efdeportes.com

Driblando os estereótipos: uma análise sobre 

representações femininas a partir do filme Driblando o destino

Gambeteando estereotipos: un análisis sobre las representaciones femeninas a partir de la película Quiero ser como Beckham

 

Bacharel e licenciada em Educação Física pela

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Cursando o Curso de Especialização em Lazer pela UFMG

Luiza Aguiar dos Anjos

lucianaonice@gmail.com

(Brasil)

 

 

 

 

Resumo

          O cinema é uma manifestação de enorme representatividade no mundo atual, e sua contribuição para os sujeitos na sua construção de significados não pode ser ignorada. Utilizando como aporte os Estudos Culturais, analiso a representação da mulher praticante de futebol no cinema a partir do filme Driblando o Destino. Tenho como objetivo analisar quais os papéis se propunha a esses personagens e os sentidos que elas carregam. Compreendendo o futebol, atualmente, como uma manifestação hegemonicamente masculina, a inserção da mulher foi e é constantemente questionada e combatida. Dessa forma, o modo como as mulheres são representadas nesse domínio pode contribuir para que os sentidos atrelados a essa presença sejam mantidos ou se modifiquem.

          Unitermos: Cinema. Mulher. Gênero. Representação.

 

 
EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 147, Agosto de 2010

1 / 1

    O cinema é uma marca da modernidade. Uma arte que surgiu no fim do século XIX e desde então se transformou, se atualizou, se ampliou e é hoje um fenômeno que não pode ser ignorado como parte das construções culturais de grande representatividade.

    O cinema é capaz de levar imagens a quase todo o mundo, atingindo milhões de pessoas. Não se pode assim, ignorar sua participação na vida desses sujeitos. Várias pesquisas que tomam como referencial os Estudos Culturais ressaltam a importância de se analisar materiais midiáticos e novas tecnologias de informação, entre eles os filmes. Os estudos desse campo tem se voltado não somente para o impacto que a mídia e as novas tecnologias exercem na vida das pessoas, mas também de questões relativas ao seu papel na produção de significados e na representação dos diferentes grupos culturais.

    Meu entendimento de representação parte do pressuposto que toda linguagem utiliza um sistema de representações para expor o real. Assim, o real só se faz existente na forma da imagem que criamos ou da representação atribuída de sentidos que construímos dele. Há uma separação entre o mundo real e o mundo em que a linguagem, os sentidos e as representações operam simbolicamente. Esses sentidos, por sua vez, não são nem já preconcebidos, verdadeiros e únicos, nem são atribuídos pelo sujeito de forma absolutamente autoral. Os sentidos são construídos por cada sujeito por meio de um sistema complexo que considera as influências externas e a capacidade de ressignificação dos sentidos hegemonicamente colocados (HALL, 1997).

    Na divulgação dessas representações hegemônicas que, como colocado, participam do processo de construção de sentidos, o cinema é certamente um forte instrumento. Segundo Giroux (2003, p.125) “as imagens eletronicamente mediadas representam uma das armas mais potentes da hegemonia cultural do séc XX”. Ao produzir verdades, esses artefatos midiáticos determinam certos papéis aos sujeitos. Eles ensinam modos de ser e pensar considerados adequados (PARAÍSO, 2002). Jeu aponta que:

    A investigação da presença do esporte na arte nos interessa na medida em que nos esclarece sobre a identidade do esporte e sobre o papel do imaginário na constituição das relações esportivas [...] O esporte não é simplesmente o indício de uma sociedade lúdica (ignorada ou tolerada), mas a sociedade lúdica percebida e descrita pelos meios da arte, em um quadro de expressão de sua valorização pela sociedade global (In Melo 2006, p. 19).

    Assim, representações do mundo esportivo são capazes de apresentar os sentidos atribuídos a esta pratica e aos sujeitos que dela participam. Nesse trabalho focarei nos papéis atribuídos ao feminino dentro do universo esportivo no filme Driblando o Destino.

As mulheres e a sociedade

    Se considerarmos a história da humanidade, apenas recentemente a mulher tem requerido a posição de protagonista social. Durante muito tempo lhe foi delegada apenas a função de esposa, mãe e dona de casa. Assim, suas vontades individuais ficavam à mercê de vontades de homens, sejam eles seus pais ou maridos. Segundo Freud, em uma vida em sociedade, a civilização impõe a necessidade de suprimir esses desejos em função da manutenção dos regulamentos criados e da ordem vigente. Essa estrutura se mantém através da disseminação de determinadas leis e valores considerados corretos e de caráter civilizado (COSTA, 2006).

    Sustentada por leis e valores dessa suposta civilidade, foram construídas e reforçadas as diferenças de gênero, o que se espera e o que se repugna do comportamento de um homem e de uma mulher. Operamos neste trabalho com o conceito de gênero aqui compreendido fundamentalmente como uma construção social e histórica dos sujeitos masculinos e femininos que é produzida sempre em relações de poder. Gênero não procura significar o mesmo que sexo por não estar atrelado à identidade biológica de uma pessoa. Ao invés disso, gênero relaciona-se com processos de formação histórica, lingüística e cultural, socialmente demarcados (LOURO, 1997). Gênero aponta, portanto, não para uma essência feminina e masculina natural única e imutável, mas para processos determinados e múltiplos de construção discursiva.

    Para contestar essa hierarquia entre os sexos, há aproximadamente quatro décadas1, surgiram mulheres que contestavam sua posição de submissão na sociedade, que desejavam igualdade de direito perante os homens e possibilidade de expressão enquanto mulheres e enquanto indivíduos (KERGOAT, 2003). Sem entrar em detalhes da jornada feminista, o que vemos hoje é um mundo bastante modificado em relação à participação feminina na sociedade. Muitas mulheres já estão inseridas no mercado de trabalho, cobram participação dos pais na criação dos filhos, praticam atividades consideradas típicas dos homens etc. É muito importante frisar, porém que batalhas foram ganhas, mas a guerra ainda não terminou. Discursos preconceituosos ainda são extremamente presentes, mulheres ainda são colocadas em situação de submissão, existe uma grande disparidade salarial entre os sexos, entre inúmeras outras questões ainda problemáticas. Uma dessas conquistas ainda em processo é a inserção da mulher em atividades de lazer consideradas de ethos masculino. Entre essas práticas destaca-se sua participação em determinados esportes como o futebol, o boxe, o futebol americano etc, seja como praticante ou como espectadora ou torcedora.

    Focando no aspecto da prática, por uma construção cultural, tais esportes foram taxados como inapropriados para as mulheres. Apesar de sua inserção nesses campos, o discurso de que a participação delas nessas atividades faria com que elas se masculinizassem ainda hoje se faz presente. Como a configuração simbólica e concreta dos espaços de determinados esportes sempre foram consideradas de pertencimento dos homens esse discurso era reproduzido, inclusive por mulheres (COSTA, 2006). Segundo GOELLNER (2000) tais argumentações são fruto de preconceitos construídos pela e na nossa cultura.

As mulheres e o futebol

    Joseph Blatter, então Secretário-Geral da FIFA, disse, em 1995, que “o futuro do futebol é feminino”. Se hoje não estranhamos a anunciação de tal profecia, ao mesmo tempo nos questionamos quando será que virá esse futuro. A história das mulheres no futebol é longa e permanentemente combatida. Historiadores afirmam que já na Primeira Guerra Mundial, quando os homens tiveram que abandonar seus lares para ir a combate, as mulheres foram repentinamente obrigadas a assumir postos tradicionalmente masculinos. Nesse contexto, além de vários outros espaços, conquistaram também o direito de se inserir nos campos de futebol. Elas passaram a formar times e organizar jogos beneficentes. Ao final da Guerra, porém, elas foram obrigadas a retornar a seus antigos papéis sociais e abandonar também o esporte (FRANZINI, 2005). Até mesmo no Brasil, ainda que com algumas divergências, há citações de jogos sendo realizados entre mulheres na década de 10. No livro Breve História do Futebol Brasileiro, José Sebastião Witter afirma que dois times de bairros paulistanos realizaram o primeiro jogo de futebol entre mulheres de que se tem notícia no ano de 1913, porém, cercado de preconceito, a prática para esse grupo não se firmou nos anos seguintes. Isso mostra que o desejo das mulheres de emergir nessa área há muito tempo já existe, porém a resistência acabou por adiar sua presença efetiva.

    Argumentos facilmente questionáveis sustentaram por muito tempo a exclusão das mulheres no futebol e em outros esportes como as lutas. Ele seria “um esporte para machos” por ser violento e exigir altos níveis de preparo físico e técnico, podendo assim ferir o corpo frágil da mulher, possivelmente afetando sua saúde reprodutiva; esse esporte iria ainda masculinizar o corpo da mulher, desviando-o dos padrões estéticos de feminilidade exigidos pela sociedade (GOELLNER, 2000). É perceptível, porém, que tais argumentos foram social e culturalmente criados a partir de lógicas que se perpetuam nas quais há espaços permitidos a homens e espaços permitidos a mulheres. GOELNNER (2005) coloca ainda que em situações em que atletas saíram do que ela chama de zonas de sombra (ganhando visibilidade na sociedade), são recorrentes as representações discursivas que fazem apologia da beleza e feminilidade como algo a ser preservado em especial em modalidades como o futebol. Assim, ainda que haja a permissão dessas práticas a imposição de estereótipos de beleza é reforçada.

    Acreditamos que nos colocamos num momento de transição em relação à presença da mulher no futebol, assim como em outros esportes e assim como em diversos outros domínios ditos masculinos. Isso porque, se podemos dizer que já há vários clubes de futebol no Brasil e no mundo, que é realizada uma Copa do Mundo de futebol feminino e que já há inclusive arbitragens femininas, não podemos dizer que essa presença não é contestada, por diversas vezes comentada com preconceito e ainda está longe de se apresentar em equivalência com o futebol masculino. Nosso estágio atual mostra que territórios, físicos e simbólicos, foram conquistados, mas diversos outros ainda estão por serem ganhos.

    Cabe analisar, porém, que isso faz parte de um processo histórico. Por muito tempo, às mulheres ficou relegado apenas o ambiente privado. Enquanto os homens se inseriam nas atividades esportivas, a elas era permitido, quando tanto, acompanhar o marido assistindo suas performances. Um impulso para a aceitação da mulher enquanto praticante de atividades físicas foi sua participação a partir dos segundos Jogos Olímpicos Modernos, no ano de XX (GOELLNER, 2005). Essa inserção, ainda que questionada, aos poucos foi acostumando os olhares gerais à imagem da mulher atleta.

    Essa inserção relaciona-se diretamente com as demais conquistas femininas, percebido facilmente pelo trecho de LENSKYJ:

    A habilidade esportiva dificilmente se compatibiliza com a subordinação feminina tradicional da sociedade patriarcal; de fato, o esporte oferecia a possibilidade de tornar igualitárias as relações entre os sexos. O esporte, ao minimizar as diferenças socialmente construídas entre os sexos, revelava o caráter tênue das bases biológicas de tais diferenças; portanto, constituía uma ameaça séria ao mito da fragilidade feminina. (LENSKYJ apud ADELMAN, 2003, p. 448).

    Notamos que o esporte é mais uma das áreas contestadas pelas mulheres e que sua conquista determina a contestação de estereótipos de fragilidade e inferioridade.

    Cabe dizer que o cinema, ao representar a realidade, pode também expor outras formas de lazer. Assim, ao acompanhar as modificações sociais, ele passou a representar a mulher cada vez mais na esfera pública e também, como não poderia deixar de ser, como praticante de inúmeras atividades das quais antes ela não se inseria, entre elas os esportes ditos “de homem”, caso do futebol. A forma como o cinema representa a participação das mulheres em atividades por muito tempo consideradas de domínio exclusivo dos homens pode contribuir na legitimação dessas práticas por esse grupo ou contribuir na perpetuação de sua exclusão. A própria invisibilidade quanto a um fenômeno é capaz de participar da perpetuação de determinadas crenças. Citando COSTA (2006): “Aquilo que nossos olhos não vêem pode nos dar a impressão de que não existe.”

    Partindo desses pressupostos, tanto a invisibilidade da mulher atuando em certas atividades como o modo como sua participação é tratada no cinema podem ensinar por via de um currículo cultural o que se coloca ou não como opções de lazer de uma mulher e o que se espera ou não de sua postura enquanto praticante.

Análise do discurso de Driblando o destino

    Driblando o Destino (originalmente intitulado Bend it like Beckham, dirigido por Gurinder Chadha) é um filme inglês de 2002. É protagonizado por uma jovem menina indiana, Jess, que mora, juntamente com sua família, na cidade de Hounslow, Inglaterra. Fugindo dos tradicionalismos sociais e familiares, ela ama jogar futebol. Ao ser convidada a entrar em um time por Jules, uma inglesa que compartilha da mesma paixão, Jess descobre que pode ter futuro nessa prática caso ela consiga ir para os Estados Unidos e se tornar uma jogadora profissional. Para isso, porém, terá que lidar com todos os pré-julgamentos de sua família, que acreditam que futebol é um esporte para homens e que a maior glória de uma mulher é se casar.

    O filme desenrola sua trama em torno de duas questões centrais: uma de cunho étnico, problematizada a partir da família indiana que vive em uma metrópole inglesa, e uma relativa a concepções de gênero, que se desenvolve através do desejo da protagonista mulher praticar futebol. Logicamente, as duas questões se perpassam e o tradicionalismo da religião indu faz com que as questões de gênero de expressem com mais veemência. Ainda sim, tentarei focar apenas nessa segunda questão.

    Culturalmente o esporte tem sido um terreno no qual a masculinidade é esperada e demandada, uma “escola” na qual se aprende a valorizar a masculinidade e a desvalorizar a feminilidade, um espaço cultural onde muito frequentemente meninos e homens aprendem a se enaltecer ao desvalorizar esses traços tanto em sujeitos fisicamente mais fracos quanto em mulheres.

    No caso do futebol feminino, sofre-se de uma inserção ainda muito pequena e deficiente na mídia, em que ainda pouco se valoriza de sua participação em si. Muitas das notícias e reportagens que mostram as futebolistas enfatizam atributos físicos das mulheres e a manutenção da tão cobrada feminilidade. Souza e Altmann (1999) afirmam existir uma forma tendenciosa de relacionar as participações femininas, enfatizando somente “a beleza das atletas, suas qualidades femininas e sempre frisando que são atletas, mas continuam mulheres” (p.58). Há ainda as notícias com forte discurso machista que discretamente ou não determinam a incapacidade da mulher de pertencer a esse ambiente (notícias e reportagens que colocam a arbitragem feminina como incompatível ou que divulgam o desconhecimento da mulher a respeito de regras, como a do impedimento, para citar alguns exemplos).

    Esse modo de salientar o feminino reflete que o espaço esportivo, especialmente o futebol é visto ou representado como o lugar do masculino. Transgredir tal barreira implica em uma sansão ao feminino, que deveria então ser compensada com a manutenção se outros traços de feminilidade, conforme evidencia-se na seguinte cena do filme Driblando o destino:

    No parque, enquanto Jess joga com seus amigos, três meninas observam e comentam:

- Ele é uma graça garota!

- Eu sei.

- Olhe, ele esta tirando a camisa!

- Meu Deus, um corpo daqueles deveria vir com um aviso de alerta de perigo.

- E garantia para a vida toda.

- Chame a Jess!

- Oi, Jess! Quem é aquele bonitão?

- O sarado.

- Se ele olhar pra mim, eu desmaio.

Jess; - Quem? Taz?

- Taz? Esse é o nome dele? Ele é um gato!

- Que graça!

Em seguida, Tony a chama e as colegas zombam:

- Vá lá Jess. Seu namorado está te chamando.

Jess; - Cale a boca! Sabe que só somos amigos. Não sou assanhada como vocês.

- Ow, só porque ainda é uma virgem, ela se acha melhor do que nós.

- Pelo menos ela não transou com metade da cidade como vocês duas.

    Na cena transcrita acima, a representação circulante é a de que mulher quando assiste a uma partida de futebol, não o faz em prol da apreciação do jogo, mas da beleza física dos homens que o praticam. Elas são então postas como meras coadjuvantes do futebol, representadas como as chamadas, “marias-chuteira” 2, que sonham ter algum relacionamento com o bravo e forte jogador.

    Além disso, a outra mulher presente na cena, Jess, a protagonista do filme, que ousa “driblar o destino” ao jogar futebol como um homem (no título original o filme chama-se Bend it like Beckham, algo semelhante a “driblando como o Beckham”) é tratada com estranheza por ter ousado se inserir em um universo masculino e deixar sua feminilidade de lado, ao não abertamente desejar um namorado como as outras e ainda ser virgem. Essa idéia corrobora com a situação citada por GOELNNER (2005) em que às mulheres que é permitido a saída das zonas de sombra, é cobrado fortemente que mantenham seus traços e características que marquem sua feminilidade.

    Em outro momento do filme, é mostrado o pai de Jules ensinando à mãe a regra do impedimento utilizando objetos da mesa, na idéia de que as mulheres não possuem esse saber masculino por excelência (GUEDES, 2006)

    Destacamos a seguir outra cena do filme que reafirma a existência de visões em que há os espaços permitidos e não permitidos à mulher.

    Jules e seu pai jogam futebol no jardim, quando sua mãe chega:

Mãe: - Parem vocês dois! Vejam o estado de minhas fúcsias! Alan, quando você vai entender que tem uma filha, com peitos, não um filho.

Pai: - Paula, por favor!

Jules: - Mãe!

Mãe: - Nenhum garoto vai querer sair com uma garota que tem mais músculos que ele.

(...)

Mãe: - Eu vi aquele Kevin na rua com uma garota loira. E não pareciam estar falando de futebol.

- Kevin pode transar com quem ele quiser.

- Querida, só estou dizendo que existe uma razão para a Sport Spice ser a única sem namorado.

    Nesse trecho, o esporte é considerado um empecilho para a feminilidade e até mesmo para a heterossexualidade de Jules, companheira de time de Jess. O feminino é constantemente controlado e comparado ao masculino, pois as mulheres habilidosas e fortes, isto é, com características ditas masculinas são enquadradas como masculinizadas. Quanto mais se aproximam do modelo masculino mais se distanciam do ideal de feminilidade e passam a ser questionadas quanto a sua orientação sexual. Os corpos femininos são assim expostos a uma constante vigilância e cobrança.

    Voltando à questão da sexualidade, é interessante perceber a reação que a mãe de Jules ao descobrir que sua filha não era homossexual, conforme ela estava pensando. Sua ressalva contra essa orientação sexual imediatamente desaparece. Como Guedes (2006, p.51) aponta, a mãe “concorda que homossexualidade é uma ‘coisa natural’. Evidentemente, para a filha dos outros”. A partir desse momento ela passa a apoiar a prática do futebol na vida de sua filha inferindo que o futebol não é um problema tão grande assim se sua filha “se manter” heterossexual. A heterossexualidade aparenta ser uma dessas imposições que se fazem à mulher que decide se inserir no espaço esportivo, juntamente com os cuidados estéticos que garantam sua feminilidade3.

    Numa outra cena, podemos perceber como as impressões se cristalizam não só em homens heterossexuais conservadores, mas em grande parte da sociedade visto que a sociedade como um todo é bombardeada por informações que reafirmam o futebol como domínio masculino.

    O filme se inicia com uma cena de um sonho de Jess, no qual ela é uma jogadora da seleção de futebol da Inglaterra em meio a todos os craques da seleção masculina do país. Houvesse a narração enquanto ela marca um gol no jogo realizado contra o time da Suécia no famoso estádio de Old Trafford, e em seguida a imagem passa a ser dos comentaristas do jogo.

C1: - Sera Jess Bhamra a resposta às preces da Inglaterra?

C2: - É inegável seu talento.Pensa rápido, tem intimidade com a bola e é ágil. É sensacional. Eu gostaria que ela estivesse jogando para a Escócia.

C1: - Será que econtramos o jogador para reviver a glória da copa de 66?

C3: - Com certeza, Gary. É a peça que faltava no quebra-cabeça. E o melhor é que ela nem chegou em seu auge ainda.

C1: - Ok, obrigado John. Agora, juntando-se a nós no estúdio a mãe de Jess, Sra Bhamra. Sra Bhamra, vc deve estar orgulhosa de sua filha.

Sra Bhamra: - Não mesmo. Ela não deveria estar correndo com homens, exibindo as pernas para 70 mil pessoas. Ela envergonha a família. E vocês não deviam incentivá-la. Jessminder, volte para casa agora!

Nessa cena, vemos que Jess não sonha jogar entre mulheres, mas sim entre homens. Apesar de ela mesma jogar, lutando inclusive contra a vontade da família, o seu imaginário do futebol foi construído exclusivamente com figuras masculinas, o que mostra como o futebol feminino se encontra em posição de invisibilidade. Podemos completar esse raciocínio com outra cena:

Jess, Jules e o treinador Joe conversam enquanto deixam o campo. Jules está contando como começou o time feminino no qual elas jogam:

Jules - Quando ele estourou seu joelho (se referindo a Joe), montou o time feminino. E não largou mais do meu pé.

Joe - Eles me fizeram começar de baixo. E não dá pra começar mais baixo do que por ela.

(Risos)

Jules – Você é tão convencido! Nós temos tantos troféus quanto o time masculino.

    Vemos aí que o próprio treinador, que em todo o filme se mostra como um personagem que defendia o direito das mulheres de jogarem futebol e que não mostrou em nenhum momento julgamentos a respeito da perda da feminilidade advinda dessa prática, nessa cena traz uma fala que vai contra essa imagem. Ao dizer que “não da pra começar mais baixo que isso” ele afirma, ainda que ironicamente, que o futebol feminino seria inferior a qualquer outro, colocando as mulheres na última posição dessa hierarquia social.

Conclusão

    Produções cinematográficas são artefatos culturais que possuem currículos culturais. Esses currículos produzem ou reforçam comportamentos, valores, normas e condutas esperadas de determinados grupos de indivíduos. Por isso, podemos dizer que tais currículos ensinam tais códigos, ainda que de maneira não formalizada.

    No mundo globalizado, recebemos informações a todo instante, estando pensando e refletindo a respeito delas ou não. Para que possamos analisar essas informações de maneira crítica é fundamental que problematizemos o currículo cultural que esses artefatos trazem.

    Ao analisar quais são esses “modos de ser, estar e fazer considerados adequados e desejáveis” (PARAÍSO, 2002, p.96) dentro de uma dessas produções deixamos a ingenuidade e nos fazemos indivíduos questionadores e reflexivos perante a sociedade em que vivemos.

    Percebemos que Driblando o Destino demonstra como a idéia da prática do futebol por uma mulher ainda é cercada de estereótipos. A simples existência de um filme com essa temática demonstra que se por um lado a entrada da mulher no esporte ainda pode ser considerada um tabu, por outro, ela, ainda que combatida, existe. É importante que produções desse tipo não sejam ignoradas e que as análises dessas produções possam produzir reflexões ricas sobre o espaço que a mulher vem conquistando na sociedade e de que forma a sociedade vem respondendo a esse movimento.

Notas

  1. Nessa referência, Kergoat considera o surgimento das feministas na Segunda Onda, ocorrida por volta da década de 70. Há, porém, inúmeros outros estudos que consideram uma Primeira Onda feminista, ocorrida por volta do século XIX e início do século XX, que buscava primordialmente a igualdade de direitos civis, como o direito a voto e à propriedade. Importante salientar que esse momento colocado como surgimento é definido devido a um movimento mais sistemático e organizado, o que não nega a existência de ações isoladas anteriores a esse período.

  2. Mulheres que acompanham os jogos de futebol não pelo gosto pelo jogo, mas sim por desejarem ter algum relacionamento afetivo com os jogadores, seja pelo seu status social, sua beleza ou atributos financeiros.

  3. O conceito de feminilidade a que me refiro é o entendimento hegemônico no qual a mulher, na maior parte das vezes, possui cabelos longos, usa maquiagem, saias ou calças justas etc. Entendo, porém que a feminilidade é vivenciada de maneiras diversas e não apenas nessa forma hegemonicamente imposta.

Referências

  • ADELMAN, Miriam Mulheres atletas: re-significações da corporalidade feminina. Revista Estudos Femininos (online), vol.11, n.2, p.445-465, jul./dez. 2003.

  • COSTA, L. M. Futebol e gênero no Brasil: comentários a partir do filme Onda nova. In MELO, V. A.; ALVITO, M. (Orgs.) Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

  • FRANZINI, Fábio Futebol é “coisa para macho”? Pequeno esboço para uma história das mulheres no país do futebol. Revista Brasileira de História. São Paulo, v.25, n.50, p.315-328. 2005.

  • GIROUX, Henry Os limites do Multiculturalismo Acadêmico In GIROUX, Henry Atos Impuros: a prática política dos estudos culturais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

  • GOELLNER, Silvana V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v.19, n.2, p.143-51, abr./jun. 2005.

  • GOELLNER, Silvana V. Pode a mulher a praticar futebol? In: CARRANO, Paulo C. (Org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, p. 79-93, 2000.

  • GUEDES, Simoni L. Um dom extraordinário ou “cozinhar é fácil, mas quem sabe driblas como Beckham?”: comentários a partir do filme Driblando o destino In MELO, V. A.; ALVITO, M. (Orgs.) Futebol por todo o mundo: diálogos com o cinema. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

  • LOURO, Guacira L. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes, 1997

  • HALL, Stuart Representation: cultural representations and signifying practices London: Thousand Oaks, Calif.: Sage in association with the Open University,   1997.

  • MELO, Victor Andrade de Cinema e Esporte: diálogos. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2006.

  • PARAÍSO, Marlucy. Currículo e mídia educativa: práticas de produção e tecnologias de subjetivação no discurso da mídia educativa sobre a educação escolar. 2002. Tese (Doutorado em Currículo). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

  • SOUZA, Eustáquia Salvadora de; ALTMANN, Helena Meninos e meninas: expectativas corporais e implicações na educação física escolar. Cadernos CEDES, vol.19, n.48, p.52-68, Ago. 1999.

Outros artigos em Portugués

  www.efdeportes.com/
Búsqueda personalizada

revista digital · Año 15 · N° 147 | Buenos Aires, Agosto de 2010  
© 1997-2010 Derechos reservados