O futebol e suas dimensões simbólicas: uma interpretação filosófica El fútbol y sus dimensiones simbólicas: una interpretación filosófica |
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Doutor em Filosofia Docente do Instituto de Ciências Sociais, Educação e Zootecnia Universidade Federal do Amazonas |
Dirceu Ribeiro Nogueira da Gama (Brasil) |
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Resumo No presente ensaio, propomos uma reflexão filosófica sobre o futebol a partir de suas características principais. Para tal, procuramos entendê-las como dotadas de sentidos simbólicos. Unitermos: Futebol. Simbolismos. Filosofia.
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EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Año 15, Nº 147, Agosto de 2010 |
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Introdução
Todos sabemos que o futebol é um desporto onde a posse e o controle de uma bola pelos pés de indivíduos alocados em duas equipes antagônicas, movidas pelo imperativo de dar a ela uma destinação última (encaminhá-la a certa região da arena estabelecida para sua realização, a meta ou gol), constitui a sua “proposta” central. Também sabemos que muitas civilizações antigas, (astecas, maias, chineses, povos da Europa mediterrânea, etc.) praticavam jogos com semelhante viés (Ramos, 1982).
Essa simples constatação, por si só, é capaz de suscitar interrogações do tipo: como é que povos tão distantes no tempo e no espaço, sem a menor possibilidade de se contatarem e trocarem informações, desenvolveram jogos como estes com as características gerais acima apontadas? Por que tal fenômeno veio a acontecer? A partir de que referenciais podemos tentar explicá-lo? Muito embora seja impossível responder a tais perguntas com precisão, devido mesmo a carência de dados e informações seguras, nem por isso elas deixam de ensejar reflexões. Afinal de contas, por mais que as eras se sucedam, desde a Idade Antiga até os dias contemporâneos os jogos coletivos em que equipes disputam a posse e o direito de atribuir a uma pelota determinado fim (dos quais o futebol é o remanescente atual) não caíram no esquecimento e muito menos perderam a capacidade de captar a atenção das pessoas em todo o globo. Assim, será que esse apelo tem a ver com o perfil dos elementos materiais e das ações corporais específicas à sua realização? Até que ponto a combinação desses fatores figuraria como causa de seu imenso poder de sedução? A que conclusões uma leitura hermenêutica do futebol nos levaria?
Postas essas questões, nosso objetivo será, nas próximas linhas, efetuar uma análise simbólica dos papéis da bola, da arena de jogo, do pé, da equipe adversária e da mão no contexto maior do jogo de futebol. Depois de fazê-la, teceremos alguns comentários sobre um possível significado da conjugação de todos esses itens. Reiteramos que trabalhos como esse são justificáveis porque, lembrando Gastaldo (2009), o futebol ainda insurge como um objeto de pesquisa relativamente recente nas ciências sociais e humanas no Brasil. Apenas a partir da década de oitenta é que estudos sistemáticos sobre tal esporte começaram a ganhar corpo, com destaque para as pesquisas de Da Matta (1992) e Guedes (1998).
Da parte ao todo: uma leitura simbólica do futebol
Poderíamos dizer que o futebol tem na bola o seu objeto central, pois em torno dela gravita a dinâmica desse esporte. Com base nessa constatação, Lhôthe (1994) nos diz que a bola, no imaginário dos povos antigos, servia para invocar os astros celestes. Sua forma circular representava a perfeição que não se altera, na medida em que início e fim se encerram em si mesma, não obstante as mudanças de ordem ou nível invocadas quando é movida (a bola é um corpo que está sempre na iminência de sair da posição em que encontra-se; sua predisposição para rolar ao menor toque demonstra precariedade, em termos de estabilidade).
No que tange as arenas dos jogos com bola realizados pés, Lhôthe (1994) nos lembra que praticamente todas possuíam formato de quadratura. Muito embora Lhôthe (1994) se limite a apenas constatar essa relação, há autores que identificam no par bola/quadratura uma dimensão de complementaridade. Dentre estes, urge mencionar Gheerbrant & Chevalier (1994), tanto pela clareza como originalidade de suas análises.
A figura circular, adjunta à figura quadrada, é espontaneamente interpretada pelo psiquismo humano como a imagem dinâmica de uma dialética entre o (...) transcendente, ao qual o homem aspira naturalmente, e o terrestre, onde ele se situa no momento, onde percebe a si mesmo como sujeito de uma passagem a realizar (...). (Gheerbrant & Chevalier, 1994, p. 251).
De certa forma dialogando com a interpretação de Gheerbrant & Chevalier (1994), porém oferecendo elementos outros que permitem ir um pouco além dela, Retondar (2003) afirma que o círculo equivale, simbolicamente falando, a forma geométrica perfeita, pois começando e terminando em qualquer região de si mesmo, fornece a imagem da eternidade construindo e destruindo coisas ad infinitum.
Quanto aos pés propriamente ditos, que são a parte anatômica mais solicitada no jogo de futebol, sabemos que são o suporte estrutural do corpo humano, de quem as pernas são o prolongamento natural. Sem pés, o indivíduo não se sustenta na posição ereta e muito menos consegue realizar deslocamentos no tempo e no espaço. Por causa disso, sublinha Leloup (2009), o pé desempenha, para o homem, o mesmo papel da chave, porque é ele que lhe permite manter a verticalidade corporal e movimentar-se de um ponto a outro. Em outras palavras, ele “abre” ao indivíduo as “portas” do mundo, justamente por dar-lhe a possibilidade de ir ao encontro do que vislumbra e deseja conquistar, seja para satisfação das necessidades mais imediatas como aquelas de maior envergadura espiritual. Mantendo o indivíduo atado a terra, ele também é, dialeticamente, o vetor que possibilita a alteração de sua posição nela.
Consoante esses esclarecimentos, uma leitura plausível de ser dada ao diálogo entre o pé, abola e a arena em forma de quadratura, a partir das contribuições de Lhôthe (1994), Gheerbrant & Chevalier (1994), Retondar (2003) e Leloup (2009) é a seguinte: a disputa da bola com os pés em um campo em forma de quadratura alude ao perpétuo exercício realizado pelos homens de abertura, com as “chaves” mais imediatas de que dispõem (o conhecimento; a religião; a capacidade de reflexão; o poder de ponderar, gerar e utilizar saberes; etc.), das portas que ocultam à sua percepção as verdades profundas da existência. Assim, podemos interpretar o jogo de futebol como um retrato dos incertos e precários diálogos do sujeito com a totalidade dos acontecimentos ao seu entorno desde quando este adquire consciência de si no mundo, diálogos esses em grande medida marcados pelo anseio de respostas acerca da origem e destino das coisas materiais e imateriais.
Tal anseio sobre a origem e o destino de si e dos entes à sua volta nunca deixou de vigorar entre os homens, independente de época ou lugar. A razão disso parece clara, diz-nos Emil Cioran (1969): viver significa experimentar ganhos e perdas. Segundo Cioran (1969), ao nascermos já deixamos de lado toda destinação ao conforto, porquanto a saída do útero materno implica a inevitável entrada no plano da contrariedade. À medida que crescemos e nos desenvolvemos em termos físicos e psíquicos, tendemos a inquirir acerca da origem e destino dos outros entes vivos e inanimados porque esse é o corolário de quem os vê surgir e desaparecer. No fundo, assevera Cioran (1969), toda descoberta que o indivíduo faz de si no mundo esbarra na inevitável interação com o outro, que, por sua vez, ocasiona desgastes e conquistas. Aprender a equacionar esses fluxos sempre exige novas elaborações.
Dessa feita, cabe então perguntar: na medida em que a disputa pela bola com os pés em arena quadrada ou retangular alude ao percurso vital que o homem deve percorrer no mundo, incluindo aí as perdas e ganhos decorrentes do inevitável esforço que precisa despender para obter as informações primordiais à gestão de sua vida, onde estariam corporificados no jogo de futebol os aspectos do cotidiano que tanto nutrem a vontade de superação das adversidades pelas vias do aprendizado como produzem a dor e o sofrimento? Poderíamos dizer que a equipe adversária, dentro do possível, é a instância que executa esse papel. Enquanto antagonista, ela simultaneamente ameaça e direciona o controle, a partilha e a posse eficientes da bola. Ela encarna a pressão do outro no indivíduo, bem como o chamamento a esse para intervir nas circunstâncias que incidem sobre sua vida.
As movimentações desempenhadas pela equipe adversária permitem uma analogia com a figura de um labirinto. Saber ludibriá-la reflete o potencial inalienável da condição humana para discernir e resolver problemas, potencial esse que criou a civilização, arte, mitos, ciência e religião.
O labirinto é (...) um entrecruzamento de caminhos (...) e (...) impasses. A essência (...) mesma do labirinto é circunscrever no menor especo possível o mais completo emaranhado de veredas e retardar assim a chegada do viajante ao centro que deseja atingir (...). Quanto mais (...) numerosos e árduos os obstáculos, mais (...) se (...) adquire um novo ser. (Gheerbrant & Chevalier, 1994, p. 532).
No bojo desse cenário, o evento máximo da partida (a colocação da bola dentro da meta) remete aos fortuitos momentos onde o sujeito assenhora-se das circunstâncias pessoais e contextuais ao seu redor, inventa uma solução adequada aos seus impasses e decide pô-la, com sucesso, em prática. Todavia, pelo fato de tais respostas insurgirem como reações a eventos dinâmicos, suas durações também acabam sendo efêmeras. Tão logo o problema cessa, elas desvanecem; em decorrência, resta ao sujeito recomeçar novamente o processo. Em termos do jogo de futebol, tal situação equivaleria ao momento imediatamente posterior ao acontecimento do gol, em que o jogo cessa para ser reiniciado, e assim sucessivamente quantas vezes for preciso.
Delineado esse breve panorama, convém agora discutir o papel da mão no futebol, usando como pano de fundo a função desempenhada pelo goleiro ou guarda-metas. Em linhas gerais, ele insurge na condição de derradeiro obstáculo a ser suplantado pelo ímpeto das vontades que, no curso dos seus aprendizados e superações, anseiam se libertar do peso das restrições que tendem a imobilizá-la e gerar sofrimento. Vencer a barreira final do guarda-metas significa identificação, equacionamento e encontro de soluções, na brevidade do instante, para os problemas mais difíceis de resolução. Basta lembrar que atrás dele está a instância mais profunda do jogo que carece de ser alcançada: o prêmio do gol.
Um aspecto que em muito engrandece a característica diferenciada do guarda-metas como obstáculo final a ser batido é justamente a prerrogativa de que apenas ele goza e os outros futebolistas não: poder empregar as mãos. Gheerbrant & Chevalier (1994) nos lembram que as culturas judaico-cristã e helênica acreditavam que a materialidade da mão (formato, rugas, tamanho, etc.) guardava, em linguagem oculta, os segredos metafísicos da vida. Entre os gregos, a quiromancia, ou técnica de leitura das mãos, representava a arte mística de revelar esses dados ocultos. Contabilizado esse último fator, a mão, chegamos ao conjunto de termos que, para nós, melhor retrata simbolicamente o futebol: ele é um todo delineado pela interação entre pé, bola, arena em forma de quadratura, labirinto e mão. No nosso entendimento, eis a estrutura formal do jogo de futebol.
A partir desse olhar, o futebol remete a um jogo desportivo cujas ações refletem a procura humana por explicações, com base nos conhecimentos disponíveis (o pé, na qualidade de raiz e chave do saber), para as incertezas que confundem e causam aflição ao existir (consubstanciadas nos esforços de superação da equipe antagônica como labirinto). No fundo, essa procura por respostas espelha, em si mesmos, a dupla circunstância que marca o homem (a coincidentia oppositorum entre bola e quadratura): ao mesmo tempo que possui uma materialidade biológica da qual não pode se desvencilhar, sendo assim semelhante aos outros seres animais, sabe-se também diferenciado deles por causa de uma percepção metafísica do mundo que apenas sua espécie, e mais nenhuma outra, tem. Dado esse cenário, marcar o gol coincide com os momentos onde os nós de problemáticas que lhe afetam por causa dessa condição são desfeitos e soluções encaminhadas, ainda que temporariamente. A execução dessa tarefa demanda ponderações, avaliações e resoluções de questões das mais variadas espécies (eis o imperativo de descobrir como ler e decifrar a barreira final da mão, que é o principal recurso do guarda metas e o obstáculo final a ser suplantado pelos seus adversários).
Ainda em relação ao goleiro, ele emerge como o guardião do objeto sagrado do jogo, que é a meta. Nas mitologias arcaicas, os protetores dos tesouros ou geralmente apresentavam características sobre-humanas. Para impedir a violação dos espaços que protegiam, o guardião ou protetor tendia, de acordo com Campbell (1999), a assumir quatro perfis básicos: herói, gênio, dragão ou monstro.
O herói é aquele que funda um acontecimento vital (reino, nação, etc.) e mantém-no perdurando na qualidade de supremo chefe dos exércitos (Jasão e os argonautas; Aquiles e as tropas que tomaram Tróia; as expedições guiadas por Hércules contra Augias, Pilos e Esparta, etc.). Já a figura do gênio subentende o protetor mágico do Eu, como fazem os anjos em relação aos seus devotos. Para tal, dominam a magia, sendo capazes de atos inadmissíveis aos outros homens, como voar e se multiplicar. Em se tratando do dragão e do monstro, eles são as assustadoras figuras que intimidam e mesmo destroem os incautos que ousam saquear os bens contidos nos templos ou cavernas que velam. Superiores em tamanho, ferocidade, força e potência, reunindo características de animais de diferentes espécies (os dragões são uma mistura de serpentes e lagartos voadores; a Esfinge é um monstro com corpo de felino e cabeça de humano), tentar vencê-los concerne a uma proeza que demanda coragem e ao mesmo tempo ousadia.
Enfim, o futebol corresponde a uma metáfora da sina humana, marcada por desconfortos e alegrias, decepções e surpresas, ganhos e perdas, onde faz-se necessário aprender a gerir demandas que ora se opõem, ora se complementam. Por mais que consigamos prever acontecimentos, muitas vezes a ordem do acaso impera, obrigando o assim sujeito a reformular suas perspectivas e projeções.
Considerações finais
No bojo da análise feita, parece salutar que o futebol pertence a uma genealogia de jogos dotados de características místicas, pois nele estão gravadas as etapas que, nos círculos sagrados, iam dos saberes comuns aos conhecimentos superiores. Nesse sentido, a lógica do futebol envolve uma dimensão ritualística da qual ele não consegue se livrar, supondo o rito como a encenação de mitos.
Mesmo nos dias atuais, quando sua situação é a de um esporte secularizado, esses elementos continuam presentes. Assumindo a máxima de Kant (2006) de que quando jogamos um jogo e acreditamos dominar completamente nossas ações não passamos de tolos, porque na verdade é a natureza que joga conosco, parece que tanto nos momentos em que as pessoas praticam o futebol como naqueles em que apenas resolvem assisti-lo, profundos impulsos são chamados à emergência. Essa hipótese não soa de todo descabida quando nos lembramos do poderio que esse esporte tem de chamar a atenção do mundo para si.
Mas o que estaria na base dessa sedução? Não é nossa pretensão propor respostas; contudo, provavelmente a linguagem do futebol e o inconsciente coletivo humano convergem e se encontram em algum determinado ponto que, quando alcançado, mostram as massas um duplo reflexo daquilo que são e deixam de ser. Atingido esse ponto, muitos dos sentidos latentes sobre os quais discorremos tendem a aparecer e a mostrar sua pujança universal. Logo, o imperativo antropológico de estudá-los a fundo.
Referências bibliográficas
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 1999.
CIORAN, Emil. Le mauvais démiurge. Paris: Gallimard, 1969.
DA MATTA, Roberto. Universo do futebol. Rio de Janeiro: Pinakotheke,1982.
GASTALDO, Édison. Ritos da nação: uma videoetnografia da recepção coletiva da Copa do Mundo no Brasil. Rev. Bras. Cienc. Esporte, Campinas, v. 31, n.1, p. 209-222, setembro 2009.
GHEERBRANT, Alain; CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
GUEDES, Simoni. O Brasil no campo de futebol: ensaios antropológicos sobre os significados do futebol brasileiro. Niterói: EDUFF, 1998.
KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Piracicaba, SP: Editora UNIMEP, 2006.
LELOUP, Jean Yves. O corpo e seus símbolos: uma antropologia essencial. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
LHÔTHE, Jean Marie. Histoire des jeux de société. Paris: Flammarion, 1994.
RAMOS, Jayr Jordão. Os exercícios físicos na história e na arte. São Paulo: IBRASA, 1982
RETONDAR, Jeferson. Jogo: ponto de encontro entre deuses e homens. In: COSTA, Vera Lúcia/FERREIRA, Nilda Teves. (Org.) Esporte, jogo e imaginário social. Rio de Janeiro: Shape, 2003.
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digital · Año 15 · N° 147 | Buenos Aires,
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