O professor de Educação Física escolar: desvendando as suas concepções El profesor de Educación Física escolar: develando sus concepciones |
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*Professor do curso de Educação Física da UNIVALI Campus Itajaí, Centro, Itajaí, Santa Catarina **Licenciado em Educação Física formado no curso de Educação Física da UNIVALI, Campus Itajaí |
Santiago Pich* Thiago Albano** (Brasil) |
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Resumo A legitimação da Educação Física enquanto “componente curricular” conta ainda com sérios problemas, devido a fragilidade em sustentar uma proposta pedagógica consistente. No presente trabalho objetivamos compreender, em perspectiva comparada, o processo de produção da concepção de Educação Física escolar dos professores de escolas da rede particular e da rede pública de ensino. Metodologicamente seguimos um processo de pesquisa qualitativa. Contatamos que o esporte se erige como a principal referência na legitimação da área, a falta de compreensão da necessidade da orientação teórica do fazer pedagógico e condições estruturais desfavoráveis à mudança desse quadro. Unitermos: Educação Física escolar. Autonomia profissional. Concepções de Educação Física.
Resumen La legitimación de la Educación Física como componente curricular tiene todavía serios problemas, debido a la fragilidad para sustentar una propuesta pedagógica consistente. En el presente trabajo tenemos como objetivo comprender en una perspectiva comparativa el proceso de producción de la concepción de Educación Física escolar de los profesores de escuelas de la red municipal y de la red privada de enseñanza. Metodológicamente seguimos un proceso de investigación cualitativa. Constatamos que el deporte es la principal fuente de legitimación de la Educación Física escolar, la falta de comprensión de la necesidad de la orientación teórica del trabajo pedagógico y la existencia de condiciones estructurales desfavorables para un cambio del panorama encontrado. Palabras clave: Educación Física escolar. Autonomía profesional. Concepciones de Educación Física.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 147, Agosto de 2010 |
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Introdução
O campo acadêmico da Educação Física iniciou na década de 80 do século XX um movimento denominado de “crise”. Em um texto paradigmático desse processo Medina (1990) declarou que a Educação Física precisava “entrar em crise”. Com essa idéia o referido autor sinalizava o questionamento necessário sobre a identidade epistemológica que esta área devia enfrentar. As décadas de 80 e 90 foram protagonizadas pelo debate referenciado nas ciências sociais, em particular a discussão de caráter epistemológico teve um papel central nesse processo.
A produção de diversas propostas de démarche passou a fazer parte do cenário acadêmico da Educação Física, bem como assistimos ao surgimento das entidades acadêmicas que atualmente aglutinam a massa crítica da área. Tani (1998) aponta tanto as contribuições que esse processo teve para a Educação Física tanto em nível nacional, quanto internacional. As diversas propostas de constituição de uma nova ciência, área de conhecimento ou campo pedagógico, geraram ao mesmo tempo um renovado impulso que permitiu a qualificar a área, bem como uma vertiginosa profusão de propostas de delimitação que mais se parecem a uma “torre de Babel”, pela incomunicação observada entre os grupos gerados em torno de cada uma delas. Sendo limitada ou nula a tendência a compartilhar de uma compreensão mais ou menos consensuada em torno da identidade acadêmica da Educação Física.
Na década de 90 a Educação Física escolar passou a ser concebida a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB – 9394/96) como “componente curricular”, deixando de ser considerada uma “prática”. Essa mudança colocou novos desafios para a essa área de conhecimento no campo escolar, qual seja a de construir a sua legitimação a partir de referenciais próprios e não mais externos. Nesse contexto ganha relevância a construção teórica e a apropriação desse referencial como caminho necessário para sustentar o espaço da Educação Física no campo escolar. E em particular o diálogo entre a produção do campo acadêmico e os atores da prática pedagógica que acontece em ambientes educacionais. Se esse diálogo estivesse presente o trabalho docente seria guiado pela concepção de práxis, de tensão permanente entre teoria e prática. No entanto, os atores do campo escolar demonstram ainda sérios problemas na construção de um processo argumentativo baseado em uma sólida apropriação teórica, que permita orientar a sua prática pedagógica. Isto é, tanto de conceituar a área de conhecimento à qual pertencem, bem como de identificar os saberes e os objetivos que a caracterizam. Lamentavelmente ainda vemos que a qualidade do professor de Educação Física escolar depende do sucesso alcançado pelas equipes da escola em competições esportivas escolares ou pela disposição do professor em colaborar com outras disciplinas escolares, ou, ainda, pela disponibilidade do docente para organizar e preparar os alunos para as festas folclóricas que anualmente são organizadas na escola.
Embora essa situação seja reconhecida em diversos trabalhos acadêmicos (ver BRACHT, 2001; KUNZ, 1994) observamos que tais assertivas devem ser consideradas antes como “hipóteses de trabalho”, e não como conclusões de trabalhos empíricos. Ainda, essa carência mantém velados os processos que originam o problema, e torna, conseqüentemente, muito especulativa, quando não pré-conceituosa, qualquer tentativa de superação. Acreditamos, assim, que o campo acadêmico conta com recursos deficitários para compreender o fazer cotidiano da Educação Física escolar, e, como decorrência disso, tem sérias dificuldades em construir pontes que dinamizem a relação com o campo escolar. Por esse motivo nos propusemos a lançar um olhar multidimensional sobre o cotidiano escolar no sentido de privilegiar a compreensão do processo de produção da concepção ou concepções de educação física escolar presente(s) em escolas da cidade de Itajaí (SC).
Ainda, no imaginário docente está fortemente arraigada a idéia de que o pertencimento da unidade escolar à rede privada ou pública é um fator preponderante na qualidade do trabalho docente. Isso porque as instituições privadas teriam melhores condições estruturais para potencializar a prática docente. No presente estudo abordamos o objeto em perspectiva compara em instituições públicas e privadas, no sentido de contrastar “mito” com “realidade”. Seguimos um procedimento qualitativo tendo como foco a compreensão de sentidos e significados das categorias que orientam o trabalho docente dos professores de Educação Física das instituições investigadas. Os dados foram coletados através de entrevistas semi-estruturadas, observações livres e análise documental e analisados através de um processo de triangulação, orientado pelo princípio da saturação e a partir da elaboração de categorias a-posteriori.
A Educação Física e suas vicissitudes históricas
A história da Educação Física, o que esta área de conhecimento “vem sendo” (BRACHT, 2003) está marcada pela dissociação entre conhecimento e intervenção. É assim no período chamado higienista, militarista, e esportivista, e não é diferente em tempos atuais mesmo já passadas mais de 2 décadas do início da “crise” da Educação Física. Desde o seu surgimento a Educação Física tem uma relação distante com o conhecimento acadêmico no sentido da legitimação do seu fazer pedagógico.
No final do século passado vemos que esse quadro começa a passar por uma revisão profunda. Diversas matrizes epistemológicas foram produzidas nas décadas de 80 e 90 do século XX pelo campo acadêmico da Educação Física. Tani (1998) aponta tanto as contribuições destas propostas para a consolidação da Educação Física enquanto uma área autônoma de conhecimento, bem como os problemas de comunicação entre essas propostas no sentido de construir uma linguagem compartilhada pelos atores da comunidade acadêmica da área.
Por outro lado, Betti (1998) destaca que essas propostas que tentam responder à questão da identidade acadêmica da Educação Física podem ser identificadas em duas matrizes, uma “científica” e uma “pedagógica”. Nas palavras do autor a matriz científica entende a Educação Física como
(...) uma ciência autônoma ou relativamente autônoma, que possui seu próprio objeto de estudo (motricidade humana, ação motora, movimento humano, etc.) e se caracteriza por ser uma área de conhecimento interdisciplinar. [...] A “educação física”, entendida como aplicação ou ramo pedagógico, seria, então, uma subárea dessa ciência. (p. 16)
Já a matriz pedagógica assume outro entendimento da Educação Física.
A matriz pedagógica é uma das principais respostas à “crise” da década de 1980, que questionou os fundamentos e o papel social da educação física, e resultou da aplicação, no campo da educação física, das chamadas teorias pedagógicas críticas ou crítico-superadoras, após uma tendência em princípio “humanista” ou “escola-novista”. [...] Antes de tudo, consideram a educação física como “educação, como uma prática pedagógica balizada, em primeira instância, pela pedagogia. (ibid., p. 16)
Parece-nos que as duas posições acima refletem um conflito presente na área da Educação Física, que atualizam a problemática sobre a identidade do professor de Educação Física escolar. Particularmente, a relação desse sujeito com o conhecimento. No primeiro caso, a matriz científica, tributária da tradição positivista, vai entender ao professor de Educação Física como um aplicador de conhecimento produzido pelos pesquisadores que se encontram no âmbito universitário. Dessa maneira, vemos reproduzida a situação descrita no início do texto, com a única diferença que neste momento os produtores de conhecimento não são mais os médicos higienistas, mas os pesquisadores da Educação Física, que, diga-se de passagem em grande medida são herdeiros da tradição do biologicismo mecanicista reinante no século XIX. O conhecimento a ser apropriado pelo professor de Educação Física tem um caráter meramente instrumental com diversos fins, como por exemplo, promover o desenvolvimento motor dos alunos (Tani et al, 1988).
Por outro lado, a matriz pedagógica assume a identidade de uma Educação Física que é antes de tudo educação, portanto os elementos centrais para a construção teórica não são dimensões científicas que orientem o trabalho docente, mas, antes, as concepções ético-normativas ou ético-políticas de sociedade, educação e ser humano. Essas concepções são construções de caráter ético, e portanto não subsumíveis ao crivo da ciência. Esta matriz da Educação Física concebe o professor de Educação Física como sujeito de conhecimento que deve, em primeiro lugar optar por um referencial pedagógico que oriente sua ação. Dessa maneira esta matriz entende que a Educação Física deve manter um diálogo com as ciências, mas não pode querer ser ciência.
No campo da pedagogia da Educação Física, as décadas de 80 e 90 podem ser consideradas como um período no qual a corrente denominada “progressista” da Educação Física brasileira torna-se hegemônica e consegue instituir um discurso que referencia a Educação Física na cultura, produzindo uma série de denominações do objeto que tem no conceito de cultura seu denominador comum (BRACHT, 2004; PICH, 2001). Assim vemos surgir conceitos para designar o objeto da área tais como “cultura corporal”, “cultura corporal de movimento”, “cultura de movimento”, “cultura física” e “cultura do corpo”, para citar os mais relevantes. Nesse processo surgem novas concepções didático-pedagógicas que promovem a incorporação do discurso pedagógico crítico na Educação Física, tais como a “concepção crítico-superadora” (COLETIVO de AUTORES, 1992), “a concepção crítico-emancipatória” (KUNZ, 1994) e a “concepção de aulas abertas” (LANGING e HILDEBRANDT, 1986).
O rico debate acadêmico que a Educação Física tem vivenciado nas últimas duas décadas e meia tem tido impactos importantes no avanço e na qualificação da produção de conhecimento nesta área. Ainda, o movimento descrito tem conseguido instituir na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB 9393/96) a compreensão da Educação Física enquanto “componente curricular”, substituindo o caráter anterior de “prática”. Atualmente, do ponto de vista legal, a Educação Física é vista como uma área de conhecimento relevante na formação do cidadão que acontece na instituição escolar. Assim, a aula de Educação Física escolar deixa de ser um momento no qual os alunos deveriam desenvolver as capacidades motoras constitutivas da aptidão física ou das capacidades e habilidades motoras voltadas ao rendimento esportivo, para se tornar um espaço de apropriação de conhecimento sobre as práticas da cultura corporal de movimento. Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física
[...] entende-se a Educação Física como uma área de conhecimento da cultura corporal de movimento e a Educação Física escolar como uma disciplina que introduz e integra o aluno na cultura corporal de movimento, formando o cidadão que vai produzi-la, reproduzi-la e transformá-la, instrumentalizando-o para usufruir dos jogos, dos esportes, das danças, das lutas e das ginásticas em benefício do exercício crítico da cidadania e da melhoria da qualidade de vida. (BRASIL, 2001, p. 29).
Parece-nos claro que na passagem acima se expressa o papel da Educação Física enquanto uma disciplina escolar com um conhecimento específico e relevante na formação do aluno-cidadão em uma perspectiva crítica. Assim, o professor de Educação Física escolar deveria incorporar este entendimento como um pressuposto básico do seu trabalho docente. No entanto, essa nova missão da Educação Física parece estar distante do cotidiano da maior parte das instituições escolares brasileiras. Criando, assim, uma dicotomia entre os campos acadêmico e escolar da área, em particular entre o conhecimento produzido no âmbito universitário e os atores da prática pedagógica da Educação Física escolar. Poderíamos caracterizar essa situação, seguindo Fensterseifer (2001) como um estado do “entre não mais e o ainda não”, isto é, entre o não mais ser uma prática, e mas ainda não se tornar de fato um componente curricular.
Devemos alertar, ainda, que a reforma educacional promovida na década de 90 que se estendeu por toda a América Latina, e que teve no Brasil como pontos emblemáticos a lei 9394/96, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, (LDB) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s), não teve maiores avanços em mudanças reais no campo educacional porque, dentre outros motivos, não houve avanços nas condições de trabalho dos professores (tanto em termos de infra-estrutura, salário, e número de alunos por turma), nem tampouco no sentido da formação permanente. Dois aspectos, aliás, que nunca poderiam ficar dissociados. Portanto, não encontramos movimentos reais na década de 90 que nos levem a concluir a favor de condições adequadas para mudanças da escola, nem da Educação Física como parte integrante dela.
Em estudo realizado pelo Prof. Valter Bracht e seus colaboradores no Estado do Espírito Santo foi constatado que os professores de Educação Física escolar contam com um escasso conhecimento das produções do campo acadêmico e não se apóiam nelas para refletir sobre sua prática pedagógica (BRACHT et al, 2001). Ainda, o Prof. Mauro Betti (2005) identifica que a visão que os professores de Educação Física escolar têm dos atores do campo acadêmico está caracterizada por serem sujeitos distantes da prática pedagógica escolar e que, paradoxalmente, produzem teorias para orientar essa prática. A pergunta colocada por uma professora ao referido autor é bem esclarecedora “Você é um daqueles que fica na sua sala estudando para dizer como NÓS devemos trabalhar?” (Betti, 2005). Nesse sentido, devemos destacar que os estudos pedagógicos da Educação Física somente tem se ocupado de maneira tangencial com a “vida da escolas”, assumindo mormente uma postura legisladora com relação ao campo escolar. Conforme Frago (2002) as reformas educacionais fracassam ou têm um sucesso relativo na direção de instituir mudanças reais no cotidiano escolar por desconhecer essa dimensão constitutiva do dia-a-dia da escola que é a cultura escolar, esse conjunto de normas, valores, crenças, hábitos que constituem um conhecimento tácito e que regula a vida da escola. Entendemos que a categoria de cultura escolar pode ser uma ferramenta teórica relevante para superar essa olhar com relação à escola conforme o demonstram dentre outros trabalhos, os estudos de Vago (2000, 2003) e Fenserseifer e Almeida (2007).
Se nos perguntarmos como se configura a formação do professor de Educação Física nas últimas décadas, teremos na mudança das diretrizes curriculares realizada em 1987 e que resultou na Resolução 03/87,1 um marco relevante. Essas diretrizes curriculares condensaram o pensamento renovador da Educação Física brasileira e estabeleceram novos parâmetros para pensar a formação inicial nesta área de conhecimento. Nessas diretrizes se outorga autonomia às Instituições de Ensino Superior (IES) na elaboração das suas propostas curriculares, superando a visão de currículo mínimo da Resolução 69/69. Contempla-se a formação levando-se em conta aspectos filosóficos e sócio-culturais da Educação Física e do movimento humano, se promove a abordagem do objeto da Educação Física em uma perspectiva de totalidade, objetivando superar a visão biologicista imperante até então, e se prolonga o período mínimo de formação para 4 anos. Entretanto, permanece dominante uma visão “prática” da área quando se estabelece um mínimo de 80% dos 80% da carga horária destinada à formação geral para o conhecimento técnico. Desde finais da década de 80 temos um cenário nacional de formação profissional que dá sinais de mudança procurando superar a visão biologicista centrada no esporte e na aptidão física que foi hegemônica até meados da década de 80.
Por outro lado, como nos refere Kunz (1994) os professores de Educação Física escolar que procuram novos horizontes no diálogo com o campo acadêmico, e que conseqüentemente estariam em melhores condições para qualificar o trabalho docente, acabam seguindo a carreira acadêmica e se distanciando do universo escolar.
Embora a problemática da legitimidade da Educação Física escolar ter sido apontada por diversos autores (KUNZ, 1994; BRACHT, 1992, 1999, 2001; PICCOLO, 1995), essa discussão é feita na maioria dos casos em tom de denúncia e de alerta para as conseqüências que poderia trazer para a área. Porém, ainda constatamos uma carência de estudos que avancem na compreensão da realidade em que se encontram imersos os professores de Educação Física escolar.
No entanto, destacamos 3 trabalhos que nos parecem paradigmáticos nesse sentido. Por um lado, o estudo de Cardoso (2005) nos mostra que a legitimação da Educação Física escolar está intrinsecamente relacionada com o sucesso alcançado em competições esportivas escolares. Por outro lado, Almeida (2004) nos mostra que mesmo um professor que se insira na escola com pretensões de mudança, enfrenta uma cultura escolar, nem sempre favorável as mudanças, levando o professor ingressante a se adequar ao modelo dominante, calcado em uma compreensão de Educação Física enquanto prática.
Em particular sobre a cultura escolar se aceita como um lugar comum no imaginário docente que nesse aspecto as instituições privadas apresentam condições mais favoráveis à inovação e a um trabalho qualificado, do que as instituições públicas. Porém, essa idéia revela novamente muito pré-conceito e pouca densidade acadêmica. É um ponto obscuro a ser estudado. Ainda, Ferreira Neto e colaboradores (2003) em trabalho que procura compreender a constituição da identidade docente do professor de Educação Física nos apontam que a experiência esportiva anterior a formação inicial e continuada revela-se decisiva na construção da concepção que os docentes tem da Educação Física, bem como dos conhecimentos que lhe são específicos. Os exemplos apontados nos mostram como o cotidiano escolar precisa ser discutido a partir da relação do pesquisador com o campo objetivando compreender antes que pré-julgar.
Em particular nos parece relevante procurar compreender a concepção de Educação Física escolar, os objetivos e os conhecimentos específicos desta disciplina que orienta a prática pedagógica dos professores da Educação Física escolar. Ainda, entendemos que essas concepções somente serão compreendidas se situadas no contexto da formação inicial e continuada dos sujeitos da pesquisa, bem como da sua relação com a cultura escolar na qual estão imersos. Esse pode ser um ponto de partida fértil para avançar na tentativa de dinamizar a relação entre os atores do campo acadêmico e os atores do campo escolar.
Metodologia
No presente trabalho nos guiamos pelos pressupostos da pesquisa qualitativa. Segundo Triviños (1987) apoiado em Bogdan, a pesquisa qualitativa se caracteriza por:
Ter o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como instrumento-chave.
Ser descritiva.
A preocupação dos pesquisadores se centra tanto no processo, quanto no produto.
Uma tendência a os dados serem analisados indutivamente.
Ser o significado a preocupação essencial da pesquisa.
O trabalho foi desenvolvido junto a todos os professores de Educação Física escolar de 2 escolas da cidade de Itajaí, 1 pública e 1 particular, que contavam com um setor específico de Educação Física. A unidade escolar particular escolhida foi um colégio de aplicação universitário situado na cidade de Itajaí. Entendemos que essa escolha se justifica na medida em que a mesma poderia contar com o apoio de uma universidade que tem tanto com um curso de graduação em Educação Física, bem como com um curso de graduação em pedagogia e um programa de mestrado em educação. A unidade escolar pública foi uma escola da rede municipal de Itajaí que passou por uma profunda reforma da sua infra-estrutura para a Educação Física, da qual era esperada uma melhora qualitativa da disciplina. Privilegiamos as instituições e não os indivíduos por entendermos que a cultura escolar própria de uma unidade escolar cumpre um papel relevante na construção dos conceitos que o presente trabalho se propõe a investigar e é nesse contexto que acontecem conflitos e negociações em torno dos conceitos que nos propomos a investigar.
Em termos instrumentais para o procedimento de coleta de dados utilizamos, em ordem cronológico, a análise documental, a entrevista semi-estruturada e a observação livre registrada em diário de campo conforme apresentada por Triviños (1987). A análise documental do Projeto Político Pedagógico das escolas investigadas, objetivou identificar a concepção de Educação Física presente nesse documento, representando a postura oficial da escola sobre a concepção de Educação Física. As entrevistas semi-estruturadas foram transcritas literalmente, sem uso do copy-desk. Durante o processo de pesquisa entendemos que era relevante realizar uma entrevista com o corpo de professores de Educação Física da escola particular, em virtude das diferenças de concepção de Educação Física identificada entre os professores. Com esse instrumento objetivamos compreender, no plano discursivo, a concepção de Educação Física, os objetivos e os conhecimentos específicos da Educação Física escolar dos professores dessa disciplina escolar, situadas no contexto da sua formação profissional. Através da observação livre foi realizado o registro da prática pedagógica dos professores participantes da pesquisa objetivando identificar a concordância ou discordância entre as dimensões discursiva e da prática pedagógica. O período de observação foi de setembro a novembro de 2007. A partir das nossas possibilidades de trabalho optamos por acompanhar pelo menos uma turma das séries inicias e uma turma das séries finais de cada unidade escolar. Fizemos essa opção porque na escola municipal não se oferece o ensino médio e dessa maneira tivemos melhores possibilidades de comparar as realidades investigadas. No caso da escola particular optamos ainda por acompanhar as aulas de docentes que apresentavam concepções diferentes de Educação Física. Já na escola pública somente uma professora estava à frente das turmas não havendo, portanto, necessidade de escolha. A participação dos professores, bem como das instituições foi voluntária. Os dados obtidos no processo de coleta serão mantidos sob sigilo, e não serão divulgados nem os nomes dos sujeitos da pesquisa, nem o nome das instituições.
A análise dos dados seguiu o procedimento de construção de categorias a-posteriori, conforme Altrichter, Posch e Somekh (1993). Os dados coletados foram triangulados no sentido de identificar a coerência entre os planos documental, discursivo e fenomenal do objeto de pesquisa.
Análise e interpretação dos dados
Caracterizaremos brevemente as unidades escolares que participaram da pesquisa e a configuração do corpo de professores de Educação Física. Na escola particular o corpo docente era constituído por professores, 6 deles com titulação de especialista e 1 com titulação de mestre. As turmas são relativamente pequenas quando comparadas com as da escola pública. O espaço físico é amplo, as aulas para as turmas das séries iniciais do Ensino Fundamental são ministradas em uma quadra de cimento ao ar livre que se encontra ao lado do prédio das salas de aula. Eventualmente a professora faz uso de outras instalações que, por se situarem dentro do campus universitário, ficam mais distantes, uma quadra coberta e um ginásio poliesportivo que conta salas de dança, de lutas, sala de tênis de mesa, sala de xadrez, sala de ginástica artística e uma academia de musculação. Vale a pensa ressaltar que o uso do espaço é específico para as aulas de Educação Física e nunca são ministradas aulas para 2 turmas no mesmo espaço. O material à disposição é renovado anual ou semestralmente, conforme a necessidade e existe em grande quantidade e diversidade.
A área da Educação Física nesta escola é coordenada pela responsável pelo seção de esportes da universidade e conta com um total de 8 professores. Interessante é notar que o local de funcionamento da seção de esportes é no ginásio poliesportivo da universidade, distante do prédio em que funciona a escola. Esse fato dificulta seriamente a comunicação entre a Educação Física e as demais áreas de conhecimento que compõem o currículo escolar. Nas palavras da diretora da instituição a Educação Física funciona como “uma ilha”, sem sequer participar das reuniões pedagógicas mais amplas. (diário de campo 21-05-2008).
No ensino fundamental as aulas acontecem em período regular. No ensino médio os alunos devem escolher em cada bimestre uma prática corporal dentre as oferecidas, ficando a critério do aluno realizar uma ou mais práticas durante todo o ano letivo. No terceiro ano do ensino médio as aulas de Educação Física podem ser realizadas em contra-turno seja na universidade nos horários de prática desportiva ou em outro espaço que ateste a freqüência do aluno. O planejamento é elaborado por cada professor e entregue à coordenação de Educação Física sem, necessariamente chegar até a supervisão escolar. Vemos que ainda a Educação Física carece de perfil claro de área de conhecimento relevante para a formação do aluno no contexto escolar, se a escola situa no mesmo nível as atividades realizadas em uma “aula” de Educação Física daquelas realizadas em um espaço não formal de educação, como uma academia, significa manter o significado de educação como prática, na melhor das hipóteses, voltada para a promoção da aptidão física orientada à saúde.
O corpo docente, em termos de tipos ideais (WEBER, 2003), dois grandes perfis. Seguindo a caracterização que Bracht (1999) propõe entendemos que o grupo majoritário, incluindo a coordenadora da área que também atua como professora se orienta por uma visão esportivista e por outro, um grupo minoritário constituído por duas professoras defendem uma visão psicomotricista da Educação Física escolar. O primeiro grupo é hegemônico reúne a maior parte do corpo docente, 6 professores incluindo a coordenadora da área, mesmo que com diferentes níveis de compromisso com o esporte. O segundo grupo é composto por 2 professoras. Ainda, ambos os grupos se ocupam com níveis diferentes de ensino. O primeiro grupo atua nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio, o segundo grupo atua na Educação Infantil, nas séries iniciais, e, em menor medida, nas séries finais do Ensino Fundamental. Este fato parece revelar uma idéia instituída na Educação Física com relação ao conhecimento da área centrado no esporte. A psicomotricidade é normalmente vinculada à Educação Infantil e como suporte do desenvolvimento cognitivo nessa fase da vida humana. Por outro lado, o esporte é considerado, via de regra, o “conteúdo” sério da Educação Física escolar e como neste caso torna-se o centro das atenções nas séries finais do Ensino Fundamental e no Ensino Médio. Essa lógica piramidal que tem no topo o esporte de conceber o conhecimento específico da Educação física parece ser ainda dominante nas escolas.
A escola pública que participou do trabalho é uma importante unidade escolar da rede municipal de Itajaí (SC) e conta com um amplo espaço para as aulas de Educação Física. Esse espaço passou por amplas reformas no ano da pesquisa que objetivavam melhorar as condições de trabalho para este disciplina escolar, e, conseqüentemente, melhorar a qualidade do trabalho da disciplina. Atualmente a escola conta com uma quadra de cimento, uma quadra de asfalto para o tênis, uma quadra de futebol de areia e uma quadra de basquetebol. Ao redor da quadra de futebol de areia foi construída uma pequena pista de atletismo e no final de uma das retas uma caixa de areia para saltos. No entanto, o material didático disponível é escasso em relação ao número de alunos. Não há previsão orçamentária para a área e a compra de material depende do dinheiro que sobra das compras priorizadas pela instituição.
No período de inserção na escola o professor que atuava na escola pediu demissão e assumiu no seu lugar uma acadêmica de Educação Física que se encontrava na fase intermediária do curso.2 Parece ser uma característica das escolas municipais a troca mais ou menos freqüente dos professores de Educação Física por causa do pequeno número de professores efetivos, havendo um elevado contingente de professores contratados conhecidos como “ACT” (agente de contrato temporário). Durante o período de observação ela acompanhou por duas vezes as equipes escolares nos jogos esportivos escolares do município, ausentando-se das aulas. Ainda, durante as duas semanas prévias aos jogos a professora centrou sua atenção nos alunos que iam participar dos jogos, permitindo que o a outra parte da turma escolhesse a atividade a ser realizada. Os alunos que permaneceram na escola, a grande maioria das turmas, teve nessas ocasiões “aula livre”. Neste caso não observamos divergências entre os professores da escola por haver, durante o período de inserção, somente um professor da área na escola por ter assumido o trabalho do professor demissionário.
A continuação apresentaremos as principais categorias elaboradas a partir da análise. Denominamos as mesmas de Educação Física escolar e o projeto político pedagógico, o sujeito ausente; esporte: o principal aliado da Educação Física escolar; e o campo acadêmico e o campo escolar: dois desconhecidos.
Educação Física escolar e o projeto político pedagógico, o sujeito ausente
Ambas instituições foram muito solícitas em nos permitir acesso ao PPP. Como tínhamos esse documento como referência para o discurso oficial da escola, nos chamou muito a atenção que a escola pública nem sequer tinha uma seção específica para a Educação Física, fato que foi justificado pela diretora da escola por esse documento estar em “fase de reconstrução”. Portanto neste caso não tivemos acesso ao posicionamento oficial sobre a Educação Física, mas a própria inexistência de proposta estruturada constitui, para nós, um claro posicionamento. A professora desta escola apontou ter um conhecimento muito superficial do documento e, por estar havia pouco tempo na instituição, não ter participado da construção do PPP.
O PPP da escola particular na sua parte introdutória se assenta nos pressupostos da pedagogia crítica e concebe a emancipação como um valor central na formação do aluno. Outro princípio constitutivo no PPP é visão interdisciplinar de conhecimento. Esse princípio não encontra eco no documento, que reflete uma visão disciplinar nos textos de cada uma das áreas de conhecimento representadas. Na concepção de aprendizagem se referencia na concepção sócio-interacionista vigostskiana. Na análise que realizamos da proposta específica da Educação Física não se observam relações com as perspectivas acima referidas. O texto segue, quase literalmente, os pressupostos dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Física. Por fim, no PPP são apresentados os projetos desenvolvidos pela área de Educação Física, porém sem textos que acompanhem as fotos que ilustram as atividades desenvolvidas. A fala da professora Luciana é exemplar nesse sentido. Quando entrevistada declarou orientar seu planejamento no PPP da escola, mas em outro momento da entrevista declarou não ter participado da construção do PPP e enfatiza “Não posso responder isso porque não li o PPP da escola.” A professora Mariana declarou ter participado do processo de construção do documento. Porém, no momento em que se refere ao trabalho docente sua referência é o plano de ensino e não o projeto político pedagógico. Ainda, a professora declarou participar de um grupo de estudo da escola que não está vinculado à Educação Física, ela é a única representante da área. Essas falas reforçou a nossa suspeita da inexistência de um processo individual ou coletivo da proposta de Educação Física presente no PPP.
Entendemos que em nenhuma das duas realidades pesquisadas há uma referência institucional sobre a concepção de Educação Física que deveria atuar como norte do coletivo docente. Dessa maneira entendemos que nas escolas investigadas as condições instituições promovem que o entendimento de Educação Física fique em um plano subjetivo e não se alinhe com um projeto institucional. Com relação especificamente ao envolvimento e participação do coletivo de professores de Educação Física na construção do PPP não encontramos pesquisas que nos sirvam como parâmetro para contrastar os dados coletados. No entanto, consideramos relevante reforçar a necessidade de uma integração real da Educação Física na construção do projeto político pedagógico da escola, principalmente se assentada em um visão crítica da educação, como ambos os projetos políticos pedagógicos das unidades escolares investigadas se propõem. Nesse sentido compartilhamos a visão de Kunz (1994, p. 144) “[...] só existe uma formação crítico-emancipadora da escola e não de uma disciplina.”
Esporte, (ainda) o principal aliado da Educação Física
A Educação Física consegue sua legitimação na escola via discurso da saúde (SOARES, 1994). Depois da década de 50 o esporte ganha centralidade e se torna a prática hegemônica da Educação Física escolar (OLIVEIRA, 1983). Esporte e saúde tornar-se-ão a partir da década de 60 e principalmente na década de 70 um binômio inseparável no processo de legitimação da Educação Física escolar. Esse quadro se reproduz até hoje e foi constatado, se bem que de maneiras diferentes nos campos da nossa pesquisa.
Na escola pública a professora deixou de dar 2 semanas de aula por causa dos Jogos Escolares municipais, uma para a preparação dos alunos e a outra para acompanhar os alunos na competição (diário de campo 17-10-07 e 24-10-07). O sistema de competições escolares atua, neste caso, como a referência para a organização do componente curricular Educação Física. Esse fato parece ser reforçado também pela compreensão existente nas instituições acerca da estreita relação entre a Educação Física e o esporte, que se tornam praticamente sinônimos conforme constatamos na entrevista com a professora desta escola quando questionada sobre o entendimento que, na visão dela, tem a escola sobre a Educação Física:
Ah é aquela né, esporte. Eles tem que aprender a jogar. Os alunos tem sai daqui sabendo jogar bem os esportes. E esta é, no meu entender, a visão dos dirigentes também. (Professora Letícia – escola municipal)
Por outro lado, observamos que os conteúdos trabalhados também seguiam a lógica piramidal de conteúdos centrados no esporte que apontávamos anteriormente para a escola particular. Com a turma das séries iniciais, 3ª-série, o trabalho desenvolvido no período de observação era centrado em jogos e atividades gímnicas em que as crianças tinham um amplo de grau de liberdade para experienciar os movimentos que realizavam. Por outro lado, coma turma das séries finais do ensino fundamental o direcionamento foi para os esportes coletivos, particularmente o handebol de areia conduzidas a partir de uma perspectiva metodológica analítico-sintética (DIETRICH et al, 1984). Esse fato também se revelou na fala da professora Letícia quando perguntada sobre o conhecimento específico da educação física escolar, conforme vemos abaixo
Esportes de areia. Sobre os conteúdos da escola, que a escola trabalha né, esportes em geral. Na 2ª e 3ª série é mais psicomotricidade e criatividade. Desenvolvimento psicomotor.
Na 4ª série são jogos com regras, pré-desportivos. Vão conhecendo os esportes com o objetivo do trabalho em equipe, respeito através do esporte. Usá-los também para resolver problemas como brigas, desenvolver a autonomia.
Nas séries finais é mais esportes de areia, aulas práticas, eu não concordo com aulas teóricas. De vez em quando discuto fisiologia e nutrição. (Profa. Letícia – escola municipal)
Fica evidente o entendimento de que a aula de Educação Física equivale a formação para o esporte. Que o esporte é o topo da pirâmide para a qual deve converger o esforço do trabalho da área. Por outro lado, destacamos a falta de identificação com saberes teóricos como elementos constitutivos do conhecimento específico da Educação Física escolar reproduzindo-se, assim, a visão da Educação Física escolar como “prática”.
Na escola particular também observamos essa tendência porém com contornos diferentes. A divisão dos professores por níveis escolares conforme a concepção de Educação Física que eles apresentam. Aqueles que se enquadram em uma visão psicomotricista atuam nos níveis inicias da escolarização, educação infantil e séries inicias do Ensino Fundamental, enquanto aqueles que se enquadram em uma visão esportivista atuam predominantemente nas séries finais e no ensino médio, bem como nas escolinhas esportivas que da instituição. Esse fato foi constatado tanto a partir da entrevista, quanto da observação livre.
O trabalho desenvolvido pela professora Mariana foi amparado principalmente em pressupostos psicomotricistas e suas aulas promoviam claramente o desenvolvimento das capacidades psicomotoras como o esquema corporal, a lateralidade, o equilíbrio, a orientação espacial, dentre outras. Como vemos no exemplo da atividade de circuito realizada com a turma da 3ª série descrita abaixo:
Eles deveriam correr entre cones (dispostos a cerca de 1,5 m do muro da quadra) e o muro até a cesta de basquete. Então, pegar a bola e arremessar na tentativa de encestá-la. Conseguindo ou não, deveriam colocá-la em seu lugar e continuar a corrida. Subir as escadas do DCE, descê-las e cruzar a linha de chegada. (Diário de campo 24-10-07)
A professora Mariana também apontou a relevância que tem para ela o compromisso com a formação continuada e que participa de um grupo de estudo onde procura subsídios para orientar seu trabalho docente destacando a importância tanto na próprio formação quanto na orientação das aulas da práxis com princípio educativo (PIMENTA, 1995). Por outro lado, o esporte para esta escola e a escassa relação que ela tem com o desenvolvimento do esporte na escola.
Mariana: A escola é bem participativa né. Inclusive em competições nacionais, tem títulos. É bem participativa.
Pesquisador: E quem se responsabiliza pela organização das equipes que competem?
Mariana A escola tem bastante escolinha né, no contra turno. Então os professores das escolinhas que cuidam disso. A gente até ajuda, mas pouco. (Professora Mariana – séries iniciais – escola particular)
Já a professora que atua nas séries finais abordou a ginástica e o basquetebol, dando mais ênfase a essa última prática corporal. Neste caso, devido a turma apresentar problemas disciplinares o processo pedagógico foi orientado em uma perspectiva de comando. Outro aspecto que merece destaque é o fato de que a aula era predominantemente prática, e sendo a abordagem de elementos teóricos usada como um artifício disciplinar junto aos alunos, conforme constatamos na observação realizada: “[A professora] disse que se a aula prática não estava funcionando, mudariam para a teórica. Passou uma pesquisa aos alunos sobre o tema da aula, que seria prática de basquete.” (Diário de campo 18-10-07).
Observamos nas duas realidades pesquisadas uma semelhança no destaque dado ao esporte como conhecimento central da Educação Física, que reproduz a tradição inaugurada na década de 50 e consolidada na década de 70 pela Educação Física. Ainda, o esporte nos moldes do sistema esportivo formal nos faz pensar que a Educação Física permanece colonizada pelo sistema esportivo conforme nos aponta Kunz (1991). A associação apontada entre o esporte e o sucesso no ensino do esporte também se fazem presentes nas escolas investigadas confirmando o estudo de Cardoso (1999).
Também identificamos em ambos campos uma clara dissociação entre Educação Física e teoria. Porém na escola particular essa relação está presente em uma das professoras participantes da pesquisa. Assim, vemos que também se observam tensões no campo escolar entre a tradição que resiste e propostas inovadoras que começam a se fazer presentes na escola.
O campo acadêmico e o campo escolar: dois desconhecidos
Na última categoria apresentada neste artigo constatamos a lacuna existente entre as propostas elaboradas no campo acadêmico e os atores do campo escolar. Os professores que foram escolhidos para serem entrevistados e acompanhados durante o período de trabalho de campo demonstraram desconhecimento dos professores das abordagens pedagógicas produzidas pela pedagogia da Educação Física. Das 3 professoras entrevistadas a professora Mariana foi a única a apresentar de maneira convincente um posicionamento pedagógico. No entanto, esse posicionamento estava relacionada com um corrente da psicologia educacional, a perspectiva interacionista, sem que se demonstrassem relações, no plano do discurso, entre essa perspectiva e a concepção psicomotricista na qual ela se posicionava.
Este fato corrobora o estudo de Bracht et al (2001) que identifica a falta de conhecimento e apropriação por parte de professores da rede estadual do Espírito Santo em relação às diversas abordagens pedagógicas da Educação Física. Também demonstra o enorme distanciamento ainda existente entre o campo escolar e o campo acadêmico para o qual o Prof. Elenor Kunz nos alertava em 1991 e que foi retomado em 1999 pelo Prof. Valter Bracht. Ambos autores nos colocam que a falta de repercussão das abordagens produzidas no campo acadêmico da Educação Física e referenciadas na pedagogia crítica precisavam (e precisam) se inserir no contexto escolar, para evitar cair em descrédito e perder seu potencial crítico. Ainda estamos esperando para ver essa mudança acontecer.
Devemos considerar, ainda, que são múltiplos os fatores que devem converger para esta mudança, e se não atentamos para ele podemos cair num reducionismo que venha a culpabilizar sobremaneira o professor de Educação Física. Entendemos que a excessiva carga de trabalho ao que o professor está submetido, a falta de espaços na escola para o professor se reconhecer e se assumir como um trabalhador intelectual, a precariedade das condições materiais de trabalho e das relações de trabalho e a formação inicial e continuada frágil em termos de rigor acadêmico contribuem de maneira significativa para que esse quadro não se altere.
Considerações finais
Finalizamos este trabalho com um sentimento ambivalente, por um lado carregado de angústia por entendermos que a Educação Física e a o sistema educacional formal precisam e demandam de uma transformação que os situe à altura dos tempos atuais, processo que se situa ao mesmo tempo na mudança de condições estruturais da sociedade; bem como em movimentos de ordem micro-social iniciados pelos atores envolvidos no cotidiano escolar. Também nos move o sentimento de esperança, por entendermos que os atores do campo escolar, se bem que não em sua totalidade e talvez também não em sua maioria, anseiam por espaços de formação que lhes permitam refletir e qualificar seu fazer pedagógico. Nesses espaços se abrem perspectivas promissoras para o desenvolvimento da Educação Física escolar rumo à maturidade, entendemos que pesquisas orientadas pela perspectiva da pesquisa-ação e que envolvam atores do campo escolar e do campo acadêmico precisam ser implementadas para potencializar esse processo.
Notas
No presente texto não fazemos menção às recentes diretrizes tanto para a formação tanto do professor para a Educação Básica, quanto para a formação do “graduado” em Educação Física por não serem essas as diretrizes vigentes na formação dos professores dos campos investigados.
Desconhecemos que este procedimento também seja seguido com outros componentes curriculares. Nunca tivemos notícias de acadêmicos de história, letras ou qualquer outro curso ser contratado como professor de uma disciplina escolar.
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digital · Año 15 · N° 147 | Buenos Aires,
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