efdeportes.com

Olhares lúdicos por entre os tempos

Miradas lúdicas en distintas épocas

 

Doutorando em Educação Especial pela UFSCar

Mestre em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)

Licenciado e Bacharel em Educação Física pela UFSCar

Professor efetivo de Educação Física da rede estadual de educação

do Estado de São Paulo, município de Araraquara

Gustavo Martins Piccolo

gupiccolo@yahoo.com.br

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O presente trabalho acadêmico visa discutir distintas concepções sobre o significado etimológico e funcional da palavra jogo ao longo da história. Para tanto, materializamos mediante um processo metodológico de revisão de literatura as principais concepções sobre o fenômeno por nós investigado em diversas sociedades. Nossas análises se guiaram pela perspectiva do materialismo histórico, dialogando, principalmente, com os pressupostos estabelecidos pela Psicologia Histórico-Cultural, cujos grandes expoentes são Vygotsky, Leontiev, Luria, Davidov e Elkonin. Os resultados da pesquisa apontam para a miscelânea epistemológica assumida pelo complexo simbólico no qual estão situadas as atividades lúdicas, sendo que para uma melhor compreensão deste fenômeno é fundamental recorrermos a interpretações que vão além de um contexto pré-configurado ou de medidas e padrões ocidentalizados, cujo intuito se materializa na visualização do jogo como fonte de desenvolvimento humano.

          Unitermos: Jogo. Sociedade. Cultura.

 

Abstract

          This academic paper aims to discuss different views on the etymological meaning of the word game and functional throughout history. To this end, materialize through a methodological process of literature review the main conceptions about the phenomenon we investigated in various societies. Our analysis is guided by the perspective of historical materialism, dialoguing, especially with the conditions set by the Historical-Cultural Psychology, whose major exponents are Vygotsky, Leontiev, Luria, and Davidov Elkonin. The survey results point to the epistemological miscellaneous assumed by the symbolic complex which are located in recreational activities, and for a better understanding of this phenomenon is appealing to fundamental interpretations that go beyond the context of a pre-configured or westernized measures and standards, whose purpose is embodied in viewing the game as a source of human development.

          Keywords: Game. Society. Culture.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 148, Septiembre de 2010. http://www.efdeportes.com/

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Introdução

    Minha entrada na Universidade Federal de São Carlos para cursar Educação Física está muito relaciona à prática de atividades físicas. Durante toda infância essa foi a principal fonte de alegria e divertimento com a qual me deparei, além disso, despertou (e ainda desperta) uma gama de curiosidades que possibilitou a aprendizagem de diversos conteúdos, os quais me ajudaram significativamente na construção de meu conhecimento sistemático e assistemático.

    Durante o transcorrer da graduação vivenciamos uma grande diversidade de jogos, tais como: esportivos, pré-esportivos, recreativos, cooperativos, lúdicos, fato que nos possibilitou a visualização de um novo patamar para as aulas de Educação Física, que em geral, independentemente de seu meio de atuação (escolas, clubes, parques, projetos comunitários), tem nas atividades esportivas sua grande alavanca propulsora, esquecendo de todas as outras inúmeras atividades que poderiam proporcionar valiosas contribuições pedagógicas e afetivas para seus participantes.

    Entretanto, mesmo com a abertura de novas possibilidades tracejadas pelo contato com diferentes tipos de jogos, algo ainda me incomodava, pois faltava segurança, clareza dos objetivos e vantagens educativas (em seu sentido mais amplo) que os jogos poderiam proporcionar aos seus praticantes.

    Essa dúvida me inquietou durante alguns semestres, não encontrava resposta para sua possível solução, tudo parecia árido e nebuloso, o que na verdade acabava por impedir a visualização da questão e suas conseqüentes possibilidades de esclarecimento.

    Apenas no sétimo semestre do curso, quando entrei em contato com a teoria histórico-cultural, comecei a ter lampejos intelectuais que colocaram minhas dúvidas em suspensão, agora, ainda que com olhos míopes, enxergava as possibilidades de aprendizagens proporcionadas pelos jogos e como esses são importantes recursos para o desenvolvimento infantil.

    A mudança repentina em meu comportamento está relacionada a um elemento primordial na evolução e desenvolvimento do homem, independentemente de sua classe social ou ethos a que pertence, a destacar: teoria. É a teoria que possibilita a compreensão e o entendimento sistemático de certa situação, ela é a principal ferramenta do trabalho/saber acadêmico, é nossa fonte de apoio, nosso braço de sustentação, apenas por intermédio dela podemos compreender estruturalmente algum fenômeno social, como o jogo.

    Conseqüentemente, minha falta de clareza na aplicação e utilização dos jogos estava relacionada com a ausência de uma teoria que embasasse meus atos/ações, a qual me impedia de enxergar as possibilidades transcendentes que essa atividade poderia desempenhar no cotidiano dos atores que compõe as diversas sociedades, sejam elas antigas, medievais, modernas, contemporâneas, avançadas, subdesenvolvidas, assim sendo, ao invés de ver os jogos como importante fonte de aprendizagens, enxergava-o apenas como mais uma forma de passatempo lúdico, uma atividade frívola, sem importância e significado.

    A partir de então, passei a buscar na literatura existente, diversos autores (Huizinga, Brougére, Caillois, Leontiev, Elkonin, Piaget) que trabalharam a conceituação dos jogos de forma teórica e sistemática.

    Ao estudar esses autores, mesmo que de forma sucinta, pude perceber que não havia uma concordância entre suas idéias, muito pelo contrário, as dissonâncias ditavam o tom de seus estudos, o que era explicado pelo diferente embasamento teórico-metodológico que sustentava suas obras. Em suma, pela suas diversas correntes filosóficas que em alguns casos eram divergentes, a destacar: o materialismo histórico de Leontiev e Elkonin se contrapunha em vários conceitos chaves (dentre eles o principal, que é o entendimento de homem que cada teoria possui) à epistemologia genética de Jean Piaget.    

    Ou seja, apesar de uma grande diversidade teórica que retratava os jogos, seu entendimento ainda era nebuloso, faltava uma confluência entre as principais idéias, não bastasse isso, era extremamente difícil visualizar uma teoria que abarcasse as características principais dessa atividade, já que ela se insere em diversas áreas como: Antropologia, Sociologia, Psicologia, Educação, Educação Física, Pedagogia, dentre outras.

    A diversidade de olhares que o jogo recebeu, enquanto objeto de investigação teórico-científico, possibilitou o surgimento de diversas visões sobre o mesmo fenômeno, o que acentua uma visão crítica e multifacetada sobre suas diversas possibilidades educacionais. Entretanto, a miscelânea de estudos produzidos não contribuiu para a elaboração de uma teoria sistematizada e estruturada dos jogos como fenômeno historicamente construído, ora faltava à delimitação das características principais/estruturais dos jogos, ora o entendimento das vantagens que possibilita no desenvolvimento dos seres humanos.

    Reconheço que a construção de uma teoria geral, a qual abarque essas principais características, não está de forma alguma relacionada com o pouco conhecimento teórico dos autores acima citados, tampouco com uma falta de clareza teórico-metodológica de seus estudos. Na verdade, o desenvolvimento de diversas teorias sobre o mesmo objeto, prova justamente o contrário, ou seja, a grande capacidade e genialidade desses autores, que possibilitam nos dias atuais um novo pensar e repensar sobre a evolução e o papel que os jogos ocupam no seio da sociedade.

    Nesse trabalho, buscarei a partir de um diálogo com esses autores, oferecer lampejos intelectuais, que mostre a possibilidade de elaboração de uma teoria que abarque tanto uma conceituação geral do jogo, como das vantagens que esse possibilita no desenvolvimento humano, ou seja, que tente compreender o particular sem nunca se esquecer do todo.

    Reconheço, de antemão, o caráter audacioso e, até em certa medida, utópico (no sentido de um lugar distante e não inalcançável) desse trabalho, devido à densidade dos estudos que proponho realizar, além disso, a complexidade teórica dos autores, às vezes, superam minha capacidade intelectual. Porém, também acredito que nas grandes empreitadas se estabelecem os verdadeiros desafios da sociedade, e, nesse ponto me seguro fortemente, no qual espero, após o término do trabalho receber as críticas pelo desenvolvimento das idéias principais, contribuindo assim, para um pensar e repensar constante sobre as diversas potencialidades dos jogos, fato que ainda me intriga e, espero continuar me inquietando cada vez mais.

    Esse trabalho se justifica pela importância que o jogo assume na área de Educação Física, por representar um de seus principais conteúdos sejam em escolas, clubes, parques, ruas e vários outros ambientes sociais não destacados. Para a utilização de qualquer recurso educacional, como o jogo, é preciso compreender suas grandes vantagens e, quais seus reais objetivos, fato que só pode ser concretizado através da compreensão da teoria que sustenta/embasa esse elemento cultural.

    Além disso, é muito comum, principalmente no universo da Educação Física, a difusão de diversos tipos de jogos, sem se ressaltar minimamente suas características principais, o que corrobora com a falta de entendimento e esclarecimento sobre o tema.

    Conseqüentemente, acredito que o trabalho possa ter realizado uma importante contribuição para a área de Educação Física, pois tem como um de seus pressupostos a estruturação de algumas características/funções principais dos jogos, na tentativa de busca de um aprofundamento teórico sobre essa questão.

    Os objetivos do trabalho estiveram relacionados com a construção de um novo olhar sobre a conceituação dos jogos, para isso foi lançada mão de alguns questionamentos que são descritos abaixo:

    Quais as características principais dos jogos? Existe um elemento comum em sua constituição? O jogo desempenha importante papel na formação do indivíduo, entendida em seu sentido integral (físico-cognitiva-social, sem dissociação de qualquer dessas características)? Como surgem os jogos? Qual sua influência sobre a constituição das sociedades?

    Essas questões permitiram o direcionamento da questão de pesquisa, focando o jogo como elemento central no desenvolvimento do trabalho, entretanto, isso não significa, de forma alguma, o esquecimento das contradições e conflitos presentes na estruturação das sociedades modernas. Ou seja, o jogo como elemento central não impede a abordagem de outras características presentes no estudo de qualquer fenômeno social, mesmo porque, se isso ocorrer, sua possibilidade de compreensão e estruturação fica seriamente abalada, para não dizer impedida pela raiz.

Os olhares lúdicos contextualizados

    Para realizarmos o estudo de qualquer fenômeno social, como o jogo será tratado neste trabalho, é preciso primeiramente realizar uma breve descrição sobre sua evolução histórica, pois só assim poderemos entender algumas de suas principais características que o configuram como uma importante atividade contemporânea.

    A história não deve ser vista como um elemento estanque e descritivo, que retrata os fatos históricos de forma linear e evolucionista, essa na verdade é a anti-história. A história é um processo e, exatamente por ser processo está sempre em transformação, história e mudança são quase sinônimos. Sua constituição, como dito anteriormente, longe de representar um encadeamento linear dos fatos, é marcada por contradições e conflitos que respondem a determinados interesses políticos, econômicos e sociais.

    Entretanto, por mais influenciada que pareça, a história nunca deixa de ser escrita pelas mãos dos homens, o homem é a bomba propulsora da história, sem ele, ela simplesmente não existe (MARX, 2003).

    Os jogos foram retratados de diversas maneiras ao longo da história, o que nos mostra o processo de evolução da sociedade e do próprio homem. Brougére (1998) é um dos autores mais interessantes para se analisar o entendimento que as sociedades tinham dos jogos em diversas épocas históricas.

    Para Elkonin (1998), além da função social que os jogos desempenham na sociedade, a compreensão do que sua palavra representava também diferia significativamente entre diversas sociedades. Os antigos gregos entendiam por jogo as ações características das crianças, o que hoje chamaríamos de traquinices. Já os judeus consideram o jogo como sinônimo de gracejo e riso, por sua vez, para os romanos a palavra assumia o significado de alegria, uma festa buliçosa. Ou seja, etimologicamente o significado de jogo também sofreu bruscas transformações com o decorrer dos séculos.

    Desde os mais remotos tempos é possível a percepção de diversos jogos nas mais variadas sociedades que se teve conhecimento. Nas tribos primitivas, existiam os jogos festivos, sempre realizados quando havia a necessidade de alguma comemoração, além disso, parte da preparação da criança para a vida adulta e sua conseqüente apropriação cultural era realizada por intermédio dessas atividades (ELKONIN, 1998).

    Como exemplo, podemos destacar a compreensão da utilização e função do arco e flecha nas sociedades indígenas, nas quais as crianças recebiam réplicas menores de arcos e flechas para irem assimilando seu mecanismo correto de execução. Ou seja, através de brincadeiras/jogos as crianças se apropriavam de uma importante ferramenta que garantiria posteriormente a satisfação de algumas de suas necessidades mais básicas como sua alimentação, notamos, conseqüentemente, claramente a função do jogo como recurso educacional e potencializador de significativas aprendizagens.

    De acordo com Brougére (1998), na Grécia Antiga, o jogo era visto como uma atividade que não tinha um caráter primordial/principal na sociedade, porém, não era insignificante. O autor chegou a essa posição ao investigar o raciocínio de Aristóteles, para quem o jogo é uma excelente atividade para o descanso e recuperação das energias, logo, fundamental para a execução do trabalho que era a atividade mais importante da sociedade.

    Na Idade Medieval, os jogos ganharam um grande impulso quanto a sua difusão e participação na alta sociedade (ÀRIES, 1981). Porém, essa grande difusão não resultou em um melhor entendimento e representação do jogo enquanto fenômeno social, muito pelo contrário, já que a popularização dos jogos se resumia especialmente aqueles que envolviam certas apostas, eram os famosos jogos de azar. Esses jogos eram mal vistos pela sociedade, que os caracterizavam como libertinos e perniciosos, geravam a degradação do homem e não tinha nenhuma função educacional. Conseqüentemente, apesar do grande aumento do número de participantes (quase toda a alta sociedade se reunia em torno das mesas), isso não resultou em beneficio para a imagem dos jogos que continuava a ser entendido como uma atividade banal, ou o que era pior ainda, prejudicial ao desenvolvimento do homem.

    Para Brougére (1998) e Áries (1981), a mudança de concepção que a sociedade tinha dos jogos só passa a ser radicalmente alterada com a decorrente mudança do entendimento e do papel que a criança vem a realizar no seio da sociedade. A partir do Iluminismo a criança deixa de ser vista com um deposito de informações (tábua rasa), passando a ser pensada como sujeito possuidor de particularidades especiais, a qual não é inerte perante os processos sociais.

    Assim sendo, começa-se a dar importância para os diversos processos que auxiliam na construção dos valores e no desenvolvimento da criança, dentre esses, o jogo é reconhecido como a atividade típica da criança, sendo de fundamental importância para sua construção enquanto ser social.

    Brougére (1998) denomina essa nova fase da criança e do papel que os jogos assumem como paradigma romântico, que era influenciado por várias áreas do conhecimento como: pedagogia, sociologia e psicologia. Esse novo paradigma passa a considerar o jogo como recurso de valiosa importância, se contrapondo, conseqüentemente, as posturas rígidas e dogmáticas das épocas anteriores.

    Podemos observar como a evolução do entendimento dos jogos nas diversas sociedades ocorreu de forma lenta e gradual, na qual sua importância foi sendo reconhecida timidamente. Porém, foram esses estudos, que permitiram de certa forma, o surgimento das “verdadeiras” teorias científicas sobre os jogos, que estudaram suas grandes finalidades e características gerais. Vários estudos acadêmicos só foram realizados após essa época, a destacar: Piaget (1971); Elkonin (1998); Leontiev (1988); Vygotsky (2001); Caillois (1990); Brougére (1998); (Claparéde; Groos, Buytendyjk apud Elkonin, 1998).

    Após essa breve retrospectiva histórica fica nítida a influência que a sociedade estabelece sobre a prática dessas atividades, ou seja, podemos perceber que o jogo é um fenômeno histórico-cultural, socialmente construído, não surge do nada, mas sim da atividade do próprio homem adulto.

    O jogo surge da cultura, não há jogo desprovido de elementos culturais e educacionais, já que, por mais simples que seja a estrutura dessa atividade, sempre será mediatizado por alguma relação humana, sejam elas diretas (contato entre pessoas), ou indiretas (contato pessoas-objetos), portanto, nos jogos sempre estará presente um diálogo entre homens.

    A idéia de Huizinga (1980), de que o jogo surge antes da própria cultura representa uma visão equivocada de jogo, cultura e sociedade. Tudo na vida do homem é social, pois a própria construção humana necessita da ação coletiva de outros homens, o ser humano só se torna humano ao se relacionar em grupo.

    O jogo é fato mais antigo que a cultura, pois esta, mesmo em suas definições menos rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas, os animais não esperavam que os homens os iniciassem na atividade lúdica. É-nos possível afirmar com segurança que a civilização humana não acrescentou característica essencial alguma a idéia geral de jogo. (HUIZINGA, 1980, p.3)

    Percebemos que o referido autor ignora o processo de construção humana, conseqüentemente, não percebe as particularidades que existem e diferenciam o jogo dos mais complexos animais para os homens. No jogo humano sempre existe um diálogo com a história de desenvolvimento do próprio homem, pois se trata de um processo construtivo, social, cultural. Para Leontiev (1988), nos animais os jogos atendem a características primordialmente instintivas, enquanto nos homens é um processo intencional, portanto, em muito difere o jogo humano do jogo animal, a começar pelo papel que seus atores ocupam em seu desenvolvimento.

    Alguns jogos perduram mesmo após o fim de suas respectivas sociedades, mas como isso é possível? Para entendermos os mecanismos de difusão e perpetuação dos jogos é preciso primeiramente compreender o processo de transformação da própria sociedade, já que o jogo surge como decorrência das ações coletivas dos homens.

    A sociedade se modifica constantemente ao longo das épocas, valores que na Antiguidade eram considerados fundamentais para a manutenção de determinado sistema social perdem sua importância, entretanto, não deixam de existir. Devido a estas características, é necessário a realização do seguinte questionamento: como a sociedade consegue a perpetuação destes valores?

    Para Heller (1970), um valor nunca se perde por completo, pois encontra maneiras de continuar ecoando sua voz em alguma parte da sociedade e, para isso, cria certos mecanismos de difusão.

    O trabalho, principal atividade humana, é o criador de grande parte dos valores que norteiam a sociedade, porém, se modifica constantemente devido às condições político-econômico-sociais de determinadas épocas, não perpetuando, conseqüentemente, seus valores. Quem pode realizar esta função é o jogo, que possui uma relação dialética com o trabalho, à medida que se origina dele, mas também se diferencia por ser uma atividade de caráter oposto, que preza pelo lúdico e diversão.

Afinal, o que é jogo?

    A definição do termo jogo não é tarefa fácil, mesmo com toda sua evolução ao longo da história da humanidade sua conceituação ainda é muito complexa, pois carrega uma série de significados e sentidos que muito dizem a seu respeito.

    Mesmo falando do jogo apenas como fenômeno humano, sua caracterização em uma sociedade não fica mais facilitada, pois o que define se uma atividade pode ser considerada ou não como jogo depende da construção cultural na qual cada sociedade é estabelecida. Sendo assim, uma atividade pode ser considerada jogo em determinada sociedade, e não o ser em outra.

    Kishimoto (1997, p.13) argumenta que:

    Tentar definir o jogo não é tarefa fácil. Quando se pronuncia a palavra jogo cada um pode entendê-la de modo diferente. Pode-se estar falando de jogos políticos, de adultos, crianças, animais ou amarelinha, xadrez, adivinhas, contar estórias, brincar de ‘mamãe e filhinha’, futebol, dominó, quebra-cabeça, construir barquinho, brincar na areia e uma infinidade de outros.

    A vastidão do real significado da palavra jogo é confirmada quando buscamos sua definição no dicionário:

    Jogo: 1- Brincadeira, divertimento, folguedo. 2- Passatempo, em que se arrisca dinheiro, ou qualquer outra coisa. 3- Divertimento ou exercício de crianças, em que elas fazem prova da sua habilidade, destreza ou astúcia. 4- Maneira de jogar. 5- Conjunto de regras a observar, quando se joga. 6- Vício de jogar. 7- Cada uma das partidas em que se divide um certame. 8- Aposta. 9- Especulação da bolsa. 10- Espaço livre entre duas peças, tal como o eixo e o mancal, ou êmbolo e cilindro. (PESTANA, 1994, p. 510).

    Ou seja, as definições sobre o termo jogo vão desde uma brincadeira de criança, passando por uma relação entre objetos, indo, incrivelmente, até o campo econômico do país. Mesmo com toda essa complexidade é de grande importância estabelecer alguns parâmetros sobre o que consideramos jogo ou não para um melhor esclarecimento sobre a utilização deste termo, para isso iremos nos utilizar primordialmente dos trabalhos de Caillois (1990).

    Para Caillois (1990), os jogos existem em números vastíssimos, no qual sempre está evocada uma idéia de facilidade, risco e habilidade, e é justamente essa idéia que garante o fascínio de sua prática, podemos considerá-lo como uma atividade com alto nível de aventura, que pode gerar tanto satisfação quanto frustração.

    Entretanto, qualquer jogo por mais simples que seja, possui códigos que definem o que faz ou não parte dele, códigos que são construções sociais realizadas pelos homens ao longo da história, os quais só podem ser modificados pela própria atuação humana.

    Todo o jogo é um sistema de regras que definem o que é e o que não é do jogo, ou seja, o permitido e o proibido. Estas convenções (...) não podem ser violadas sob nenhum pretexto, pois, se assim for, o jogo acaba imediatamente e é destruído por esse fato. (BROUGÉRE, 1998, p.11).

    Em geral, a construção da legislação que governa os jogos é realizada de forma tácita entre os participantes, e, o desrespeito das regras significa muitas vezes o fim do próprio jogo. A questão das regras foi muito bem representada por Huizinga (1980) para quem, seu desrespeito nem sempre quer dizer o fim da atividade, aliás, alguns jogos têm como um de seus princípios o desrespeito às regras, que é utilizada pelos grandes jogadores. Para o referido autor, as atitudes indiferentes é que promovem os maiores prejuízos aos jogos, muito mais do que burlar as regras. Esse fato pode ser representado pelo desinteresse de algumas pessoas que participam do jogo, atrapalhando o desenvolvimento da própria atividade. Entretanto, Huizinga (1980) não levou em consideração que o próprio burlar de regras pode ser configurado nas relações desenvolvidas por determinado tipo de jogo, ou seja, burlar uma regra pode representar uma possibilidade subliminar de sucesso no jogo, a qual estava presente para todos seus participantes, conseqüentemente, também era um código da própria atividade lúdica.

    Podemos perceber que a essência de qualquer jogo não está em suas regras ou codificações, mas sim no espírito de seus participantes, que proporcionam o colorido mais vivo e nítido do brilhantismo dos jogos, é o homem o centro dos jogos, assim como, de qualquer processo social existente em nosso planeta.

    Para Caillois (1990), no jogo sempre está presente à idéia de liberdade e de limites a serem respeitados, na verdade, estes são dois pólos inseparáveis, no qual um não subsiste sem o outro. Devido o caráter tácito das regras e a relativa liberdade dos jogadores no seu desenvolvimento, os esportistas, que ganham a vida pelas atividades competitivas, não devem ser encaradas como jogadores, mas sim, como trabalhadores.

    Além dessas características, existe outra que é de fundamental importância, que é o caráter voluntário da atividade, ou seja, não existe jogo que se estabelece por meio de uma imposição prévia, só há jogo quando os jogadores querem jogar (CAILLOIS, 1990). A hierarquização presente nas atividades lúdica representa sua própria destruição, ela aliena todas as características primordiais que garantem o transcorrer da atividade. Dominador e dominados só existem, pelo menos nos jogos, em conduções circunstanciais, com hora e espaço marcado para sua superação.

    Caillois (1990) descreve de forma resumida os principais traços constituintes dos jogos, que permitem defini-lo como uma atividade, que em sua essência é: 1- livre: o jogador só joga quando tiver vontade, não pode ser obrigado, senão este perderia sua divisão e alegria; 2- delimitada: está restrita a espaços de limite e tempo; 3- incerta: o resultado não pode ser determinado a priori; 4- improdutiva: não gera bens e riquezas, apenas os movimentam; 5- regulamentada: sujeita a convenções e regras que devem ser obedecidas para o desenvolvimento da atividade; 6- fictícia: caráter opositor a vida cotidiana e séria.

    A grande contribuição dos estudos de Caillois (1990), ao nosso entender, está relacionada com a descrição de algumas categorias básicas que estariam (pelo menos uma delas) presentes em todos os jogos, quais sejam, agôn, alea, mimicry e ilinx que serão detalhadas posteriormente na análise da obra do referido autor no capítulo 3.

    Retratamos aqui as particularidades que consideramos fundamentais para o entendimento das principais características dos jogos, enquanto elemento cultural que sofre influência do mais diversos homens e das mais diversas sociedades. A inter-relação dessas categorias será realizada posteriormente na apresentação dos resultados, assim como, sua associação com a obra de Elkonin (1998). Por fim, cabe ressaltar alguns caminhos para se entender o jogo como fonte de desenvolvimento humano. Passemos a eles.

O jogo como fonte de desenvolvimento

    Após a realização de um breve histórico e da descrição de algumas das características principais dos jogos é necessário neste momento apontarmos as possibilidades educacionais que eles podem oferecer, retratando, conseqüentemente, como exercem influência na construção do homem.

    Para Elkonin (1998), o jogo nasce do trabalho, que é a principal atividade desempenhada nas mais diversas sociedades, sejam elas antigas ou contemporâneas. O trabalho sempre precedeu o surgimento do jogo, a atividade lúdica só pode ser realizada após o saciar das necessidades básicas, que só podem ser produzidos pelo trabalho humano.

    Nos jogos são construídas e reconstruídas diversas relações entre os homens na sociedade, é nele que pela primeira vez a criança conhece o mundo real e objetivo de forma ampla e sem restrições, por isso, é incontestável sua importância no desenvolvimento da personalidade infantil.

    Quanto mais as crianças se afastam do mundo objetivo dos adultos, maior é a importância que o jogo assume na construção de sua personalidade, conseqüentemente, sua relevância social é destacada nas sociedades modernas, principalmente nas crianças pré-escolares. (Elkonin, 1998).

    O lugar que a criança ocupa na sociedade sempre exercerá influência sobre a evolução dos jogos, ou melhor, dos tipos de jogos, que podem se aproximar ou afastar da realidade concreta vivida pelos adultos. A origem dos mais diversos tipos de jogos, sempre está relacionada a aspectos educativos, que acabam por construir diversos “padrões” corporais nas crianças em sua realidade objetiva.

    A educação sempre busca a possibilidade de comunicação dos sujeitos com o mundo, apenas pelo seu desenvolvimento é possível o progresso da sociedade, pois a vida coletiva está circunscrita por várias normas e regulamentações que devem ser cumpridas para um convívio pacífico e comunicativo.

    A sociedade faz com que as crianças tenham de se apropriar de alguns elementos, pois como dito anteriormente, estas devem se comunicar e interagir com a realidade circundante, o que só é possível por intermédio dos diversos processos educacionais vivenciados pelas crianças na sociedade, dentre eles, destacamos os que utilizam o jogo como importante recurso pedagógico.

    Na perspectiva histórico-cultural, que será adotada neste trabalho, o jogo é considerado como um fenômeno historicamente construído. Sua principal diferença em relação ao mais complexo animal reside na intencionalidade humana, a qual cria e recria cada atividade vivenciada em certo contexto histórico, este aspecto faz com que as atividades humanas possam ser praticadas em um nível superior às animais. Existe, conseqüentemente, uma grande distância entre os jogos praticados pelos animais, daqueles praticados pelos homens, que são essencialmente sociais.

    Para Elkonin (1998, p.36-37), “a base do jogo é social devido precisamente a que também o são sua natureza e sua origem, ou seja, a que o jogo nasce das condições de vida da criança em sociedade”.

    Os jogos além de trabalharem várias capacidades físicas fundamentais para o desenvolvimento dos seres humanos como o crescimento corporal, as coordenações sensório-motoras, o equilíbrio, lateralidade, tonicidade e várias outras capacidades físicas, possibilitam um grande estímulo para o desenvolvimento dos aspectos psíquicos das crianças, a destacar a construção de sua personalidade.

    Nos jogos abrem-se novas portas para os diversos sujeitos participantes, principalmente para as crianças que penetram no mundo de forma mais ampla e complexa, esse fenômeno permite a assimilação das construções sociais de maneira mais rápida e eficaz. (LEONTIEV, 1988).

    Para Leontiev (1978), a capacidade de a criança controlar seu comportamento e interiorizar as diversas normas sociais presentes na sociedade surge primeiramente nos jogos coletivos, para só depois se desenvolverem como autocontrole na criança.

    Encontramos em (ELKONIN, 1998), que o jogo/brincadeira é a atividade principal da criança no período pré-escolar, pois promove as maiores alterações nos mecanismos psicológicos infantis, o que o caracteriza como elemento de fundamental importância para a construção da personalidade da criança. Vale destacar que ELKONIN (1998), entende por atividade principal, não aquela que consome o maior tempo da criança, mas sim, aquela que promove as maiores modificações em seu comportamento, raciocínio similar é encontrado em LEONTIEV (1988).

    O jogo, na perspectiva histórico-cultural, não é visto como preparatório para nenhuma fase em especial. Sua grande importância está nas alterações psicológicas que provocará nas crianças, sendo de fundamental importância para o desenvolvimento delas.

    Para ELKONIN (1998), não existe jogo desconexo com a realidade, já que praticamente todos se baseiam em atividades anteriormente desenvolvidas por adultos, tendo inicialmente um caráter utilitário, para depois receber novas influências sociais e se constituir em uma atividade lúdica e estética.

    As crianças se apropriam das relações sociais concretas, transportando esta realidade para seus jogos. Estas relações podem ser de diferentes tipos: respeito, cooperação, colaboração, reciprocidade, altruísmo, divisão do trabalho, ajuda e atenção de uns com os outros, mas também podem ser relações de: competição, autoritarismo, despotismo, violência, egoísmo, destruição, agressividade, hostilidade ou rudeza (LIMA,2003, p.92).

    Os jogos são uma das atividades fundamentais para a formação de futuros conceitos nas crianças, os quais podem internalizar diversos valores positivos, como o respeito, a valorização das diferenças, a cooperação, como também, se for trabalhado a molde da sociedade capitalista pode desenvolver a competição, a violência e a segregação em grupos que são características marcantes desse tipo de sistema.

    Devido a todos esses fatores, os jogos neste trabalho, foram considerados como recurso fundamental para a apropriação de aprendizagens significativas e diversas nos seres humanos, exercendo um papel primordial na construção da personalidade e da psique do homem.

    Portanto, estudar os jogos significa analisar o desenvolvimento dos próprios homens e, conseqüentemente, da sociedade a qual fazem parte. Apesar da grande diversão que o jogo propicia, seu objetivo extrapola as simples funções prazerosas, pois, na medida em que se trata de uma atividade lúdica pode conter em seu interior tanto as alegrias da vitória e dos diferentes contatos pessoais, assim como, as tristezas da derrota e da não aceitação social, caracterizada pela dificuldade na obtenção de certas habilidades básicas.

Referências

  • ÁRIES, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1981.

  • BROUGÉRE, G. Jogo e a Educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

  • CAILLOIS, R. Os jogos e os homens. Lisboa: Portugal, 1990.

  • CHATEAU, J. O jogo e a criança. São Paulo: Summus, 1954.

  • ELKONIN, D. B. Psicologia do jogo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

  • HELLER, A. O cotidiano e a historia. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1970.

  • HUIZINGA, J. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1980.

  • KISHIMOTO, T. M. Jogos infantis: o jogo, a criança e a educação. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1997.

  • LEONTIEV, A. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In. VYGOTSKY. L. S; LEONTIEV. A; LURIA, A.R. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 4. ed. São Paulo: Ícone, 1988.

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EFDeportes.com, Revista Digital · Año 15 · N° 148 | Buenos Aires, Septiembre de 2010
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