escola Sueca e, posteriormente, da Escola Francesa que previam práticas corporais e cuidados pessoais adequados ao sexo feminino, no qual “[...] a ginástica destinada à mulher deveria, então, acentuar as suas formas femis [...]” (Idem: 93). Ou seja, nem todas as atividades existentes nos Métodos acima citados foram recomendadas ao sexo feminino. Neste contexto, atribuiu-se grande importância aos exercícios suaves realizados com música, em especial o canto e dança por concederem graça e leveza às mulheres.
Podemos, então, notar que por trás de todo o discurso de higiene e eugenia, já exista a preocupação com a feminilidade (beleza) da mulher, sendo por isso proibida diversas práticas ditas prejudiciais a sua delicada natureza, como é o caso das lutas, dos saltos, transposição de obstáculos, entre outros que compunham os Métodos Ginásticos, por desenvolverem a força muscular, comprometendo, assim, a sua mais singela aparência feminina.
Dos anos 30 aos 80 do século XX: mulher, publicidade e ginástica
Pouco a pouco o discurso médico-higienista vai perdendo espaço para a publicidade que passa a ditar os ideais de aparência. Vinculada à indústria da beleza – composta por vários artefatos que incluem maquiagens, loções cosméticas, além da prática de exercícios físicos – induzem o público feminino a acreditar que existe uma relação direta entre “a necessidade de enquadramento aos padrões de aparência física feminina [e a] prática da ginástica”. Diante deste discurso a mulher viu-se desafiada a atingir tais padrões impostos pelas mídias da época. Em especial no final dos anos 30, “eram as revistas femininas que citavam a importância da ginástica e/ou embelezamento do corpo”. (COELHO FILHO & FRAZÃO, 2010: 272, acréscimo nosso).
Porém, ainda neste período havia o discurso de restrição à prática feminina em determinadas atividades “inapropriadas a sua natureza”, tidas como “masculinizantes” – é o caso de alguns esportes como, por exemplo, o boxe e os saltos (com vara, triplo). Pregava-se como ideal, neste período, um corpo feminino magro/esguio, como das estrelas do cinema, ocorrendo, desta forma, o crescimento de academias de dança e ginástica que oferecem atividades apropriadas e exclusivas ao público feminino. (Ibid.) Estes espaços foram pensados de forma a oferecer às mulheres prática segura e privada de exercícios físicos, de acordo com suas “necessidades” (lembrando aqui a influência da publicidade). São lugares onde ela sente-se a vontade para cuidar de seu corpo, de sua aparência.
A Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é um marco importante no que diz respeito à “emancipação” feminina e sua relação com a ginástica e o próprio corpo. A ausência dos homens em importantes setores da sociedade fez com que a mulher se inserisse em espaços e profissões antes ocupados somente pelo sexo oposto. Paralelamente, ela começa a olhar mais para si. A partir, então e, principalmente, da década de 70, “[...] as mulheres já não mais se viam determinadas a praticar uma ginástica orientada por mulheres, para mulheres. Elas passaram a se exercitar em ambientes e em atividades na interação com homens [...]” (Idem: 273).
Uma vez conquistado espaços e práticas antes proibidos, a mulher estará cada vez mais presente em ambientes e atividades (ginástica) voltadas para o sexo oposto, como é o caso da musculação. A ginástica “masculina”, mais especificamente os treinos de força, ganham presença entre o público feminino, que vê nesta a possibilidade de tornar o seu corpo cada vez mais próximo das imagens difundidas pelas propagandas publicitárias. A aparência dos corpos femininos modificou-se de forma que elas passaram a exibir certo grau de musculatura trabalhada. E a partir dos anos 80 esta prática intensifica-se como nos fala Del Priore (2000: 63)
Ter um corpo trabalhado está na ordem do dia e não é à toa que o verbo mais empregado é ‘malhar’ Malhar como se malha o ferro, malhar significando o intenso esforço embutido nesse significante. Trabalhar diferentes partes do corpo que precisam ser modificadas. Do joelho ao culote, do braço à panturrilha, o corpo é visto como fragmento; cada parte podendo ser reesculpida, consertada, desconectada de um todo.
Assim, as academias que oferecem musculação passaram a receber um público feminino cada vez maior e disposto a “fragmentar” o próprio corpo, exercitando cada uma de suas partes em aparelhos e exercícios específicos, a fim de atingir o mais atual modelo de corpo que existia.
Final do século XX até os dias atuais: cultura do fitness, mídia e mulher
Podemos perceber diante do exposto que de forma direta ou indireta, a beleza sempre fez parte das preocupações para com e das mulheres. Porém, veremos a seguir que nos últimos 30 anos houve uma intensificação deste foco, mais significativamente que o período até o final dos anos 70. O que acontece na atualidade é que, sob o discurso da saúde e qualidade de vida, a mulher é inserida na cultura do fitness, entendida por Goellner (2009: 282) como o
conjunto de dispositivos que opera em torno da construção de uma representação de corpo que conjuga como sinônimos “saúde” e “beleza”, associando-os a termos representados como plenos de positividade, entre elas o “bem-estar”, “qualidade de vida” e “vida saudável” (grifo nosso).
Assim, elas (as mulheres) exibem corpos cada vez mais trabalhados e delineados, mas não só através da ginástica, como também por todo um aparato que compõe a “[...] indústria [contemporânea] da beleza que, além todo o tipo [...] de ginástica e exercícios, cosméticos, cirurgias estéticas e dietas, incluem ainda suplementos [e restrições] alimentares e bebidas isotônicas [...]” (MALDONADO, 2006: 68, acréscimo nosso). Todos esses recursos são apresentados à mulher, através da mídia, que atualmente, além das revistas, da TV e do cinema, incluem a internet, os celulares e tudo mais que esteja ao alcance das mãos, convencendo-a de que saudável é sinônimo de beleza, como nos confirma Ferreira, Mendes e Cunha Júnior (2009: 243) ao dizer que
A beleza aparece como atributo que é muito menos uma dádiva, mas algo a ser conquistado, com esforço e rígida dedicação, uma meta em que todos devem se empenhar, utilizando toda a maquinaria disponível para as transformações corporais [...].
[...] o aspecto físico parece ser o único sinônimo válido de êxito, felicidade, e inclusive de “saúde”.
Desta forma, nos parece que entramos num caminho sem volta, no qual a cada dia novas tecnologias surgem com a promessa de “corrigir” o que a tecnologia anterior não fez, sejam equipamentos de ginásticas ou da indústria estética e de cirurgia plástica, cada vez mais moderna. E, a cada novidade, teremos um público (feminino) sempre disposto a testá-la na busca desse corpo difundido pelas diferentes mídias como saudável (ideal).
Considerações finais
Diante do apresentado constatamos a importância da ginástica nos diferentes discursos, no qual se insere a mulher no período estudado (início do século XX até a atualidade). Além disso, vimos que desde as primeiras práticas até os dias atuais, esta não ocorreu livre de intenções, seja de fatores externos (política/eugenia, publicidade/mídia) ou internos à própria mulher (saúde, beleza, juventude). Diante disso, concordamos com Del Priore (2000: 96) ao dizer que “[...] mesmo tomando posse de seu corpo, a mulher mantêm-se submissa, repetindo modelos tradicionais quando busca identificação com esse modelo [...]”.
Reconhecemos a ginástica (ou outra atividade física) como um importante fator na manutenção da saúde do corpo e da mente. Mas o que está acontecendo, como demonstrado, é uma busca desenfreada por padrões de beleza que a ginástica sozinha não dá conta de atender. Padrões impostos por uma mídia que utiliza de artifícios como a maquiagem, além de recursos tecnológicos, como o photoshop, modificando a aparência dos corpos e transmitindo uma imagem que, sem tal tecnologia, é impossível atingir.
Procuramos neste trabalho fornecer subsídios para pesquisas futuras sobre um tema que muito ainda tem para ser explorado: ginástica, mulher e seus diferentes significados ao longo da história.
Notas
Sobre as teorias Darwinistas ver: CAPONI, Gustavo. O darwinismo e seu outro, a teoria transformacional da evolução. Sci. Stud. [online]. 2005, vol. 3, n 2, pp. 233-242.
Sobre os Métodos Ginásticos Europeus ver: Soares, C. (2007). Educação Física: raízes européias e Brasil (4a ed.) Campinas: Autores Associados, pp. 51-68.
Referências bibliográficas
Coelho Filho, C. & Frazão, D. Prática de Ginástica em Academias Exclusivamente Femininas. Motriz, 16, 269-280, 2010.
Dallo, A. A ginástica como ferramenta pedagógica: o movimento como agente de formação. Trad.: José Geraldo Massucato. São Paulo: USP, 2007.
Del Priore, M. Corpo a Corpo com a Mulher: pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil. São Paulo: SENAC, 2000.
Ferreira, M., Mendes, R. & Cunha Junior, C.. Corpo, Juventude, Beleza e o Marketing da Atividade Física. In Cunha Junior, C. Martin, E. & Lira, L. (Orgs.). Lazer, Esporte e Educação Física. Juiz de Fora: UFJF, 2009.
Goellner, S. Imagens da Mulher no Esporte (Cap. 16, pp. 269-292). In Del Priore, M. e Melo, V. (Orgs.). História do Esporte no Brasil: do império aos dias atuais. São Paulo: UNESP, 2009.
Lima, T. & Mioto, R.. Procedimentos Metodológicos na Construção do Conhecimento Científico: a pesquisa bibliográfica. Katálysis. Florianópolis/SC, 10 (esp.), 37-45, 2007.
Maldonado, G.. A Educação Física e o Adolescente: a imagem corporal e estética da transformação na mídia impressa. Mackezine, 59-74, 2006.
Soares, C.. Educação Física: raízes européias e Brasil (4a ed.) Campinas: Autores Associados, 2007.
Soares, C. (Org.). (2006). Corpo e História. 3a ed. São Paulo: Autores Associados.
Vigarello, G. (2006). História da Beleza. Rio de Janeiro: Ediouro.
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